Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1005/25.4PTLSB-A.L1-9
Relator: ANA PAULA GUEDES
Descritores: CASO JULGADO FORMAL
PRISÃO PREVENTIVA
OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/20/2025
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Sumário (da responsabilidade da Relatora):
I- O caso julgado formal refere-se à força vinculativa das decisões dentro do mesmo processo.
II - Não viola o caso julgado formal o despacho que manteve o arguido sujeito à medida de coação de prisão preventiva, quando o despacho que aplicou a medida de coação apenas indicou a possibilidade de, futuramente, vir a ser aplicada ao arguido a OPHVE.
III - A informação prestada pela DGRSP tem como objetivo fornecer ao Tribunal as condições necessárias para a exequibilidade da medida de OPHVE, cabendo exclusivamente a este avaliar a adequação, ou não, da medida.
IV - O facto de o relatório concluir pela verificação das condições pessoais, familiares, habitacionais e económicas para o cumprimento da medida não impede o seu indeferimento por parte do Tribunal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência os Juízes da 9º secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I-Relatório:
No âmbito dos autos de inquérito nº 1005/25.4PTLSB-A.L1, do Tribunal Central Instrução Criminal, Juiz 1, por despacho datado de ........2025, foi proferida a seguinte decisão:
Fls. 603 a 605 (requerimento do arguido AA – alteração da medida de coação):
Embora com a mesma data, entrou em juízo após o signatário ter proferido o despacho de fls. 598.
O alegado não altera, de modo algum, os fundamentos de facto e de direito do despacho de fls. 598 com base nos quais foi indeferido o requerido.
Assim sendo, dou o despacho de fls. 598 integralmente por reproduzido, agora por referência ao requerimento do arguido AA de fls. 603 a 605”.
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Inconformado com este despacho veio o arguido AA interpor o presente recurso.
Apresenta as seguintes conclusões:
“1. O douto despacho não fundamentou devidamente a aplicação da prisão preventiva, limitando-se a considerações genéricas sobre a sua manutenção.
2. O douto despacho recorrido violou o caso julgado formal formado pelo despacho de 1º interrogatório judicial de arguido detido, no qual o Juiz entendeu que, embora fosse decretada a prisão preventiva, esta seria substituída pela medida de OPHVE, desde que verificadas as condições de exequibilidade previstas no artigo 7º, nº 2, da Lei nº 33/2010, de 2 de setembro.
3. O relatório da DGRSP concluiu de forma expressa que o recorrente apresentava condições pessoais, familiares, habitacionais e económicas para o cumprimento da medida de OPHVE, acrescentando que a atual situação jurídico-penal já exercia efeito persuasivo sobre a sua conduta futura.
4. O despacho recorrido, ao interpretar de forma contrária as conclusões do relatório social e ao manter a prisão preventiva, incorreu em erro notório na apreciação da prova documental junta aos autos (artigos 410º, nº 2, al. c), e 163º do CPP).
5. A decisão recorrida incorre em manifesta desproporção e violação dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade previstos no artigo 193º, nº 3, do CPP, ao optar pela medida mais gravosa e excecional — prisão preventiva — sem ponderar devidamente medida menos lesiva mas eficaz (OPHVE).
6. Ao contrário do afirmado no despacho recorrido, o recorrente não praticou atos diretos de violência, não se encontrando nos autos prova concreta da sua atuação ativa, sendo que, nos termos do artigo 29º do CP, a sua responsabilidade só pode ser apreciada em função da sua própria culpa.
7. O despacho recorrido padece, assim, de nulidade processual, de erro de direito e de erro na apreciação da prova, devendo ser revogado, com substituição da medida de coação de prisão preventiva pela de OPHVE, medida adequada, necessária e proporcional ao caso.
8. Violou assim o douto despacho por erro e má interpretação do direito, os dispositivos legais supra indicados e ainda os artigos 620º, nº1 CPC ex vi artigo 4º do CPP e 97º, nº5 do CPP, conforme se motivou e para aí integralmente se remete”.
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O recurso foi admitido por despacho datado de ........2025, a subir de imediato, em separado e com efeitos devolutivos.
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O MP respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção do arguido em prisão preventiva.
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Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, a Ex.mª Senhora Procuradora Geral Adjunta, emitiu parecer acompanhando os fundamentos da resposta do Ministério Público em 1ª Instância, acrescentando que :
“Tendo o Arguido/Recorrente requerido a alteração da medida de coação prisão preventiva, por OPH com VE, não pode ignorar que as medidas de coação estão sujeitas à condição rebus sic stantibus, não podendo ser revogadas ou substituídas por outras, sem que tenha havido alteração dos pressupostos de facto e de direito, que as determinaram (sendo citada, inclusive, jurisprudência atual, pela senhora Magistrada, junto da 1ª instância, na sua resposta).
Consequentemente, tendo o Exmº JIC entendido não se verificarem quaisquer alterações de facto e de direito, seria, como o foi, de determinar a sua manutenção.
Relativamente ao erro na apreciação da prova, na fase em questão estamos perante indícios, pelo que o erro na apreciação da prova só será aplicável em sede de decisão, como aliás o indica a própria inserção da norma, em fase de julgamento.
Pelo exposto, emite-se parecer no sentido de que o recurso do Arguido não merece provimento, sendo de confirmar o despacho recorrido”.
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Foi cumprido o 417, nº2 do CPP.
O arguido veio responder ao parecer do MP.
Colhidos os vistos legais foi o processo submetido à conferência.
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II- Fundamentação:
É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões(…), sem prejuízo da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal nas decisões finais (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I série-A, de 28/12/95- O objeto do recurso está limitado às conclusões apresentadas pelo recorrente -cfr. Ac. do STJ, de 15/04/2010:).
Assim, o conhecimento do recurso está limitado às suas conclusões, sem prejuízo das questões/vício de conhecimento oficioso.
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Na situação concreta são as seguintes as questões a decidir:
- Da falta de fundamentação da decisão recorrida;
- Da violação do caso julgado formal;
- Da aplicação da medida de coação de OPHVE.
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É o seguinte o teor da decisão recorrida:
“Fls. 603 a 605 (requerimento do arguido AA – alteração da medida de coação):
Embora com a mesma data, entrou em juízo após o signatário ter proferido o despacho de fls. 598.
O alegado não altera, de modo algum, os fundamentos de facto e de direito do despacho de fls. 598 com base nos quais foi indeferido o requerido.
Assim sendo, dou o despacho de fls. 598 integralmente por reproduzido, agora por referência ao requerimento do arguido AA de fls. 603 a 605”.
É o seguinte o teor do despacho dado por reproduzido:
“ Na sequência do 1º interrogatório judicial, pelo despacho proferido a ........2025, foi determinada a sujeição dos arguidos BB, AA e CC à medida de coação de prisão preventiva.
No entanto, a final, o Mm.º Juiz, determinou que relativamente a cada um dos arguidos se solicitasse à DGRSP a informação prévia a que alude o art. 7º, n.º 2 da Lei n.º 33/2010, de 2.9., isto com vista à aplicação de eventual medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica.
As informações prévias constam de fls. 561 a 575.
O M.P. pronunciou-se no sentido de se manter o estatuto coativo atual (fls. 580 a 582) – prisão preventiva.
Cumprido o contraditório, somente respondeu o arguido CC (fls. 595 a 597), pugnando pela substituição da medida atual.
Decidindo, dir-se-á:
Não se coloca em causa que em relação a todos os arguidos existem condições habitacionais e económica que permitiriam a substituição da medida.
No entanto:
Não posso deixar de levar em consideração as várias “nuances” indicadas pela DGGSP – as quais dou por reproduzidas - nas 3 informações prévias que desaconselham a substituição da medida atual pela de OPHVE.
Acresce que:
Os factos indiciados ainda são muito recentes (........2025).
Como consta no despacho que aplicou as medidas de coação, “são reveladores de uma personalidade disfuncional, impulsiva e sem auto-controlo, que reage emotivamente, revelando um total desprezo e indiferença para as consequências que do seu comportamento poderia advir para pessoas e bens”.
Acrescenta-se ou enquadra-se os factos no contexto da rivalidade clubística, aponta-se – com o que se concorda – com a extrema gravidade dos crimes, e anota-se o “concreto perigo de continuação da atividade criminosa, com a consequente perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, não se podendo olvidar os sentimentos de alarme social e de insegurança que comportamentos de natureza daqueles que se encontram indiciados geram na comunidade (…).
