Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
435/20.2PFLRS.L1-5
Relator: JOÃO CARROLA
Descritores: DESOBEDIÊNCIA
LEIS COVID
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/06/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Para haver crime de desobediência, terá sempre de haver primeiro uma cominação concreta com tal crime, feita por uma autoridade competente e uma subsequente transgressão.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

         
I.– 
O Ministério Público, requerendo o julgamento em processo sumário, deduziu acusação no P.º abreviado 435/20.2PFLRS do Juízo Local de Pequena Criminalidade de Loures, Comarca de Lisboa Norte, contra o arguido JC, imputando-lhe a prática de um crime de desobediência agravada, previsto e punido pelas disposições conjugadas do art.° 348°, n.º 1, al.s a) e b), do Código Penal, conjugado com os art.°s 5°, 43º n.ºs 1, al.s c) e d), e 6, todos do Decreto 2-B/2020, de 02/4, art.° 7°, da Lei 44/86, de 30/9, e art.° 6°, n.ºs 1 e 4, da Lei 27/2006, de 3/7.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença, que absolveu o arguido do mencionado crime

Dessa decisão absolutória recorreu o Ministério Público para este Tribunal da Relação, formulando as seguintes conclusões:
1 O Ministério Público recorre da douta sentença proferida nos autos supra identificados, que absolveu o arguido da prática de um crime de desobediência agravada, previsto e punido pelo art.348°, n° 1, alínea b), do Código Penal, com referência aos artigos 5°, 32° do Decreto n° 2-A/2020, de 20 de março, art. 7° da Lei n° 44/86, de 30 de setembro e art. 6, n° 1 e 4 da Lei n° 27/2006, de 3 de julho.
2Mal andou o Tribunal quando deu como não provados os factos: “O arguido sabia que havia sido devidamente advertido que, a manter tal comportamento, como já havia feito em dia anterior, incorria na prática de crime de desobediência, previsto e punido pelo art. 348°, n° 1 do Código Penal.”, “No dia 03/04/2020, o arguido pretendeu não acatar a ordem dada no dia 27/3/2020, desobedecendo à mesma como o fez.” e “Bem sabia o arguido que tal conduta era proibida e punida pela lei penal.
3A matéria de facto dada como provada e não provada encontra-se em contradição em si mesma e com a respectiva motivação da douta sentença proferida.
4A absolvição do arguido, foi única e exclusivamente baseada em suposições da Mma. Juíza a quo, em virtude do arguido ter isso julgado na sua ausência e não ter apresentado qualquer contestação.
5A única prova produzida em discussão de audiência de julgamento foi a inquirição dos agentes da PSP, tanto dos que abordaram o arguido no dia dos factos, como do agente que anteriormente havia notificado o aqui arguido de que o mesmo se encontrava em obrigação de cumprir o recolher obrigatório.
6A Mma. Juíza tomou a cargo, a defesa do arguido quando decidiu aferir dos depoimentos das testemunhas de acusação que não se deu como provado que o arguido tenha desobedecido ou que quisesse desobedecer a tal ordem. 
7O aqui arguido foi devidamente esclarecido de quais as circunstâncias em que podia permanecer na via pública, por agentes de autoridade, devidamente identificados, e sabia que tinha que obedecer a tais ordens.
8A absolvição do arguido tem na génese a posição assumida pelo julgador de que o arguido não estava obrigado a cumprir as ordens que lhe haviam sido dadas porque as mesmas se baseavam em Decreto do Governo e não em Lei emanada da Assembleia da República.
9Deverá passar a figurar nos factos provados que:
a)- O arguido sabia que havia sido devidamente advertido que, a manter tal comportamento, como já havia feito em dia anterior, incorria na prática de crime de desobediência, previsto e punido pelo art. 348°, n° 1 do Código Penal.
b)- No dia 03/04/2020, o arguido pretendeu não acatar a ordem dada no dia 27/3/2020, desobedecendo à mesma como o fez.
c)- Bem sabia o arguido que tal conduta era proibida e punida pela lei penal e consequentemente o arguido ser condenado pela prática do crime de desobediência qualificada de eu vem acusado.
10Com a incriminação contida nos art. 348°, n° 1, b), do Código Penal com referência aos artigos 5° e 32°, do Decreto n° 2-A/2020 de 20 de março, art. 7° da Lei n° 44/86 de 30 de setembro e art. 6°, n° 1 e 4 da Lei n° 27/2006 de 3 de julho, pretende-se tutelar um interesse público, a segurança dos portugueses.
11Em estado de emergência as medidas extraordinárias e de carácter urgente, que envolvem necessariamente a restrição de direitos e liberdades, em especial no que respeita aos direitos de circulação e às liberdades económicas através de um conjunto adicional de medidas de modo a minorar o risco de contágio e de propagação da doença COVID-19.
12Trata -se também de uma medida preventiva para que a segurança da generalidade de todos os cidadãos residentes em território português.
