Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4738/20.8T9SNT-A.S1.L1-5
Relator: LUÍS GOMINHO
Descritores: COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
TEXTO DA ACUSAÇÃO OU DA PRONÚNCIA
INCOMPETÊNCIA TERRITORIAL
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/01/2024
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
Decisão: DECISÃO INDIVIDUAL
Sumário: (da responsabilidade do relator):
I - Apenas os factos descritos e imputados ao arguido na acusação ou na pronúncia podem ser atendidos para definir a competência do tribunal, não podendo o tribunal lançar mão de quaisquer outros factos ou utilizar o conhecimento que lhe advém por outras vias.
II - Quando tal não aconteça, ou seja, quando não seja claro no texto da acusação e da pronúncia, qual o local da prática do crime, o sistema legal fornece critério alternativo para determinar a competência territorial.
III – Segundo o preceituado no art. 32.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a incompetência do Tribunal é por este conhecida e declarada oficiosamente e pode ser deduzida pelo Ministério Público, pelo arguido e pelo assistente até ao trânsito em julgado da decisão final.
IV - Tratando-se, porém, da incompetência territorial, a mesma somente pode ser deduzida e declarada até ao início da audiência de julgamento (cfr. a al. b) do n.º 2, do normativo indicado).
V – Tendo a Mm.ª Juíza declarado aberta esta última, ainda que a título de questão prévia que colidiria com a sua realização, traduzida precisamente nessa problemática da competência, mostra-se já incumprido tal limite.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I – Relatório:

Nestes autos ora remetidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, a Mm.ª Juíza do Juízo Local Criminal de Lisboa (Juiz 1) veio suscitar o presente conflito negativo de competência territorial, a opor a sua Exm.ª Colega do Juízo Local Criminal de Sintra (Juiz 1), tendo em vista determinar qual deles deverá assegurar o julgamento da Arguida AA, acusada pelo Ministério Público da prática de um crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art. 365.º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Penal.
Da fundamentação apresentada para o dissídio assim formado, destacaríamos as seguintes decisões:
i. O despacho proferido por aquela segunda, datado de 14/09/2023:
“Vem a arguida acusada da prática de um crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, que se consuma no local onde ocorrem os concretos actos de denúncia.
In casu, os factos decorreram, alegadamente, com a remessa de denúncia pela arguida por email, para a IGAI (Inspeção Geral da Administração Interna), que se situa em Lisboa, pelo que, de acordo com o artigo 19.º, n.º1 do Código de Processo Penal, será competente o Tribunal de Lisboa, por se tratar do tribunal em cuja área se verificou a consumação do crime.
Pelo que, em face dos critérios expostos, este Tribunal declara-se territorialmente incompetente para conhecer da presente acção e se determina que a competência territorial para o julgamento caberá ao Tribunal Judicial de Lisboa.
Notifique-se.
Após transito dê baixa e remeta os autos em conformidade.”
ii. O despacho de 31/10/2023, elaborado pela Mm.ª Juíza do Juízo Local Criminal de Lisboa (Juiz 1):
“Da incompetência em razão do território
O Ministério Público deduziu acusação contra AA, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art. 365.º, n.ºs 1 e 2 do CPenal.
Foram os autos remetidos à distribuição pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste - Juízo Local Criminal de Sintra.
Pela Exma. Sra. Juiz daquele Tribunal, no início da audiência de julgamento, foi suscitada a questão de uma eventual incompetência territorial pelo que foi notificada a defesa para o exercício do contraditório e determinando que os autos fossem "com termo de vista".
Veio a ser proferido despacho, que julgou aquele Tribunal territorialmente incompetente.
Apreciando e decidindo.
É competente para conhecer de um crime o Tribunal em cuja área se tiver verificado a consumação (art. 19.º, n.º1, do Código de Processo Penal),
Da acusação não resulta em concreto, qual o local/localidade em que os factos imputados ao arguido terão sido praticados.
O que se refere é que a arguida, através de um endereço de correio eletrónico, remeteu uma mensagem para a Inspecção Geral da Administração Interna IGAI, com o teor ali expresso, que ali foi recebida, tendo dado origem a um processo administrativo.
Consta da decisão proferida nos autos que decidiu pela incompetência territorial do Tribunal onde os autos foram, inicialmente distribuídos, que a IGAI (Inspecção Geral da Administração Interna), se situa em Lisboa.
Ora, como se decidiu no Ac. do TRC de 09-11-2020, no proc. 77/20.2GTVIS-A.C1 in www.dgsi.pt “Não constando da acusação determinado elemento factual, nunca o juiz pode utilizar, para a determinação da competência territorial do tribunal o conhecimento que lhe advém por outra via, porquanto os factos constantes daquela peça processual são, também para tal finalidade, o exclusivo suporte.”
