Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10/22.7JBLSB.L1-5
Relator: MANUEL ADVÍNCULO SEQUEIRA
Descritores: CRIME DE TERRORISMO
ELEMENTOS DO TIPO
“COCKTAIL MOLOTOV”
ARMA PROIBIDA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Para haver crime de terrorismo a ameaça de repetição de mais atentados é essencial, pois o que difunde o terror é justamente a percepção real da possibilidade de idênticos ataques enquanto se mantiver a situação cuja mudança é visada pelos fautores dos actos terroristas, naturalmente organizações.
Um tiroteio em massa, isolado e sem referência a organização ou ideário, não prossegue qualquer objectivo além dele próprio, esgotando-se em si mesmo, não constituindo um acto terrorista à luz da lei.
Um “cocktail molotov” é o engenho incendiário artesanal de referência mundial mais conhecido e usado, pela facilidade de fabrico e obtenção dos seus componentes, de legal e fácil acesso. Como assim, a sua detenção injustificada equivale a crime de detenção de arma proibida p. e p. pela alínea a) do nº 1 do art.º 86º da Lei das Armas.
Concluindo por juízo de prognose positivo, a suspensão da execução da pena de prisão não será determinada quando assim se ofendam as necessidades de reprovação e prevenção do crime, violando as exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.
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Neste processo foi A absolvido da acusação pela prática de um crime de terrorismo tentado e de um crime de terrorismo, pp. e pp. respectivamente, pelo nº 1 e nº 7 do art.º 4.º, com referência às alíneas a), c), e f) do nº 1 do art.º 2.º, ambos da Lei nº 52/2003, de 22.08 e com referência aos art.ºs 22º e 23º do Código Penal, no que ao primeiro respeita.
Foi condenado na pena de 2 anos e 9 meses de prisão, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelas alíneas a) e d) do nº 1 do art.º 86º da Lei n.º 5/2006, de 23.2, a executar por internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis.
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Interpôs recurso o Ministério Público, concluindo:
1. Recorre-se do acórdão proferido nos autos na parte em que absolveu o arguido da prática de um crime de Treino para o Terrorismo, p. e p. pelo art.º 4.º, n.º 7, com referência ao art.º 2.º, n.º 1, als. a), c), e f), ambos da Lei n.º 52/2003, de 22.08, porquanto consideramos que os factos dados como provados no acórdão recorrido são bastantes para sustentar a condenação do arguido por esse crime;
2. Entendemos que a totalidade dos factos dados como provados no acórdão recorrido (designadamente os factos n.º 18 a 23, 34, 37 a 43, 48, 53 a 60, 66, 68 a 80 e 88, que damos aqui por integralmente reproduzidos) impõe-se a condenação do arguido pela prática do crime de Treino para Terrorismo p. e p. pelo art.º 4.º, n.º 7, com referência ao art.º 2.º, n.º 1, als. a), c), e f), ambos da Lei n.º 52/2003, de 22.08, pelo que, concluindo Tribunal pela absolvição incorreu numa contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, vício enunciado no n.º 2, al. b), do art.º 410.º do C.P.Penal, que sempre poderá ser ultrapassado com recurso ao próprio texto da decisão recorrida e às regras da experiência, sem necessidade de reenvio do processo para novo julgamento (art.ºs 426.º, n.º 1 e 431.º, al. b) do C.P.Penal);
3. Discordamos, também, da conclusão final do Tribunal da inadequação objetiva da conduta do arguido para o preenchimento do tipo legal do crime de terrorismo, aqui na modalidade típica que prevê o treino para a prática de atos terroristas, entendendo antes que os factos dados como provados impõem concluir que a conduta adotada pelo arguido era apta a afetar gravemente o bem jurídico protegido pela norma – a paz pública interna.
4. A norma do n.º 7 do art.º 4º da Lei n.º 52/2003, de 22 de Agosto (Lei de Combate ao Terrorismo) tipifica a prática de atos eminentemente preparatórios das diversas actividades que se ligam ao treino do agente no iter conducente à posterior perpetração de factos terroristas.
5. Dos factos dados como provados no Acórdão, designadamente dos factos n.ºs 23 a 34, 37 a 43, 48, 53 a 60, 66, 68 a 80 e 88, que damos aqui por integralmente reproduzidos, resulta que o arguido se muniu de conhecimentos com vista à execução de crimes de homicídio, ofensa à integridade física e incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas, autoministrou treino e adquiriu o material enumerado no ponto 66 para aqueles efeitos;
6. O crime de Treino para o Terrorismo é um crime doloso, devendo o agente atuar com a consciência e a vontade de adquirir por si próprio o treino para a prática de factos terroristas. É um ilícito de mera atividade, sendo irrelevante para o preenchimento do tipo incriminador saber se os conhecimentos adquiridos através do treino foram ou não depois empregues na prática de um ato terrorista.
7. No entanto, e conforme resulta da remissão do transcrito n.º 7 do art.º 4º da Lei de Combate ao Terrorismo para o n.º 1 do art.º 2º da mesma Lei, para que se conclua pela prática do crime de Treino para o Terrorismo é necessário que as condutas adotadas pelo agente se revelem idóneas a violar o bem jurídico protegido pela norma: a paz pública.
8. Assim, o crime de terrorismo, stricto sensu, tipificado no n.° 1 do art.º 4.° da LCT, consiste na prática de um dos factos previstos no n.° 1 do art.º 2.º dessa mesma Lei (crimes contra a vida, a integridade física, a liberdade das pessoas, etc.), com uma das intenções aí também previstas (incluindo a de intimidar certas pessoas, grupos de pessoas ou a população em geral), desde que tais atos, pela sua natureza ou pelo contexto em que são cometidos, sejam suscetíveis de afetar gravemente o Estado ou a população que visam intimidar.
9. É essa intencionalidade que faz com que o facto deixe de atentar somente contra a vida, a integridade física, a liberdade, etc., isto é, contra bens jurídicos individuais de que a pessoa imediatamente visada pela ação violenta é portadora, para passar também, e sobretudo, a atentar contra o bem jurídico coletivo que a incriminação do terrorismo visa tutelar, a paz pública.
10. Tal cláusula de densificação do perigo ou, noutras palavras, essa exigência de aptidão, confere à norma maior conformidade aos princípios da ofensividade e da culpa, fixando um limiar mínimo de ofensividade das condutas.
11. Nos crimes de aptidão o perigo converte-se em parte integrante do tipo e não num mero motivo da incriminação, como sucede nos autênticos crimes de perigo abstrato. Por outro lado, porém, a realização típica destes crimes não exige a efetiva produção de um resultado de perigo concreto.
12. No acórdão recorrido, e em consequência da decisão em matéria de facto, designadamente dos factos provados n.ºs 18, 19, 20 e 22, o Tribunal concluiu, e bem, em nosso entender, que o arguido agiu dominado por uma intenção terrorista já que “do elenco da factualidade provada resulta que o arguido tinha a intenção de matar indiscriminadamente pessoas integrantes da comunidade escolar da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e mostrar que o fenómeno dos assassinatos em massa também ocorre em Portugal” (cf. fls. 44 do acórdão, ponto 15, 2º parágrafo).
13. Discordamos da decisão proferida quando o Tribunal quando se concluiu que a atuação que o arguido pretendia concretizar – matar indiscriminadamente várias pessoas na faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e mostrar que o fenómeno de assassinatos em massa também é suscetível de ocorrer em Portugal e não apenas nos Estados Unidos da América – não se revelava apta a afetar, gravemente, a Paz Pública, o sentimento de segurança da população, designadamente da comunidade escolar;
14. Para tanto, fundamentou o Tribunal a sua decisão pelo facto de o arguido ter manifestado o desejo de morrer após a prática dos factos, por suicídio, ou porque iria ser morto em
seguida, pelas autoridades, e por não atuar o arguido em nome de qualquer organização terrorista que permitisse concluir pelo perigo de conduta semelhante vir a ser adotada por outro elemento dessa organização;
15. Entendeu o Tribunal que do facto de o arguido ter manifestado o desejo de morrer após a prática dos factos e não atuar em nome de qualquer organização terrorista, resulta a inaptidão da conduta do arguido para atingir o bem jurídico protegido pela norma incriminadora uma vez que ninguém, designadamente membros da comunidade escolar, poderia vir a ficar intimidado pela conduta do arguido se concretizada (a comissão num estabelecimento de ensino, por um aluno, de vários crimes de homicídio e ofensas à integridade física de forma indiscriminada e aleatória) porquanto não se verificaria a possibilidade daquele praticar novos factos da mesma natureza já que pretendia suicidar-se ou provocar a sua morte pelas autoridades policiais.
16. Atendendo à matéria de facto provada, discordamos da conclusão do Tribunal pela inidoneidade da conduta do arguido para afetar, gravemente, a Paz Pública interna.
17. Consideramos que o Tribunal, atentos os factos que deu como provados, efetuou uma errada subsunção jurídica da norma do tipo incriminador, erigindo como princípio imprescindível na aferição da aptidão da conduta do arguido para violar o bem jurídico protegido pela norma incriminadora a possibilidade de “repetição”;
18. Da cláusula de densificação do perigo já referida, constante do tipo legal da norma incriminadora, resulta que para aferir da idoneidade dos atos que o arguido pretendia concretizar para ofender o bem jurídico paz pública importa formular um juízo ex ante facto, de prognose póstuma, quanto à perigosidade para o bem jurídico protegido decorrente das finalidades concretamente prosseguidas;
19. Para a formulação desse juízo quanto à perigosidade para a paz pública da conduta que o arguido pretendia adotar e para a qual se treinou de forma dedicada, atente-se que, e conforme deu como provado o Tribunal, o arguido, munido de diversas armas e artefactos explosivos, pretendia deslocar-se ao estabelecimento de ensino que frequentava para matar o maior número de pessoas que conseguisse, de forma indiscriminada, motivado não pela vontade de, por exemplo, se vingar de um determinado colega ou de um professor, mas para mostrar ao país e ao mundo que este fenómeno [de assassinatos em massa] também ocorre em Portugal e não apenas nos Estado Unidos da América (facto n.º 20 dado como provado pelo Tribunal);
20. Na operação de subsunção dos factos provados ao direito, designadamente na análise do preenchimento da referida cláusula de densificação prevista no tipo legal do crime de Treino para o Terrorismo, o elemento de facto relevante é o carácter aleatório e indiscriminado da conduta que o arguido pretendia adotar;
21. Com efeito, quando fundado numa intencionalidade intimidatória, o terrorismo caracteriza-se por um propósito de inflição de sentimento de terror, de pavor, na generalidade da população ou numa parte dela. Daí a conexão com o bem jurídico paz pública;
22. Esse terror é instilado, via de regra, através da prática de atos violentos sobre vítimas indiscriminadas, sendo precisamente esta aleatoriedade que potencia a disseminação do medo na população em geral ou num estrato dela que se possa sentir identificada com as vítimas diretas: uma vez que a violência pode atingir qualquer pessoa da comunidade ou de uma parte dela, sem razão aparente que justifique a sua incidência sobre esta pessoa ou aquela, é natural que o medo se instale no seu seio;
23. No acto de terrorismo, à lesão individual do bem jurídico soma-se a expressão do sentido da irrelevância da identidade pessoal das vítimas diretas. Estas são apenas um mero instrumento para a intimidação massiva dos seus pares;
24. No juízo de prognose póstuma que se impõe na apreciação dos atos que o arguido se treinou para praticar, a efetuar à luz das circunstâncias concretas dos factos e das regras da experiência, parece-nos incontornável que o conhecimento pela população e, designadamente, pela comunidade escolar, da tentativa ou da concretização de um ataque homicida de carácter indiscriminado e aleatório, visando quaisquer alunos, professores ou funcionários de um estabelecimento de ensino por um seu aluno, é efetivamente gerador de intimidação e perturbação do sentimento de segurança da comunidade já que é suscetível de criar o medo e pavor em qualquer elemento da comunidade escolar de poder vir a ser vítima de factos semelhantes, desse modo atingindo o bem jurídico paz pública.
25. A conduta do arguido de preparar e planear a prática de crimes de homicídio e ofensas à integridade física de quaisquer alunos, professores ou funcionários do estabelecimento de ensino que frequentava, vítimas diretas da sua conduta, com o propósito de mostrar ao país e ao mundo que este fenómeno [de assassinatos em massa] também ocorre em Portugal e não apenas nos Estado Unidos da América (facto n.º 20 dado como provado pelo Tribunal), é idónea a intimidar e a causar medo nas demais pessoas da comunidade escolar, vítimas indiretas dessa conduta;
26. Consabidamente, o fenómeno dos assassinatos em massa (mass shootings) praticados na comunidade escolar, despidos de cariz ideológico, é uma realidade da vida interna dos Estados Unidos da América, sendo que não há registo em Portugal da prática de factos enquadráveis nesse fenómeno criminal.
27. A circunstância de se ter dado como provado que o arguido agiu isoladamente, que não estava inserido num grupo que professe a prática de atos terroristas por uma qualquer motivação ideológica e que pretendia suicidar-se em ato contínuo às mortes e ferimentos que pretendia causar na Universidade que frequentava, não possibilita concluir que essa conduta não era apta a causar um sentimento de pavor e terror na comunidade porquanto não existiria qualquer expectativa da sua repetição.
