Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5239/2006-7
Relator: ROSA RIBEIRO COELHO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
LOTEAMENTO URBANO
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/28/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I – Sendo feita pelo autor a determinação do objecto do processo, para a definição da competência material não interessa o que se passou na realidade, mas o que é alegado por aquele.
II – Se em virtude do desenvolvimento da lide – designadamente devido a posições assumidas pelos réus na contestação –, a decisão a proferir ficar dependente da decisão de uma questão da competência de um tribunal administrativo, não fica o tribunal judicial impedido de a conhecer, na justa medida em que, como se vê do disposto no art. 97º do Código de Processo Civil, é meramente facultativa a suspensão da instância que nesse caso pode ter lugar.
III – A transmissão das parcelas a ceder ao município no âmbito de um processo de reconversão de uma AUGI, mediante operação de loteamento, dá-se apenas com a emissão do alvará para a execução das obras, e não com a aprovação do loteamento.
IV – O prédio ou prédios integrados na mesma AUGI estão sujeitos a um regime de administração conjunta, assegurada pelos respectivos proprietários ou comproprietários, que não goza de personalidade jurídica.
V – Esta administração conjunta tem personalidade judiciária, que lhe permite agir em juízo no âmbito dos interesses definidos na lei – a reconversão urbanística –, ficando fora deste campo de actuação o exercício de poderes gerais de administração, designadamente os de gestão, conservação e manutenção da coisa comum, cabendo tal aos diversos proprietários ou comproprietários.
VI – Quem se apresenta como arrendatário de um prédio urbano é parte legítima na acção em que se discute se esse arrendamento é inexistente ou nulo por ter como objecto um prédio clandestino, já que tais vícios apenas se repercutirão na decisão de mérito, e não no plano dos pressupostos processuais.

(RMRC)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
7ª SECÇÃO CÍVEL
I – R.[…] e sua mulher R.[…] e P.[…] Lda., intentaram contra L.[…] S.A., junto da 1ª Vara de Competência Mista de Loures, a presente acção declarativa, com processo ordinário, pedindo a condenação da ré a não prosseguir com a execução das obras por eles descritas na petição inicial.

Este seu pedido assenta, essencialmente, no seguinte:

a) As obras em causa são obras de ligação das redes de drenagem de esgotos pluviais e domésticos da via T7, na Rua Particular (à Rua das Forças Armadas), Campo do Rio, em Camarate, obras essas que se situam no prédio rústico sito na Quinta de S. João do Campo do Rio, descrito na Conservatória do Registo Predial de Loures […]

b) Este prédio integra-se numa Área Urbana de Génese Ilegal (AUGI) relativamente à qual decorre um processo de reconversão urbanística sob a forma de operação de loteamento da iniciativa dos proprietários, tendo o respectivo pedido de loteamento sido apresentado na Câmara Municipal de Loures, mas sem que tenha sido emitido já o alvará de loteamento;

c) A ré é a responsável por estas obras, que os autores nunca autorizaram, antes se tendo oposto expressamente à sua realização;

d) Os autores são, entre muitos outros, comproprietários do prédio rústico em questão;

e) São, também, proprietários de uma edificação construída no mesmo prédio e que está inscrita na matriz urbana […];

f) Nesta edificação, de que é arrendatária a autora P.[…] Lda., funciona um estabelecimento industrial onde esta exerce a actividade de metalomecânica ligeira;

g) Esta edificação é uma estrutura frágil, constituindo as obras da ré um elevado risco para a segurança da sua construção, podendo levar à sua ruína ou a graves e irrecuperáveis danos estruturais e impedir a laboração dessa empresa;

h) As obras em causa violam o direito de propriedade dos primeiros autores e o direito da segunda autora ao uso e fruição do prédio arrendado.

Na contestação apresentada, a ré, além do mais que aqui não interessa destacar, deduziu as excepções da incompetência do tribunal em razão da matéria – competência que atribui aos tribunais administrativos – e da ilegitimidade, quer activa, quer passiva.

Estas excepções foram julgadas improcedentes no despacho saneador.

