Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
73/11.0JBLSB-D.L1-9
Relator: MARIA ÂNGELA REGUENGO DA LUZ
Descritores: PERDÃO DA LEI Nº 38-A/2023 DE 2 DE AGOSTO
PENA ÚNICA SUPERIOR A OITO ANOS DE PRISÃO
INAPLICABILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I – A aplicação do perdão à pena única - e já não às parcelares inferiores a 8 anos de prisão - encontra uma justificação material razoável e constitucionalmente relevante, tendo em conta, desde logo, a gravidade global da conduta ilícita do condenado, não sendo arbitrária, nem irrazoável, tratando de forma igual todos os que se encontram na mesma situação.
II – À pena única de 9 anos e 3 meses de prisão em que foi condenado o arguido AA não é aplicável o perdão de pena decretado pela Lei nº 38-A/2023, de 02 de agosto, devendo ser cumprida na íntegra, sem prejuízo da oportuna concessão de liberdade condicional se e quando a ela houver lugar.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido nos autos principais, em 21.11.2014 (cfr. fls. 6467 a 6658), transitado em julgado, AA foi condenado na pena única de 7 anos de prisão pela prática, em concurso real, dos seguintes ilícitos penais:
- um crime de roubo agravado, na forma consumada, previsto e punível pelo artigo 210.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do Código Penal, praticado em 1.07.2011, na pena de 5 (cinco) anos de prisão;
- um crime de roubo qualificado, na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 210.º, n.º 1, do Código Penal, praticado em 1.07.2011, na pena de 5 (cinco) anos de prisão; e
- um crime de detenção de arma proibida, na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 86.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, praticado em 1.07.2011, na pena de 2 (dois) anos de prisão.
Posteriormente, por acórdão cumulatório proferido em 18.05.2018 (cfr. referência n.º 138441120, de 7.09.2018), AA foi condenado na pena única de 9 anos e 3 meses de prisão (cúmulo das penas aplicadas nos processos n.ºs 1480/08. 1JDLSB e 541/09.4PDLRS).
Por decisão proferida no dia 12 de Dezembro de 2023, nos termos do artigo 3.º n.º 1 e n.º 4 da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto (Lei do Perdão de penas e amnistia de infracções) foi perdoado 1 ano de prisão à pena única de 9 anos e 3 meses de prisão.
O Ministério Público, inconformado, interpôs recurso desta última decisão terminando a respectiva motivação com as seguintes conclusões [transcrição]:
«1 – Constitui objecto do presente recurso a douta decisão proferida nos presentes autos que, no âmbito da aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto (Lei do Perdão de penas e amnistia de infracções), perdoou 1 ano de prisão à pena única aplicada ao condenado AA nestes autos, 1 ano a descontar à pena única de 9 (nove) anos e 3 (três) meses de prisão, passando a mesma a perfazer 8 anos e 3 meses.
2 – A decisão sub júdice não pode, a nosso ver, merecer acolhimento, porque se nos afigura que resulta da mesma, uma interpretação incorrecta da conjugação das normas previstas no artigo 3.º, no seus n.º 1 e n.º 4 da citada Lei, ao se entender que resulta do perdão de um ano previsto no n.º 1, em caso de cúmulo jurídico de crimes perdoáveis e não perdoáveis, que deva esse perdão ser aplicado à pena única aplicável aos crimes perdoáveis e não perdoáveis em relação ao cúmulo, atendendo-se, pois, à pena concretamente aplicável ao crime que pode beneficiar de perdão, sendo nestes autos os crimes de furto e de dano.
3 - Em face deste entendimento, o arguido AA que havia sido condenado numa pena parcelar de 5 meses de prisão, pela prática de um crime de furto simples, previsto e punível pelo artigo 203.º, n.º 1 do Código Penal e na pena parcelar de 6 meses de prisão, pela prática de um crime de dano, previsto e punível pelo artigo 212.º, n.º 1 do Código Penal, viu-lhe ser aplicado o perdão previsto no artigo 3.º, n.º 1 da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto.
4 – Da conjugação das mencionadas disposições legais, entende-se que estabelece a Lei n.º 38-A/2023, de 02/08 que deverá ser perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos (cfr. artigo 3.º, n.º 1), sendo que, em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única (cfr. artigo 3.º, n.º 4).
5 – Nos presentes autos, uma vez que a pena única resultante do cúmulo jurídico é superior a 8 anos, não se mostra passível de aplicação a Lei do Perdão, pois que a mesma exige no artigo 3º, nº1 que a pena seja até 8 anos.