28. Pelo contrário: no juízo de prognose póstuma que se impõe na apreciação dos atos que o arguido se treinou para praticar, a efetuar à luz das circunstâncias concretas dos factos e das regras da experiência, cremos impôr-se concluir que, por não haver registo em Portugal do fenómeno da prática de assassinatos em massa com carácter aleatório, o conhecimento pela comunidade escolar da prática pelo arguido de quaisquer atos de execução da conduta descrita era apto a criar um sentimento de insegurança pela perceção de que o fenómeno dos assassinatos em massa (mass shootings) era uma nova realidade criminosa do país.
29. Incorreu o Tribunal em erro na subsunção jurídica dos factos dados como provados ao concluir que a conduta do arguido é inapta a violar o bem jurídico paz pública, entendendo nós que, tendo-se dado como provado que arguido adquiriu por si próprio treino, instruções e conhecimentos, sobre o fabrico ou a utilização de explosivos e sobre outros métodos e técnicas específicos para a prática de factos previstos no n.º 1 do artigo 2.º da LCT, com a intenção de praticar um ato terrorista, idóneo a intimidar a população e a pôr em causa a Paz Pública interna, deve o mesmo ser condenado pelo crime de Treino para o Terrorismo, p. e p. pelo art.º 4.º, n.º 7, com referência ao art.º 2.º, n.º 1, als. a), c), e f), ambos da Lei n.º 52/2003, de 22.08, nessa parte alterando-se a decisão proferida e, atentas as exigências de prevenção geral e especial, condenando-o numa pena única de prisão efetiva não inferior a três anos e seis meses, a executar, nos termos do disposto no artigo 104.º, n.º 1, do Código Penal, através de internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da referida pena de prisão e sem prejuízo do disposto no n.º 2 do art.º 104.º mesmo Código.
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Respondeu o arguido pugnando pela manutenção da respectiva absolvição, sem apresentar conclusões.
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Também o arguido interpôs recurso concluindo:
A) O presente recurso tem por objeto a matéria de direito do acórdão proferido, no qual o Tribunal a quo decidiu condenar o aqui recorrente em autoria imediata e consumada de um crime de detenção de arma proibida, previsto no art.º 86.º n.º 1 al.) a) e d), da Lei n.º 5/ 2006 de 23 de fevereiro, e punido nos termos do disposto no art.º 86.º, n.º 1, al. a), da mesma Lei, com referência aos artigos 22.º, n.ºs 1 e 2, al. c), 23.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Penal.
B) E erradamente, considerou provado o crime previsto na alínea a) do art.º 86, da Lei 5/2006 de 23/2 na forma tentada, tendo considerado a final, a condenação do Recorrente por único crime, porquanto entendeu existir uma “relação de consunção impura” entre este crime e o previsto na aliena d).
C) A decisão recorrida consubstanciada na condenação de um único crime, ainda que subsumido ao previsto na alínea a) é, para além de juridicamente insustentável - porque este tipo de crime não tem os seus elementos constitutivos provados – penalizadora para o Recorrente em termos de dosimetria da pena aplicada.
D) O crime previsto na alínea a) do art.º 86 da Lei 5/2006 inexiste, face à prova produzida e aos materiais encontrados na posse do Recorrente, pois trata-se de crime de perigo comum abstrato, pois as condutas descritas por este tipo legal não lesam de forma direta e imediata qualquer bem jurídico, apenas implicam a probabilidade de um dano contra um objeto indeterminado.
E) Do mesmo modo que é uma infração de mera atividade, bastando-se para o seu preenchimento a verificação de “quem, fabricar, detiver, transportar, usar ou trouxer consigo engenho explosivo ou incendiário improvisado”, mas só quando se utilizem substâncias ou produtos explosivos ou incendiários de fabrico artesanal não autorizado” – repete-se, o que não se provou.
F) O mesmo será dizer, sem esquecer a aplicação da definição legal de quem fabricar, detiver, transportar, usar ou trouxer consigo engenho explosivo ou incendiário improvisado entendido como “todos aqueles que utilizem substâncias ou produtos explosivos ou incendiários de fabrico artesanal não autorizado” (art.º 2.º n.º 5 al. n)).
H) Neste sentido, não é o conjunto de objetos que o Recorrente tinha na sua residência, composto por latas de gás, latas de combustível, garrafas de vidro contendo combustível, maçaricos e isqueiros, que poderá integrar a noção de produto de fabrico artesanal não autorizado, de acordo com a definição contida no Decreto-Lei nº 376/84 de 30 de novembro que regulamenta sobre o Licenciamento dos estabelecimentos de Fabrico e de Armazenagem de Produtos Explosivos.
I) Nos termos da definição o que caracteriza o engenho é a natureza dos produtos utilizados – de fabrico artesanal não autorizado – e não o engenho em si, ou o modo como eles são utilizados, pelo que se entende que o conjunto composto por latas de gás, latas de combustível, garrafas de vidro contendo combustível, maçaricos e isqueiros, não configura qualquer engenho de fabrico artesanal não autorizado.
J) Com efeito, o conjunto dos objetos anteriormente identificados, não são objetos de fabrico artesanal, nem objetos não autorizados, mas antes de objetos licitamente adquiridos em lojas de conveniência e de acesso e compra livre. (Vd. Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto a 06/03/2013 e do Tribunal da Relação de Coimbra de 8-07-2015, anteriormente citados).
K) Mais, tal como consta da matéria de facto não provada, não se provou que o Recorrente pretendia utilizar engenhos explosivos construídos de forma artesanal, (al. a) da pág. 28 do acórdão), nem se provou que o mesmo se tenha munido de engenhos de natureza explosiva. (al. c) da pág. 28 do ac.), como não se provou que este tivesse adquirido por si próprio conhecimentos e instrução sobre o fabrico de explosivos artesanais e a utilização dos mesmos. (al. d) da pág. 28 do ac.).
L) A conduta do Recorrente não integra, assim, a posse de qualquer engenho de fabrico artesanal não autorizado, e consequentemente a tentativa de que vem acusado, o que inevitavelmente determina a sua absolvição da prática do crime de detenção de arma proibida na parte em que condenou o arguido pelo crime p. e p. pelo art.º 86.º, n.º 1, al. a), com referência aos art.ºs 2.º, n.º 5, al. n), e 3.º, n.º 2, al. aa), todos da Lei n.º 5/2006, de 23.02 – Regime Jurídico das Armas e Munições.
M) Diga-se ainda, que não se provou que o recorrente, se tenha munido de engenhos de natureza explosiva. (al. c) da pág. 28 do ac.)
N) Por outro lado, o tribunal a quo, andou mal ao decidir não atenuar especialmente pena de prisão a aplicar ao arguido nos termos do Dec-Lei n.º 401/82, de 23 de setembro.
O) O que não se concede, pois, o Recorrente agora em tratamento é efetivamente um jovem diferente e tal como decorre do relatório social, “num bom caminho para uma ressocialização com sucesso”.
P) Deste modo, o tribunal andou mal quando, ao condenar o arguido, não valorando o que ficou provado, mormente o constante dos pontos 81, 82, 90, 92 e 93 da matéria provada.
Q) A atenuação especial da pena a impor ao Recorrente facilitará o propósito da ressocialização do mesmo, pois este é sensível à mudança e encontra-se familiarmente inserido, como consta do relatório social elaborado pelos serviços de reinserção social relativo à inserção familiar e sócio‑profissional deste (vd. ponto 122 e 118 da Matéria de facto provada)
R) Aliás, o que provado ficou que o arguido apresenta risco moderado de violência, e não a “elevada perigosidade” como se refere no douto acórdão.
S) Nesta medida, atendendo à idade do recorrente aos antecedentes criminais, deve o tribunal decidir por atenuar especialmente a pena de prisão a aplicar ao aqui recorrente, uma vez que, como se demonstrou, são inegáveis as vantagens para a ressocialização do individuo, atendendo às limitações que o próprio e a sua família reconhecem e desde logo diligenciaram no sentido de alcançarem um a solução viável, tudo isto a somar ao ambiente familiar e estável que pode inegavelmente contribuir para uma mais rápida e melhorada situação psíquica do aqui recorrente, (Vd Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 03.04.2017, in www.dgsi.pt – processo 897/14.7JABRG.G1).
T) O que, como se demonstrou, são por demais evidentes as sérias razões “para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado” e aqui recorrente.
U) Por outro lado, a pena aplicada ao recorrente mostra-se desajustada, ainda que se entenda – e só em mera hipótese se admite –a autoria dos crimes, como o Acórdão o defende.
V) Inexistindo a pratica, ainda que na forma tentada, do crime previsto na alínea a) do artº 86º da Lei, resta o crime imputado ao Recorrente e provado (alínea d) , que apresenta uma moldura penal de multa ou prisão até 4 anos, pelo que o quantum da pena aplicada a este se mostra exagerada, muito exagerada , face aos seus limites mínimo e máximo, pois aplicar uma pena de 2 anos e 9 meses de prisão, como decidiu o tribunal a quo é ultrapassar mais de metade do máximo previsto pelo legislador.
W) Entende-se, que a decidir-se por uma medida privativa de liberdade, a mesma não deveria ultrapassar a pena de multa, atendendo também aos antecedentes e atenuantes provadas nestes autos e de que o Recorrente não pode deixar de beneficiar.
X) As penas devem ter atenção o indivíduo e a sua situação, sendo que o Tribunal recorrido não teve em conta devida, quando se fixa uma pena demasiado longa para um jovem, que não produziu danos a terceiros e/ou a seus bens.
Y) Aliás, própria comunidade, após um alerta inicial fomentado pela explosão das notícias da comunicação social, interiorizou que o Recorrente era incapaz de fazer aquilo que propalava, apenas com o intuito de se vangloriar nas redes sociais.
Z) Mas a entender-se manter uma pena de prisão pelo único crime provado, o da aliena d) do artº 86, ainda assim a mesma deveria ser suspensa.
AA) Ao contrário de defendido pelo Tribunal recorrido, a comunidade há muito compreendeu o verdadeiro estado de saúde do aqui recorrente, de tal modo que reconhece a necessidade de tratamento e de acompanhamento, no sentido de se alcançar a devida ressocialização do individuo e, acima de tudo, o seu bom e eficaz acompanhamento médico-psiquiátrico.
BB) Por outro não se concede que o tribunal ad quo venha dar relevo á alegada elevada perigosidade revelada pelo Recorrente, espelhada na conjugação do número de armas que o mesmo tinha em seu poder com o uso que aquele lhes pretendia atribuir, mas que na verdade nunca chegou a usar a não ser para se exibir nas redes sociais de que era frequentador, até porque apenas resulta provado em sede de Relatório Pericial que o “arguido apresenta risco moderado de violência”;
CC) O recorrente não tem antecedentes criminais, tinha à data dos factos 18 anos e hoje tem 19 anos de idade, encontrando-se hospitalizado no HPSD, familiarmente bem inserido, sendo que os seus progenitores requereram junto do medico psiquiatra apoio especializado próximo da sua residência em Leiria;
DD) Acresce que o lar familiar é o seu refúgio em termos de conforto, para além da ausência de antecedentes criminais, da confissão integral e sem reservas, da colaboração com as autoridades ao longo de todo o processo, nomeadamente em sede de inquérito
EE) Assim, a entender-se não substituir a pena de prisão pela pena de multa, entende-se dever o recorrente beneficiar da suspensão da execução da pena de prisão de modo a viabilizar os desígnios de prevenção especial, ainda que subordinada a deveres e regras de conduta, sujeito a regime de prova, mormente a obrigatoriedade do Recorrente ser acompanhado por médico da especialidade, comprovado pela emissão e envio de relatórios clínicos sobre a evolução da sua doença, nos termos dos art.ºs 50, 51, 52 e 53 , todos do CPenal.
FF) Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto no artº 86, alínea a) da Lei 5/2006 de 23/2, no art.º 4 do DL 401/82 de 23/9, artºs 51, 52, 53, 54, 73 e 74 todos do CPenal, pelo que merece censura.
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A Digna Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância pugnou fosse negado provimento ao recurso do arguido, sem apresentar conclusões.
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Neste Tribunal da Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso do Ministério Público, ainda que seja improcedente a correspondente invocação de vício de contradição e bem assim pela improcedência do recurso do arguido.
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Corridos os vistos, foram os autos à conferência.
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Fundamentação.
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O acórdão recorrido estabeleceu os seguintes factos provados:
“1. Em Fevereiro de 2022, o arguido Atinha 18 anos de idade e frequentava o primeiro ano do curso de Engenharia Informática na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
2. O arguido tinha residência, quer na ..., com os seus pais, quer na Rua ..., em Lisboa, em tempo de aulas, num quarto arrendado a si e a outros estudantes universitários.
3. Desde pelo menos o ano de 2018, altura em que tinha 14/15 anos, que o arguido ganhou um fascínio e uma obsessão por conteúdos sobre violência, morte, assassinos e assassinatos em massa, tiroteios em escolas, tiroteios em massa, atiradores activos e armas de fogo, após visualização de um vídeo sobre Randy Stair, indivíduo que matou três pessoas num supermercado na Pennsylvania, nos Estados Unidos da América, em Junho de 2017.
4. Foi a partir desse momento que o arguido passou a ter um interesse intenso e repetitivo, transformando-se numa obsessão compulsiva, pelo consumo de conteúdos de violência e mortes praticados por assassinos em massa.