Ora, tendo isto presente, concordo com a douta promoção do M.P. (fls. 580 a 582) e respetivos fundamentos – aos quais adiro e dou por reproduzidos -, no sentido de que, por ora, se mostra inviável a substituição da medida de coação a que os arguidos estão sujeitos por outra menos gravosa, designadamente a OPHVE.
Pelo exposto e razões aduzidas:
1) Determino que os identificados arguidos continuem a aguardar os ulteriores termos do processo sujeitos à medida de coação de prisão preventiva”.
É o seguinte o teor do despacho que aplicou a prisão preventiva ao recorrente:
“ Tendo em conta a análise crítica e conjugada da globalidade dos elementos probatórios elencados na promoção do Ministério Público de apresentação dos arguidos, a fls. 273 a 275 dos autos, conjugada com as declarações prestadas por cada um dos arguidos na presente diligência de 1.º interrogatório judicial, considero encontrar-se fortemente indiciada toda a factualidade a que é feita referência no requerimento do Ministério Público de apresentação dos arguidos, com excepção da parte final do artigo 23.º do requerimento, na parte em que se refere que a mochila subtraída à vítima DD teria “certamente um valor superior a 102 euros”, atenta a inexistência de qualquer prova relativa à marca, conteúdo ou valor da mochila subtraída.
(…)
O arguido AA possui, como habilitações literárias, o 9.º ano de escolaridade;
- exerce, desde há cerca de um ano, a actividade profissional de vigilante, na “...”, auferindo o salário base de € 960,00;
- vive na companhia dos pais e da irmã;
- não tem filhos;
- não lhe são conhecidos antecedentes criminais.
(…)
Os factos indiciados resultam da apreciação crítica e conjugada de todos os elementos probatórios carreados para os autos, elencados na promoção do Ministério Público de apresentação dos arguidos, a fls. 273 a 275 dos autos, elementos de prova que foram comunicados aos arguidos, onde avultam os depoimentos testemunhais dos ofendidos EE, FF, GG, HH e DD, que foram conjugados com o acervo documental junto aos autos.
Todos estes elementos foram conjugados e complementados com as declarações prestadas pelos arguidos BB, CC e AA na presente diligência de 1.º interrogatório judicial de arguido detido.
Inquiridos na qualidade de testemunhas, os ofendidos EE, FF, GG e HH, referiram, de forma, no essencial, coincidente, que, na data dos factos, quando o veículo automóvel em que seguiam se imobilizou nuns semáforos existentes na ..., foram abordados por um grupo de indivíduos, adeptos do ..., que começaram a arremessar pedras na direcção da viatura, tendo uma das pedras arremessadas embatido na cabeça do ofendido DD, condutor da viatura, que, em resultado do embate, ficou atordoado e a sangrar da cabeça, vindo a embater na viatura que precedia a viatura em que seguiam. Logo após o embate, o grupo de indivíduos, que continuou sempre a arremessar pedras, aproximou-se mais da viatura, tendo começado também a lançar tochas. Com a viatura imobilizada na via pública, e os cinco ofendidos no seu interior, um dos indivíduos que integrava o grupo, partiu o vidro traseiro da viatura, lançando para o seu interior, pelo menos, uma tocha em chamas, e, quase em simultâneo, outros indivíduos rodearam a viatura e dirigiram-se para as portas laterais, cujos vidros se encontravam totalmente abertos, atirando tochas a arder para o interior da viatura. Já com a viatura em chamas, designadamente na bagageira e nos tecidos dos bancos traseiros, quando os ofendidos tentaram sair do interior da viatura, não o conseguiram fazer, em virtude de os agressores terem bloqueado a saída, empurrando as portas do veículo pelo exterior, de forma contínua, impossibilitando, assim, que os ofendidos conseguissem abrir as portas e sair do carro, trancando-os no seu interior. Os ofendidos permaneceram, durante um período de cerca de dois a três minutos, a tentar abrir as portas para saírem da viatura, sem o conseguirem fazer, enquanto, do lado de fora da viatura, alguns dos indivíduos do grupo gritavam, repetidamente, “aqui é sporting youth, ides morrer aqui, filhos da puta”, “vão morrer”.
Perante a situação, os ofendidos sentiram imenso calor e muita dificuldade em respirar.
Apenas no momento em que alguns dos suspeitos começaram a gritar que vinha aí a polícia, é que a maioria dos elementos do grupo fugiu do local, para uma rua situada no lado esquerdo, só nesse momento os ofendidos tendo conseguido escapar da viatura, num momento em que as chamas, que começaram na zona da bagageira, já estavam a alastrar para a parte da frente do veículo. O ofendido GG salientou, ainda, que, enquanto decorriam as agressões, os indivíduos que compunham o grupo, realizaram diversas tentativas de roubar a sua mochila e o seu telemóvel, bem como os restantes pertences dos demais ofendidos, apenas tendo conseguido roubar a mochila do II – a este respeito, cfr. autos de inquirição de fls. 46 a 49, de fls. 51 a 53, de fls. 55 a 58 e de fls. 61 a 64, respectivamente.
As declarações prestadas pelos ofendidos, no essencial, coincidentes, mereceram-nos, a título indiciário, credibilidade, não apenas por serem coincidentes, o que abona, claramente, no sentido da sua veracidade, mas, igualmente, por encontrarem suporte de prova no acervo documental junto aos autos, com especial enfoque para a comunicação de notícia de crime de fls. 2 e 3, o auto de inspeção judiciária de fls. 4 a 28, o relatório da Polícia Judiciária, de fls. 29 a 37, o aditamento de fls. 69 e 70, os autos de visionamento de conteúdos multimédia de fls. 78 a 92, 93 a 124 e 125 a 135, os autos de exame preliminar de prova digital de fls. 183 a 191, relativo ao telemóvel do arguido CC, e de fls. 198 a 203, relativo ao telemóvel do arguido JJ, que, nas declarações prestadas em sede de 1.º interrogatório judicial de arguido detido, admitiu corresponder à verdade a factualidade enunciada nos arts. 27. e 28. do requerimento do Ministério Público de apresentação de arguidos.
É certo que, nos depoimentos que prestaram, os ofendidos referiram não serem capazes de reconhecer, em fotografia ou pessoalmente, nenhum dos indivíduos que integrava o grupo de indivíduos que praticaram os factos indiciados.
Apesar disso, o tribunal considera encontrar-se fortemente indiciado que os três arguidos integravam o referido grupo de indivíduos e tiveram uma participação activa e relevante nos factos praticados.
No que respeita aos arguidos BB e AA, importa salientar que, no depoimento que prestou, a testemunha KK, agente principal da P.S.P., a exercer funções na Brigada de Vigilância e Acompanhamento de Eventos Desportivos da 3.ª Esquadra de Investigação Criminal, cujo auto de inquirição integra fls. 168 a 170, que, na data dos factos, foi responsável pela intercepção destes dois arguidos, logo após os mesmos terem saído do pavilhão LL, após terem assistido à partida de futsal que opôs o ... à equipa dos ..., referiu não ter qualquer dúvida em como estes dois arguidos surgem nos vídeos que analisou, encontrando o seu depoimento, neste particular, suporte probatório:
- no auto de visionamento de conteúdos multimédia, que integra fls. 93 a 124, no que respeita ao arguido BB, em que é possível visualizar este arguido (que se encontra identificado com recurso a forma circular de cor vermelha), trajando uma indumentária em tudo idêntica aquela que trajava aquando da sua intercepção pelos agentes da PSP, que teve lugar cerca de duas horas depois da ocorrência dos factos, integrando um grupo de, pelo menos, catorze indivíduos, que cercavam a viatura em que seguiam os ofendidos, os agrediam e provocavam danos na viatura, sendo visível este arguido a arremessar, por diversas vezes, objectos contra a viatura, a abeirar-se da janela da porta do condutor da viatura das vítimas, bem como a fugir da zona do local dos factos.
Acresce, ainda, relativamente a este arguido, encontrar-se a sua intervenção nos factos fortemente indiciada com base nas mensagens áudio que, pelas 19H57 e pelas 20H20 desse dia, remeteu à namorada, onde diz: “pegámos fogo a dois carros deles, yá ainda levaram com bué de pedras na cabeça, bué de garrafas” e “A maior parte távamos tapados incluindo eu amor”, e respondendo à mensagem da namorada em que esta diz “E ta um socio em estado grave, so fzm merda”, o arguido refere “eu sei KKKK”.