6 – O perdão de penas e amnistia de infrações aprovados pela Lei n.º 38-A/2023, de 02/08, cuja entrada em vigor ocorreu em 01/09/2023, consagra medidas de graça caracterizadas como “direito de exceção”, assim integrando normas que, assumindo natureza excecional, não comportam aplicação analógica, sendo ainda pacífico o entendimento, declarado pelo Supremo Tribunal de Justiça no Assento n.º 2/2001 de que igualmente não admitem “interpretação extensiva ou restritiva, devendo ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas”.
7 – A decisão sub judice não pode, a nosso ver, merecer acolhimento por ter perdoado ao condenado AA, 1 ano de prisão à pena única aplicada, ano esse a descontar à pena única de 9 (nove) anos de prisão e 3 (três) meses de prisão, passando a mesma a perfazer 8 anos e 3 meses e, consequentemente ter violado o artigo 3.º, n.º 1 e n.º 4 da citada lei, pelo que, impunha-se que o requerimento apresentado pelo condenado fosse indeferido por inaplicabilidade do artigo 3.º, n.º 1 e n.º 4 da Lei n.º 38-A, de 2 de Agosto, em virtude de, a pena única aplicada nestes autos, em cúmulo jurídico, ser superior a 8 anos de prisão.
Nestes termos, devem Vossas Excelências julgar procedente o recurso e, em consequência, alterar a decisão recorrida por outra que considere a inaplicabilidade do artigo 3.º, n.º 1 e n.º 4 da Lei n.º 38-A, de 2 de Agosto ao condenado. (…)»
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O arguido AA apresentou resposta ao recurso, pugnando pela improcedência do mesmo pela confirmação do doutamente decidido em primeira instância.
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O Ministério Público junto deste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
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O recorrente reagiu ao Parecer proferida mantendo a mesma posição já plasmada nos autos.
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II - FUNDAMENTAÇÃO
Atento o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do CPP, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da sua motivação, sem prejuízo do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
No caso concreto, considerando tais conclusões, a questão que importa decidir consiste em saber se é de aplicar o perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 02/08, à pena única de 9 anos e 3 meses de prisão em que o recorrente foi condenado na sequência de cúmulo jurídico efetuado.
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A decisão recorrida [transcrição]:

«Refer.ªs 14154591, de 1.09.2023 e 158294496, de 10.10.2023:
Veio o condenado nos autos requerer a aplicação de perdão relativo às condenações pela prática de crimes de furto simples, violação de domicílio, dano e detenção de arma proibida.
O Ministério Público teve vista nos autos, tendo-se pronunciado no sentido do indeferimento do requerido atendendo a que a pena única de prisão aplicada ao condenado é superior 8 anos.
Cumpre apreciar e decidir.
Por acórdão proferido nos presentes autos em 21.11.2014 (cfr. fls. 6467 a 6658), transitado em julgado, AA foi condenado na pena única de 7 anos de prisão pela prática, em concurso real, dos seguintes ilícitos penais:
- um crime de roubo agravado, na forma consumada, previsto e punível pelo artigo 210.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do Código Penal, praticado em 1.07.2011, na pena de 5 (cinco) anos de prisão;
- um crime de roubo qualificado, na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 210.º, n.º 1, do Código Penal, praticado em 1.07.2011, na pena de 5 (cinco) anos de prisão; e
- um crime de detenção de arma proibida, na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 86.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, praticado em 1.07.2011, na pena de 2 (dois) anos de prisão.
Posteriormente, por acórdão cumulatório proferido em 18.05.2018 (cfr. referência n.º 138441120, de 7.09.2018), AA foi condenado na pena única de 9 anos e 3 meses de prisão (cúmulo das penas aplicadas nos processos n.ºs 1480/08. 1JDLSB e 541/09.4PDLRS).
Nos termos do artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, em vigor desde 1 de setembro de 2023, “estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º”.
No caso dos autos, o condenado nasceu em 11.03.1986 tendo, por isso, à data da prática dos factos apreciados nos autos acima discriminados como tendo sido objeto de cúmulo, 7.10.2008, 8.10.2008 e 14.06.2009, respetivamente, 22 e 23 anos de idade.
Verifica-se, assim, preenchido o primeiro requisito para a aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto (cfr. artigo 2.º, n.º 1).
Por sua vez, nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 1, da citada lei, “sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos”.