5. No entanto, o interesse do arguido pelo fenómeno dos assassinos em massa remonta ao ano de 2012, quando tinha 9 anos e visualizou notícias sobre o atirador Adam Lanza, de Newtown, Connecticut, Estados Unidos da América, um jovem de 20 anos que concretizou um ataque na escola primária dessa cidade e que vitimou 20 crianças, a 14 de Dezembro de 2012.
6. Este fascínio foi sendo alimentado pelo consumo de Mangá e Animes, banda desenhada japonesa e desenhos animados japoneses, respetivamente, ambos com natureza de violência extrema e gratuita.
7. Mais recentemente, designadamente a partir de 2018, o arguido alimentava essa obsessão online, através de fóruns de conversação em redes sociais e aplicações de conversação como o Discord, o Reddit e o Tumblr, mediante a visualização de vídeos e documentários na plataforma de compartilhamento de vídeos Youtube e com a prática de jogos electrónicos nas aplicações Reddit, Tumblr, Facebook e Instagram.
8. Dentre estas aplicações de conversação, que o arguido utilizava para falar com várias pessoas, destacava-se o Discord, fazendo aí uso do utilizador “Psychotic Nerd”, para falar com grande frequência e assiduidade com um “amigo” residente nos Estados Unidos da América, conhecido virtualmente por “Platinium Mad”, e com uma colega da sua Universidade, “Riya Upreti”.
9. Nessa plataforma Discord, o arguido pertencia ainda a um grupo de adeptos de Anime e Mangá.
10. Também desde o ano de 2018, o arguido utilizou a aplicação Tumblr, fazendo parte de uma “comunidade” (grupo com um interesse em comum) denominada “True Crime Community”, na qual os utilizadores partilham conteúdos sobre assassinos em massa mais conhecidos, nomeadamente as mortes provocadas pelos mesmos, que exercem um fascínio nos utilizadores levando-os a apaixonarem-se e a ter uma atracção sexual pelos autores dos crimes.
11. Uma das publicações que maior fascínio exerceu sobre o arguido descrevia os actos praticados por um jovem de 18 anos que em 2018, na Crimeia, entrou na sua universidade e matou vinte e uma pessoas com uma espingarda e bombas, suicidando-se em seguida.
12. A partir de 2020, o arguido começou também a utilizar o Reddit, igualmente para fazer visualizações e publicações num subgrupo sobre assassinos em massa, onde era abordada a psicologia e os actos dos autores desses crimes e a história daqueles que ficaram mais conhecidos pelos métodos utilizados, os alvos visados ou o número de vítimas mortais.
13. Nesta aplicação, o arguido demonstrava admiração e fascínio pela informação relacionada com alguns dos assassinos em massa mais conhecidos, nomeadamente com os homicídios praticados pelos mesmos e os meios letais utilizadas nesses actos.
14. A partir desse momento, o arguido visualizava, partilhava e comentava com periodicidade diária estas publicações, o que levou a que este fenómeno de assassinos em massa e tudo o que com o mesmo se relacionava se tornasse uma obsessão que o impedia de parar de consumir tais conteúdos.
15. O fascínio e a obsessão do arguido por estas temáticas criou no mesmo, desde pelo menos o final de Setembro de 2021, uma vontade profunda de replicar e copiar tais actos violentos, de executar um assassinato em massa e de suicidar-se ou vir a ser morto em seguida.
16. Após ter-se deslocado à Universidade pela primeira vez, o arguido analisou a frequência e condições de segurança das instalações e calculou que um ataque de cinco minutos, com arma de fogo, poderia causar um elevado número de vítimas, face ao reduzido número de polícias que lá detectou e à forma como se encontravam armados.
17. Após tal observação, o arguido contactou o utilizador “8ce17f2d#7346" no Discord e manifestou-lhe o seu grande desejo em exercer violência e matar pessoas, falando da vontade que teve de esmagar as cabeças de uma mulher e de uma criança no interior de uma loja após ver que ali se encontrava um martelo.
18. Desde aquela altura de Setembro de 2021, o arguido delineou e decidiu executar um plano que visava praticar um ataque homicida-suicida na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, com os objetivos de matar indiscriminadamente várias pessoas e espalhar o terror na comunidade escolar, desejo que se intensificou em Janeiro de 2022.
19. Através de tal plano, o arguido pretendia concretizar a sua vontade de matar e de ferir várias pessoas, provocar incêndio e explosões nas instalações da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, mediante a utilização de meios incendiários, facas e outras armas.
20. O arguido ambicionava ser o protagonista de uma situação de assassinato em massa e mostrar ao país e ao mundo que este fenómeno também ocorre em Portugal e não apenas nos Estados Unidos da América.
21. O arguido, através do seu computador portátil, efectuou diversas pesquisas no motor de pesquisas Google através da frase “terrorismo em portugal”, bem como pesquisou e teve acesso a um documento PDF referente a um livro intitulado “Understanding Lone Actor Terrorism Past Experience, Future Outlook, and Response Strategies by Michael Fredholm” (Entendendo a Experiência Passada do Terrorismo do Actor Solitário, Perspectivas Futuras e Estratégias de Resposta por Michael Fredholm).
22. O arguido tinha a vontade compulsiva de matar pessoas antes de morrer, de forma indiscriminada e sem alvos específicos da comunidade escolar da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
23. Entre Janeiro e 10 de Fevereiro de 2022, o arguido muniu-se de todas as armas e artigos que escolheu para utilizar no ataque homicida-suicida e definiu: os locais dentro das instalações universitárias onde se prepararia, primeiro, e onde realizaria o ataque, depois; a data em que concretizaria o ataque; o número de pessoas que pretendia matar ou ferir gravemente; a forma como transportaria para a universidade as armas e os demais artigos, que conjugados serviriam para atear fogo ou provocar explosões, e a forma como utilizaria cada uma das armas ou engenhos, nomeadamente os de natureza incendiária.
24. Na concretização do plano que delineou, o arguido adquiriu por si próprio conhecimentos e instrução sobre como planear um ataque homicida-suicida em meio escolar, como se preparar, movimentar e actuar, que armas escolher e como as utilizar, bem como conhecimentos de utilização de vários tipos de armas e de engenhos incendiários de diversa natureza.
25. O arguido, através do seu computador portátil, efectuou diversas pesquisas online de anúncios na plataforma OLX sobre facas e bestas, pesquisas online e no motor de pesquisa Google sobre facas, bestas, cocktails molotov, combustível para isqueiros, histórias de tiroteios, histórias de assassinatos em massa, histórias de suicídio e de suicídios em massa, acessos a publicações online na rede social Reddit sobre ataques de “mass killers” com faca e pesquisas na plataforma de compartilhamento de vídeos Youtube sobre explosões de embalagens aerossol, inclusive de gás butano, quando expostas ao fogo.
26. Na execução do referido plano, entre 18 de Janeiro de 2022 e 10 de Fevereiro de 2022, o arguido comprou uma besta e vinte e cinco virotões próprios para serem disparados pela besta, cinco facas de diversos tamanhos, cinco isqueiros, dois maçaricos, duas latas de gás em spray próprio para isqueiros, quatro latas de combustível para isqueiros, duas latas de gás butano em spray, três garrafas em vidro onde colocou uma mistura inflamável, e um arranca-pregos.
27. O arguido começou a planear a compra das facas em 15 de Janeiro de 2022, adquirindo a partir dessa data um punhal com 20cm de lâmina e respectiva bainha de transporte, uma faca de combate com 16cm de lâmina e respectiva bainha de transporte de acoplar à perna, uma faca de abertura automática de lâmina curvada e com 7cm (Karambit), uma faca de abertura automática com 7cm de lâmina e uma faca de abertura manual com 7,5cm de lâmina.
28. Em 28 de Janeiro de 2022, o arguido já tinha comprado por menos de €100,00 uma das facas no valor de 350 dólares e pensava comprar uma outra no valor de 250 euros, facto que confidenciou ao seu “amigo” “Platinum Mad#6537”, a quem disse também que pensava comprar uma faca militar de combate, de lâmina fixa, utilizada pelos italianos e que normalmente custaria €400,00, e tendo-lhe ainda referido que já tinha um “pé-de-cabra”/arranca-pregos, que veio a ser apreendido, admitindo utilizá-lo para matar alguém com pancadas na cabeça.
29. Em 01 de Fevereiro de 2022, o arguido exibiu ao seu interlocutor “Platinum Mad#6537” uma fotografia da faca táctica que comprara recentemente e que foi apreendida.
30. Em 02 de Fevereiro de 2022, o arguido adquiriu a faca Karambit, também apreendida, de que remeteu igualmente foto ao utilizador “Platinum Mad#6537”, e logo no dia seguinte remeteu fotografia da faca de tipo militar de combate e bem assim do punhal que também tinha comprado, ambos também apreendidos.
31. O arguido adquiriu os conhecimentos necessários ao uso das facas que comprou através de consulta do “Manual de Técnicas Manuais de Combate com Faca do Exército dos Estados Unidos” (US – Army – Knife Fighting Manual Techniques), em ficheiro PDF, mediante utilização do seu computador portátil, que veio a ser apreendido.
32. O arguido manifestou dominar os conhecimentos adquiridos através de mensagens que enviou através do Discord a Riya Upreti, explicando-lhe ao pormenor como a poderia matar rapidamente e sem dor com faca, designadamente que teria de cortar a veia jugular por ser aquela que fornece oxigénio ao cérebro.
33. Nesse mesmo período, o arguido comprou uma besta da marca “Man Kung”, modelo “Mini Cross Bow”, e 25 (vinte e cinco) setas (virotões com 16cm de comprimento) próprias para serem disparadas por aquela arma, assim como um suporte para transporte das setas, próprio para acoplar ao braço.
34. O arguido adquiriu por si próprio os conhecimentos necessários para a utilização desta arma, mediante pesquisas na internet e visualizações online, e treinou o disparo e pontaria no seu quarto de dormir, disparando a besta contra garrafas de plástico, bem como estudou o efeito provocado pelos seus disparos.
35. Até ao dia 03 de Fevereiro de 2022, através de mensagens escritas enviadas ao utilizador “Platinum Mad#6537" na rede social Discord, o arguido informou-o acerca das compras da besta e de quatro facas que efectuou nesse período de tempo, tudo destinado ao ataque na universidade, assim como lhe enviou fotografias dessas mesmas armas e de uma garrafa perfurada por um virotão na sequência dos treinos que realizou com a besta.
36. Deu-lhe ainda conhecimento de que já possuía, para além daquelas armas, um canivete de ponta-e-mola e um pé-de-cabra.
37. De igual forma, o arguido adquiriu por si próprio os conhecimentos necessários para a utilização conjugada do restante material que comprou: os cinco isqueiros, dois maçaricos pequenos, duas latas de gás em spray para isqueiros, com 300ml de capacidade cada uma, quatro latas de combustível para isqueiros, com 133ml de capacidade cada uma, e duas latas de gás butano, com 393ml de capacidade cada uma, de forma a conseguir que os mesmos provocassem incêndio ou explosão.
38. Em concreto, o arguido efectuou pesquisas e visualizações online em que aprendeu a fabricar e a utilizar cocktails molotov, destacando-se a publicação a que acedeu em 7 de Fevereiro de 2022, através do referido computador portátil, na rede social Reddit, intitulada “(3) What is better for a Molotov Cocktail, lighter fluid or gasoline?: AskReddit” (O que é melhor para um Cocktail Molotov, fluido de isqueiro ou gasolina? Pergunte ao Reddit).
39. O arguido adquiriu conhecimentos sobre as potencialidades e efeitos do “combustível líquido para isqueiros” mediante procura na internet e pesquisas através das frases “can lighter fluid burn skin” (pode o fluido de isqueiro queimar a pele) e “molotov cocktail lighter fluid” (fluido de isqueiro para cocktail molotov), mediante a utilização do seu computador portátil.
40. E consultou através do seu computador portátil vídeos no Youtube sobre a explosão de aerossóis, designadamente de gás butano, quando expostos ao fogo, assim como os seus efeitos, de forma a instruir-se e adquirir conhecimento sobre explosões.
41. No dia 7 de Fevereiro de 2022, entre as 15h02 e as 15h17, o arguido dirigiu-se à “Loja do Chinês”, sita na Rua ..., em Lisboa, e adquiriu uma lata de gás em spray próprio para isqueiros, outra de combustível para isqueiros e um maçarico.
42. O arguido comprou a besta e três das facas (punhal, faca de combate e faca táctica) online, através de anúncios publicitados na plataforma OLX, as quais lhe foram entregues pessoalmente pelos vendedores, e comprou outra das facas (a Karambit) numa “loja de caça” em Lisboa.
43. Para concretizar o ataque que planeou e decidiu executar, o arguido configurou ainda a possibilidade de se munir de armas de fogo, pelas quais também tinha grande fascínio, realizando pesquisas e visualizações na dark web, acabando por não adquirir qualquer arma de fogo devido ao receio de ser descoberto se as obtivesse através da internet.
44. Para conseguir a arma de fogo pretendida, o arguido ainda ponderou apropriar-se de uma espingarda caçadeira semi-automática do pai de um amigo.
45. O arguido começou a pensar no dia em que iria cometer o ataque na universidade quando iniciou isolamento profilático devido a infecção por Covid-19, entre 15 a 18 de Janeiro de 2022, altura em que leu um Mangá denominado “Dead Tube”.