- no auto de visionamento de conteúdos multimédia, que integra fls. 78 a 92, no que respeita ao arguido AA, em que é possível visualizar este arguido (que se encontra identificado com recurso a forma circular de cor vermelha), trajando uma indumentária em tudo idêntica aquela que trajava aquando da sua intercepção pelos agentes da PSP, que teve lugar cerca de duas horas depois da ocorrência dos factos, integrando um grupo de, pelo menos, vinte indivíduos, que cercavam a viatura em que seguiam os ofendidos, os agrediam e provocavam danos na viatura, bem como a fugir da zona do local dos factos.
Nas declarações que prestou na diligência de 1.º interrogatório judicial, o arguido afirmou tratar-se da pessoa que surge nos fotogramas de fls. 80, 81, 82, 83, 85, 86, 87, 88, 89 e 91 (identificado com recurso a forma circular de cor vermelha).
Já no que respeita ao arguido CC, pese embora no depoimento prestado, a testemunha KK se tenha pronunciado de forma dubidativa, referindo que este arguido foi abordado por existirem suspeitas de o mesmo estar directamente envolvido nos factos, isto por o mesmo acompanhar frequentemente os co-arguidos BB e AA, ressalvando “pensar que este também está retratado nos vídeos analisados, isto tendo em conta a sua indumentária, ainda que reconheça que a qualidade de imagem não permita ter certezas relativamente a este suspeito”, o tribunal considera encontrar-se fortemente indiciada a participação deste arguido nos factos enunciados no requerimento do Ministério Público, desde logo por o próprio arguido, nas declarações que prestou na presente diligência, ter afirmado, sem qualquer hesitação, ser o mesmo que se encontra retratado (identificado com recurso a forma circular de cor vermelha) nos fotogramas de fls. 127, 128, 129, 130 e 132, tendo, ainda, referido que, na ocasião, ouviu gritos e viu um total de cerca de vinte indivíduos a correr na direcção da viatura em que seguiam os ofendidos, e, em seguida, a atirar pedras na direcção da viatura e a desferir pancadas, com as mãos, na viatura, tendo visto alguns desses indivíduos com tochas na mão, tendo, ainda, afirmado que, nessa ocasião, os coarguidos BB e AA estavam perto da viatura automóvel em apreço. Numa fase subsequente das suas declarações, ao ser confrontado com os fotogramas juntos aos autos, o arguido CC identificou o coarguido BB como sendo a pessoa que surge retratada nos fotogramas de fls. 80, 96, 97, 98, 99, 100, 106, 107, 108, 109, 110, 118, 119, 120, 122 e 123, e identificou o co-arguido AA como sento a pessoa que surge retratada nos fotogramas de fls. 83, 89 e 117.
(…)
Atenta a matéria de facto considerada como fortemente indiciada, é entendimento do Tribunal indiciarem fortemente os autos a prática, pelos arguidos BB, CC e AA, em coautoria e em concurso efectivo, de:
- cinco crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, p.p. pela interpretação conjugada dos arts. 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, als. e) e h), 22.º, n.ºs 1 e 2, al. c) e 23.º, n.ºs 1 e 2, todos do Cód. Penal, correspondendo, a cada um destes crimes, a moldura abstracta de 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses de prisão;
- um crime de incêndio, p.p. pelo art. 272.º, n.º 1, al. a) do Cód. Penal, a que corresponde a moldura abstracta de prisão de 3 anos a 10 anos;
- um crime de roubo qualificado, desqualificado pelo valor, na forma consumada, p.p. pela interpretação conjugada dos arts. 210.º, n.ºs 1, 2, al. b) e 4, por referência aos arts. 204.º, ns.º 1, al. b) e 2, al. f) e 202.º, al. c), todos do Cód. Penal, a que corresponde a moldura abstracta de prisão de 1 ano a 8 anos;
- quatro crimes de roubo qualificado, desqualificado pelo valor, na forma tentada, p.p. pela interpretação conjugada dos arts. 210.º, n.ºs 1, 2, al. b) e 4, por referência aos arts. 204.º, ns.º 1, al. b) e 2, al. f), 202.º, al. c), 22.º, n.ºs 1 e 2, al. c) e 23.º, n.ºs 1 e 2, todos do Cód. Penal, correspondendo, a cada um destes crimes, a moldura abstracta de prisão de 1 mês a 5 anos e 4 meses.
Os factos considerados como fortemente indiciados são reveladores de os arguidos, que têm idades compreendidas entre os 22 e os 26 anos, terem uma personalidade disfuncional, impulsiva e sem auto-controlo, que reage emotivamente, revelando um total desprezo e indiferença para as consequências que do seu comportamento poderiam advir para pessoas e bens, existindo fortes indícios de os arguidos terem incorrido na prática dos factos por retaliação à circunstância de os ofendidos DD, HH, EE, FF e GG serem adeptos e simpatizantes do ..., pelo que, atenta a personalidade e a motivação evidenciadas pelos arguidos, e a pluralidade e extrema gravidade dos crimes de cuja prática se encontram indiciados, e pese embora não sejam conhecidos antecedentes criminais a nenhum deles (que, no caso, consideramos não ser especialmente relevante, atenta a idade de cada um dos arguidos), considero verificado um concreto perigo de continuação da actividade criminosa, com a consequente perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, não se podendo olvidar os sentimentos de alarme social e de insegurança que comportamentos da natureza daqueles que se encontram indiciados geram na comunidade, perigos estes que importa acautelar e que justificam a aplicação, a cada um dos arguidos, de medida de coacção mais gravosa que o TIR, sendo entendimento do Tribunal que, por ora, a única medida de coacção que se mostra adequada e proporcional aos factos em causa e à personalidade dos arguidos, bem como à pena de prisão efectiva que, tendo em conta a moldura penal aplicável aos crimes fortemente indiciados, previsivelmente lhes virá a ser aplicada em julgamento, fazendo um juízo de prognose, é a medida de coacção de prisão preventiva, mostrando-se inadequadas todas as outras, o que se determina em conformidade com os princípios constantes dos arts. 191.º, 192.º, 193.º, 195.º, 196.º, 202.º, n.º 1, als. a) e b) e 204.º, n.º 1, al. c), todos do Cód. Processo Penal.
No entanto, no caso vertente, não se pode olvidar que estamos perante arguidos jovens, com idades compreendidas entre os 22 e os 26 anos, que nunca estiveram presos, que beneficiam do apoio dos pais, com quem vivem, encontrando-se os arguidos AA e CC profissionalmente inseridos, pelo que consideramos que a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, com recurso a dispositivos de vigilância electrónica, em abstracto, se poderá revelar adequada e suficiente para obstar aos perigos referidos e á gravidade dos crimes indiciados. Claro que esta decisão é condicionada à existência de condições para a execução da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com recurso a vigilância electrónica.
Nenhuma outra medida de coacção, designadamente, a medida de coacção de obrigação de apresentação periódica, a medida de coacção de proibição de contactar com os outros coarguidos ou a medida de coacção de proibição de frequência de recintos desportivos, sugeridas pelas Defesas dos arguidos, tem a virtualidade de obstar aos perigos referidos, uma vez que, tratando-se de medidas de coacção não privativas da liberdade, possibilitariam aos arguidos uma total liberdade de movimentos, para, na companhia de outros membros das claques, designadamente daqueles que tiveram intervenção nos factos objecto dos presentes autos e que, até ao momento, ainda não foi possível identificar, incorrerem na prática de comportamentos da mesma natureza daqueles que se encontram fortemente indiciados nos autos, que, relembre-se, não tiveram lugar no interior de nenhum recinto desportivo, mas em plena via pública.
Pelo que, pese embora se determine que, por ora, os arguidos BB, AA e CC deverão aguardar os ulteriores termos do processo sujeitos à medida de coacção de prisão preventiva, determina-se, igualmente, que, relativamente a cada um dos arguidos, se solicite à DGRSP a informação prévia a que alude o art. 7.º, n.º 2 da Lei n.º 33/2010, de 2 de Setembro.
Notifique”.
É o seguinte o teor do despacho de apresentação do MP:
“ 1.º Na tarde de dia ... de ... de 2025 ocorreu o jogo de hóquei em patins entre as equipas do ... (doravante ...) e o ... (doravante ...), disputado no pavilhão LL, em ....