Contra ele, nesta parte, interpôs a ré o presente agravo, em cujas alegações pede a sua revogação e formula as seguintes conclusões:

a) O agravamento da pressão demográfica na segunda metade do Sec. XX sobre as grandes cidades e seus arredores, nomeadamente na procura de terrenos para construção, conduziu à divisão ilegal de lotes nesses terrenos e à construção clandestina;

b) Na defesa do interesse público o Estado estabeleceu a proibição desses loteamentos e construções clandestinas, e a punição dos responsáveis; mas não obteve resultados;

c) Reconhecendo a sua impotência para impedir os loteamentos e construções clandestinos, o Estado através da Lei 91/95, de 2 de Setembro – alterada pelas Leis nº 165/99, de 14.9, e nº 64/03, de 23.8 – veio estabelecer imperativamente a reconversão urbanística dos loteamentos clandestinos;

d) A Lei nº 91/95 criou a figura jurídica das “áreas urbanas de génese ilegal (AUGI)” para as quais estabeleceu um regime legal imperativo e excepcional de administração conjunta tendo como órgãos institucionais a Assembleia de comproprietários, a Comissão de Administração e a Comissão de Fiscalização;

e) O prédio rústico, de que os autores Rafael e Rosa são comproprietários com uma quota de 60/19463 avos, denominado Bairro […], é um loteamento clandestino que por iniciativa e deliberação dos comproprietários – com o acordo dos autores – se sujeitou ao regime excepcional imperativo das AUGI, determinado pela Lei 91/95; o edifício onde está instalada a autora P.[…], ali erigido, é uma construção clandestina;

f) Ao abrigo daquele diploma, e com vista à legalização desse loteamento clandestino, a assembleia dos comproprietários da AUGI do Bairro […] decidiu – também com o acordo dos autores – apresentar à Câmara Municipal de Loures um pedido de loteamento que envolvia a cedência do espaço para a Via T7 e para as respectivas obras;

g) A Câmara Municipal de Loures aprovou em 15.12.2003 o loteamento da AUGI do Bairro […], e isso determinou a transmissão para aquela autarquia da referida parcela de terreno da Via T7;

h) Assim o espaço da Via T7 onde decorrem as obras – cuja não prossecução constitui o pedido dos autores – foi transmitido para a Câmara Municipal de Loures e está integrado no respectivo domínio público;

i) A obra da Via T7 processa-se portanto em domínio público municipal; como um processo de loteamento é um procedimento administrativo, qualquer acto administrativo com eficácia externa que ofenda os direitos e interesses legalmente protegidos competirá à jurisdição administrativa apreciá-lo;

j) Esta acção é assim do foro administrativo; ao decidir de forma diferente o despacho saneador – de que se agrava – violou as regras da competência em razão da matéria;

k) No regime excepcional imperativo de administração conjunta das AUGI, estabelecido pela Lei nº 91/95, os comproprietários carecem de capacidade de exercício dos poderes de administração da coisa comum, os quais incluem os de conservação e manutenção; assim, os autores R.[…] e R.[…] não têm legitimidade para propor uma acção conservatória que cabe nos poderes de administração conjunta da Assembleia dos comproprietários;

l) Quanto à autora P.[…] esta carece de legitimidade porque não é arrendatária; a construção clandestina, onde se diz instalada, não é legalmente uma “coisa” que possa ser objecto de relações jurídicas; o arrendamento é juridicamente inexistente;

m) Se assim se não entender, o pseudo arrendamento da P.[…] é nulo por violação do art. 7º, nº 2, alínea b) do RAU, aprovado pelo Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro;

n) Mas se ainda assim não se considerasse, o “arrendamento” da P.[…] continuaria nulo porque sendo os AA. Rafael e Rosa comproprietários minoritários do prédio indiviso do Bairro […] precisariam do acordo da maioria dos comproprietários para o celebrar, o que não aconteceu – art. 1024º do Código Civil;

o) Como já referiu, o espaço onde se realiza a Via T7 é domínio público municipal; a Câmara Municipal de Loures é a dona da obra, e àquela será a mesma entregue; a ré ora agravante é portanto parte ilegítima nesta acção.

Nas contra-alegações apresentadas, defenderam as autoras a improcedência do recurso e o despacho foi sustentado.

Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo questões sujeitas à nossa apreciação, como resulta das conclusões formuladas - já que são elas, como é sabido, que delimitam o objecto do recurso – as de saber se a competência em razão da matéria não cabe aos tribunais judiciais e se as partes carecem de legitimidade.

II – As ocorrências processuais a considerar para a apreciação do recurso são as enunciadas em sede de relatório deste.

Há que ter ainda em conta que, como se vê do certificado a fls. 30, a presente foi proposta em 6.1.2005.

III – Abordemos, pois, as questões suscitadas.

Sobre a competência em razão da matéria:

Trata-se de saber se é correcta a propositura da acção no tribunal recorrido ou se, diversamente, deveria ter tido intentada nos tribunais da jurisdição administrativa.

Dizendo o art. 66º do C. P. Civil – diploma a que respeitam as normas de ora em diante referidas sem menção de diferente proveniência - que cabem aos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, interessa começar por apreciar se serão competentes os tribunais administrativos, aos quais cabe, nos termos do nº 3 do art. 212º da Constituição da República Portuguesa, julgar as acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.

A definição não taxativa – dada a expressão “nomeadamente” usada no nº 1 do preceito – destes litígios mostra-se feita no art. 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais – ETAF –, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro.

Como se vê do resumo da petição inicial acima feito, a acção visa a protecção de direitos privados – os direitos dos autores R.[…] e R.[…] enquanto comproprietários de um prédio rústico e proprietários de um prédio urbano naquele implantado e o direito da P.[…] ao uso e fruição, emergente da qualidade que terá de arrendatária do mesmo prédio urbano – contra obras, alegadamente ilícitas, levadas a cabo pela ré, ilicitude que adviria da circunstância de, apesar de o mesmo prédio urbano estar integrado numa AUGI que foi objecto de um processo de reconversão urbanística sob a forma de operação de loteamento já aprovada pela Câmara Municipal de Loures, ainda não ter sido emitido o alvará de loteamento e, portanto, ainda não terem passado para o domínio público municipal as parcelas de terreno a ceder àquela Câmara onde os trabalhos da ré decorriam.

Defendem, pois, direitos privados no âmbito de uma relação jurídica por eles configurada como de direito privado, pelo que na sua óptica – que é a relevante para efeitos da determinação da competência – não existe a relação jurídica administrativa que caberia na competência do tribunal administrativo.

Ora, como escreve Castro Mendes (1), a determinação do objecto do processo é necessariamente feita pelo autor.

Se, em virtude do desenvolvimento da lide – designadamente devido a posições assumidas pelos réus na contestação –, a decisão a proferir ficar dependente da decisão de uma questão da competência de um tribunal administrativo, não fica o tribunal judicial impedido de a conhecer, na justa medida em que, como se vê do disposto no art. 97º, é meramente facultativa a suspensão da instância que no caso pode ter lugar.

Tem essa natureza a questão suscitada pela ré, segundo a qual a aprovação do loteamento pela Câmara Municipal de Loures teria operado já a transferência da parcela em causa para o domínio público, o que faria cair a acção na alçada da jurisdição administrativa.

Neste momento e para o fim que ora nos ocupa – que é, relembre-se, a definição da competência material – não interessa o que se passou na realidade, mas o que é alegado pelos autores da acção.

Os autores alegaram expressamente que o alvará de loteamento ainda não foi emitido.

Uma vez que a Lei nº 91/95, de 2 de Setembro, que nada estatui de diferente quanto ao momento em que se dá a transmissão das parcelas a ceder ao município para o domínio deste, manda aplicar, no nº 2 do seu art. 4º, na redacção dada pela Lei nº 64/2003, de 23 de Agosto, as disposições do Decreto-Lei nº 555/99, de 16 de Dezembro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 177/2001, de 4 de Junho, à reconversão das AUGI, somos remetidos para a necessidade de aplicar o disposto nos arts. 44º, nº 3 e 80º, nº 1 daquele Decreto-Lei nº 555/99, dos quais resulta que aquela transferência de domínio ocorre apenas com a emissão do alvará para a execução das obras.

Em contrário disto nada aduziu a agravante, pese embora a argumentação já constante da petição inicial, limitando-se a afirmar nas suas alegações que a transmissão se deu com a aprovação do pedido de loteamento, mas sem ensaiar a demonstração desta sua tese.