13A Assembleia da República, através da Resolução da Assembleia n° 15-A/2020, de 18 de março de 2020, autorizaram a declaração do estado de emergência decretado, nos termos do disposto nos art. 161°, alínea l) e art. 166°, n° 5 da Constituição da República Portuguesa, do art. 15°, n° 1 e art. 23°, n° 1 da Lei n° 44/86, de 30 de setembro, alterada pela Lei Orgânica n° 1/2012, de 11 de maio.
14O Decreto do Presidente da República n° 14-A/2020 de 18 de março, no qual procedeu à declaração de estado de emergência, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública.
15De acordo com a Lei n° 27/2006, de 3 de julho, Lei de Bases da Protecção Civil, a desobediência e a resistência às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em situação de calamidade são sancionadas nas respectivas penas com a agravação em um terço, nos seus limites mínimo e máximo.
16O regime de excecionalidade constitucional, como o que foi decretado com o Estado de Emergência permite que o Governo por Decreto determine quais os comportamentos que devem ser sancionados através de tutela penal.
17A Mma. Juíza do tribunal a quo entendeu, em síntese que, “cumpria esgotar todos os meios legais disponíveis para alcançar o conteúdo útil da ordem/recomendação/aconselhamento ( no caso, o recolhimento domiáliário), residindo aí a condição de legitimidade material da própria ordem em nome do princípio da intervenção mínima do direito penal.” 
18O alegado excesso de zelo que o julgador plasmou na sua douta sentença, relativamente à Polícia de Segurança Pública mais não foi do que o reflexo de uma actuação própria e de acordo com a lei que se encontrava em vigor, que tinha e teve como único objectivo dissuadir os cidadãos de terem comportamentos disformes à lei, nomeadamente ao dever de recolhimento domiciliário de forma a evitar a propagação de um quadro epidemiológico nefasto para a sociedade.
19Da própria acusação resultava de forma clara e inequívoca que o que era peticionado para a condenação dos arguidos era a aplicação do disposto nos art. 348°, n° 1, b), do Código Penal com referência aos artigos 5° e 32°, do Decreto n° 2-A/2020 de 20 de março, art. 7° da Lei n° 44/86 de 30 de setembro e art. 6°, n° 1 e 4 da Lei n° 27/2006 de 3 de julho.
20Em momento algum, o Governo, na execução especifica do estado de emergência, entendeu criminalizar ou agravar criminalizações, sem para tal se encontrar legitimado.
21Mal andou o tribunal a quo quando não velou pela aplicação de normas constitucionais e previstas em Lei que regulam o estado de emergência.
22O arguido praticou um crime de desobediência agravado, previsto e punido nos art° 348°, n° 1, b), do Código Penal com referência aos artigos 5° e 32° do Decreto n° 2-A/2020 de 20 de março, art. 7° da Lei n° 44/86 de 30 de setembro e art. 6°, n° 1 e 4 da Lei n° 27/2006 de 3 de julho, o qual é punível com pena de prisão até um ano e 4 meses ou com pena de multa até 160 dias, tendo que ser condenado pelo mesmo.
[inexiste ponto 23]
24A conduta praticada pelo arguido, integradora da prática do crime de desobediência agravada nestes circunstancialismos, quer do ponto de vista das necessidades de prevenção geral, quer do ponto de vista das necessidades de prevenção especial que se impunham salvaguardar, deveriam levar o Tribunal a quo a concluir pela sua condenação.
25O arguido já havia sido advertido por parte dos agentes de autoridade de que não devia permanecer na via pública com excepção das condições previstas em decreto próprio.
26A lei é geral e abstrata devendo aplicar-se aos casos em concreto e o desconhecimento da mesma, não pode, nem deve ser valorado a favor do arguido.
27A indicação “só podem”, do art. 5°, n° 1 do Decreto 2-A2020 tem natureza imperativa, sendo dever e obrigação dos cidadãos cumprirem a mesma.
28Entendeu o Tribunal a quo, como já foi anteriormente exposto que o comportamento por parte do arguido só seria criminalmente censurável no caso do mesmo persistir.
29O dever do arguido perante a notificação da Polícia de Segurança Pública era o de se Abster, Abandonar e quiçá Retroceder nas suas actuações agindo em conformidade com o direito.
30Ao ter absolvido o arguido pelo crime de desobediência agravado nos termos do disposto nos art. 348°, n° 1, b), do Código Penal com referência aos artigos 5° e 32° do Decreto n° 2-A/2020 de 18 de março, art. 7° da Lei n° 44/86 de 30 de setembro e art. 6°, n° 1 e 4 da Lei n° 27/2006 de 3 de julho, entendemos que o Tribunal a quo violou os preceitos legais supra expostos, e por decorrência, o princípio da universalidade e da igualdade previstos nos art. 12° e 13° da Constituição da República Portuguesa.”
Termina no sentido de “ser a decisão a quo, na parte que se refere à imputação criminal, ser substituída por outra, que importe a condenação do arguido pela prática do crime de desobediência agravado”.