2.º Os ofendidos MM, HH, NN, OO e PP, todos adeptos do ..., deslocaram-se desde a cidade do ... até à cidade de Lisboa, para assistirem ao jogo e apoiarem o ....
3.º Para o efeito fizeram-se transportar num veículo automóvel tipo carrinha, da marca “Ford, ... “Mondeo” de matrícula ..-JB-.., pertença do DD.
4.º As vítimas chegaram à cidade de Lisboa pelas 14:30 horas e deixaram o veículo estacionado próximo do estabelecimento de restauração “100 Montaditos”, do ..., situado na ....
5.º Após, caminharam até à zona do ..., acederam ao seu interior e assistiram ao evento desportivo.
6.º Por indicação dos elementos da PSP responsáveis pela segurança do evento desportivo, ficaram sentados numa zona do pavilhão onde estavam outros adeptos do ....
7.º O jogo iniciou-se pelas 15:00 horas e terminou entre as 17:30 e as 17:45 horas.
8.º Por motivos de segurança, os adeptos do ..., onde se incluíam as vítimas, permaneceram no interior do Pavilhão até que estivessem reunidas as condições de segurança para poderem sair para o exterior, o que ocorreu pelas 18h07.
9.º Após saírem para o exterior do pavilhão, caminharam de novo até à ..., onde o veículo que usaram na viagem estava estacionado.
10.º De seguida as vítimas entraram para a viatura, tendo o DD ocupado o lugar do condutor, o HH o lugar da frente ao lado do condutor, o QQ, o banco traseiro atrás do condutor, o FF, a zona central do banco traseiro e o GG o banco traseiro, atrás do HH.
11.º Colocaram o veiculo em marcha e dirigiram-se até ao cruzamento com a ..., viraram à direita, na direção dos semáforos, com a intenção de evitar passar por locais onde pudessem estar adeptos do ....
12.º Durante esse percurso pela ..., quando estavam a chegar ao semáforo do cruzamento da ... com a ..., as vítimas aperceberam-se de vários indivíduos pertencentes à claque do ..., e que tinham estado no interior do Pavilhão, alguns deles de cara parcialmente de cara tapada, entre os quais se encontravam os três arguidos identificados, BB, CC e AA, a caminharem de forma apressada pela ... em direção do veículo das vítimas, com a clara intenção de os abordar.
13.º Previamente, pelas 17h48 desse dia, o arguido BB, remeteu uma mensagem escrita dirigida à namorada de nome RR dizendo “Estamos à espera dos portistas para lhes darmos nos cornos!”.
14.º Os referidos elementos movimentaram-se de forma apeada na direção do veículo das vítimas, com a intenção de, em grupo e aproveitando-se da superioridade numérica, abordarem de forma concertada a viatura em que circulavam as vítimas, transportando consigo instrumentos de natureza contundente, designadamente, pedras, garrafas, bastões extensíveis e ainda alguns artigos de pirotecnia, com os quais tinham a intenção de praticarem atos contra a vida e integridade física das vítimas.
15.º No momento em que DD parou o veículo junto ao semáforo, um dos elementos do grupo que se aproximava da viatura ocupada pelas vítimas, gritou para os demais “bora que está vermelho”, e na execução do plano traçado por todos, outro dos elementos, munido de uma pedra volumosa, atirou-a na direção da cabeça da vitima, atingindo- a na face temporal esquerda da cabeça, levando a que ficasse desorientado e deixasse o veículo embater na traseira da viatura que se encontrava imediatamente à frente.
16.º Aproveitando-se dessa circunstância, o grupo de agressores, entre os quais os três arguidos, BB, CC e AA acercaram-se do veículo das vítimas e disseram repetidas vezes e em voz alta: “Filhos da Puta! ..., Ides morrer filhos da Puta”, “..., Vão Morrer”.
17.º Em ato contínuo, tais elementos pertencentes à claque do ..., entre os quais os três arguidos identificados, BB, CC e AA, em comunhão de esforços, abordaram o veículo das vítimas, assim as impedindo de sair do mesmo, partiram os vidros das janelas do carro com recurso a bastões extensíveis e pedras, e lançaram para o interior da bagageira e habitáculo artefactos pirotécnicos que rapidamente iniciaram vários focos de incêndio no interior do veículo.
18.º Após a quebra dos vidros, os mesmos indivíduos, entre os quais os arguidos, começaram a lançar pedras e a desferir bastonadas no corpo das cinco vítimas, que durante estas ações não conseguiram sair do interior do veículo.
19.º Em concreto, a vitima HH foi atingido com uma pedra na região occipital da cabeça.
20.º Simultaneamente o fogo propagou-se pela viatura vindo a atingir igualmente as vítimas.
21.º Simultaneamente os arguidos e demais elementos do grupo empurraram as portas da viatura, assim impedido as vítimas de sair do interior do carro.
22.º Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, tentaram apropriar-se dos objetos que os ofendidos tinham consigo, designadamente os telemóveis e mochilas, ao mesmo tempo que continuavam a desferir bastonadas e pancadas nos corpos dos ofendidos.
23.º Não obstante as referidas condutas, os ofendidos conseguiram ficar na posse dos seus bens, resistindo à atuação dos arguidos, com exceção da mochila pertencente à vitima DD, a qual os arguidos e demais elementos conseguiram levar consigo, mochila com conteúdo ainda não apurado, mas certamente de valor superior a 102 euros.
24.º A determinada altura um dos elementos do grupo integrado pelos arguidos gritou: “Olha a bófia” Fujam!”, altura em que arguidos e demais denunciados encetaram fuga daquele local.
25.º Apenas nesse momento, as vítimas conseguiram sair do interior da viatura, que se encontrava em chamas, e que acabou por ficar totalmente carbonizada.
26.º Por se encontrar combalido devido ao impacto da pedra na sua cabeça, a vitima DD demorou mais tempo a sair da viatura, ficando exposto por um período superior às chamas do fogo que se propagou no interior do veículo.
27.º No mesmo dia ... de ... de 2025, pelas 19h57, o arguido BB, remeteu uma mensagem áudio à namorada RR, onde diz: “pegámos fogo a dois carros deles, yá ainda levaram com bué de pedras na cabeça, bué de garrafas”.
28.º Acrescentando ainda, pelas 20h20: “A maior parte távamos tapados incluindo eu amor”, e respondendo à mensagem de RR “E ta um socio em estado grave, so fzm merda”, referiu “eu sei KKKK”.
29.º Em consequência das agressões sofridas, DD sofreu laceração do couro cabeludo, ferida no lábio, ferida incisa na região temporal esquerda, traumatismo crâneo-encefálico, lesões estas que motivaram o seu internamento, que ainda se mantém no presente momento, nos serviços do ..., em Lisboa.
30.º Devido à lesão sofrida na cabeça, o ofendido DD não conseguiu sair do interior do veículo ao mesmo tempo que as demais vitimas, motivo pelo qual sofreu queimaduras graves (2.º grau) nas mãos e no membro inferior direito.
31.º Em consequência da atuação dos arguidos e demais elementos da claque do ..., a vitima HH sofreu uma lesão na região occipital da cabeça com laceração do couro cabeludo, que demandaram tratamento hospitalar.
32.º Em consequência da atuação dos arguidos e demais elementos da claque do ..., todos os ofendidos inalaram fumo proveniente do fogo ateado pelos arguidos e demais indivíduos, sentindo dificuldades em respirar e sofreram pequenas queimaduras.
33.º Bem como ficaram os ofendidos com as roupas que trajadas danificadas por ação do fogo.
34.º Os arguidos atuaram no âmbito de um plano a que aderiram e por todos traçado, que visou atear fogo à viatura com os ocupantes no seu interior, não lhes permitindo que saíssem, desferir pancadas e bastonadas, apedrejar as vítimas, e apropriarem-se de objetos de valor que os mesmos tivessem na sua posse.
35.º Ao atuar da forma descrita, designadamente ateando fogo para o interior da viatura onde se encontravam os ofendidos e não permitindo, mediante o recurso de força, que os mesmos saíssem do seu interior, os arguidos pretenderam tirar a vida aos ocupantes da viatura, o que apenas não sucedeu porque, temendo a presença das autoridades policiais, encetaram fuga do local.
36.º Os arguidos sabiam que lançar fogo para o interior do veiculo, e impedir as vítimas de saírem, era meio idóneo a provocar queimaduras nos corpos dos ofendidos, impedi-los de respirar, o que, caso não fosse travado, levaria à morte dos mesmos, o que quiseram e não alcançaram por razões alheias à sua vontade, designadamente a aproximação da Polícia.