No n.º 4 do mesmo artigo é esclarecido que, em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única, sendo que a exclusão do perdão e da amnistia previstos no artigo 7.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos.
Está em causa nos autos a condenação de AA, entre outros, por um crime de furto simples, previsto e punível pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 5 meses de prisão e por um crime de dano, previsto e punível pelo artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 6 meses de prisão, os quais não se mostram excluídos da aplicação do perdão e amnistia previstos na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.
Entendemos, porém, que da conjugação do n.º 1 e do n.º 4 do artigo 3.º, Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, resulta que o perdão de um ano previsto n.º 1, em caso de cúmulo jurídico de crimes perdoáveis e não perdoáveis, deve ser aplicado à pena única aplicável aos crimes perdoáveis e não perdoáveis em relação de cúmulo.
Por sua vez, a ter em conta para efeitos do preenchimento do requisito previsto naquele artigo 3.º, n.º 1, entendemos que deve atender-se à pena concretamente aplicável/aplicada ao crime ou crimes que podem beneficiar de perdão e não à pena única aplicada em cúmulo, sob pena de se criarem desigualdades entre condenados por crimes idênticos e perdoáveis.
Atento tudo o que se deixa exposto, impõe-se perdoar um ano de prisão correspondente às penas de cinco e seis meses de prisão em que AA foi condenado pela prática de um crime de furto simples e de um crime de dano simples, nos autos com o n.º 1480/08.1JDLSB.
Considerando que no cúmulo realizado que inclui os referidos crimes foi fixada uma pena única de 9 anos e 3 meses de prisão, deve o perdão ser aplicado nessa pena única, passando esta de 9 anos e 3 meses de prisão, para 8 anos e 3 meses de prisão.
Notifique e dê conhecimento ao TEP. (…)»
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APRECIANDO.
Veio o Ministério Público insurgir-se perante a aplicação do perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 02/08, à pena de 9 anos e 3 meses de prisão em que foi o arguido AA condenado na sequência do cúmulo jurídico efetuado e que englobou as penas dos processos n.ºs 1480/08. 1JDLSB e 541/09.4PDLRS.
A Lei n.º 38-A/2023, de 02/08 estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações tendo por mote a realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.
Dispõe o art.º 2.º, n.º 1 da Lei n.º 38-A/2023, de 02/08 que:
“Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º
2 - Estão igualmente abrangidas pela presente lei as:

a) Sanções acessórias relativas a contraordenações praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 5.º;
b) Sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.º.”
Dispõe o art.º 3.º do mesmo diploma que:

«1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.
2 - São ainda perdoadas:

a) As penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão;
b) A prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa;
c) A pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição; e
d) As demais penas de substituição, exceto a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao cumprimento de deveres ou de regras de conduta ou acompanhada de regime de prova.
3 - O perdão previsto no n.º 1 pode ter lugar sendo revogada a suspensão da execução da pena.

4 - Em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.
5 - O disposto no n.º 1 abrange a execução da pena em regime de permanência na habitação.
6 - O perdão previsto no presente artigo é materialmente adicionável a perdões anteriores.»


Como resulta do preceito supra, em caso de cúmulo jurídico o perdão incide sobre a pena única.
Conforme o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2023, Diário da República, 1.ª série, de 1 de fevereiro de 2023, resulta que decorre que as Leis do Perdão e Amnistia têm caracter de excepcionalidade que, por isso, «não comportam aplicação analógica, interpretação extensiva ou restritiva, devendo a respetiva interpretação, pura e simplesmente, conter-se no texto da respetiva lei, adotando-se uma interpretação declarativa em que “não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo».
Ora, a aplicação do perdão à pena única de 9 anos e 3 meses de prisão em que foi condenado o arguido foi além do permitido pelo texto da Lei n.º 38-A/2023.
Senão, vejamos:
- o cúmulo efetuado engloba penas parcelares aplicadas pela prática de crimes abarcados pela Lei n.º 38-A/2023, de 02/08, mas, também, penas parcelares aplicadas pela prática de crimes excluídos da aplicação do perdão;
- o n.º 1 do art.º 3.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02/08 preceitua que, sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos;
- o n. º4 do art.º 3.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02/08 preceitua que em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.