46. No inicio do mês de Fevereiro de 2022, o arguido definiu o dia 4 de Fevereiro de 2022 como o dia do ataque, posteriormente definiu o dia 7 e por fim elegeu 11 de Fevereiro de 2022 para o dia do ataque, como o dia da prática dos factos que pretendia cometer contra a vida e integridade e física dos membros da comunidade escolar da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, ataque que teria início às 13h20, uma vez que já tinha adquirido todos os objectos necessários nos dias anteriores.
47. Entre 1 e 4 de Fevereiro de 2022, através da plataforma Discord, utilizando o nome “PsychoticNerd#6116”, o arguido efectuou publicações, relatando que nos próximos dias levaria a cabo um assassinato em massa numa Universidade de Lisboa, utilizando para o efeito facas, uma besta e eventualmente explosivos que fabricaria por si próprio.
48. Com a compra dos objectos referidos, e com a aquisição dos conhecimentos e treino necessários para a utilização das mencionadas armas e substâncias, que conjugadas provocariam incêndios e explosões, o arguido reuniu, a partir desse momento, os meios necessários, e pretendia fazer uso dos mesmos, para matar pessoas, feri-las, provocar incêndio e explosões, nas instalações da faculdade, de forma a executar o seu plano, que visava intimidar em particular a comunidade escolar da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no dia 11 de Fevereiro de 2022.
49. Na posse dos meios e conhecimentos necessários que adquiriu para o ataque que planeou, e já com a data definida, o arguido muniu-se de uma mala de viagem e de uma mochila destinadas a transportar todas as armas e artigos até à universidade, quando fosse praticar o ataque homicida‑suicida.
50. Na posse da referida mala, e de forma a prevenir e evitar qualquer contrariedade ou obstáculo, o arguido efectuou uma vez o percurso de ida à universidade transportando consigo a mala de viagem, para ver o que acontecia se a população visada, que elegeu para o seu ataque na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, avistasse uma pessoa levar uma mala de viagem, apercebendo-se de que ninguém reparava nesse facto.
51. Para calcular o tempo que teria disponível para executar o ataque até a polícia chegar, o arguido solicitou informações junto da Riya Upreti sobre a quantidade de polícias que se deslocavam à universidade nos dias de exames e o tipo de armamento com que estavam equipados.
52. O arguido pretendia matar pessoas na universidade e de seguida tirar a própria vida, esfaqueando-se na barriga e no peito, à semelhança do que leu no ataque descrito no Mangá “Dead Tube”, cujo plano de ataque pretendia copiar, face ao fascínio que sentia, bem como replicar e representar a personagem que vai para a escola com uma mala e que depois vai à casa-de-banho, prepara-se com as armas e depois concretiza o ataque.
53. Para a execução do ataque, o arguido redigiu um plano, em inglês e em português, e afixou-o numa das paredes do seu quarto de dormir.
54. Desse plano constam as tarefas e acções a executar na véspera do dia escolhido para a prática dos factos e as movimentações e acções a executar no dia propriamente dito, ou seja, no dia 11 de Fevereiro de 2022, que apelida de “Final Day”, escolhido por se tratar de um dia com muita afluência na faculdade por ser dia de exames, informação que tinha recolhido previamente, onde apontou, além do mais:
“13h00 – Começar a ir para o centro comercial Vasco da Gama
15h00 – Voltar no máximo a esta hora
15h15 – Comprar uma embalagem de líquido de isqueiro na loja do chinês
15h30 – Preparar tudo para amanhã
17h00 – Comer qualquer coisa
17h05 – Continuar a preparar
18h00 – Encomendar McDonald’s
20h00 – Jantar
1h00 – cama
Dia seguinte
8h00 – Acordar
8h05 – Tomar o pequeno almoço
8h10 – Ir para o computador
10h00 – Começar a vestir
11h00 – Preparar última refeição
11h40 – Sair do apartamento com mala
12h00 – Ir para o autocarro 750 ou 731 para o Campo Grande
12h30 – Ir para a casa de banho no bloco 3 e preparar-te
13h20 – Começar o ataque
13h25 – Fim
Devia ter feito isto na segunda fogo
Sexta-feira dia 11
Dia final”.
55. Para realizar o ataque, o arguido escolheu que iria executar o seu plano no Bloco 3 da faculdade, pela existência do Anfiteatro 3 naquele bloco, que além de albergar uma grande quantidade de alunos, os mesmos estariam naquele dia e hora a realizar exames de final de semestre, e as cadeiras eram fixas ao chão, prevendo que dessa forma as pessoas visadas pelo ataque não conseguiriam obstar à prossecução do seu plano e impedir a execução do mesmo arremessando essas cadeiras contra si.
56. Definiu que uma vez na universidade, deslocar-se-ia à casa-de-banho do Anfiteatro 3 (Bloco 3), que tinha selecionado previamente por ser grande, local onde se prepararia e equiparia com as armas e demais artigos.
57. Seguidamente encetaria o seu ataque no Anfiteatro 3 (Bloco 3) dirigindo a sua actuação aos alunos e professores que ali se encontrassem em realização de exames de final de semestre.
58. O arguido definiu que em primeiro lugar utilizaria as três garrafas de vidro contendo misturas inflamáveis como cocktails molotov, acrescentando-lhes um pano no gargalo, largando-lhes o lume e atirando-as depois para o interior do anfiteatro, provocando assim um incêndio e gerando o pânico.
59. De seguida, atiraria as latas de gás em spray para o interior do anfiteatro esperando que explodissem com o calor gerado pelo incêndio, e utilizá-las-ia também como pequeno lança‑chamas.
60. O arguido definiu que se manteria posicionado junto à porta de entrada do anfiteatro, por forma a esperar ali os alunos que viessem em fuga e em pânico, atingindo-os com disparos com a referida besta, e esfaqueando-os, matando-os e ferindo-os, em número indiscriminado, até que lhe fosse possível, ou seja, até cometer suicídio ou ser morto pela polícia.
61. O arguido planeou morrer esfaqueando-se na barriga e “esperar que os intestinos saíssem”, como viu fazer uma personagem feminina do jogo eletrónico “Doki Doki Literature Club”.
62. O arguido configurou a possibilidade, mercê da actividade que iria desenvolver e das mortes que iria provocar na comunidade escolar com os meios e intenção referidos, que a polícia iria necessariamente procurar abatê-lo como forma de repelir a agressão violenta em curso, que punha em risco a vida e integridade física dos alunos e professores da faculdade.
63. Entre 10 de Janeiro e 6 de Fevereiro de 2022, através de mensagens escritas enviadas a Riya Upreti na rede social Discord, o arguido deu-lhe a conhecer os contornos do seu plano, nomeadamente: a sua intenção de matar pessoas e de morrer em seguida, suicidando-se ou sendo morto pela polícia; o número de pessoas que pretendia matar; o local exacto nas instalações da Universidade onde pretendia levar a cabo o ataque, de que forma e porquê; a data em que pretendia concretizar o ataque; o tipo de armas e artigos que utilizaria no ataque e a forma como as transportaria e utilizaria; o fascínio que nutria por armas de fogo e o quanto desejaria utilizá-las neste ataque se tivesse conseguido obtê-las.
64. Através de mensagens escritas enviadas ao utilizador “Platinum Mad#6537"da rede social Discord, o arguido, em 22.01.2022, desabafou que estava mentalizado que se se suicidasse, antes mataria alguém; e em 23/01/2022 o arguido reforçou a ideia de que gostaria de matar antes de ser morto; em 29/01/2022 o arguido manifestou a vontade de praticar um ataque na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, esfaqueando alguém e matando-se; em 03/02/2022 o arguido considerava estar muito próximo o dia em que ia matar alguém; e em 04 e 5/02/2022 o arguido sentia que podia enlouquecer, só pensava em matar pessoas e, inclusive, já tinha estudado as vulnerabilidades do sistema de segurança da Universidade.
65. Em 02 de Fevereiro de 2022, pessoa não identificada, utilizadora da conta de e-mail “SammyWilliam@mail.com”, tendo conhecimento do teor de publicações efetuadas no Discord pelo utilizador “PsychoticNerd#6116”, ou seja, o arguido, relacionadas com a sua intenção de praticar um ataque homicida-suicida na Universidade de Lisboa, efetuou uma denuncia via e-mail para o Federal Bureau of Investigation (FBI), que veio a ser transmitida à Policia Judiciária, o que permitiu a realização de diligências que conduziram à posterior identificação, localização e detenção do arguido.
66. No dia 10 de Fevereiro de 2022, o arguido guardava na residência sita na Rua ..., em Lisboa, todos os objectos que adquiriu para a execução do ataque, em concreto:
- Uma lata de gás spray de cor vermelho, azul e amarelo com as inscrições Extra +, Universal, Gas Lighter Refill com conteúdo, de 300ml;
- Uma lata de gás butano com as inscrições Extra + B-250 Isso Butane N-Butane de 393ml;
- Uma lata de cor amarela e azul e com as inscrições Extra + Lighter Fluid for all Petrol Lighters de 133ml;
- Uma seta de cor preta e amarela própria para besta;
- Duas setas sem ponta (utilizadas para o treino);
- Uma ponta de seta;
- Uma seta completa, todas de cor amarela e preta e próprias para besta;
- Uma mochila que tinha escolhido para transportar as armas e os engenhos, de alças de cor preta, da marca Eastpak;
- Um punhal com lamina corto-perfurante de 20cm, de cor metalizada e cabo em madeira de cor castanha e outras, acondicionado na respetiva bainha em cabedal de cor preta e castanha;
- Uma faca de combate de cor preta com símbolo alusivo às forças especiais paraquedistas acondicionada na respetiva bainha preparada para acoplar à perna, com uma lâmina corto‑perfurante de 16 cm;
- Uma faca Karambit dobrável constituída por lâmina curvada;
- Uma faca táctica em metal de abertura manual com a inscrição “Staineless”;
- Uma mala de viagem que tinha escolhido para transportar as armas e os engenhos;
- Três latas de cor amarela e azul e com as inscrições Extra + Lighter Fluid For All Petrol Lighters de 133ml embrulhadas em meias;
- Um maçarico de cores azul, cinzento e preto;
- Uma lata de gás butano com as inscrições Extra + B-250 Isso Butane N-Butane de 393ml embrulhado nuns jeans;
- Três garrafas de vidro da água Frize, sendo que duas estavam embrulhadas numa toalha e outra numa sweatshirt, todas contendo combustível;
- Um arranca-pregos (pé-de-cabra) em metal embrulhado numa toalha;
- Uma besta de cor preta com a inscrição Mini Cross Bow, com um comprimento total de 50cm estando equipada com arco com diâmetro de 44cm;
- Um martelo com cabo em madeira com etiqueta com inscrição Martelo 500gr;
- Um maçarico com a inscrição Torch Professional Lighter;
- Quatro latas de combustível, com as inscrições Extra + Lighter Fluid For All Petrol Lighters, com 133ml de capacidade cada uma, algumas embrulhadas em meias usadas;
- Vários recipientes contendo um líquido de cor amarela, em concreto garrafas de água de 1,5 litros em plástico transparente, que tinham a parte do gargalo cortada e no seu interior urina do arguido;
- Um mural de recortes com imagens violentas, retiradas a partir de banda desenhada Mangá, a preto e branco, onde predominam imagens violentas de personagens, sobretudo do sexo feminino, empunhando ou disparando armas de fogo, caveiras de mulheres, atropelamentos por comboio, em que é visível o sangue da vítima espalhado na linha;
- Pendurado na parede do quarto, um quadro em madeira e cortiça tendo afixado uma folha de linhas de tamanho A4 manuscrita na língua inglesa e portuguesa contendo o referido plano com a indicações para o dia 11, estando assinalado, entre outros, “prepare final meal” (preparar a última refeição), “12H30 – go to bathroom block 3 and prepare yourself” (ir para a casa de banho, bloco 3 e prepara-te) e “13H20 – Begin assault” (começar o assalto – ataque);
- Um computador portátil de marca Acer, que o arguido utilizou para a aquisição dos objectos de que precisava e para a aquisição dos conhecimentos e treino para manusear as armas adquiridas;
- Um telemóvel Alcatel;
- Um telemóvel Oppo;
- Uma embalagem de setas para besta em cartão e plástico com a inscrição Royal Arrow For Crossbow;
- Um isqueiro de cor preto, laranja e branco com a inscrição Clipper;
- Um bloco de notas de tamanho A5 com a inscrição na contra-capa Come Out & Play Puddin, contendo folhas de linhas manuscritas;
- Uma lata de gás spray de cor vermelho, azul e amarelo com as inscrições Extra + Universal, Gas Lighter Refill com conteúdo;
- Cinco setas de cor preta e amarela para besta acondicionadas em suporte próprio em plástico e fitas em velcro próprias para transporte preso ao braço;
- Seis setas de cor preta e amarela para besta;
- Uma caixa de papel de cor branca contendo 10 (dez) setas de cor vermelho próprias para besta;
- Um isqueiro de gás próprio para fogão de cores rosa, branco e cromado sem qualquer inscrição;
- Quatro isqueiros todos com a inscrição Clipper e com diversas ilustrações;
- Uma faca de abertura automática com lâmina corto-perfurante de 7 cm, com o cabo em madeira e metal nas cores castanho e metalizado, e que se encontrava acondicionada em guardanapos envolvidos em fita cola.