37.º Os arguidos atuaram contra os ofendidos apenas por estes serem adeptos de um Clube desportivo rival, e aproveitaram-se da superioridade numérica que apresentavam, recorrendo a incêndio para melhor concretizarem os seus intentos.
38.º Atuaram ainda os arguidos com a intenção de atear o incêndio na viatura, sabendo que ao fazê-lo colocavam em perigo a vida dos cinco ocupantes da mesma, bem como de bens patrimoniais, como o próprio veiculo, provocando a completa destruição do mesmo, como veio a ocorrer.
39.º Ao apropriar-se dos bens da vítima DD, os arguidos sabiam que os mesmos não lhes pertenciam e que atuavam contra a vontade do legítimo proprietário, recorrendo ao uso de violência para alcançarem os seus intentos.
40.º Os arguidos atuaram com a intenção de subtraírem e se apropriarem dos bens das outras quatro vítimas, à semelhança do que fizeram com o DD, não o logrando apenas devido à resistência dos ofendidos.
41.º Os arguidos agiram livres na sua pessoa, em comunhão de esforços e vontades com os restantes suspeitos ainda não identificados, de forma voluntária e plenamente conscientes que as suas condutas são proibidas e punidas por lei”.
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Da falta de fundamentação do despacho que manteve a medida de coação:
Alega o recorrente que o despacho recorrido não fundamentou a manutenção da prisão preventiva, limitando-se a fazer constar do mesmo considerações genéricas sobre a sua manutenção.
A fundamentação das decisões encontra-se consagrada na CRP, no seu artigo 205, nº1.
Na lei ordinária o dever de fundamentação encontra-se consagrado no art.º 97º, nº 5, do C. Processo Penal, estipulando que “os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”.
Para que a fundamentação possa ser considerada suficiente, necessário se torna que da mesma constem não só os motivos de facto, mas também os de direito que justificam o sentido da decisão, para que o seu destinatário a possa compreender e sindicar a sua legalidade.
Assim, no que tange à fundamentação de direito deve o Juiz esclarecer quais os fundamentos jurídicos que levaram a determinada solução concreta.
O objetivo da fundamentação é, no dizer de Germano Marques da Silva (In “Curso de Processo Penal”, 2ª ed., 2000, vol. III. pág. 294), o de permitir "a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando, por isso como meio de autodisciplina".
Tal como se escreve no ac. do STJ de 16.3.2005 “ a fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual) a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos para reapreciar uma decisão” (in base de dados do igfej, processo 05P662).
Prescreve o artigo 194, nº6 do CPP que:
“ 6 - A fundamentação do despacho que aplicar qualquer medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, contém, sob pena de nulidade:
a) A descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo;
b) A enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime;
c) A qualificação jurídica dos factos imputados;
d) A referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida, incluindo os previstos nos artigos 193.º e 204”.
No caso dos autos, estamos perante um despacho que manteve a medida de coação de prisão preventiva.
Logo, não tem aplicação o citado artigo 194.º, que apenas se aplica ao despacho que decretou a medida de coação.
Assim, a falta de fundamentação do despacho que mantém a medida de coação não configura qualquer nulidade, uma vez que não é cominada na lei como tal, mas antes uma mera irregularidade, nos termos do artigo 123.º do CPP.
Como referido, só um despacho fundamentado permite aos seus destinatários compreender o que foi decidido e reagir contra o mesmo, mormente exercendo o direito de defesa.
Na situação concreta, o despacho recorrido deu como reproduzido outro despacho, com o seguinte teor:
Os factos indiciados ainda são muito recentes (........2025).
Como consta no despacho que aplicou as medidas de coação, “são reveladores de uma personalidade disfuncional, impulsiva e sem auto-controlo, que reage emotivamente, revelando um total desprezo e indiferença para as consequências que do seu comportamento poderia advir para pessoas e bens”.
Acrescenta-se ou enquadra-se os factos no contexto da rivalidade clubística, aponta-se – com o que se concorda – com a extrema gravidade dos crimes, e anota-se o “concreto perigo de continuação da atividade criminosa, com a consequente perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, não se podendo olvidar os sentimentos de alarme social e de insegurança que comportamentos de natureza daqueles que se encontram indiciados geram na comunidade (…).
Ora, tendo isto presente, concordo com a douta promoção do M.P. (fls. 580 a 582) e respetivos fundamentos – aos quais adiro e dou por reproduzidos -, no sentido de que, por ora, se mostra inviável a substituição da medida de coação a que os arguidos estão sujeitos por outra menos gravosa, designadamente a OPHVE”.
Do referido despacho constam os motivos que levaram o tribunal recorrido a optar pela manutenção da medida de coação, concluindo pela inviabilidade da aplicação da OPHVE. O recorrente compreendeu o seu conteúdo e exerceu o seu direito de recurso, impugnando, nomeadamente, os fundamentos do despacho.
Aliás, tal despacho foi proferido oficiosamente, depois de terem sido juntos aos autos os relatórios da DGRSP, anteriormente solicitados pelo M.º Juiz, e não em consequência de qualquer requerimento dos arguidos, tendo o tribunal concluído nos termos que dele constam.
Assim, o despacho recorrido não padece do vício de falta de fundamentação.
Contudo, sempre se acrescenta que, a existir qualquer irregularidade, a mesma já se encontrava sanada, nos termos do artigo 123.º, n.º 1, do CPP.
Como tal, improcede o recurso nesta parte.
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Da violação do caso julgado formal:
Alega o recorrente que o despacho recorrido violou o caso julgado formal, pela circunstância de, no despacho que aplicou a medida de coação, o juiz ter entendido que, embora fosse decretada a prisão preventiva, esta seria substituída pela medida de OPHVE, desde que verificadas as condições de exequibilidade previstas no artigo 7.º, n.º 2, da Lei n.º 33/2010, de 2 de setembro.
A problemática do caso julgado em processo penal tem sido muito discutida, quer na doutrina, quer na jurisprudência.
De facto, o CPP só em duas disposições - artigos 84.º e 467.º, n.º 1 - se refere ao caso julgado.
Na primeira das referidas disposições legais, alude-se à questão do caso julgado no pedido cível.
Na segunda disposição legal, alude-se à força executiva das decisões penais condenatórias.
A respeito do caso julgado em processo penal escreve Luís Osório:
“ O caso julgado pode encarar-se por dois lados ou como servindo de base à execução – actio judicati- ou como servindo de base à excepção- exceptio judicati- impedindo assim que se julgue de novo a mesma relação jurídica.
A sentença na actio judicati representa uma função positiva, ela contém uma presunção irrefragável de verdadeira, na exceptio judicati ela representa uma função negativa , opondo-se á renovação da mesma questão. Naquele caso fala-se de caso julgado formal, ele não pode mais ser mudado por meio de qualquer recurso; neste caso fala-se de caso julgado material, ele tem uma mais larga influência, pois se aquele impede a alteração do caso julgado no mesmo processo, este impede-a em qualquer processo” (in Com. ao CPP, II, 451).
A este propósito escreve, ainda, o Prof. Cavaleiro Ferreira:
“ O caso julgado formal respeita ao efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, esgotando-se nele, e quanto à matéria do veredicto, esgotando também o poder jurisdicional e ficou autorizada a execução da decisão.
O caso julgado material, como pressuposto processual negativo, consubstancia (...) a eficácia da decisão proferida relativamente a qualquer processo ulterior com o mesmo objecto” (in Curso de Processo Penal, III, 35).
O caso julgado formal permite a exequibilidade da decisão, tal como preceitua o art.º 467º, n.º1 do CPP ao estipular que : “ as decisões penais condenatórias transitadas em julgado têm força executiva (...)”.
Por seu lado, o caso julgado material impede que alguém seja julgado duas vezes pelos mesmos factos.
Como consta do sumário do acórdão do STJ de 19.12.2023 “Da conjugação das normas se extrai que o caso julgado formal, concernente a decisões de questões ou matérias que não são de mérito têm força obrigatória dentro do processo, na latitude exata do âmbito objetivo e extensão do conteúdo da decisão transitada” (processo 19/16.0YGLSB.S1).
No caso concreto interessa-nos o caso julgado formal.