O arguido recorrido não respondeu ao recurso.

Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta elaborou parecer em que, acompanhando a motivação de recurso, propugna pela procedência deste.

Dado cumprimento ao disposto no art.º 417º n.º 2 CPP, nenhuma resposta ao parecer foi oferecida.
  
II.– 
Colhidos os vistos legais e efectuada conferência, cumpre agora apreciar e decidir.

A decisão recorrida apresenta o seguinte teor:
“Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos, com relevância para a decisão de mérito:
1.- No dia 27 de março de 2020, cerca das 20:35 horas, o arguido foi intercetado na via pública por agentes da PSP, tendo sido notificado pelo agente JS, por escrito, conforme notificação constante de fls. 45, da qual consta:
“Nos termos do decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 2 de abril, que declara o estado de emergência com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública, da Resolução da Assembleia da República n.º 15-A/2020, que autoriza a renovação da declaração do estado de emergência e do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março, que procede à execução da declaração do estado de emergência efetuada pelo Decreto do Presidente da República acima referido fica notificado (...) que se encontra em falta a obediência devida a ordem legitima emanada por autoridade competente no âmbito da Declaração do Estado de Emergência, pelo que nos termos legais suprarreferidos tem que deslocar-se para o seu domicílio o mais rapidamente possível, onde deve permanecer. Caso não obedeça à ordem legal e legitima que lhe está a ser emanada, incorre no crime de desobediência, previsto no artigo 348.° do Código Penal, punido com pena de prisão, motivo pelo qual será promovida a sua detenção, bem como a apreensão dos instrumentos, produtos e/ou vantagens relacionados com a prática deste ilícito, para além de outros suscetiveis de servirem como prova".
2.- No dia 27 de março de 2020, cerca das 20:35 horas, o arguido foi elucidado pelo agente da PSP que, caso viesse a persistir em manter condutas similares e que não obedecesse à ordem que agora lhe estava a ser dada por autoridade policial, incorreria na prática do crime de desobediência.
3.- O arguido ficou ciente dessa realidade e do conteúdo da advertência que lhe foi pessoalmente dada pelo agente da PSP, das suas implicações e que, nesse contexto, não poderia manter-se na via pública, no contexto e pela razão porque o fazia, nem nessa data, nem em momento posterior.
4.- Sucede que o arguido, ciente da cominação feita no dia 27/03/2020, no dia 03/04/2020, pelas 14:45 horas, voltou a ser intercetado na via pública, na Rua ... ... ..., em O..., em área desta comarca, a conviver com um amigo.
5.- O arguido tinha consciência plena da advertência e cominação que lhe foi feita no dia 27/03/2020, sabia que a ordem dada era legal e emanada por quem tinha legitimidade para a dar.
6.- Mais sabia o arguido que o país se encontrava em situação de Estado de Emergência, e que nesse contexto estava obrigado a acatar o recolhimento domiciliário que lhe havia sido determinado.

Mais se apurou que:
7.O arguido não tem quaisquer rendimentos declarados à Segurança Social.
8. O arguido regista os seguintes antecedentes criminais:
- No âmbito do processo n.º 175/19.5PTLSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local de Pequena Criminalidade de Lisboa, Juiz 2, por sentença transitada em julgado em 14/11/2019, foi condenado pela prática, em 10/02/2019, de um crime de consumo de estupefacientes, na pena de 45 dias de multa, à taxa diária de 5 euros;
- No âmbito do processo n.º 71/19.6S6LSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Local Criminal de Loures, Juiz 4, por sentença transitada em julgado em 29/06/2020, foi condenado pela prática, em 15/01/2019, de um crime de roubo, na pena de 16 meses de prisão, suspensa por 16 meses, com sujeição a regime de prova.

1.2)- Matéria de facto não provada
Não resultou demonstrado, com relevo para a decisão da causa que:
a)- No dia 28/03/2020, pelas 20:35 horas, o arguido foi elucidado pelo agente da PSP que, caso viesse a persistir em manter condutas similares e que não obedecesse à ordem que agora lhe estava a ser dada por autoridade policial, incorreria na prática do crime de desobediência.
b)-No dia 03/04/2020, o arguido estava a confraternizar há período superior a uma hora.
c)- No dia 03/04/2020 o arguido foi aconselhado pela autoridade policial a recolher ao seu domicílio.
d)- No dia 03/04/2020 ou em dia anterior o arguido se tivesse recusado a regressar ao seu domicílio.
e)-O arguido não acatou, após a cominação que lhe foi pessoalmente feita pela autoridade policial, a ordem que lhe foi dada.
f)-No dia 03/04/2020 o arguido foi advertido que, caso se mantivesse na via pública, incorria na prática do crime de desobediência.
g)-No dia 03/04/2020, ao permanecer na via pública a confraternizar com um amigo o arguido sabia que não poderia permanecer na via pública nas condições e pelas razões pelo que fazia.
h)- O arguido sabia que havia sido devidamente advertido que, a manter tal comportamento, como já havia feito em dia anterior, incorria na prática de crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348°, n° 1 do Código Penal.
i)- No dia 03/04/2020, o arguido pretendeu não acatar a ordem dada no dia 27/3/2020, desobedecendo à mesma como o fez.
j)- No dia 03/04/2020, o arguido não cumpriu a ordem que lhe foi dada, mesmo após a advertência e cominação que lhe foi pessoalmente feita pela autoridade policial.
k)- Bem sabia o arguido que tal conduta era proibida e punida pela lei penal.
 
1.3)Justificação da convicção do Tribunal
Em obediência ao disposto no artigo 389.°-A, n.º 1, alínea b), ex vi do artigo 391.°-F, ambos do Código do Processo Penal, cumpre expor de forma concisa os motivos de facto que fundamentam a antecedente decisão fática.
Esteou-se, pois, o Tribunal, na análise crítica dos depoimentos prestados pelas testemunhas PC (o agente da Polícia de Segurança Pública que elaborou o auto de noticia junto aos autos a fls. 1 a 3, reportada ao dia 03/04/2020), MT (o agente da Polícia de Segurança Pública que elaborou a participação de fls. 17 a 23, reportada a 28/03/2020), JS  (o agente da Polícia de Segurança Pública que elaborou a notificação de fls. 45, reportada a 27/3/2020) e dos meios de prova documental juntos aos autos e examinados em audiência de discussão e julgamento (auto de notícia de fls. 1-3, a participação de fls. 17-23, a notificação de fls. 45 e Certificado de Registo Criminal de fls. 76, os resultados de pesquisas nas bases de dados 80 a 81).
Assim e no que concerne às circunstâncias de tempo e lugar em que os factos atinentes ao dia 03/04/2020 ocorreram, o Tribunal baseou-se nas declarações prestadas pelo agente PC, o qual confirmou o relatado no auto de noticia de fls. 1 a 3, designadamente as circunstâncias de tempo e lugar aí mencionadas, designadamente que, após alguns telefonemas para a esquadra de Odivelas, se deslocou a tal local onde se encontravam dois indivíduos sentados num banco de jardim, sendo que, ao avistarem os elementos policiais se levantaram no intuito de evitar a abordagem mas tendo o arguido sido abordado e referido que já tinha sido notificado no sentido de que não poderia permanecer na via pública, tendo sido por esse motivo detido.
Por seu turno, o agente MT atestou os factos relatados na participação de fls. 17 a 23, designadamente que no dia 28/03/2020 abordou vários indivíduos que se encontravam à porta de uma loja, tendo explicado a todo o grupo que estavam a violar o dever de recolhimento e que, em última ratio tal poderia implicar o crime de desobediência, não se recordando, no entanto, se tais indivíduos foram notificados e devidamente identificados, uma vez que no âmbito de tais procedimentos não era exigida a identificação das pessoas advertidas, não podendo, pois, atestar a identidade do arguido.
Finalmente, o agente JS, nas suas declarações, atestou os factos a que se reporta a notificação de fls. 45, datada de 27/03/2020, referindo desconhecer em que circunstâncias são que o arguido teria sido notificado, mas assegurando que a mesma foi realizada, tendo o arguido exibido um documento de identificação com fotografia e, por conseguinte, atestando que o mesmo foi devidamente identificado e notificado nos termos a que se reporta tal documento.
*