67. O arguido foi abordado pelas autoridades policiais no dia anterior àquele que o mesmo havia destinado ao ataque.
68. As duas embalagens de aerossol com as inscrições “Extra”, “Gas Lighter Refill”, “300ML”, “Flammabel” continham cada uma 300ml de um gás sob pressão extremamente inflamável e as duas embalagens de aerossol, com as inscrições “Extra+”, “B-250”, “393ml”, “Extremamente Inflamável” continham cada uma 393ml de um gás sob pressão extremamente inflamável.
69. A mistura inflamável destas embalagens pode ser utilizada como iniciador de incêndios ou como acelerante de combustão/explosão. Em caso de incêndio ou aquecimento, ocorre aumento de pressão e o contentor pode rebentar, com risco de explosão subsequente, provocando danos pessoais e patrimoniais. As embalagens encontram-se em bom estado de funcionamento, conservação e idóneas para o fim a que se destinam.
70. As quatro embalagens de líquido, com as inscrições “Extra+”, Lighter Fluid”, “133ml”, “líquido e vapor facilmente inflamáveis” continham cada uma 133ml de uma mistura inflamável (produto destilado do petróleo) de acordo com as inscrições do contentor. Encontram-se em bom estado de funcionamento, conservação e idóneas para o fim a que se destinam comercialmente (recarregamento de isqueiros, maçaricos e materiais destinados a produzir chama). A mistura inflamável destas embalagens pode ser utilizada como iniciador de incêndios ou como acelerante de combustão/explosão.
71. A garrafa em vidro com as inscrições “Água Mineral Natural Gasosa Frize” continha 100ml de uma mistura inflamável (produto destilado do petróleo) que não corresponde às inscrições da garrafa. Esta substância pode ser utilizada como iniciador de incêndios ou como acelerante de combustão/explosão.
72. E duas garrafas em vidro, com as inscrições “Água Mineral Natural Gasosa Frize” continham 222ml e 192ml, respectivamente, de substâncias inflamáveis (produto destilado do petróleo e etanol/álcool etílico) que não correspondem às inscrições das garrafas. Estas substâncias podem ser utilizadas como iniciadores de incêndios ou como acelerantes de combustão/explosão.
73. O principal perigo da mistura das referidas substâncias inflamáveis está relacionado com o risco de incêndio ou explosão (os vapores podem formar misturas explosivas no ar) podendo provocar queimaduras com gravidade e extensão diversas ou até a morte das vítimas.
74. Os seis isqueiros encontravam-se todos em bom estado de funcionamento e de conservação e idóneos ao fim a que se destinam, todos produzindo chama.
75. Os dois maçaricos encontravam-se ambos em bom estado de funcionamento e de conservação e idóneos ao fim a que se destinam, ambos produzindo chama.
76. A besta encontrada na posse do arguido encontrava-se em boas condições de funcionamento.
77. Dos virotões que o arguido tinha em seu poder, pelo menos 21 encontravam-se em boas condições de utilização.
78. O disparo de virotão através da besta que o arguido tinha consigo, a uma distância de até 11 metros, permite causar ferimentos graves em pessoas, incluindo a morte.
79. O arguido pretendia ainda que o mural de recortes retirados a partir de banda desenhada Mangá fosse exibido ao público, nas notícias, na sequência do ataque que pretendia praticar na universidade.
80. O arguido guardava no seu computador portátil documentos diversos de formato PDF e Word, dentre os quais: uma publicação sobre psicopatas portugueses; listas e publicações sobre assassinos, assassinatos, esfaqueamentos, tiroteios e ataques escolares; um manual do exército americano sobre luta com faca; artigos e publicações sobre armas de fogo; publicações sobre massacres.
81. Aquando da prática dos factos acima descritos, o arguido encontrava-se afecto das anomalias psíquicas de perturbação do espetro do autismo, sem perturbação do desenvolvimento intelectual e com nulo a ligeiro défice na linguagem funcional, e de episódio depressivo, sem sintomas psicóticos, o qual terá surgido no último trimestre de 2021, persistindo no tempo em 2022.
82. O “mundo alternativo” do arguido não corresponde a um qualquer sintoma psicótico ou abnorme, antes correspondendo a um mecanismo de adaptação de tipo imaginativo, de natureza escapista, alicerçado nos interesses específicos prévios, que ocorreram num período em que aquele se encontrava clinicamente deprimido, com ideação suicida, em vivência de adversidade, não se identificando sintomas psicóticos ou abnormes, nomeadamente ideias delirantes ou fenómenos alucinatórios, entendendo-se que o designado “mundo alternativo” seguramente estava presente aquando da prática dos factos acima descritos, mas não determinou, de forma impositiva e para além do controlo do arguido.
83. No momento da prática dos factos acima descritos, a capacidade do arguido em apreciar correctamente a informação sobre o mundo e com esta fazer julgamentos próprios e subjetivamente livres, resultando em acções concretas, agindo por sua vontade, sem condicionalismos patológicos graves ou abnormes, estava globalmente mantida, não existindo pressupostos médico-legais para ser considerando inimputável em razão de anomalia psíquica.
84. O arguido não era possuidor de justificação, autorização ou licença que lhe permitisse deter as armas que foram encontradas na sua posse.
85. As armas e substâncias que o arguido tinha na sua posse encontravam-se acondicionadas e prontas a ser utilizadas.
86. O arguido tinha a intenção de intimidar a comunidade escolar da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
87. O arguido tinha conhecimento dos factos acima descritos e, ainda assim, quis agir pela forma mencionada, com a referida intenção, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
88. O arguido confessou de forma integral e sem reservas os factos acima descritos. Provou-se ainda que:
89. A faca de abertura manual com a inscrição “Staineless” encontrada no interior da residência do arguido tinha uma lâmina de 8,5cm.
90. Quando foram praticados os factos acima descritos, o referido episódio depressivo que afectava o arguido era acompanhado de ideação suicida, que lhe toldava a mundivisão e reduzia o leque de escolhas existenciais possíveis.
91. A perturbação do espetro do autismo de que o arguido padece é uma afectação do neurodesenvolvimento, persistente ao longo da vida, que é constitutiva do próprio indivíduo, inextricável da sua forma de estar e ser no mundo.
92. Em consequência da perturbação do espetro do autismo, o arguido apresenta dificuldades na adaptação à mudança, no estabelecimento de relações e reciprocidade com terceiros, na identificação de estados emocionais em si e noutras pessoas, a que se associa também a existência de interesses específicos.
93. O arguido apresenta risco moderado de violência, sendo possível e desejável mobilizar os factores de protecção existentes e efectuar intervenção dirigida aos factores de risco, nomeadamente acompanhamento médico-psicológico, estratégias de potenciação de áreas de competência elevada, treino e reabilitação de competências sociais, definição de projecto social e ocupacional que permita inserção satisfatória na comunidade e oportunidade de criação de laços.
No que respeita à inserção familiar e sócio-profissional do arguido, apurou-se que:
94. O arguido é natural da aldeia de …, situada no concelho da Batalha, e é o mais novo de dois filhos de um casal de modesta condição sócio-económica, tendo o respectivo processo evolutivo decorrido no núcleo familiar de origem, agregado desde sempre constituído pelos pais e pelo irmão mais velho.
95. A par dos progenitores, também os avós do arguido se constituíram como elementos de forte presença durante o crescimento do arguido, havendo sentimentos de afectividade e de respeito entre todos.
96. O arguido ingressou no sistema educativo na idade adequada, tendo frequentado estabelecimentos de ensino inseridos no concelho da ....
97. Durante o 1.º ciclo do ensino básico, o arguido apresentou dificuldades ao nível da comunicação verbal, especialmente no plano da dicção e da construção de palavras, situação que já era do conhecimento dos pais daquele ainda antes da sua inserção escolar e que os levou a procurar apoio especializado.
98. Com quatro anos de idade, o arguido começou a beneficiar de apoio ao nível da terapia da fala, acompanhamento que manteve até aos nove anos de idade.
99. No decurso do 1.º ciclo do ensino básico, o maior interesse do arguido era o desenho das bandeiras dos vários países, que copiava de uma enciclopédia, e o coleccionismo de moedas antigas, revelando especial agrado pelas disciplinas de geografia e de estudo do meio.
100. O arguido deu continuidade aos estudos, concluindo o 12.º ano, tendo denotado um aproveitamento escolar muito satisfatório, sobretudo na disciplina de matemática, relevando-se a disciplina de português como a de maior dificuldade, sobretudo no campo da interpretação, nomeadamente ao nível da linguagem pragmática.
101. Apesar da terapia da fala intensiva de que o arguido beneficiou, as dificuldades ao nível da linguagem persistiram.
102. A disciplina de educação física foi do desagrado do arguido, por não gostar de práticas físicas e de actividades em grupo.
103. Na transição do arguido do 1.º para o 2.º ciclo de escolaridade, uma das docentes deste transmitiu à progenitora do mesmo preocupação por alguns comportamentos “bizarros” daquele, nomeadamente a sua fixação em determinados objectos, como por exemplo num colar da docente, facto que o conduzia a um total alheamento perante qualquer outra atividade e a retração do arguido no convívio com outras crianças, não só pelo desinteresse demonstrado nesse convívio, mas inclusivamente pela promoção de algum isolamento social.
104. Após uma primeira avaliação realizada pelos serviços de psicologia escolar terem apontado para síndrome de Asperger, o arguido foi encaminhado para o hospital de Coimbra, onde a validação desse diagnóstico veio a ser realizada quando aquele contava nove anos de idade.
105. Ainda que apresentasse bom aproveitamento escolar durante o 2.º ciclo de escolaridade, o arguido procurou um maior isolamento social, constituindo-se o lar familiar como o seu refúgio em termos de conforto.
106. No decurso do seu trajecto escolar, aos quinze anos de idade, o arguido iniciou uma aprendizagem mais formal da informática, nomeadamente do uso da internet, embora já tivesse algum conhecimento sobre a utilização de computadores, que aprendera aos oito anos de idade.
107. A partir dos doze anos de idade, o arguido passou a utilizar o computador do irmão, focando a sua atenção em temas ligados a bandas desenhadas várias, nomeadamente a banda desenhada de origem japonesa Anime e Mangá, pelas quais desenvolveu especial interesse.
108. Após a oferta de um computador ao arguido, pelos seus pais, aquele passou a ocupar longas horas do seu dia na sua utilização do computador.
109. Com a conclusão do ensino secundário e a ambição de dar continuidade aos estudos a um nível académico superior no curso de engenharia informática, o arguido, com o apoio da progenitora, realizou inscrição de ingresso no Instituto Politécnico de Leiria, mas, sem o conhecimento parental, via online, aquele acabou por efectuar semelhante candidatura para a frequência do mesmo curso em Lisboa, na Faculdade de Ciências, pela qual veio a optar.
110. O arguido justifica o seu interesse pela frequência universitária em Lisboa com o objectivo de se aproximar fisicamente de uma jovem com quem vinha a desenvolver uma amizade virtual desde 2018, tendo ambos como interesse comum temas relacionados com a banda desenhada japonesa Anime, com homicidas em massa e seus trajectos criminosos.
111. O arguido deslocou-se para Lisboa em Setembro de 2021, para a frequência universitária do 1.º ano do curso de engenharia informática na Faculdade de Ciências de Lisboa.
112. Apesar da discordância parental, o arguido manteve a intenção de estudar em Lisboa, o que se veio a concretizar, contando com o apoio dos pais, quer a nível financeiro, mas também logístico e alimentar, ficando asseguradas as condições de alojamento em quarto arrendado na zona de Olivais Sul.
113. Os interesses do arguido pelas actividades académicas permaneceram em segundo plano, assumindo o mesmo que a sua vinda para Lisboa teve como objectivo exclusivo o convívio com a referida amiga que conheceu através da internet.
114. O arguido manteve um aproveitamento meramente satisfatório comparativamente ao registado anteriormente no ensino secundário, ocupando parte do seu tempo em pesquisa e conversas em blogues na internet.
115. O distanciamento promovido pela referida amiga, invocando o facto de os progenitores desta terem ficado desagradados com o arguido no decurso de uma única visita à habitação da jovem, surgiu como um factor de alguma desestabilização emocional para o arguido, não só pela perda do contacto com aquela que considerava sua parceira de interesses virtuais, mas também por achar ser esta a sua única amiga em Lisboa.
116. A estadia do arguido em Lisboa veio a revelar-se um factor de impacto na sua desorganização pessoal e de isolamento social.
117. Na sequência do diagnóstico de síndrome de Asperger, o arguido apenas beneficiou da presença anual em consultas, sem que nunca tenha sido sugerido um acompanhamento mais especializado junto daquele.
118. Os progenitores do arguido requereram junto de médico psiquiatra na esfera da zona residencial apoio especializado para aquele logo que restituído à liberdade.
119. O arguido foi sujeito à medida de coacção de prisão preventiva à ordem destes autos em 11.02.2022, que em 11.05.2022 foi substituída por internamento preventivo que se encontra a ser executado na clínica de psiquiatria do Hospital S. João de Deus.
120. O arguido tem vindo a demonstrar um comportamento adequado, colaborando com os vários profissionais intervenientes no seu caso, relevando-se a sua presença activa e colaborante nas várias tarefas de carácter terapêutico e ocupacional que lhe vão sendo propostas, destacando-se em momento mais presente o seu verbalizado entusiasmo pelas actividades decorrentes da semana da saúde mental.