Assim, cumpre apreciar se o despacho recorrido violou o caso julgado ao não aplicar ao recorrente a OPHVE.
Ora, para concluirmos que o despacho recorrido violou o caso julgado formal, temos de inferir, do despacho proferido no âmbito do 1.º interrogatório judicial de arguido detido, que o Tribunal a quo aplicou ao recorrente a medida de coação de OPHVE, ficando esta apenas dependente da verificação das condições de exequibilidade.
Do despacho proferido no âmbito do interrogatório judicial de arguido detido consta:
“ Os factos considerados como fortemente indiciados são reveladores de os arguidos, que têm idades compreendidas entre os 22 e os 26 anos, terem uma personalidade disfuncional, impulsiva e sem auto-controlo, que reage emotivamente, revelando um total desprezo e indiferença para as consequências que do seu comportamento poderiam advir para pessoas e bens, existindo fortes indícios de os arguidos terem incorrido na prática dos factos por retaliação à circunstância de os ofendidos DD, HH, EE, FF e GG serem adeptos e simpatizantes do ..., pelo que, atenta a personalidade e a motivação evidenciadas pelos arguidos, e a pluralidade e extrema gravidade dos crimes de cuja prática se encontram indiciados, e pese embora não sejam conhecidos antecedentes criminais a nenhum deles (que, no caso, consideramos não ser especialmente relevante, atenta a idade de cada um dos arguidos), considero verificado um concreto perigo de continuação da actividade criminosa, com a consequente perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, não se podendo olvidar os sentimentos de alarme social e de insegurança que comportamentos da natureza daqueles que se encontram indiciados geram na comunidade, perigos estes que importa acautelar e que justificam a aplicação, a cada um dos arguidos, de medida de coacção mais gravosa que o TIR, sendo entendimento do Tribunal que, por ora, a única medida de coacção que se mostra adequada e proporcional aos factos em causa e à personalidade dos arguidos, bem como à pena de prisão efectiva que, tendo em conta a moldura penal aplicável aos crimes fortemente indiciados, previsivelmente lhes virá a ser aplicada em julgamento, fazendo um juízo de prognose, é a medida de coacção de prisão preventiva, mostrando-se inadequadas todas as outras, o que se determina em conformidade com os princípios constantes dos arts. 191.º, 192.º, 193.º, 195.º, 196.º, 202.º, n.º 1, als. a) e b) e 204.º, n.º 1, al. c), todos do Cód. Processo Penal.
No entanto, no caso vertente, não se pode olvidar que estamos perante arguidos jovens, com idades compreendidas entre os 22 e os 26 anos, que nunca estiveram presos, que beneficiam do apoio dos pais, com quem vivem, encontrando-se os arguidos AA e CC profissionalmente inseridos, pelo que consideramos que a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, com recurso a dispositivos de vigilância electrónica, em abstracto, se poderá revelar adequada e suficiente para obstar aos perigos referidos e á gravidade dos crimes indiciados. Claro que esta decisão é condicionada à existência de condições para a execução da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com recurso a vigilância electrónica” (sublinhado nosso).
Do supra despacho infere-se que o Tribunal não aplicou ao recorrente a medida de coação de OPHVE, mas sim a medida de coação de prisão preventiva, não obstante ter adiantado a possibilidade de, futuramente, lhe vir a ser aplicada aquela medida, utilizando no despacho expressões como “poderá” e “em abstrato”.
Diferente seria a situação se o Tribunal tivesse optado por aplicar ao recorrente a obrigação de permanência na habitação, com fiscalização através de meios técnicos de controlo à distância, caso tal se mostrasse viável, aguardando o recorrente em prisão preventiva até estarem preenchidas todas as condições para o início da OPHVE, e isto nos termos dos artigos 202.º, n.º 1, alínea a), do CPP, e 16.º, n.º 1, da Lei n.º 33/2010, de 2 de setembro, o que não sucedeu.
O Tribunal é claro ao referir que, naquela data, a única medida de coação adequada é a prisão preventiva. Contudo, admite, de forma abstrata, a possibilidade de, futuramente, ser aplicada a OPHVE, o que implicaria sempre uma nova análise dos respetivos pressupostos e não apenas a verificação das condições de exequibilidade.
Assim, inexiste qualquer violação do caso julgado formal.
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Da aplicação da medida de coação de OPHVE:
Pugna o recorrente pela aplicação da medida de coação de OPHVE, alegando a violação dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade.
De acordo com o artigo 193 do CPP: “As medidas de coação e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venha a se aplicadas”.
Acrescentando o artigo 204 do mesmo diploma que : “Nenhuma medida de coação, à exceção da prevista no artigo 196, pode ser aplicada se, em concreto, se não verificar, no momento da aplicação da medida:
a) Fuga ou perigo de fuga;
b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo, e nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou;
c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e tranquilidade públicas”.
No artigo 193º do CPP estão consagrados quatro princípios no que tange à aplicação das medidas de coação:
- O princípio da proporcionalidade;
- O princípio da necessidade;
- O princípio da adequação;
- E o princípio da proibição em excesso.
Cada medida de coação tem de ser aplicada de acordo com o caso concreto, devendo ser proporcional, necessária e adequada a esse caso, devendo acautelar os perigos que em concreto se verifiquem, sendo que nenhuma medida de coação pode ser aplicada se, em concreto não se verificar um dos perigos do artigo 204 do CPP (à exceção do TIR).
O princípio da proporcionalidade encontra-se consagrado no artigo 18 da CRP e, no fundo, integra quer o princípio da necessidade, quer o da adequação. Assim, a medida escolhida tem de ser indispensável e idónea ao fim visado e apenas ter em conta a situação concreta.
Como refere Germano Marques da Silva uma medida de coação é adequada “se com a sua aplicação se realiza ou facilita a realização do fim pretendido e não o é se o dificulta ou não tem absolutamente nenhuma eficácia para a realização das diligências cautelares” (in Curso de Processo Penal, II, pag. 270) .
O princípio da proibição em excesso exige a proporcionalidade da medida quer em relação ao crime em questão, quer em relação aos perigos a acautelar. Assim, é necessário que a medida de coação seja proporcional não só à gravidade do crime, mas ainda às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
No que tange ao artigo 204 o mesmo fixa os requisitos gerais para a aplicação de qualquer medida de coação, à exceção do TIR, requisitos esse que não alternativos.
As medidas de coação encontram-se previstas nos artigos 196 a 202 do CPP, começando pela menos gravosa e terminando na mais grave, ou seja, na prisão preventiva, que só deve ser aplicada quando todas as outras se mostrarem desadequadas, tendo um caracter verdadeiramente excecional.
A regra é a liberdade e a prisão preventiva, como última ratio, implicando uma privação total da liberdade, só pode ser aplicada quando todas as outras, inclusive a OPH, foram inadequadas, ou seja, em situações extraordinárias.
Tal como a CEDH o artigo 27º da CRP garante o direito à liberdade, acrescentando o artigo 28 do mesmo diploma que: “A prisão preventiva tem natureza excecional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei”.
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Posto isto passemos à análise do caso concreto.
Desde logo, cumpre referir que o recorrente não interpôs recurso do despacho que aplicou a medida de coação, não tendo impugnado os fortes indícios-necessários igualmente à OPHVE- apesar de agora afirmar, de forma conclusiva, que não praticou atos diretos de violência.
Assim, não pode agora, na ausência de factos supervenientes, em sede de recurso, questionar os indícios e os perigos.
Como sumariado no ac. da RE de 17.5.2018: “I- No recurso de despacho que procede a reexame dos pressupostos da prisão preventiva, o âmbito (do recurso) circunscreve-se ao conhecimento das repercussões de eventuais vicissitudes (processualmente relevantes) ocorridas após prolação do despacho que determinou a medida de coacção que neste se manteve. II - Assim, não está em causa a rediscussão dos fundamentos da prisão preventiva decretada no primeiro despacho, mas tão só a apreciação da persistência das exigências cautelares que então se reconheceram. Na verdade, das conclusões de recurso resulta que o arguido, impugna a análise efetuada pelo Tribunal recorrido, no despacho de aplicação da medida de coação, no que tange aos indícios e aos perigos considerados verificados, não obstante não ter recorrido desse despacho” ( da Relatora Ana Barata Brito, in base de dados ECLI).
No caso em análise, a medida de coação de prisão preventiva foi decretada em observância do que é imposto por lei, nomeadamente nos termos dos artigos 202.º e 204.º do CPP.