Do acima referenciado e face ao texto da lei resulta que o perdão só será de aplicar caso a pena de prisão não ultrapassar os 8 anos de prisão [art.º 3.º, n.ºs 1 e 4];
A questão que se coloca á a de saber se este limite de 8 anos está indexado a cada uma das penas parcelares ou antes, dever-se-á ter o mesmo como o “índice inultrapassável de gravidade de comportamento do agente adoptado pelo legislador”1, devendo pois atender única e somente a uma interpretação restritiva dos termos da lei a qual deve ser entendida nos exactos termos que resultam da sua redacção.
E a conclusão não pode ser outra senão a de que o cúmulo jurídico de penas parcelares, ainda que inferiores, cada uma delas, a 8 anos de prisão, não pode beneficiar do perdão caso a correspondente pena única for superior a 8 anos de prisão.
Entendeu o legislador, e assim o exprimiu sem hesitação, de que todas aquelas condutas feridas de um maior grau de gravidade, grau este que atende a vários critérios para a sua graduação, nomeadamente, o cometimento de uma pluralidade de crimes pelo mesmo agente que resulte na condenação do mesmo em pena única superior a 8 anos de prisão (independentemente do quantum das penas parcelares ser inferior ou superior a 8 anos), estão afastadas do âmbito de aplicação do perdão previsto na Lei Lei n.º 38-A/2023, de 02/08.
Temos assim como assente que a conduta de quem comete vários crimes em situação de concurso que culminam na aplicação de uma pena única superior a 8 anos de prisão é objectivamente mais gravosa de quem comete crimes cuja pena única é inferior àqueles oito anos. Razão pela qual o legislador entendeu não serem as penas únicas superiores àquele tecto merecedoras de medida de clemência.
E neste sentido encontramos já variadíssima jurisprudência, a saber:
- o acórdão da Relação de Lisboa de 23/01/2024, relatado pela Exma. Juiz Desembargadora Sandra Oliveira Pinto, segundo o qual: «I- As medidas de clemência, atenta a sua natureza de providências excecionais, devem ser interpretadas nos precisos termos em que estão redigidas, sem ampliações nem restrições, não comportando aplicação analógica (cf. artigo 11º do Código Civil), embora sempre com a salvaguarda dos princípios constitucionais de igualdade e proporcionalidade. II- É de considerar contida na discricionariedade constitucionalmente reconhecida ao legislador ordinário a possibilidade de estabelecer um limite máximo para as penas suscetíveis de beneficiar de perdão – com o natural e óbvio propósito de excluir de tal medida de graça situações punidas com penas severas, que tendencialmente se referirão a factos especialmente gravosos, relativamente aos quais a sociedade teria dificuldade em compreender o recuo do ius puniendi do Estado. III- Nos termos previstos nos n os 1 e 4 do artigo 3º da Lei nº 38-A/2023, o arguido condenado em pena única superior a 8 anos de prisão não poderá beneficiar do perdão de pena decretado pela referida Lei, mesmo que as penas parcelares que integraram o referido cúmulo sejam, todas elas, inferiores a 8 anos de prisão»;
- o acórdão da Relação de Lisboa de 23/01/2024, relatado pela Exma. Juíza Desembargadora Ester Pacheco dos Santos, segundo o qual: «1 – Foi propósito do legislador afastar a aplicação do perdão quer às situações de criminalidade grave, quer às penas de prisão de grande duração. 2 – A única interpretação consentânea com esse espírito é a de que apenas são objeto do perdão de 1 ano de prisão as penas únicas fixadas em medida não superior a 8 anos – art.º 3.º, n.ºs 1 e 4, in fine, da Lei n.º 38/2023, de 2 de agosto. 3 – É de excluir a interpretação de que tal perdão incide não sobre a pena única, mas sim sobre as penas parcelares que estão quantificadas no cúmulo.»;
- o acórdão da Relação de Guimarães de 23/01/2024, relatado pela Exma. Juíza Desembargadora Anabela Varizo Martins, segundo o qual: «I - O perdão de 1(um) ano fixado pelo artigo 3.º, n.º 1 da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto, só é aplicado, verificados os demais pressupostos, a penas que não sejam superiores a 8 anos de prisão.