121. Como factor muito gratificante para o arguido, surgem as visitas dos progenitores, aos fins-de-semana, bem como os telefonemas diários com a progenitora, o que parece ter um impacto positivo no plano da sua estabilidade emocional.
122. No relatório social elaborado pelos serviços de reinserção social relativo à inserção familiar e sócio-profissional do arguido, conclui-se que:
- A regista um processo evolutivo decorrido em meio familiar coeso e estruturado, cuja dinâmica desde sempre se revelou como funcional e afetivamente gratificante. Acresce a esta dinâmica familiar os sentimentos de proteção da progenitora para com o arguido,
talvez pelas limitações presentes neste e das quais a família foi tomando conhecimento no decurso do seu crescimento.
- O seu trajeto escolar viria a revelar-se de sucesso pelo bom aproveitamento, ainda que manifestasse dificuldades, desde a infância, ao nível da linguagem, especialmente ao nível da dicção e interpretação, relevando-se o seu interesse pessoal pela matemática, onde desde sempre revelou um aproveitamento acima da média. Paralelamente foram sendo sentidos problemas de isolamento social face à reduzida efetividade no plano das interações sociais, que levaram a situações de rejeição pelos pares, tendo sido alvo de bullying verbal e físico.
- A par das atividades académicas surge desde logo e muito cedo o seu interesse por computadores, desenvolvendo ao longo do tempo, conhecimentos aprofundados de informática, que lhe permitiram ter acesso a determinadas temáticas, sem qualquer monitorização parental e pelas quais desenvolveu especial interesse e fixação, despendendo uma grande parte do seu quotidiano em sites e fóruns de conversação e visualizando banda desenhada de origem japonesa.
- Ainda que com um desenvolvimento decorrido em ambiente securizante e de certa forma protegido, apesar de diagnóstico de síndrome de Asperger, de acordo com o apurado, A, durante a infância e adolescência não terá beneficiado de um acompanhamento adequado às suas vulnerabilidades, o que poderá ter condicionado aprendizagens relevantes quanto às necessidades/limitações que viria, entretanto, a apresentar, nomeadamente na área da autonomia pessoal.
- Assim, em caso de condenação, julga-se importante que Apossa vir a beneficiar de um acompanhamento especializado e contínuo, que lhe permita obter estratégias de apoio mais eficazes e adequadas ao seu diagnóstico.
123. O arguido não tem antecedentes criminais.”
*
E os seguintes factos não provados:
“a) Na execução do plano que delineou, o arguido pretendia utilizar engenhos explosivos construídos de forma artesanal.
b) O arguido delineou o plano acima referido, também por sentir ressentimento por se ter visto envolvido num caso de suspeitas de plágio num trabalho académico que apresentou.
c) Entre Janeiro e 10 de Fevereiro de 2022, o arguido muniu-se de engenhos de natureza explosiva.
d) O arguido adquiriu por si próprio conhecimentos e instrução sobre o fabrico de explosivos artesanais e a utilização dos mesmos.
e) A lâmina da faca de combate que o arguido adquiriu tinha uma lâmina de 16,9cm.
f) No dia 11.02.2022, aquando da realização de exames, iriam estar no Anfiteatro 3 do Bloco 3 da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa perto de 50 alunos.
g) O arguido apenas não logrou concretizar e finalizar o plano de ataque à Faculdade de Ciências que tinha preparado e delineado porque as autoridades o abordaram e evitaram desta forma a consumação das mortes, ofensas à integridade física, incêndio e explosões que ocorreria no dia seguinte a tal abordagem suceder.”
-- // -- // --
Cumpre apreciar.
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
*
Atendendo às conclusões apresentadas são questões a apreciar, o cometimento pelo arguido do crime de treino para terrorismo de que vinha acusado, com fundamento na factualidade provada, a medida da pena aplicada e a suspensão da respectiva execução.
*
Antes, porém, impõe-se uma reflexão e selecção das matérias a tratar, com base no objecto do processo, já que as repetições de enunciações, bem como de descrições de meios de prova que se detectam no que consta como matéria de facto são tão evidentes como a existência de entorse a tal propósito.
Os crimes em causa, sem qualquer dissenção nos autos e independentemente do que se venha a concluir quanto à demonstração dos respectivos factos constitutivos, são o de terrorismo e o de detenção de arma proibida.
“São infrações terroristas os atos... previstos como crime, que, pela sua natureza ou pelo contexto em que são cometidos, possam afetar gravemente o Estado... quando forem praticados com o objetivo de intimidar gravemente certas pessoas, grupos de pessoas ou a população em geral, compelir de forma indevida os poderes públicos... a praticar ou a abster-se de praticar um ato ou de perturbar gravemente ou destruir as estruturas políticas, constitucionais, económicas ou sociais fundamentais do Estado...” como resulta do disposto no nº 3 do art.º 2º da lei de combate ao terrorismo (Lei nº 52/2003 de 22 de Agosto), discriminando-se a seguir que crimes estão em causa, nomeadamente, contra a vida, a integridade física, de produção dolosa de perigo comum, através de incêndio ou explosão, ou que impliquem o emprego de meios incendiários de qualquer natureza
“Quem praticar uma infração terrorista é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos ou com a pena correspondente ao crime praticado, agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo, se for igual ou superior àquela, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 41.º do Código Penal”, tal como resulta do nº 1 do artº 4º daquela lei.
Ainda, “quem, por qualquer meio... adquirir por si mesmo treino, instrução ou conhecimentos sobre o fabrico ou a utilização de explosivos... outras armas e substâncias nocivas ou perigosas, ou sobre outros métodos e técnicas específicos para a prática de atos... com intenção de cometer uma infração terrorista... é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos”, como preceitua a alínea b) do nº 7 daquele artº 4º.
 Por outro lado, “quem, sem se encontrar autorizado... detiver... engenho... incendiário improvisado, é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos”, nos termos da alínea a) do nº 1 do art.º 86º da Lei das Armas (Lei nº 5/2006 de ), sendo, nos termos da alínea d) do mesmo preceito “punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias...” quem nas mesmas circunstâncias “detiver... faca de abertura automática... outras armas brancas...”
Desde o primeiro momento processual que em causa esteve notícia de ataque indiscriminado a pessoas da Faculdade de Ciências de Lisboa, pensado por um aluno com recurso a engenhos incendiários e explosivos, uma besta e facas.
Logo, os factos penalmente relevantes seriam tão-somente aqueles que, trazidos aos autos, serviriam para preencher ou infirmar aquelas condutas típicas, na sua multiplicidade.
É certo serem aqueles dos tipos penais mais abrangentes, principalmente o primeiro, mas que ainda assim se contêm em proposições apreensíveis e o mais sintéticas possível, como é característica das normas penais e não só, por razões que de tão evidentes e conhecidas dispensam outro género de explanação.
Como assim e por regra, os factos a tanto ajustados não hão-de constituir um longo acervo, apto, desde logo, a penosa tramitação, julgamento e mal entendidos.
E não é por constarem de peças processuais, que circunstâncias várias, ainda que conexas com os factos bastantes para a integração da conduta no tipo penal, passam a ser objecto do processo.
Sobre o ponto a jurisprudência está firmada há muito tempo.
“... Não existe violação do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal por nem todos os factos constantes da acusação/pronúncia e da contestação terem sido enumerados como provados ou não provados. Só os factos essenciais para a decisão da causa têm de constar dessa enumeração”, Ac. S.T.J. de 11.2.1998 em B.M.J. 474, 151.
E o que sejam tais factos essenciais foi, já há muito, alvo de doutrina do S.T.J. no seu Ac. de 15.1.1997, em C.J., tomo I, pág. 181:
“A obrigação legal de na sentença se fazer a descrição dos factos provados e não provados refere-se aos que são essenciais à caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes, o que exclui os factos inócuos, irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, mesmo que descritos na acusação ou na contestação”.
Em acórdão de 2.6.2005 (procº 05P1441) o S.T.J, pela pena do Colendo Conselheiro Pereira Madeira, à margem do “thema decidendum”, tratou da matéria dos requisitos formais da sentença em termos que nos devem encorajar a retomar caminho interrompido há tempos por sobressaltos processuais, impensáveis quando a economia e brevidade, a par com a sua celeridade e utilidade, constituíam referências habituais na discussão forense, vindo a desaparecer paulatinamente e a dar lugar a discussões sobre descrição e prova acerca dos próprios meios de prova, da sua obtenção, ou de meios de convicção de intervenientes processuais, quantas vezes seguidas de retrocessos na marcha do processo, o qual acabava assim por ser o objecto de si mesmo, correndo ainda o risco de olvidar o crime cuja notícia lhe deu origem e única razão de ser, ainda que o tempo entretanto decorrido tenha revelado que a prática persiste, tenazmente
Transcrevendo, “(…) importa afirmar com a frontalidade exigida na “jurisdictio” de um Supremo Tribunal, que o elenco da matéria de facto, tal como foi levado avante pelas instâncias, mormente pelo tribunal recorrido, não deixa de ser tecnicamente censurável, ao misturar factos com simples meios de prova, confundindo uns com outros. Com efeito, não se vê onde buscar assento legal para, em vez de se cingir à enunciação de factos que a lei exige – art.º 374º, nº 2, do Código de Processo Penal - se haver adoptado uma postura algo próxima do floreado relato jornalístico, com a transcrição inútil do resultado de algumas escolhidas conversas objecto de escuta telefónica, em vez, como seria mister, desses elementos de prova se extraírem os factos e apenas os factos com relevo para a decisão da causa. São esses - e só esses - que a lei manda enunciar, procedendo-se, se necessário e na extensão tida por necessária, ao aparo ou corte do que porventura em contrário e com carácter supérfluo provenha da acusação ou mesmo da pronúncia, de que a sentença não é nem pode ser fiel serventuária. De resto, sempre ao juiz se impõe, sob pena de ilegalidade que se abstenha da prática de actos inúteis, como esse a que se acaba de fazer menção – art.º 137º do diploma adjectivo subsidiário.”
A prova, em processo penal, tem como objecto, por definição elementar e primeira, factos que à luz da lei penal substantiva constituam crime, ou o excluam.
Como assim, escutas, buscas, revistas, apreensões, etc. são apenas meios de obtenção de prova de crimes, processualmente fulcrais e a analisar com todo o rigor, mas não passando por isso a objecto do processo, nem mesmo que constem das peças processuais a tanto destinadas.
Vejamos então qual a factualidade que, neste caso, constitui o verdadeiro e próprio objecto do processo, à luz das normas penais incriminadoras.
Com alguma latitude, consta dos art.ºs 26 e 27º da acusação, respeitante a armas em poder do arguido, mas de mistura com objectos que não são armas (isqueiros, por exemplo).
Surge-nos depois, finalmente, uma descrição do ataque pensado pelo arguido no art.º 46º daquela peça, ainda assim, com explicações desnecessárias, vindo depois a ser alvo de maior pormenorização nos art.ºs 55º a 61º (com patente incerteza sobre a utilização das latas de gás).
O treino empreendido pelo arguido vem descrito nos art.ºs 31º e 32º, 34º e 37º a 40º, acompanhado de meios de prova, como se de factualidade se tratasse. E as descrições da intenção, carácter tentado da actividade e estado anímico do arguido surgem nos art.ºs 71º, 86º, 90º a 93º, 98º e 99º e mesmo aqui de mistura com evidentes conclusões de direito.
Tudo o mais são improficuidades.
A acusação começa com narrativa para impressionar e dessa forma convencer e envolver o leitor, nos art.ºs 1º a 14º, mais pormenorizada e desenvolvida em 45º e 48º.
Depois com a menção à vontade do arguido fazer o ataque com arma de fogo (para criar paralelismo com os “mass shooting” - 15º a 17º), ainda face ao número de polícias que diz ser reduzido, (escusando-se contudo a mencionar o facto - quantos?), bem como a de esmagar cabeças depois de visionar um martelo numa loja, voltando depois a mencionar aquelas armas (art.ºs 43º e 44º) com a “tentativa” de se munir com fascinantes armas de fogo (o que não conseguiu devido ao receio de ser descoberto!?) ou a ponderação na apropriação de caçadeira de amigo do pai (sem que desta feita se refira o porquê da “desistência”).
Para passar a plano e a aquisição de conhecimento, repletos de conclusões e conceitos copiados da lei, já claramente por forma a caber no conceito de terrorismo: 18º a 20º e 23º a 24.
Depois o alinhar de meios de prova, repetidamente e de mistura com a repetição do que já anteriormente havia sido dito, ainda que a dado passo se acrescente ressentimento por suspeita de plágio em trabalho académico e o que esperaria o arguido que acontecesse depois do ataque: 21º e 22º, 25º, 28º a 42º, 47º a 54º e 62º a 65º, passando então a descrever, outra vez, meios de prova, assumidamente, repetindo de novo alguns deles: 66º a  70º, 72º a 85º, 87º a 89º e 94º a 97º.
O tribunal colectivo tentou visivelmente limpar e isolar na acusação (eventual cópia de relatório policial...) a factualidade relevante, mas é tarefa que, paradoxalmente e com facilidade, se transforma em alvo de arguições de nulidades várias, apta a causar ainda mais demora processual, acabando por prejudicar, ingloriamente, o curso processual.