Ponderados criticamente os elementos de prova testemunhal e documental, produzidos e examinados em audiência de discussão e julgamento, importa referir que, atenta a forma clara, firme e coesa como os depoimentos das testemunhas PC e JS foram prestados foi possível dos mesmos extrair, com segurança, a materialidade que se considerou positivamente, tanto mais que a mesma se encontra expressa nos meios de prova documental (auto de noticia e notificação) que se encontram junto aos autos.
No que respeita ao conteúdo da notificação que foi realizada ao arguido no dia 27/03/2020, o Tribunal louvou-se no teor do documento que consta de fls. 45, que se encontra devidamente assinado e cujo teor foi atestado pelo agente que a elaborou e entregou ao arguido, o qual foi regularmente identificado.
Por seu turno, importa salientar que, conforme igualmente resultou com clareza do depoimento prestado por PC, o arguido, no dia 03/04/2020, foi imediatamente detido, sem ser feita qualquer recomendação prévia ou cominação legal, não tendo o arguido posto em causa qualquer ordem que lhe tenha sido dada, acatando, aliás, pacificamente a sua detenção.
Os factos relativos às condições de vida do arguido basearam-se no resultado das pesquisas as bases de dados disponíveis, não tendo sido obtidos outros esclarecimentos, atenta a ausência do arguido em audiência de discussão e julgamento.
Quanto aos antecedentes criminais do arguido o Tribunal louvou-se no teor do Certificado de Registo Criminal de fls. 76-79, devidamente atualizado.
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No que concerne à materialidade negativamente ajuizada, importa referir, primeiramente, no que respeita ao dia 28/03/2020, que resultou do depoimento prestado pelo agente MT que a identificação dos cidadãos a que se reporta a participação de fls. 17 a 23 foi meramente verbal, sendo que não consta dos autos, relativamente a este dia, qualquer notificação por escrito que tenha sido realizada ao arguido, pelo que, atenta a ausência de meios probatórios que permitam ao Tribunal concluir, com suficiência, que o arguido teve intervenção ou foi notificado no dia 28/3/2020, forçoso se mostrou considerar negativamente a correspondente factualidade.
Por seu turno, com respeito ao dia 03/04/2020 tendo resultado demonstrado que o arguido foi imediatamente detido, conforme decorreu expressamente das declarações prestadas pelo agente PC, em concordância, não poderá dar-se como provado que o arguido se encontrava no local há mais de uma hora (o que não foi observado pelo agente), nem que desobedeceu à ordem que lhe foi dada nesse dia, uma vez que, nessa data, não lhe foi dada qualquer ordem de regresso ao domicílio.
Acresce que, examinado o teor da notificação feita ao arguido em 27/03/2020 e cuja cópia consta de fls. 45, decorre que nessa data lhe foi determinado que devia deslocar-se ao seu domicílio, onde deveria permanecer, com a cominação de que se não obedecesse à ordem legal e legitima “que lhe está a ser emanada incorre no crime de desobediência". Assim, do teor da referida notificação resulta expressamente que o arguido deveria obedecer à ordem que lhe foi dada no dia 27/03/2020, ordem à qual o arguido terá efetivamente obedecido, conforme decorreu das declarações prestadas pelo agente JS . Ora, não se fazendo referência, naquela notificação, ao período temporal para o qual aquela ordem era válida, sob cominação do crime de desobediência, dificilmente se poderá concluir que o arguido, perante o teor da mesma, estava verdadeiramente ciente de que, se voltasse a permanecer na via pública noutro dia em convívio seria imediatamente detido. 
Contribuiu ainda para o Tribunal formar convicção nesse sentido, para além do teor da notificação efetuada no dia 27/03/2020, o facto de se desconhecer, em concreto, quais as circunstâncias em que o arguido, nesse dia, foi encontrado na via pública, designadamente se o mesmo se encontraria em convívio ou a exercer qualquer outra atividade não permitida.
Por estes motivos, ainda que o agente TC tivesse referido que no dia 27/03/2020 alertou o arguido de que se permanecesse na via pública, “em incumprimento”, incorria num crime de desobediência, o Tribunal entendeu que à luz do teor da notificação por escrito que lhe foi entregue e das regras da experimentação ordinária e do conhecimento que é expetável cada cidadão ter adquirido quanto às regras que foram impostas no período do estado de emergência, mormente considerando o que resulta expressamente dos diplomas legais que deram execução a essa declaração - o Decreto n.° 2-A/2020 aprovado pela Presidência do Conselho de Ministros, à luz do qual foi realizada tal notificação e o Decreto 2.°- B/2020 - nos quais se estabelecia que os agentes policiais tinham o dever de sensibilizar a comunidade e recomendar aos cidadãos o cumprimento do dever geral do recolhimento domiciliário e, bem assim, que os mesmos poderiam ausentar-se dos domicílios por diversos motivos (designadamente para deslocações de curta duração para efeitos de atividade física, retorno ao domicilio pessoal ou outras atividades de natureza análoga...), que ao arguido era legitimo ter a expetativa de que, em dia posterior ao dia 27/03/2020, lhe seria feita pelos agentes policiais ou uma nova recomendação ou uma ordem de regresso ao domicilio, mas que ele não incorria, de imediato, na prática de um facto ilícito.
Por tais motivos, se considera que o arguido, para além de não ter desobedecido a qualquer ordem que lhe tenha sido dada em 03/04/2020, outrossim, não estaria ciente que, ao permanecer na via pública nesse dia, sem ter desobedecido a qualquer ordem que lhe tivesse sido dada, incorria num crime de desobediência.”