Os direitos cuja tutela é pedida na acção não têm o seu fundamento em normas de direito administrativo nem decorrem de actos jurídicos praticados ao abrigo de normas dessa natureza, pelo que não tem aplicação a regra constante da al. a) do nº 1 do art. 4º do ETAF.

Pelo contrário, da eventual aplicação de normas de direito administrativo poderá extrair-se a conclusão da inexistência desses direitos invocados pelos autores, mas isso não é factor de atribuição de competência aos tribunais administrativos.

Caso viesse a demonstrar-se nos autos que havia já emissão do alvará quando as obras foram iniciadas, isso faria concluir pela inexistência dos direitos de propriedade e de fruição a que os autores se arrogam, com a consequentemente improcedência da acção, decisão essa que, naturalmente, caberia na competência material do tribunal judicial.

Assim, não merece qualquer censura, sendo antes de confirmar, a orientação seguida pelo Tribunal de 1ª instância quanto à competência material.

Quanto a este ponto, soçobram, pois, as razões invocadas pela agravante.

Sobre a legitimidade das partes:

Começa a agravante por sustentar, neste campo – conclusão K) – que, estando as AUGI sujeitas, durante o processo de reconversão urbanística, a um regime de administração conjunta, o interesse em demandar apenas caberia à AUGI através da assembleia de comproprietários, e não aos autores.

Para apreciar esta questão impõe-se que analisemos a organização e natureza jurídica da AUGI, bem como a competência dos seus órgãos.

O art. 8º, nº 1 da Lei nº 91/95 sujeita o prédio ou prédios integrados na mesma AUGI a um regime de administração conjunta, assegurada pelos respectivos proprietários ou comproprietários. A administração conjunta não goza de personalidade jurídica, tendo como órgãos a assembleia de proprietários ou comproprietários, a comissão de administração e a comissão de fiscalização – cfr. nº 2 e 6 do mesmo preceito legal, estas na redacção dada pela citada Lei nº 64/2003.

Apesar da exclusão expressa da personalidade jurídica da administração conjunta, a Lei nº 91/95 - na sua redacção actual - admite a sua intervenção nos tribunais, como se vê do nº 8 do seu art. 12º – a acção de impugnação de deliberações da assembleia é intentada contra a administração conjunta, representada pela comissão de administração – e da al. g) do nº 1 do seu art. 15º – compete à comissão de administração pleitear em juízo, dispondo para tal de legitimidade activa e passiva nas acções emergentes das relações jurídicas em que seja parte.

Da primeira destas disposições extrai-se que à administração conjunta é atribuída personalidade judiciária, sendo representada, em sintonia com o princípio constante do art. 22º do C. Proc. Civil, pelo seu órgão de administração.

A segunda disposição parece enfermar de erro teórico, já que, no rigor dos princípios, só pode ter legitimidade quem puder ser parte, por ter personalidade jurídica ou, ao menos, personalidade judiciária. E, em consonância com o referido nº 8 do art. 12º, também aqui deveria caber à comissão de administração a representação judiciária da administração conjunta, em solução paralela à que emerge da conjugação dos arts. 1437º do C. Civil e do art. 6º, al. e) do C. P. Civil.

De qualquer modo, a personalidade judiciária apenas permite que quem dela beneficia aja em juízo no âmbito dos interesses definidos na lei, ficando o resto fora do campo possível da sua actuação.

O mais caberá aos proprietários ou comproprietários que fazem parte da administração conjunta, integrando-a, mas a título individual – e não à administração conjunta, enquanto tal.

A AUGI é criada apenas com vista à reconversão urbanística e a actuação dos seus órgãos é concebida dentro dos limites desta.

Assim, à assembleia compete, em geral, acompanhar o processo de reconversão e fiscalizar os actos da comissão de administração e ainda, em especial, deliberar promover a reconversão, eleger e destituir os membros das comissões de administração e fiscalização, aprovar os projectos de loteamento e de divisão de coisa comum, deliberar sobre as comparticipações dos seus membros e sobre os orçamentos para obras e aprovar contras da administração – cfr. art. 10º da mesma Lei.