Centrado o real objecto do processo e à luz deste, cabe proceder à apreciação do recurso.
*
Treino para terrorismo.
Concordando com o parecer produzido pelo Ministério Público junto deste tribunal, a circunstância de, em abstracto, se entender que os factos provados equivalem ao cometimento do crime, do mesmo passo que a decisão entende o inverso, não corresponde a contradição alguma, já que, a suceder aquela equivalência se estará perante erro de aplicação do direito. Menos ainda corresponderá a contradição insanável, quando é o próprio recurso a logo enjeitar a consequência característica deste entorse, ao defender não ser necessário o reenvio.
Não há, por conseguinte, qualquer contradição no acórdão recorrido.
E adiantemos desde já, qualquer tipo de treino relevante para o que nos ocupa.
Sobre este ponto a factualidade é clara:
Treino para uso de facas por PDF...
Evidenciando depois que nada apreendeu, já que à luz do mais elementar bom senso, tal não é forma de treino minimamente eficaz, apenas podendo conduzir a aprendizagens do género descrito de seguida, isto é, cortar a veia ligada ao cérebro, sabido que seja ser a jugular um desses vasos, mas também serem as artérias os que transportam o oxigénio.
O mesmo se diga para o treino de pontaria com visualizações “on-line”, dentro de um quarto, necessáriamente a curtíssima distância, portanto, sem qualquer noção dos desvios dos disparos efectuados com e por tais armas.
Fabricou efectivamente “cocktails molotov”, mas daí a saber utilizá-los, mais uma vez por tal método, vai uma enorme distância.
Qualquer treino com armas, em qualquer força armada da história e do mundo, já para além de ser gradual, tem por máxima a de que “só se aprende a fazer, fazendo.”
E tanto bastaria para julgar improcedente o recurso do Ministério Público.
Contudo, subjacente ao mesmo e antes do mais, está a finalidade, ou melhor, o enquadramento da conduta do arguido como sendo, ou não, terrorismo.
Não fugiremos à questão.
O acórdão recorrido, depois de uma profunda exposição sobre o tipo penal em causa, conclui pela sua não verificação, já que “em suma, não se apurou factualidade (nem, de resto, estava alegada na acusação pública), que permita concluir pela repetibilidade da conduta que o arguido planeava concretizar e, portanto, não é possível afirmar que foi atingido o patamar mínimo, tipicamente exigido, de ofensividade na direcção do bem jurídico protegido, a paz pública. Na medida em que, de acordo com o que ficou demonstrado, a actuação do arguido esgotava-se na execução do plano em causa nestes autos, e qualquer possibilidade (remota e incerta) de alguém praticar facto idêntico não estaria por qualquer forma relacionada com aquele e, portanto, não seria constatável ex ante, o bem jurídico paz pública nunca seria colocado em perigo de forma grave. Na ausência de tal repetibilidade, sem prejuízo da actuação que o arguido planeava exercer sobre os alvos instrumentais, não se vislumbra a possibilidade de afectação grave dos alvos principais.
Decorre assim do exposto que, apesar de o arguido planear cometer crimes-base motivado por uma intenção terrorista, tal comissão não se revelaria objectivamente apta, nos moldes tipicamente requeridos, para comprometer a paz pública e, nessa medida, na perspectiva do crime de terrorismo sem sentido próprio, tal actuação seria atípica.”
A lei vai expressamente nesse sentido, quando dispõe que “não se considera grupo terrorista a associação constituída fortuitamente para a prática imediata de uma infração”, nº 2 do art.º 2º daquela lei de combate ao terrorismo, depois de definir o que se considera grupo terrorista no seu nº 1 - “a associação de duas ou mais pessoas que, independentemente de ter ou não funções formalmente definidas para os seus membros, continuidade na sua composição ou estrutura elaborada, se mantém ao longo do tempo e atua de forma concertada com o objetivo de cometer infrações terroristas”, prosseguindo o seu nº 3 (supra transcrito) com o que sejam infracções terroristas.
Logo, para a lei nacional, advinda de directiva da União Europeia, um grupo de indivíduos que se hajam juntado ao acaso para cometer um acto isolado com a aparência e aptidão de uma infracção terrorista, não tem carácter de organização terrorista, não sendo também por isso o acto em causa infracção terrorista (por isso que esta expressão não é usada naquele nº 2 ).
Daí que também não seja infracção terrorista o menos, ou seja, quando em vez de um grupo ocasional temos apenas um indivíduo, sem qualquer outra ligação.
O enlace legal (nacional e europeu) entre a noção de terrorismo e o grupo terrorista é clara e visível no corpo daquele artº 2º, como um todo.
Isto porque apenas uma estrutura organizada pode ter a aptidão para alcançar as pretensões por detrás da definição legal de terrorismo. Sobre este inexiste definição universalmente aceite, pelo que é o critério legal que prevalece. E este faz clara referência a organização duradoura como sendo a única possível para conceber aquela repetibilidade, causadora do medo generalizado sempre visado pelo terrorismo, em ordem a – “afetar gravemente o Estado, um Estado estrangeiro ou uma organização internacional... com o objetivo de intimidar gravemente certas pessoas, grupos de pessoas ou a população em geral, compelir de forma indevida os poderes públicos ou uma organização internacional a praticar ou a abster-se de praticar um ato ou de perturbar gravemente ou destruir as estruturas políticas, constitucionais, económicas ou sociais fundamentais do Estado, de um Estado estrangeiro ou de uma organização internacional” (nº 3 daquele artº 2º).
Por isso que temos de reflectir seriamente no alegado sob o art.º 71º da contestação: “como refere Muzaffer Aslan a noção de terrorismo visa... causar o medo ou o terror, coagindo ou intimidando o inimigo a tomar determinada decisão ou a ter determinado comportamento, indo de encontro aos motivos políticos, ideológicos, étnicos ou religiosos do grupo terrorista".
Ou com a definição de terrorismo da enciclopédia Larousse (vol. 21, pág. 6675): “conjunto de actos de violência cometidos por uma organização para criar um clima de insegurança ou derrubar o governo estabelecido.”
Por outro lado, aquelas motivações e a que permanentemente se faz referência (“uso deliberado de violência, mortal ou não, contra instituições ou pessoas, como forma de intimidação e tentativa de manipulação com fins políticos, ideológicos ou religiosos” - Dicionário Priberam da Língua Portuguesa) não correspondem à motivação do arguido.
Aqui, todos os sujeitos processuais concordam com a exigência de ideia além do mero acto.
Por isso que a acusação aponta a ideologia do “mass shooting” (tiroteio em massa) como equivalendo a tal transcendência.
Sucede que o tiroteio em massa não corresponde a ideologia alguma.
É um fenómeno verificado nalguns países, mas sem que obedeça a qualquer tipo de ideário, sem qualquer projecção em acção futura, esgotando-se cada um dos episódios em si mesmos.
Como com muita pertinência vem apontado na contestação a este propósito “o motivo para tiroteios em massa (que ocorrem em locais públicos) é geralmente cometido por indivíduos profundamente descontentes que buscam vingança por fracassos na escola, carreira, romance ou vida em geral, ou que buscam fama ou atenção (Lankford, Adam (1 de março de 2016). "Atiradores de fúria em busca de fama: descobertas iniciais e previsões empíricas". Agressão e Comportamento Violento. 27: 122-129. do: 10.1016/j.avb.2016.02.002”.
Destarte, não duvidamos que um ataque feito por indivíduo em nome de uma organização terrorista que se consubstanciasse na morte indiscriminada de um elevado número de transeuntes a tiro, nunca seria apelidada de “mass shooting”, antes e claramente de atentado terrorista.
E assim seria ainda que actuasse isolado e não tivesse qualquer tipo de ligação prévia à organização ou sequer ao ideário. Bastaria que ao apelo dos mesmos tivesse aderido, por qualquer motivo.
A lei europeia (assim podemos já designar a que actualmente rege a matéria em Portugal) vai além daquelas motivações políticas, ideológicas, étnicas ou religiosas, usando técnica legislativa quer passa por não se lhes referir, centrando-se nos efeitos pretendidos com os actos terroristas, incluindo aqui aqueles que não provêm de organizações com aqueles fins, mas cujas consequências sejam as mesmas, por exemplo, organizações mafiosas, ou outras organizações de crime organizado, já que estas podem facilmente evoluir para visar fins idênticos, com os mesmos métodos.
Mas ainda assim mais reforçada sai a conclusão a que o tribunal colectivo chegou, sendo a ameaça de repetição essencial à acção, no sentido do constrangimento visado com os atentados terroristas.
O que difunde o terror é justamente a ameaça real de mais atentados enquanto se mantiver a situação que os fautores dos actos terroristas visam mudar.
O que manifestamente não se verificou no caso em apreço.
Ou seja, não houve treino no sentido real do termo, nem sequer era pretendido acto terrorista.
O que nos dispensa de analisar a seriedade, real intenção e eficácia visados pelas acções do arguido, ficando do total do quadro factual relevante recolhido a forte ideia de que dificilmente levaria a cabo qualquer agressão, ou que a tentar alguma seria o primeiro a ser atingido, neutralizando-se a si mesmo, como resultado do “treino” adquirido. No mais são judiciosas as observações plasmadas no acórdão sob recurso, quando aponta as incongruências entre a real vontade de levar a cabo a acção, do mesmo passo que a publicitava.
E nem o Ministério Público, no seu recurso, deixa de denunciar a pouca convicção de que assim não foi, já que a somar à pena única aplicada apenas pugna pelo aumento da mesma em meses quando se lhe somaria um crime de terrorismo. Seria manifestamente pouco.
*
Medida da pena.
O recurso do arguido, como ressalta das correspondentes conclusões, decompõe este ponto em três argumentos:
Tipo penal preenchido;
Aplicação do regime penal de jovens; e
Dimensão da pena aplicada.
Tipo penal.
Sobre este ponto, discorreu o tribunal colectivo pela seguinte forma:
“No caso, atenta a factualidade que se mostra provada, é manifesto que, com a respectiva conduta, o arguido preencheu os elementos típicos, objectivo e subjectivo, do crime de detenção de arma proibida, tendo agido com dolo (artigo 14.º, n.º 1, do Código Penal).
No entanto, importa precisar que:
- Relativamente à posse pelo arguido das duas facas de abertura automática, do punhal, da faca de combate, da besta e dos virotões, a actuação daquele atingiu o estádio da consumação do crime de detenção de arma proibida;
- Mas já no que concerne à posse pelo arguido do conjunto composto por latas de gás, latas de combustível, garrafas de vidro contendo combustível, maçaricos e isqueiros, tendo em vista o fabrico de cocktails molotov, tal processo não se completou, pois tal como se provou, para se estar perante um engenho incendiário improvisado, em cada uma das referidas garrafas de vidro que já continham combustível teria de ser colocada uma mecha. Assim, nesta parte, a actuação do arguido tendo em vista o fabrico de engenho incendiário improvisado quedou-se pelo estádio da tentativa (artigos 22.º, n.ºs 1 e 2, al. c), e 23.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal).
A posse simultânea pelo arguido de todos os referidos objectos, tendo em vista a respectiva utilização em execução do plano que traçou, traduz-se numa situação em que não pode ser afirmada mais do que uma resolução criminosa, a qual apenas integra um único crime de detenção de arma proibida, por tal conduta apenas ser susceptível de um único juízo de censura.”
Argumenta o arguido, no seu recurso que:
Do mesmo modo que é uma infração de mera atividade, bastando-se para o seu preenchimento a verificação de “quem, fabricar, detiver, transportar, usar ou trouxer consigo engenho explosivo ou incendiário improvisado”, mas só quando se utilizem substâncias ou produtos explosivos ou incendiários de fabrico artesanal não autorizado” – repete-se, o que não se provou…
No entanto, como já referido, integra a noção de engenho explosivo ou incendiário improvisado todos aqueles que utilizem substâncias ou produtos explosivos ou incendiários de fabrico artesanal não autorizado (art.º 2.º n.º 5 al. n)).
Neste sentido, não é o conjunto de objetos que o Recorrente tinha na sua residência, composto por latas de gás, latas de combustível, garrafas de vidro contendo combustível, maçaricos e isqueiros, que poderá integrar a noção de produto de fabrico artesanal não autorizado, de acordo com a definição contida no Decreto-Lei nº 376/84 de30 de novembro que regulamenta sobre o Licenciamento dos estabelecimentos de Fabrico e de Armazenagem de Produtos Explosivos.
Nos termos da definição o que caracteriza o engenho é a natureza dos produtos utilizados – de fabrico artesanal não autorizado – e não o engenho em si, ou o modo como eles são utilizados, pelo que se entende que o conjunto composto por latas de gás, latas de combustível, garrafas de vidro contendo combustível, maçaricos e isqueiros, não configura qualquer engenho de fabrico artesanal não autorizado.
De um lado temos esta interpretação que defende, em suma, que para estarmos perante este tipo de engenhos, os produtos utilizados terão de ser artesanais e não autorizados, o que não sucede quando se usam materiais de venda livre e autorizada, como fez o arguido.
Por outro, tal como o tribunal colectivo entendeu, é o carácter artesanal do engenho construído, independentemente dos materiais, que determina a tipicidade da acção.