II - Aquele limite é aplicável não só às penas parcelares, mas também à pena única em resultado de cúmulo jurídico de várias penas parcelares, ainda que cada uma delas seja de medida inferior a 8 anos. III - Ainda que uma pena parcelar seja objecto de perdão, caso a mesma venha, posteriormente, a integrar um cúmulo jurídico de conhecimento superveniente, tal perdão deixará de ser aplicável, se a pena única que vier a ser aplicada for superior a 8 anos.»;
- o acórdão da Relação do Porto de 10/01/2024, relatado pela Exma. Juíza Desembargadora Maria dos Prazeres Silva, segundo o qual Contudo, nesta situação de cúmulo jurídico a medida do perdão não pode ser superior à pena parcelar que determina a aplicação do perdão, na hipótese de somente um dos crimes não excluir o perdão, assim como, na hipótese inversa de só um dos crimes estar excluído de perdão, a pena única remanescente após a aplicação do perdão não pode ser inferior à pena parcelar relativa àquele crime excluído de perdão. V – Contrariamente ao que chegou a ser propugnado pela jurisprudência no âmbito de anteriores leis de amnistia, mas que veio a ser superado por virtude de conduzir à realização de cúmulo jurídico que abrangia uma pena resultante de anterior cúmulo, foi estabelecida nova corrente jurisprudencial que se tornou maioritária no sentido do perdão incidir sobre a pena única resultante do cúmulo jurídico da totalidade das penas parcelares, incluindo as penas não abrangidas pelo perdão, sendo efetuado um cúmulo parcial prévio somente para o efeito de cálculo da medida concreta do perdão a aplicar, por ser variável em função da pena. VI – Ora, uma vez que o perdão incide sobre a pena única, em caso de concurso de crimes, se a duração da pena única imposta for superior a 8 anos de prisão, não pode a mesma pena ser objeto de perdão.»;
- o acórdão da Relação de Coimbra de 06/03/2024, relatado pela Exma. Juíza Desembargadora Isabel Valongo, segundo o qual: «Suficiente é a interpretação literal do artigo 3.º, nº 1, da lei n.º 38A/2023, de 2 de agosto “é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos - Artigo 3.º, nº 1, da lei referida. Sendo que em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única - nº 4. Obviamente que a pena única de prisão terá como limite os 8 anos referidos naquele nº 1. E não se suscita qualquer dúvida de que em caso de condenação em concurso real de crimes o perdão incide sobre a pena única e não sobre as penas parcelares. Presumindo-se que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (cfr. art.º 9, nº 3, do C. Civil), se fosse outro o seu propósito, não deixaria de afastar o limite dos oito anos de prisão para o caso de condenação em pena única. Assim é evidente que se o perdão incide sobre a pena única - até 8 anos de prisão - não incide sobre cada uma das penas parcelares até 8 anos de prisão.
No mesmo sentido se pronuncia Ema Vasconcelos (in “Amnistia e perdão – Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto”, Revista Julgar, online, janeiro2024) ao afirmar “[vale isto por dizer que, ainda que uma pena parcelar seja objecto de perdão, caso a mesma venha, posteriormente, a integrar um cúmulo jurídico de conhecimento superveniente, tal perdão poderá deixar de ser aplicável, por força da pena única que venha a ser aplicada [p. ex: superior a 8 anos, no caso da actual Lei n.º 38-A/2023, de 2.8], ou passar a ser aplicável em diferente medida [vide, artigo 1.º, n.º 1 da Lei n.º 29/99, de 12.05].”»
Alinhando assim com a extensa jurisprudência recentemente publicada por todos os Tribunais da Relação, a saber, de Guimarães, Porto, Coimbra e Lisboa, e perfilhando este mesmo entendimento, afigura-se que a aplicação do perdão à pena única - e já não às parcelares inferiores a 8 anos de prisão - encontra uma justificação material razoável e constitucionalmente relevante, tendo em conta, desde logo, a gravidade global da conduta ilícita do condenado, não sendo arbitrária, nem irrazoável, tratando de forma igual todos os que se encontram na mesma situação.
Razão pela qual procede assim, na totalidade, o recurso interposto pelo Ministério Público
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III- Dispositivo
Nestes termos, julga-se procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, decide-se revogar a decisão recorrida e declarar que à pena única de 9 anos e 3 meses de prisão em que foi condenado o arguido AA não é aplicável o perdão de pena decretado pela Lei nº 38-A/2023, de 02 de agosto, devendo ser cumprida na íntegra, sem prejuízo da oportuna concessão de liberdade condicional se e quando a ela houver lugar.
Sem custas.
Data e assinatura electrónicas
Maria Ângela Reguengo da Luz
Adjuntos:
1º - Amélia Carolina Marques Dias Teixeira
2º - José Castro
Elaborado e revisto pela relatora.
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1. Cfr. Acórdão da Relação do Porto de 10/01/2024, relatado por José António Rodrigues da Cunha, www.dgsi.pt;