Por outro lado, à comissão de administração compete, no plano externo, participar na tramitação do processo de reconversão, celebrar os contratos para execução de projectos e obras, constituir e movimentar contas bancárias e pleitear em juízo nos termos já referidos e representar os titulares dos prédios incluídos na AUGI em actos notariais e perante serviços de finanças e de registo predial, para além de outras competências no plano interno – cfr. art. 15º da mesma Lei.

E à comissão de fiscalização cabe emitir pareceres e opiniões sobre matérias em que seja convidada pelos outros órgãos – cfr. art. 16º-B da mesma Lei.

Não pode, pois, dizer-se que caiba aos órgãos da administração conjunta o exercício de poderes gerais de administração, designadamente os de gestão, conservação e manutenção da coisa comum, antes cabendo aos diversos proprietários ou comproprietários o exercício, nos termos gerais, dos poderes respeitantes a essa matéria.

A oposição às obras levadas a cabo pela agravante não se insere, pois, no âmbito da competência de qualquer dos órgãos da administração conjunta, estando fora do âmbito dos interesses cuja prossecução a esta é confiada; daí que aos autores comproprietários, ora agravados, se tenha de reconhecer legitimidade activa para esta acção.

A segunda das invocadas excepções de ilegitimidade – conclusões L), M) e N) –, esta atinente à autora P.[…], é fundada na alegada circunstância de a mesma não poder ser tratada como arrendatária por ser juridicamente inexistente o invocado arrendamento, já que o prédio, sendo clandestino, não pode ser objecto de relações jurídicas; ou, a entender-se de modo diverso, por ser nulo o arrendamento, seja por falta de escritura pública, seja porque, intervindo nele comproprietários na posição de locadores, careciam de autorização, não dada, dos demais comproprietários.

Neste ponto a agravante revela confundir pressupostos processuais com o mérito da acção.

Consagrando a tese de Barbosa de Magalhães sobre a legitimidade processual, o art. 26º, nº 3 passou a ter, por via da alteração introduzida pela reforma processual de 1995-96, a seguinte redacção: “Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”.

Ora, considerando que esta autora se apresenta como arrendatária de um prédio urbano, invocando um direito que emergirá dessa qualidade e estará a ser violado pela agravada, mostra-se configurada uma relação jurídica cujos sujeitos são, aquela do lado activo e esta do lado passivo.

A questão de saber se o arrendamento é inexistente por ter como objecto um prédio clandestino ou se é nulo por qualquer das razões acima apontadas, não se repercute, como é bom de ver, na legitimidade da autora – excluindo-a ou afirmando-a, consoante fosse positiva ou negativa a resposta ao problema -, mas no mérito do pedido formulado.

Supondo-se a existência dessa relação, tal como é delineada por esta autora, e estando na acção aqueles que serão os seus sujeitos, tem de afirmar-se a legitimidade das partes, podendo discutir-se, isso sim, a viabilidade da pretensão deduzida, em julgamento de fundo, ou de mérito.
 
A agravada pode não ter, pelas invocadas razões, qualquer direito a exigir que a agravante pare as obras, mas tem, seguramente, o respectivo direito de acção judicial, isto é, tem direito a que um tribunal aprecie e julgue a sua pretensão. Nisto se traduz a sua legitimidade activa para a acção.

Finalmente - conclusão N) –, a agravante sustenta a sua própria ilegitimidade, questão que é manifestamente improcedente pelo que se dispõe no nº 3 do art. 26º.

Sendo-lhe atribuída pelas autoras a efectivação da obra, é evidente a sua legitimidade passiva; a apreciação e valoração das circunstâncias em que terá agido – se por iniciativa própria, se por incumbência da Câmara Municipal – apenas terão lugar adequado em sede de mérito da causa.

Impõe-se, pois, a improcedência do agravo.

IV – Pelo exposto, nega-se provimento ao agravo, mantendo-se o despacho recorrido.

Custas a cargo da agravante.

Lxa. 28.11.06

(Rosa Maria Ribeiro Coelho)
(Arnaldo Silva)
(Graça Amaral)



_________________________
1.-Direito Processual Civil, II, AAFDL, 1980, pág. 170