Não constando da acusação, como referido, o local (localidade) onde os factos foram praticados, há que apurar, de acordo com as normas processuais aplicáveis, qual o Tribunal territorialmente competente.
Dispõe o art. 21.º do Código de Processo Penal que se o crime estiver relacionado com áreas diversas e houver dúvidas sobre aquela em que se localiza o elemento relevante para determinação da competência territorial, é competente para dele conhecer o tribunal de qualquer das áreas, preferindo o daquela onde primeiro tiver havido notícia do crime (n.º1) - sublinhado nosso. E de acordo com o n.º 2 deste normativo legal, se for desconhecida a localização do elemento relevante é competente o tribunal da área onde primeiro tiver havido notícia do crime - sublinhado nosso.
Dos autos resulta que o local onde primeiro houve notícia do crime foi em Sintra como resulta do teor de fls. 2 dos autos.
E é pela aplicação desta norma processual que decorre a competência do Tribunal, não havendo que fazer apelo ao conhecimento de circunstâncias que da acusação não constam.
Logo, competente para o julgamento dos presentes autos é o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste - Juízo Local Criminal de Sintra.
A incompetência do Tribunal é por este conhecida e declarada oficiosamente e pode ser deduzida pelo Ministério Público, pelo arguido e pelo assistente até ao trânsito em julgado da decisão final (art. 32.º, n.º 1, do Código de processo Penal). Tratando-se de incompetência territorial, ela somente pode ser deduzida e declarada até ao início da audiência de julgamento, tratando-se de Tribunal de julgamento (art. 32.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal).
Assim, declaro a incompetência em razão do território deste Tribunal e declaro competente o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste - Juízo Local Criminal de Sintra (art 33.º do Código de Processo Penal).
Sem custas.
Notifique.
Deposite.”
I - 2.) Suscitado o pertinente conflito e cumprido o disposto no art.º 36.º, n.º 1, daquele mesmo Diploma, o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido de a competência dever ser atribuída ao Juízo Local Criminal de Sintra (J1).
II - Apreciando:
II - 1.) Tal como já se deixou referenciado em outros lugares, o conflito a que se reporta o art. 34.º, do Cód. Proc. Penal, “consiste na divergência entre dois ou mais tribunais em relação ao conhecimento de um feito jurídico-criminal, e surge quando mais do que um tribunal da mesma espécie (v.g. tribunal judicial) ou de espécie diversa (v.g. tribunal judicial e tribunal não judicial) se reconhecem ou não se reconhecem competentes para investigar e apurar a existência de um crime cuja prática é atribuída ao mesmo arguido.
Se todos os tribunais em oposição se arrogam competentes estamos perante conflito positivo; se declinam a competência ocorre conflito negativo.” (Neste sentido, cfr. a decisão singular datada 25/02/2022, no processo n.º 5193/20.8T8CBRR-A.L1, do Tribunal da Relação de Coimbra, disponível em www.dgsi.pt/jtrc).
No caso presente, é esta segunda situação a que se patenteia, haja-se em vista que quer a Mm.ª Juíza do Juízo Local Criminal de Sintra (Juiz 1) quer a do Juízo Local Criminal de Lisboa (Juiz 1), por decisões devidamente transitadas, declinam a competência territorial dos respetivos Tribunais para efetuar o julgamento da Arguida AA pelo já referido crime que se lhe mostra imputado.
Ora como já se mostra reconhecido nos autos, o critério geral definidor da competência territorial é o que decorre do preceituado no art. 19.º, n.º1, do Cód. Proc. Penal, que estabelece que “é competente para conhecer de um crime o tribunal em cuja área se tiver verificado a consumação”.
Sendo que a este propósito, a acusação deduzida apenas refere, na parte que aqui releva, que:
6.º
- (...) no dia 06.02.2020, pelas 14h28m, a arguida, através do endereço de correio electrónico ..., remeteu uma mensagem para a Inspecção Geral da Administração interna (IGAI) com o seguinte teor: “Boa tarde. O meu nome é AA, venho por este meio apresentar queixa contra o agente (PSP), BB, (...)
7.º
- A mensagem de correio electrónico foi recebida na sobredita entidade, tendo dado origem ao processo administrativo que correu termos junto da IGAI, sob o número PA…/2020.
8.º
- (…) as imputações realizadas pela arguida no e-mail que enviou à IGAI são falsas, facto que era do seu conhecimento, tanto mais que os processos instaurados e em que BB foi visado foram rapidamente arquivados, não lhe tendo sido aplicada qualquer sanção.
Ou seja, não indica, em termos geográficos, o local de onde a mensagem foi enviada ou recebida, embora se refira a entidade destinatária que a rececionou.