Lido o despacho que aplicou a prisão preventiva, verifica-se que a mesma foi decretada em conformidade com os pressupostos legais.
O arguido não recorreu desse despacho.
A questão do caso julgado não se verifica, conforme já analisado.
Contudo, tendo em conta os fundamentos do recurso - nomeadamente a circunstância de o recorrente ter alegado que ficou convencido de que a medida aplicada era a OPHVE, desde que verificadas as condições legais - apreciemos, então, se o despacho recorrido violou os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade.
O recorrente encontra-se fortemente indiciado pela prática dos seguintes crimes:
- cinco crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, p.p. pela interpretação conjugada dos arts. 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, als. e) e h), 22.º, n.ºs 1 e 2, al. c) e 23.º, n.ºs 1 e 2, todos do Cód. Penal, correspondendo, a cada um destes crimes, a moldura abstracta de 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses de prisão;
- um crime de incêndio, p.p. pelo art. 272.º, n.º 1, al. a) do Cód. Penal, a que corresponde a moldura abstracta de prisão de 3 anos a 10 anos;
- um crime de roubo qualificado, desqualificado pelo valor, na forma consumada, p.p. pela interpretação conjugada dos arts. 210.º, n.ºs 1, 2, al. b) e 4, por referência aos arts. 204.º, ns.º 1, al. b) e 2, al. f) e 202.º, al. c), todos do Cód. Penal, a que corresponde a moldura abstracta de prisão de 1 ano a 8 anos;
- quatro crimes de roubo qualificado, desqualificado pelo valor, na forma tentada, p.p. pela interpretação conjugada dos arts. 210.º, n.ºs 1, 2, al. b) e 4, por referência aos arts. 204.º, ns.º 1, al. b) e 2, al. f), 202.º, al. c), 22.º, n.ºs 1 e 2, al. c) e 23.º, n.ºs 1 e 2, todos do Cód. Penal, correspondendo, a cada um destes crimes, a moldura abstracta de prisão de 1 mês a 5 anos e 4 meses.
Na situação concreta, verificam-se os perigos de continuação da atividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, como alude o despacho recorrido.
Estamos perante factos de extrema gravidade e de criminalidade especialmente violenta, atuando o recorrente em grupo.
Muitos são os factos e os crimes cometidos pelo recorrente que demonstram uma total falta de determinação em se comportar de acordo com as normas violadas e com as mais elementares regras de vida em sociedade, onde reina o sentimento de impunidade.
Os factos foram amplamente noticiados, e comportamentos como o dos autos causam grande intranquilidade na sociedade, não esquecendo que o recorrente e os demais arguidos atuaram de forma gratuita.
O recorrente não atuou sozinho, e a sua conduta demonstra organização e uma perturbadora facilidade na prática dos factos.
Tudo isto torna inadequada qualquer medida de coação que não seja a prisão preventiva, para acautelar os perigos em causa, nomeadamente o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.
Não é, seguramente, a idade do recorrente nem a ausência de antecedentes criminais que tornam a medida de coação em causa inadequada.
Na situação concreta, nem a OPHVE atenua de forma séria o perigo de continuação da atividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.
O mundo atual coloca à disposição dos cidadãos meios, nomeadamente de comunicação e informáticos, que, só por si ou com a ajuda de terceiros, permitem a prática de certos crimes, mesmo que o agente esteja confinado a determinado espaço, nada impedindo, nomeadamente, que o recorrente, em casa e através de redes sociais, promovesse ações como as aqui em causa.
Qualquer medida de coação em relação ao recorrente que não seja a prisão preventiva é manifestamente insuficiente e inadequada para acautelar os perigos em causa.
É certo que a medida de coação não é uma antecipação do cumprimento de pena, mas sim uma medida cautelar e, no caso concreto, a única capaz de proteger a funcionalidade do processo (cfr. Maia Costa, RMP, out./dez. de 2003, p. 98).
Não ignoramos o caráter excecional da medida de coação da prisão preventiva.
Também não ignoramos a ausência de antecedentes do recorrente e a sua idade.
Contudo, tal não impediu o recorrente de atuar nos termos fortemente indiciados, demonstrando total indiferença pelos bens jurídicos protegidos.
Só a prisão preventiva se mostra adequada às exigências cautelares que o caso impõe, sendo proporcional à gravidade dos crimes fortemente indiciados e à sanção que previsivelmente o recorrente, tendo em conta o tipo e a quantidade de crimes, virá a sofrer.
Na situação concreta, o despacho que aplicou ao arguido a prisão preventiva tem a condição rebus sic stantibus. Como tal, mantém toda a sua validade enquanto os seus pressupostos se mantiverem, inexistindo quaisquer circunstâncias novas que o coloquem em causa.
Assim, bem andou o Tribunal recorrido ao manter o recorrente sujeito à medida de coação de prisão preventiva.
E não se diga, como alega o recorrente, que o despacho recorrido incorre em erro notório na apreciação da prova documental junta aos autos (relatório da DGRSP), nos termos do artigo 410.º, n.º 2, al. c), e 163.º do CPP.
Desde logo, os vícios do artigo 410.º do CPP são vícios relativos às sentenças e não aos despachos.
Acresce que inexiste, por parte do Tribunal recorrido, qualquer erro na apreciação do documento em causa.
Na verdade, consta do relatório da DGRSP, no que tange ao recorrente, que:
“ AA apresenta condições pessoais, familiares, habitacionais e económicas para o cumprimento da medida em apreço”.
Constando, ainda:
“O arguido regista antecedentes criminais, os quais desvaloriza e justifica com alguma imaturidade inerente à data da eclosão do presente processo. Relativamente à sua constituição como arguido, o mesmo distancia-se da acusação que sobre si recai, afirmando não se rever na mesma. Ainda assim, verbalizou disponibilidade e intenção de cumprir na integra as regras inerentes a uma medida de coação de confinamento na habitação com vigilância eletrónica”.
Do despacho recorrido consta:
“Não se coloca em causa que em relação a todos os arguidos existem condições habitacionais e económica que permitiriam a substituição da medida.
No entanto:
Não posso deixar de levar em consideração as várias “nuances” indicadas pela DGRSP – as quais dou por reproduzidas - nas 3 informações prévias que desaconselham a substituição da medida atual pela de OPHVE”.
Não vislumbra este Tribunal qualquer erro na análise do documento em causa.
Na verdade, conclui o despacho, tendo em conta o relatório elaborado, que existem condições habitacionais e económicas que permitiriam a substituição da medida, mas que existem outras nuances no relatório que, segundo o Tribunal recorrido, desaconselham essa substituição.
O despacho recorrido refere-se apenas às nuances indicadas no relatório. Ora, referir-se no relatório que o recorrente se distancia dos factos que lhe são imputados não pode deixar de ser considerado como uma nuance.
Deste modo, não fez o Tribunal recorrido uma errada avaliação do relatório.
Acresce que, como dispõe o artigo 7.º, n.º 2, da Lei n.º 33/2010, “O juiz solicita prévia informação aos serviços de reinserção social sobre a situação pessoal, familiar, laboral e social do arguido ou condenado, e da sua compatibilidade com as exigências da vigilância eletrónica e os sistemas tecnológicos a utilizar.”
A informação prestada pela DGRSP visa apenas fornecer ao Tribunal as condições formais para a exequibilidade da medida, cabendo unicamente a este aferir da adequação, ou não, da mesma.
Logo, o facto de o relatório concluir pela verificação das condições pessoais, familiares, habitacionais e económicas para o cumprimento da medida não obsta ao seu indeferimento por parte do Tribunal.
Assim, nenhuma censura merece o despacho recorrido.

III) Decisão:
Termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes que compõem a 9º secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em:
- Negar total provimento ao recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a quatro unidades de conta (arts. 513º, nº1 do C.P.P. e 8º, nº9, do Regulamento das custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma).

Lisboa, 20 de novembro de 2025
Ana Paula Guedes
Joaquim Manuel da Silva
Rosa Maria Cardoso Saraiva (com voto de vencida)

Voto de vencida nos seguintes termos:
Diferentemente do que consta do Acórdão considero que a decisão proferida, aquando da realização do primeiro interrogatório de arguido detido, não poderia ter sido posteriormente alterada nos moldes em que o foi pela decisão proferida em .../.../2025 (reiterada a .../.../2025) – de que foi interposto o presente recurso.