Se podemos conceder que a falta de clareza do articulado legal, nesta e noutras sedes, é susceptível de conduzir àquela primeira possibilidade, a realidade (e é esta que a norma - qualquer norma - visa regular) impõe-nos a interpretação feita pelo colectivo, sem margem para qualquer dúvida.
O “cocktail molotov” é o engenho incendiário artesanal de referência mundial mais conhecido e usado, justamente pela facilidade de fabrico e obtenção dos seus componentes, de legal e fácil acesso.
Como assim, está e não pode deixar de estar previsto como tal na lei das armas, justamente na sede apontada pela decisão recorrida, que muito bem, mais uma vez, considerou estarmos perante tentativa já que faltavam as mechas aos três engenhos em causa (as garrafas de vidro da “Frize” contendo combustível) bem como haver concurso aparente de normas no que respeita às armas que o arguido tinha consigo, posto que manifestamente era a mesma a resolução criminosa que o conduziu à respectiva obtenção.
Nesta conformidade, está absolutamente correcta a conclusão a que chega o colectivo sobre o tipo penal preenchido:
“O crime de detenção de arma proibida praticado pelo arguido, previsto no artigo 86.º, n.º 1, als. a) e d), da Lei n.º 5/2006, de 23.02, é punido, conforme acima se referiu, nos termos do disposto no artigo 86.º, n.º 1, al. a), da mesma Lei, com referência aos artigos 22.º, n.ºs 1 e 2, al. c), 23.º, n.ºs 1 e 2, 41.º, n.º 1, e 73.º, n.º 1, als. a) e b), todos do Código Penal, com pena de prisão de 1 mês a 5 anos e 4 meses.”
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Regime penal de jovens.
O tribunal colectivo, após a constatação sobre a idade do arguido à data da prática dos factos, explicitou que o art.º 4º do Dec.-Lei n.º 401/82, de 23.09, que aprovou o Regime Penal Especial para Jovens Delinquentes, determina “que se for aplicável pena de prisão, deve o juiz atenuar especialmente a pena nos termos dos artigos 73.º e 74.º do Código Penal, quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado. O n.º 1 do artigo 1.º do referido Dec.-Lei explicita que este diploma se aplica a jovens que tenham cometido um facto qualificado como crime, acrescentando o n.º 2 do mesmo preceito legal que é considerado jovem para efeitos deste diploma o agente que, à data da prática do crime, tiver completado 16 anos sem ter ainda atingido os 21 anos.”
O acórdão recorrido entendeu então que não seria de atenuar especialmente a pena, aplicando ao caso aquele regime, pois “… o que verdadeiramente releva para a apreciação da questão em apreço prende-se com as prementes exigências de prevenção especial que no caso se verificam. É certo que o arguido se encontra familiarmente inserido, não tem antecedentes criminais e confessou de forma integral e sem reservas os factos assentes. No entanto, revelam-se decisivas as características da personalidade do arguido, marcadas pelas anomalias psíquicas de que o mesmo padece, bem como o considerável número de armas que o mesmo tinha em seu poder e, sobretudo, o uso que pretendia dar-lhes na prática de crimes graves. Acresce o também considerável período temporal ao longo do qual o arguido manteve o propósito de conferir a tais armas o uso que planeou, nos termos que se consideraram estar provados.
Esta forte intensidade com que as exigências de prevenção especial se fazem sentir faz com que não possa concluir-se que a atenuação especial da pena a impor ao arguido facilitará o propósito da ressocialização do mesmo, sobretudo em face da elevada perigosidade que o mesmo revelou na prática dos factos.”
Acresce que a perigosidade detectada, como se referiu, começa desde logo pela pessoa do arguido e vizinhança, especialmente no que respeita ao fabrico de engenhos incendiários, cuja experimentação tem toda a potencialidade para causar desastre de monta, não sendo, de todo, conveniente passar a mais leve ideia de condescendência atendendo ao perigo de reforço que semelhante atitude poderia ter no arguido.
Como assim, impõe-se considerar que, embora a idade do arguido seja de molde a, em abstracto, ser aplicável aquele regime do Dec.-Lei nº 401/82 de 32.9, a verdade é que, atenta a personalidade do arguido demonstrada pelos factos apurados, não se vislumbra qualquer vantagem para a respectiva reinserção social com uma atenuação especial da pena a aplicar, nos termos dos art.ºs 1º a 4º daquele diploma, não obstante a factualidade positiva alinhada no recurso do arguido, de resto, também considerada pelo colectivo.
A aplicação de medidas de atenuação, naquelas circunstâncias, tem toda a potencialidade para se revelar perniciosa, já porque apta a reforçar sentimento de impunidade e assim aumentar a perigosidade do agente, podendo, por si, resultar na impetração de persistência na prática de crimes.
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Medida da pena.
Razões de prevenção geral estão sempre presentes na determinação de qualquer pena, desde logo porque importa alertar os potenciais delinquentes para as penalidades e, deste modo, tentar evitar que se pratiquem crimes que claramente afectam a tranquilidade e ordem públicas.
Cumpre também atender à prevenção especial, na medida em que o arguido tem de ser avisado para a gravidade do seu comportamento, de modo a corrigir-se, evitando-se assim futuros actos de delinquência.
O modelo de prevenção acolhido pelo Código Penal, porque de protecção de bens jurídicos, determina que a pena deva ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva e que seja definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
Dentro dessa medida de prevenção (protecção óptima e protecção mínima – limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o “quantum” concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.
Moldura essa “cujo máximo é constituído pelo ponto mais alto consentido pela culpa do caso e cujo mínimo resulta do quantum de pena imprescindível, também no caso concreto, à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias.” Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, p. 243.
Desta forma, o “quantum” da pena não poderá nunca descer abaixo daquele limiar a partir do qual se ponha “em causa a crença da comunidade na validade de uma norma e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais.” F. Dias, Ob. cit., p. 243.
Só então, e dentro desta moldura de prevenção, actuarão as finalidades de prevenção especial.
Razão de prevenção especial, tanto negativa (ou de prevenção da reincidência), como positiva (ou de prevenção especial de socialização).
Destarte, as razões de prevenção geral devem ser determinantes na fixação da medida das penas, em função da reafirmação da validade das normas e dos valores que protegem, para fortalecer as bases da coesão comunitária e para apaziguamento dos sentimentos afectados na perturbação difusa dos pressupostos em que assenta a normalidade da vivência do quotidiano.
Tem-se em vista, na aplicação das penas, necessidades de prevenção geral positiva (tutela das expectativas da comunidade quanto à validade da norma jurídica violada), valorada em concreto e exigências de prevenção especial positiva ou de socialização, para o agente. A prevenção geral positiva funciona como limite mínimo da pena e a culpa como limite máximo.
Porém, tais valores determinantes têm de ser coordenados, em concordância prática, com outras exigências, quer de prevenção especial de reincidência, quer para confrontar a responsabilidade comunitária no reencaminhamento para o direito, do agente do facto, reintroduzindo o sentimento de pertença na vivência social e no respeito pela essencialidade dos valores afectados, seguindo-se aqui de perto a doutrina do Acórdão do STJ, de 21.10.2009, processo nº 589/08.6PBVLG.S1.
Sobre este ponto o acórdão sob recurso, depois de fazer enquadramento correcto, estabeleceu a pena aplicada pela seguinte forma:
“No caso concreto, há assim que considerar os seguintes factores (sem esquecer a ambivalência de que podem gozar para efeitos de apreciação em sede de culpa e de prevenção):
- O grau de ilicitude do facto, que se apresenta elevado para uma conduta que integre os elementos típicos do crime de detenção de arma proibida, quer em face do considerável número de armas que o arguido tinha em seu poder, quer pelo uso que aquele pretendia atribuir a tais armas, nomeadamente na prática de crimes graves;
- O dolo do arguido, que reveste a forma de dolo directo, cuja intensidade se mostra elevada, atento o período de tempo ao longo do qual o arguido reflectiu na obtenção das armas;
- As condições pessoais e a situação económica do arguido, sendo que, se por um lado o favorece a circunstância de se mostrar familiarmente inserido, por outro lado importa atender às anomalias psíquicas de que aquele padece e ao longo período temporal ao longo do qual o mesmo vem revelando interesse pelo fenómeno dos “assassinatos em massa”.
- A ausência de antecedentes criminais do arguido;
- A confissão integral e sem reservas, por parte do arguido, da factualidade que se considerou estar provada.
No que concerne às exigências de prevenção, as de prevenção geral fazem-se sentir de forma elevada, nomeadamente atenta a frequência com que o crime de detenção de arma proibida é cometido na generalidade do território nacional.
A culpa do arguido, embora não deixe de reflectir o grau de ilicitude do facto, atendendo sobretudo às anomalias psíquicas de que aquele padece, situa-se no nível mínimo das necessidades de prevenção geral.
Pelo que, e ponderando as necessidades de prevenção especial ajustadas ao caso vertente, que se revelam elevadíssimas, sobretudo em face da perigosidade revelada pelo arguido na prática dos factos, entende o tribunal dever graduar em 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão a pena concreta a aplicar àquele.”
O recurso do arguido critica a pena encontrada, pela sua severidade.
Todavia, aquela quantificação da pena, como se disse, não poderá nunca descer abaixo do limiar a partir do qual se ponha “em causa a crença da comunidade na validade de uma norma e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais.”
Atendendo à totalidade da factualidade apurada, designadamente na finalidade do arguido ao adquirir as armas, mesmo considerando as respectivas inabilidade e tibieza, impõe-se forte sinal a toda a comunidade no sentido de que, de todo, não são toleráveis tais comportamentos, a serem decidida e firmemente desencorajados.
Como assim, à luz do art.º 71º do Código Penal, pesando a culpa do arguido, bem como a sua personalidade e todas as circunstâncias que rodearam o facto, levando em conta as necessidades de prevenção geral e especial, dentro daquela moldura abstracta e na medida da culpa do arguido, mostra-se justa a pena aplicada, por adequada e proporcional à culpa do arguido.
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Suspensão da execução da pena.
Como resulta do recurso interposto pelo arguido, está em causa a possibilidade legal de suspensão da execução da pena, prevista no nº 1 do art.º 50º do Código Penal.
O acórdão recorrido equacionou a questão desta forma:
“No caso dos autos, importa ter presente a natureza do crime praticado pelo arguido, sendo prementes, como se referiu, as exigências de prevenção geral que no caso se fazem sentir.
Por seu turno, importa ainda atender, em face de tudo o que acima já se deixou exposto, às prementes exigências de prevenção especial que quanto ao mesmo se verificam, o que leva a que o tribunal considere que a simples ameaça da prisão não permite fazer supor que aquele repensará a prática de novos ilícitos criminais, sendo que a comunidade não suporta que o mesmo não cumpra uma pena de prisão efectiva. Na verdade, a elevada perigosidade revelada pelo arguido, espelhada na conjugação do número de armas que o mesmo tinha em seu poder com o uso que aquele lhes pretendia atribuir, não se mostra compatível com a suspensão da execução da pena de prisão, que não acautela as finalidades da punição.”
“O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição” – artigo 50º, nº 1, do Código Penal.
Subjacente à decisão de suspensão da execução da pena está um juízo de prognose favorável sobre o futuro comportamento do arguido, ou seja, quando se possa prever que o mesmo não cometerá crimes.
Como refere o Prof. Figueiredo Dias (Direito Penal Português, pág. 331), sendo a suspensão da execução da pena “a mais importante das penas de substituição” – não apenas pela frequência com que é aplicada, mas também pelo âmbito lato de aplicação que comporta – a lei, nos termos do art.º 50º do Cód. Penal, exige não só a verificação de um requisito objectivo (condenação em pena de prisão não superior a 5 anos) como também requisitos subjectivos, determinados por finalidades de política criminal, que permitam concluir pelo afastamento futuro do delinquente da prática de novos crimes, através da sua capacidade de se reintegrar socialmente.
Em causa já não está a medida da culpa do agente, mas prognósticos acerca das exigências mínimas de prevenção, sendo necessário determinar se existe esperança fundada de que a socialização em liberdade pode ser alcançada.
Pressuposto básico da aplicação da suspensão da execução da pena, é a existência de factos que permitam um juízo de prognose favorável em relação ao comportamento futuro do agente, em termos de que o tribunal se convença de que a censura expressa na condenação e a ameaça da pena aplicada sejam suficientes para afastar o arguido de uma opção desvaliosa em termos criminais para o futuro e tal juízo tem de se fundamentar em factos concretos que apontem para uma forte probabilidade de inflexão em termos de vida.
O arguido, no seu recurso, faz ressaltar factualidade claramente conducente a essa conclusão.
Mas, como refere o Prof. Figueiredo Dias (ob. cit, p. 344) “apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável - à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial e socialização - a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime, pois estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral, sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita - mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade, que ilumina o instituto em análise.”
É claramente o caso, atendendo ao que se referiu sobre a finalidade do crime e independentemente do que sucederia não fosse a intervenção policial.
Há campos de actuação relativamente aos quais a comunidade não tolera condescedência, em caso algum e seja em que medida seja.
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Consequentemente, improcedem os recursos.
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Pelo exposto, acordam em negar provimento aos recursos, confirmando na íntegra o acórdão recorrido.
Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em três UC.
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Lisboa, 11 de Abril de 2023
Manuel Advínculo Sequeira
Alda Tomé Casimiro
Anabela Simões Cardoso