Sendo as conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respectiva motivação que delimitam e fixam o objecto do recurso - conforme entendimento generalizado da doutrina e da jurisprudência -, nas que aquele formulou e que acima transcrevemos decorrem as seguintes questões:
a)-A matéria de facto dada como provada e não provada encontra-se em contradição em si mesma e com a respectiva motivação da douta sentença proferida;
b)-O tribunal recorrido fez errada aplicação do direito aos factos provados, destes resultando que o arguido cometeu o imputado crime de desobediência, pelo qual deve ser condenado.

Apreciando.

Questão a):

Alega o recorrente que a decisão que absolveu os arguidos da prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo art.º 348º, n.º 1, al. b), do Código Penal é nula, argumentando:
«Entendeu a Mm.ª Juíza a quo que não estavam preenchidos os elementos objetivos do crime de desobediência, previsto e punido pelo art.º 348º, n.º 1, al. b), do Código Penal, por referência à violação do art.º 5º do Decreto 2-C/2020, de 17/4, por ter, além de outras, as maiores reservas quanto a quais as condutas que estão concretamente vedadas aos cidadãos no âmbito do dever geral de recolhimento, considerando ainda que as forças de autoridade apenas excepcionalmente podem cominar com a prática de um crime de desobediência, nos termos do art.º 348º, n.º 1, al. b), atenta a natureza subsidiária de tal preceito.
Consequentemente, apenas o art.º 348º, n.º 1, al. b), e o art.º 5º do Decreto 2-C/2020, de 17/4, é analisado, ignorando-se as demais normas e diplomas em que o Ministério Público assentou o seu libelo acusatório.
Entendemos que tal omissão de pronúncia assume o relevo de uma nulidade da sentença, prevista no art.º 379º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, salvo opinião distinta, pois a verdade é que em sede de sentença não foram apreciados os demais normativos, nos quais o Ministério Público sustentou a sua acusação, concretamente:
- Art.º 348º, n.º 1, al. a), do Código Penal;
- Art.º 46º, n.º 1, al. c) e d), e n.º 7, do Decreto 2-C/2020, de 17/4;
- Art.º 7º, da Lei 44/86, de 30/9;
- Art.º 6º, n.ºs 1 e 4, da Lei 27/2006, de 3/7, este com menor relevância, pois que apenas aqui interessará na agravação da moldura penal prevista para os crimes praticados em estado de calamidade;
- Art.º 5º da Resolução da Assembleia da República n.º 23A-2020, de 17/4.
Em primeiro lugar, nem sequer foi considerada a previsão do art.º 348º, n.º 1, al. a), do Código Penal, ou seja, a possibilidade de que a prática do crime de desobediência resultasse de norma expressa e não de uma cominação das forças policiais.
E não podemos ignorar que a legitimidade da cominação das condutas que violem o dever geral de recolhimento domiciliário, previsto no art.º 5º do Decreto 2-B/2020, não surge exclusivamente da aplicação isolada de tal diploma ou sequer da aplicação única do seu art.º 5º. Tal diploma surge enquadrado por um conjunto normativo pré-existente e que não foi “criado” exclusivamente para o Estado de Emergência, declarado pelo Sr. Presidente da República face à recente situação de calamidade e de pandemia.
Enquadram tal situação jurídico-constitucional, de Estado de Emergência, para além do Decreto 2-C/2020, a Lei 44/86, de 30/9, sob a epígrafe Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência, sendo esta uma Lei de valor reforçado, e a Lei 27/2006, de 3/7, a Lei de Bases da Protecção Civil, aplicável em situação de calamidade, como a que se vivenciou durante a declaração do Estado de Emergência, sendo esta também uma lei de valor reforçado.
E é neste acervo legislativo que o Ministério Público fundou a sua acusação, pela prática de um crime de desobediência, sendo certo que a Mm.ª Juíza a quo se absteve de apreciar a cominação da prática de um crime de desobediência quando vista à luz das demais normas e destes outros três diplomas, não aflorando sequer a possibilidade de se estar perante um crime de desobediência em sentido impróprio».
Da leitura da citada argumentação extrai-se que a nulidade apontada se mostra fundada na contradição entre os factos provados 1 e 2 (relativos à comunicação que ao arguido foi feita no dia 27.3.2020 pelos agentes policiais) e os não provados h), i) e k) (estes relativos à situação ocorrida no dia 3.04.2020).
A contradição relevante para a nulidade de sentença a que se refere a al. b) do art.º 410º n.º 2 CPP será, dentre outras possíveis, a que ocorre entre factos provados e não provados.
“Decorre da própria letra da lei que o vício deve resultar “do texto de decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal). Assim, importa salientar que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento - Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10ª ed., pg. 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., pg. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., pg.s 77 e ss.
Existe o vício previsto na alínea b), do n.º 2 do art. 410.º quando há contradição entre a matéria de facto dada como provada, entre a matéria de facto dada como provada e a matéria de facto dada como não provada, entre a fundamentação probatória da matéria de facto, e ainda entre a fundamentação e a decisão.
Ora, analisando a matéria de facto considerada provada e não provada verifica-se que, em ambos os segmentos fácticos em confronto, se representam realidades diferentes: no primeiro, o provado, o teor da notificação feita ao arguido em 27/03/2020, constante do facto provado 1, decorre que nessa data lhe foi determinado que devia deslocar-se ao seu domicilio, onde deveria permanecer, com a cominação de que se não obedecesse à ordem legal e legitima “que lhe está a ser emanada incorre no crime de desobediência", não resultando da mesma e de uma forma expressa, ao período temporal para o qual aquela ordem era válida, sob cominação do crime de desobediência e, por decorrência, nos não provados, só poderia ser ali inserido que, como o foi, pretendeu não acatar a ordem dada no dia 27/3/2020, desobedecendo à mesma como o fez.
Perante a dita ausência de indicação do período temporal para o qual aquela ordem era válida, sob a cominação do crime de desobediência, nunca se poderia concluir que o arguido, perante o teor da mesma, estava verdadeiramente ciente de que, se voltasse a permanecer na via pública noutro dia em convívio, estaria só por isso ciente de que se encontrava em situação de não acatamento daquela primeira ordem e, consequentemente, abrangido pela cominação de incorrer em crime de desobediência com a possibilidade de ser imediatamente detido.
Inexiste pois a apontada contradição e muito menos que a mesma se configura como insanável, nos termos exigidos pelo precito processual penal.-