Com efeito, resulta claro de tal decisão primeiramente exarada – justamente em em sede de primeiro interrogatório – que apenas medidas coactivas privativas da liberdade seriam adequadas, proporcionais e suficientes para acautelarem os perigos que aí se considerou existirem; todavia, também aí se explicitou que sendo os arguidos – entre eles o recorrente – jovens, familiar e profissionalmente inseridos, apesar de se aplicar naquele momento a prisão preventiva, existindo as condições previstas no art. 7º da L 33/2010, a dita medida seria substituída pela OPHVE.
Na verdade, é isso que resulta expressamente das disposições conjugadas constantes do art. 1º, al. a) e do art. 16º, 1 do mencionado diploma legal.
Com efeito, estatui o art. 16º, 1 da L 33/2010 de 2 de Setembro que “A execução da medida prevista na alínea a) do artigo 1.º, inicia-se após a instalação dos meios de vigilância electrónica, podendo o juiz, até ao início da execução, aplicar ao arguido as medidas de coacção que, entretanto, se mostrarem necessárias” – negrito da responsabilidade da subscritora.
Por seu turno, o art. 1º, al. a), do dito diploma legal, plasma que “A presente lei regula a utilização de meios técnicos de controlo à distância, adiante designados por vigilância electrónica, para fiscalização:
a) Do cumprimento da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, prevista no artigo 201.º do Código de Processo Penal;”
Ora, no sobredito despacho inicial de aplicação de medida de coacção exarou-se expressamente que:
“No entanto, no caso vertente, não se pode olvidar que estamos perante arguidos jovens, com idades compreendidas entre os 22 e os 26 anos, que nunca estiveram presos, que beneficiam do apoio dos pais, com quem vivem, encontrando-se os arguidos AA e CC profissionalmente inseridos, pelo que consideramos que a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, com recurso a dispositivos de vigilância electrónica, em abstracto, se poderá revelar adequada e suficiente para obstar aos perigos referidos e á gravidade dos crimes indiciados. Claro que esta decisão é condicionada à existência de condições para a execução da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com recurso a vigilância electrónica” – negrito ausente do original, logo destacado pela subscritora.
Aliás, é por esse motivo que logo na decisão em causa se determina que sejam solicitadas as informações a que alude o art. 7º, 2 da Lei 33/2010, e que originou que fosse proferida a decisão datada de .../.../2025, antes do momento da revisão oficiosa da situação do recorrente ao abrigo do preceituado no art. 213º, 1, do CPPenal.
Ou seja, o que decorre, na minha perspectiva, da decisão proferida em sede de primeiro interrogatório é que foi aplicada a medida de coacção prisão preventiva até se averiguar da existência de condições pessoais, familiares, laborais e sociais do arguido e a sua compatibilidade com as exigências de vigilância electrónica, sendo certo que unicamente no caso de tais condições não existirem é que a prisão preventiva não seria substituída por OPHVE.
Assim, por esse motivo não se pode falar aqui, como faz o recorrente, na emergência de caso julgado formal.
Na realidade, as questões em causa em uma decisão e na outra nunca poderiam ser exactamente as mesmas, uma vez que na primeira decisão se decidiu pela aplicação de uma determinada medida de coacção, adiantando-se, desde logo que, existindo as condições para a instalação da vigilância electrónica a medida de coacção a aplicar seria a de OPHVE.
Todavia, esta outra decisão nunca poderia coincidir com o objecto da anterior; com efeito, esta última destinar-se-ia exclusivamente a aferir da existência – ou não – das condições referentes à vida de cada um dos arguidos, que permitiriam – ou não – a obrigação de permanência na habitação com utilização de vigilância electrónica.
Contudo, não pode deixar de se considerar que a segunda decisão proferida – e que é agora objecto de recurso – contraria aquela anteriormente emanada de juiz, da mesma hierarquia e competência.
Com efeito, na hipótese dos autos, do que se lê no relatório formulado pela DGRSP, não há qualquer dúvida quanto à exequibilidade da sobredita medida face ao que tal entidade pôde averiguar.
Isto é, a decisão tomada em abstracto sobre a possibilidade de alteração da medida de coacção tornou-se vinculativa a partir do momento em que foi possível constatar a existência das condições que a possibilitariam.
Assim sendo, nunca poderia a decisão posterior, baseando-se em “nuances”, que alegadamente decorreriam do relatório da DGRSP, manter a prisão preventiva. Na verdade, relativamente àquela e nos limites do que a mesma concretamente regulou, havia-se esgotado o poder jurisdicional do Tribunal, a que alude o art. 613º, do CPCivil aplicável “ex vi” art. 4º do CPPenal.
Na verdade, o aludido preceito pertinente ao CPCivil, art. 613º, 1 – estatui que proferida a sentença – ou despacho, dado que tal inciso legal também vale para despachos, nos termos do nº 3 – fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz. Isto é, proferida sentença ou despacho sobre a matéria da causa, o juiz (o mesmo ou diferente juiz da mesma hierarquia) não pode voltar a proferir nova decisão sobre a mesma questão.
Vale por dizer que com aquela decisão inicial, apenas na hipótese de, por exemplo, a casa onde o recorrente pretendia ir morar não ter luz eléctrica seria possível mantê-lo em prisão preventiva.
Na verdade, na decisão ulteriormente proferida não cabia invocar, novamente, a gravidade dos factos ou aludir à existência de perigos acentuados, ou sequer a qualquer atitude ou verbalização do recorrente manifestada junto da técnica da DGRSP, tendo em vista alterar o sentido da primeira decisão.
Ora, foi isso o que aconteceu.
Com efeito, o despacho objecto de recurso alude a “nuances” decorrentes do relatório da DGRS, como sejam “O arguido regista antecedentes criminais, os quais desvaloriza e justifica com alguma imaturidade inerente à data da eclosão do presente processo. Relativamente à sua constituição como arguido, o mesmo distancia-se da acusação que sobre si recai, afirmando não se rever na mesma. Ainda assim, verbalizou disponibilidade e intenção de cumprir na integra as regras inerentes a uma medida de coação de confinamento na habitação com vigilância eletrónica”.
Todavia, tal tipologia de detalhes – nuances – eram da natureza das que não podiam ser tidas em consideração.
Desde logo, aquilo que o recorrente tenha verbalizado, ou não, junto dos técnicos da DGRSP não pode ser utilizado, como foi, para prejudicar a sua posição processual – sendo certo que o mesmo foi oportunamente ouvido por um juiz sendo esse o – exclusivo – momento adequado para averiguar, na medida em que isso fosse adequado à aplicação de medida de coacção, da personalidade do arguido.
Diga-se, até, que o relatório vai além do objecto que lhe havia sido proposto, aludindo a questões que não eram da sua competência, nada justificando que sejam tais considerações laterais a obstar à concretização da OPHVE. No entanto, frise-se, naquilo que lhe competia esclarecer o dito relatório atestou foi assertivo a reconhecer o condicionalismo que permitiria a aplicação da medida em causa.
Neste conspecto, não poderia ter sido proferida decisão a manter a prisão preventiva aludindo-se a elementos marginais presentes no relatório da DGRSP e repetindo a alusão à gravidade dos factos e aos perigos que se verificam para se concluir de modo divergente daquele inicialmente exarado.
Na verdade, naquela primeira decisão, apesar de tais circunstâncias, entendeu-se que, existindo condições técnicas, seria de aplicar a medida de coacção de OPHVE, designadamente, sopesando a idade dos arguidos e a sua inserção familiar e laboral. Ora, ao adoptar-se decisão em colisão com aquele sentido violou-se a intangibilidade da decisão proferida, uma vez que relativamente a tais aspectos se havia esgotado o poder jurisdicional do tribunal.
Na visão do Prof. ALBERTO DOS REIS (em CPC Anotado, Vol. V, págs. 113/128, particularmente a 121), estaremos, na presença de uma ineficácia, da decisão proferida em segundo lugar que não poderia ser mantida.
Ou, de outro modo, pode concluir-se que a nova decisão, que padeça de tal vício, é juridicamente inexistente e não vale como decisão jurisdicional por ter sido proferida em momento e circunstâncias em que o aludido poder jurisdicional já se tinha esgotado – Ac. do STJ, de 6/5/2010, proferido no proc. 4670/2000.S1 (Álvaro Rodrigues), disponível em www.dgsi.pt.
É este, pois, o acervo de razões por que voto vencida