Questão b):

Diz esta respeito a deficiente aplicação do direito aos factos, pretendendo o recorrente que o arguido cometeu o imputado crime de desobediência agravada, pelo qual deve ser condenado, tendo por referência as normas jurídicas supra mencionadas pelo recorrente - que permitiriam a imputação do crime de desobediência, previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 348.º, do CP - e que não terão sido aplicadas pelo julgador, sem prejuízo de se considerar que a cominação feita no dia 27.03.2020, de que seria cometido tal crime se o arguido não permanecessem no domicílio, mantinha a sua validade no dia 3/04/2020, dispensando-se nova cominação, contrariamente ao que foi entendido pelo tribunal recorrido.
Numa primeira análise e apreciação oficiosa da decisão recorrida, não se vislumbra, a existência, na sentença, de qualquer dos vícios elencados nas alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 410.º, do CPP.
Constata-se, por sua vez, que na motivação de recurso e nas conclusões que o recorrente daquela extraiu, embora refira no ponto 9 que os não provados trazidos à questão do vicio da contradição deveriam ser dados como provados, não foi suscitada qualquer impugnação fáctica nos exigidos termos do art.º 4120º n.ºs 3 e 4 CPP, seja dirigida aos factos declarados provados ou aos não provados pelo tribunal recorrido e que acima se transcreveram seja pela indicação das concretas provas que impusessem essa alteração de qualificação dos factos, pelo que teremos de considerar essa matéria fáctica como estabilizada, por definitivamente assentes, não existindo já a possibilidade de qualquer eventual modificação.
Será assim a esse quadro fáctico que terá se der efectuada a operação de subsunção jurídica em termos lhe ser aplicado o direito.
Ora, em jeito de análise prévia, podemos desde já dizer que tais factos provados – só estes se mostram relevantes para aquela subsunção jurídica- são claramente insuficientes para que seja possível a sua integração em qualquer crime, nomeadamente ao imputado crime de desobediência agravada, seja pela alínea a) ou pela alínea b), do n.º 1 do artigo 348.º, do CP.
Afirmamos dessa insuficiência pelas esclarecidas considerações desenvolvidas na sentença absolutória e que passamos a citar:
Ora, apreciando os preceitos legais invocados em sede de libelo acusatório, importa primeiramente verificar que desde logo se suscitam dúvidas quanto ao âmbito de aplicação do dever geral de recolhimento domiciliário imposto pelo artigo 5.° dos sucessivos decretos que implementaram as restrições aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, em estado de emergência, no caso concreto o Decreto n.º 2-B/2020 de 2/04, da Presidência do Conselho de Ministros, designadamente:
- Quais as condutas em concreto que violam o artigo 5° - o que leva alguns agentes policiais a fazer advertências e detenções e outros a permitir que o cidadão esteja na via pública nas mesmas circunstâncias;
- Qual a consequência da violação do artigo 5° - havendo quem entenda que a pessoa deve ser logo advertida da cominação da desobediência e outros que apenas seja aconselhada a regressar a casa e só se se recusar é que deverá ser feita a advertência e outros ainda entendem que nunca pode haver cominação e crime de desobediência em caso de violação do artigo 5° desses decretos.
Ora, tem-se constatado que as entidades policiais adotam o seguinte procedimento, assim que visualizam um cidadão numa situação que um agente policial em concreto entende ser violadora do artigo 5.° e depois do mesmo anuir em respeitar a ordem de regresso ao domicilio:
i)-Apresentam ao cidadão um expediente intitulado “notificação”, do qual fazem constar que o mesmo:
- Se encontra em falta a obediência devida a ordem legitima emanada por autoridade competente, no âmbito da Declaração de Estado de Emergência pelo que, nos termos legais, deverá deslocar-se para o seu domicilio o mais rapidamente possível onde deve permanecer;
- Concomitantemente, na mesma notificação escrita, fazem constar a seguinte advertência “Caso não obedeça à ordem legal e legitima que lhe esta a ser emanada, incorre no crime de desobediência, previsto no artigo 348.° do Código Penal, punido com pena de prisão”;
ii)- Posteriormente, dias ou semanas depois, se o mesmo cidadão é novamente encontrado na via pública, em situação que os agentes policiais consideram violadora do artigo 5.° é o mesmo de imediato detido, por referência à cominação anteriormente efetuada.
Tal é o caso dos presentes autos.
Ora, no âmbito da vigência do Estado de Emergência previa o Decreto n.° 2-B/2020, de 2/4, no seu artigo 5.° que os cidadãos não abrangidos pelo disposto nos artigos 3.° e 4.° só podem circular em espaços e vias públicas, ou em espaços e vias privadas equiparadas a vias públicas, para algum dos propósitos aí mencionados.
Por seu turno, o referido artigo 5.° previa diversas situações em que o cidadão poderia ausentar-se do seu domicilio.

Estabelecia ainda o artigo 43.°, n.º 1 do mesmo diploma (tal como o artigo 32.° do Decreto n.º 2-A/2020), sob a epígrafe “fiscalização” que:
Compete às forças e serviços de segurança e à polícia municipal fiscalizar o cumprimento do disposto no presente decreto, mediante:
a)-A sensibilização da comunidade quanto ao dever geral de recolhimento
b)-O encerramento dos estabelecimentos e a cessação das atividades previstas no anexo I ao presente decreto;
c)-A emanação das ordens legítimas, nos termos do presente decreto, designadamente para recolhimento ao respetivo domicílio;
d)-A cominação e a participação por crime de desobediência, nos termos e para os efeitos da alínea b) do n.º 1 do artigo 348.° do Código Penal, bem como do artigo 7.° da Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, por violação do disposto nos artigos 6.°, 9.° a 11.° do presente decreto, bem como do confinamento obrigatório de quem a ele esteja sujeito nos termos do artigo 3.°;
e)-O aconselhamento da não concentração de pessoas na via pública e a dispersão das concentrações superiores a cinco pessoas, salvo se pertencerem ao mesmo agregado familiar;
f)-A recomendação a todos os cidadãos do cumprimento do dever geral do recolhimento domiciliário, nos termos e com as exceções previstas no artigo 5.°"
Acresce que o n.º 4, de tal normativo previa que:As forças e serviços de segurança reportam permanentemente ao membro do Governo responsável pela área da administração interna o grau de acatamento pela população do disposto no presente decreto, com vista a que o Governo possa avaliar a todo o tempo a situação, designadamente a necessidade de aprovação de um quadro sancionatório por violação do dever especial de proteção ou do dever geral de recolhimento domiciliário."
Por último n.º 6 do mesmo preceito estabelecia:A desobediência e a resistência às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em violação do disposto no presente decreto, são sancionadas nos termos da lei penal e as respetivas penas são sempre agravadas em um terço, nos seus limites mínimo e máximo, nos termos do n.º 4 do artigo 6.° da Lei n.° 27/2006, de 3 de julho."
Como interpretar estas disposições, no que toca à violação do dever geral de recolhimento domiciliário, previsto no artigo 5.° do referido diploma legal?
Seguindo de perto o estudo realizado por Alexandre Oliveira “O(s) crime(s) de desobediência no atual estado de emergência, em especial no domínio das restrições ao direito de deslocação e fixação - breves notas"4, verifica-se que o referido autor, neste particular, se pronuncia nos seguintes termos:
“(...) o estado de exceção implica, necessariamente, como bem realça, conforme vimos, JORGE BACELAR GOUVEIA, um reforço dos poderes administrativos do Governo (mas não dos seus poderes de legislação), pelo que negar esta possibilidade às autoridades competentes na execução de um estado de emergência seria, ao que nos parece, um contrassenso.
É isto, no fundo, que nos parece que o artigo 5. ° quer da Resolução da Assembleia da República n.º 22-A/2020, quer do Decreto do Presidente da República n.° 17-A/2020, supracitado e analisado, também vêm reforçar.
Nestes termos, para haver crime de desobediência, terá sempre de haver primeiro uma cominação concreta com tal crime feita por uma autoridade competente e uma subsequente transgressão.
É certo que se poderia objetar, em especial quanto ao dever geral do recolhimento domiciliário (artigos 4.° e 5.°), que também aqui o Governo previu, no âmbito dos seus poderes executivos, outras formas de agir por parte dos seus agentes, em especial, o “aconselhamento” da não concentração de pessoas na via pública, a “recomendação” do cumprimento do dever geral de recolhimento (artigo 32.°, n.º 1, alíneas c) e d), do Decreto n.º 2-A/2020), a que acrescem, a “sensibilização” quanto ao dever geral de recolhimento e a (ordem de) “dispersão” das concentrações superiores a cinco pessoas quando não pertençam ao mesmo agregado familiar (artigo 43.°, n.º 1, alíneas a) e e), do Decreto n.º 2-B/2020).
Claro está que todos estes modos de proceder deverão, assim, nessas situações, preceder uma eventual cominação com o crime de desobediência, mas quando todos esses modos falharem, perante persistentes transgressões à autonomia intencional e às prescrições do estado de exceção, não restará às autoridades competentes, ao que se julga, recorrerem, por necessidade e sempre com o respeito pela proporcionalidade, à ultima ratio que é o Direito Penal e à coerção que lhe é inerente.” (sublinhado nosso).
Volvendo tais considerações ao caso dos autos, entende-se que, efetivamente, caso o arguido persistisse na sua vontade em se ausentar ou não regressar ao seu domicílio, após devidamente aconselhado e advertido por autoridade competente de que tal o poderia fazer incorrer num crime de desobediência, sujeitar-se-ia a eventual responsabilidade penal, verificados que estivessem os demais pressupostos legais (entre outros, o dolo, a imputabilidade, a inexistência de causas de exclusão da ilicitude ou culpa, ou de erro relevante, e exigibilidade).
No entanto, na situação em crise nestes autos, a atuação do arguido não surge sujeita a cominação legal com o crime de desobediência, na medida em que na data dos factos objeto dos autos, o arguido não foi aconselhado, recomendado, sensibilizado para o cumprimento do dever de recolhimento, mas sim, de imediato, detido.
Com efeito, no caso dos autos, não resultou demonstrado que, na data dos factos (3/4/2020), o arguido tenha sido aconselhado a recolher ao seu domicilio e que, perante tal conselho, se tenha recusado.
Também não resultou provado que, em tal data, tenha sido advertido de que, caso continuasse na via pública sem justificação, cometeria um crime de desobediência.
Com efeito, essa notificação foi feita em momento anterior à prática dos factos (7 dias), em contexto que se desconhece, que poderia ser semelhante ao dos autos, mas ocorrido noutro dia.
Note-se que, no momento em que tal notificação foi feita ao arguido (dia 27/03/2020), este foi informado de que deveria recolher à sua residência ao mesmo tempo que lhe foi feita a advertência de que cometia o crime de desobediência se não permanecesse em casa.
Ou seja, primeiramente, ao invés de aconselhar o arguido a regressar a casa e só se este recusasse fazer a cominação da desobediência, contemporânea da sua atuação, logo no dia 27/03/2020, o agente policial que interpelou o arguido efetuou, de imediato, a cominação independentemente de qualquer recusa - ultrapassando os procedimentos prévios elementares previstos na lei.
Por outro lado, em data posterior (03/04/2020), o arguido, encontrado novamente na via publica sem justificação, foi imediatamente detido, sem qualquer advertência ou cominação.
Ora, em nosso entender, não tendo o arguido, em nenhum momento recusado obedecer a qualquer ordem, entende-se que a sua atuação não poderá enquadrar uma “persistente transgressão à autonomia intencional e às prescrições do estado de exceção".
Acresce que a ordem proferida em 27/03/2020, com fundamento no Decreto 2.°-A/2020, de 20/03, para além de não ser contemporânea dos factos que lhe são imputados, reportados a 03/04/2020 (já sobre a égide do Decreto n.º 2-B/2020 de 2/4), não é suficientemente clara e explicita, no sentido de informar o arguido de que o mesmo não deveria ausentar-se do domicilio, nem nessa data, nem em dia posterior, a não ser para os propósitos referidos nas exceções previstas no artigo 5.° do aludido diploma legal, as quais estão absolutamente ausentes, não tendo sido esclarecidas no âmbito de tal notificação.
Finalmente, não é despiciendo notar que ainda se suscitam muitas dúvidas quanto aos concretos comportamentos violadores do artigo 5°.
Ora, qualquer ilícito criminal está sujeito ao princípio da tipicidade, sendo crucial que esteja tipificado na lei o comportamento em concreto que pode integrar o crime, não se podendo deixar tal análise à discricionariedade do agente policial.
E, nos casos do referido artigo 5.° do mencionado decreto, face ao teor genérico das clausulas aí tipificadas, designadamente:
-Alínea b) “desempenho de atividades profissionais ou equiparadas;”
-Alínea g) i) “deslocações de curta duração, para efeitos de fruição de momentos ao ar livre”
- Alínea n) “Deslocações de curta duração”
-Alínea t) “Outras atividades de natureza análoga ou por outros motivos de força maior ou necessidade impreterível, desde que devidamente justificados."
Entende-se, pois, que as condutas eventualmente integradoras de crime, não se encontram devidamente tipificadas, o que viola desde logo o referido princípio basilar do Direito Penal, sendo talvez apenas de ressalvar aquelas condutas em que os cidadãos não apresentem qualquer justificação, ainda que meramente genérica, como é o caso dos autos, em que o arguido não esteve presente em audiência de discussão e julgamento, não tendo, por conseguinte, invocado qualquer motivo para permanecer na via pública, aparentemente em convívio com uma outra pessoa.
Em suma, entende-se que, no caso dos autos, cumpria aos agentes policiais esgotar todos os meios legais disponíveis para alcançar o conteúdo útil da ordem/recomendação/aconselhamento de recolhimento domiciliário, residindo aí a condição de legitimidade material da própria ordem em nome do princípio da proporcionalidade e o princípio da intervenção mínima do direito penal.
Em face do exposto, considera-se não estar preenchido, na sua essência, o elemento objetivo do ilícito pelo qual o arguido vinha acusado:
- Por um lado, por inexistência de legitimidade material para a cominação apontada (referente ao dia 27/03/2020), dado que não foi precedida dos procedimentos exigidos por lei (designadamente os previstos no artigo 32.°, n.º 1, alíneas c) e d) do Decreto 2-A/2020, de 20/03) e falta de recusa de cumprimento a ordem por parte do arguido nessa data e
- Por outro lado, por inexistência de cominação à data dos factos (dia 03/04/2020) e consequentemente falta de recusa de cumprimento de qualquer ordem.
Acresce que, no caso dos autos, conforme resulta da materializada ajuizada igualmente não se mostra preenchido o elemento subjetivo do tipo penal em apreço por não se ter demonstrado que o arguido tenha agido com vontade e intenção de praticar um facto ilícito e típico.

4 publicado in Caderno Especial do CEJ - “Estado de Emergência - COVID-19 Implicações na Justiça Ebook", 2020”
Com estas considerações somos de concordar na íntegra, nenhum reparo merece e é, por isso, de confirmar a decisão absolutória proferida, limitando-nos, nos termos do disposto no art.º 425.º, n.º 5, do CPP, a remeter para a respectiva fundamentação.

III:
Face ao exposto, julga-se improcedente o presente recurso do Ministério Público, confirmando-se a decisão recorrida.
Sem custas.
Elaborado e revisto pelo primeiro signatário.

  
Lisboa, 6 de Julho de 2021.


João Carrola
Luís Gominho