II - 2.) Não se põe em causa que o crime imputado “se consuma quando a comunicação chega ao conhecimento da autoridade ou do público, não sendo necessária a efetiva instauração do procedimento contra o visado” – Assim, Paulo Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2.ª ed., pág.ª 943.
Mas a menção de que a remessa teve como destino a Inspeção Geral da Administração Interna (IGAI), que se sabe situar em Lisboa, mas que ali não se indica, cumpre o desiderato daquela especificação?
Tudo aponta para uma solução negativa.
Como se alude na decisão proferida no processo n.º 5/13.1JBLSB-A.L1-5 (disponível em www.dgsi.pt/jtrl), “na fase em que o processo se encontra, a aferição de qual o tribunal territorialmente competente para conhecer de um crime implica a determinação sobre o local em cuja área se tiver consumado esse crime e isso implica que da acusação ou da pronúncia conste a respeito da narração dos factos respectivos incluindo, se possível, o lugar e o tempo da sua prática, como impõe o art.º 283º, nº 3, al. b), CPP.
A competência territorial afere-se exclusivamente pelos termos da acusação ou do despacho de pronúncia. A acusação ou a pronúncia delimitam o objecto do processo e contém os elementos que constituem os pressupostos para a determinação da competência.
Quando tal não aconteça, quando não seja claro no texto da pronúncia, qual o local da prática do crime, o sistema legal fornece critério alternativo para determinar a competência territorial”.
O que conflui com o sentido daquele outro aresto citado no despacho da Senhora Magistrada do Juízo Local Criminal de Lisboa (a decisão de conflito proferida a 09/11/2020, pelo no proc. 77/20.2GTVIS-A.C1 do Tribunal da Relação de Coimbra, in www.dgsi.pt), “não constando da acusação determinado elemento factual, nunca o juiz pode utilizar, para a determinação da competência territorial do tribunal o conhecimento que lhe advém por outra via, porquanto os factos constantes daquela peça processual são, também para tal finalidade, o exclusivo suporte”, que convoca em seu abono, entre outros, a decisão inserta na Colectânea de Jurisprudência, n.º 279, Ano XLII, Tomo III/2017, pág.ª 243, em como, «formulada a acusação ou proferido despacho de pronúncia, que delimitam o objecto do processo, e recebidos os autos para julgamento está vedado ao juiz averiguar onde se consumou o crime, criando v.g. um procedimento incidental atípico. Esse dado de facto consta ou não consta da acusação ou [do] despacho de pronúncia. Apenas os factos descritos e imputados ao arguido na acusação ou pronúncia podem ser atendidos para definir a competência do tribunal, não podendo o tribunal lançar mão de quaisquer outros factos».
O que significa então, que haverá que fazer apelo às regras supletivas contantes do art. 21.º do Cód. Proc. Penal:
1 - Se o crime estiver relacionado com áreas diversas e houver dúvidas sobre aquela em que se localiza o elemento relevante para a determinação da competência territorial, é competente para dele conhecer o tribunal de qualquer das áreas, preferindo o daquela onde primeiro tiver havido notícia do crime.
2 - Se for desconhecida a localização do elemento relevante, é competente o tribunal da área onde primeiro tiver havido notícia do crime.
Sendo que “a jurisprudência vem entendendo, de modo pacífico, que a acção penal se inicia no momento em que o facto criminoso chega ao conhecimento da autoridade judiciária com competência para exercer a acção penal, ou seja, o Ministério Público, por conhecimento próprio, por intermédio dos órgãos de polícia criminal ou mediante denúncia.
O que quer dizer que o processo se inicia com a notícia do crime, nos termos do art. 241.º e ss”.
O que de acordo com o documentado a fls. 4 aponta para o Tribunal de Sintra.
II – 3.) Porém, à mesma conclusão se chegará por via do estatuído no art. 32.º da nossa Lei Adjetiva Penal.
Com efeito, a incompetência do Tribunal é por este conhecida e declarada oficiosamente e pode ser deduzida pelo Ministério Público, pelo arguido e pelo assistente até ao trânsito em julgado da decisão final (art. 32.º, n.º 1, do Código de processo Penal). Mas tratando-se de incompetência territorial, ela somente pode ser deduzida e declarada até ao início da audiência de julgamento, tratando-se de Tribunal de julgamento (art. 32.º, n.º 2, al. b), do Cód. de Proc. Penal).
Ora como justamente o observam qualquer dos Exm.ºs Senhores Procuradores-Gerais Adjuntos que aqui se pronunciaram, a Mm.ª Magistrada do Juízo Local Criminal de Sintra veio a declarar a referida incompetência territorial depois de ter declarado aberta a respetiva audiência (cfr. fls. 16/7), ainda que a título de questão prévia que colidiria com a realização da mesma.
Mas dessa forma, não se incumpriu aquele limite?
Segundo o acórdão n.º 1238/97, daquele Alto Tribunal de 11/12/1997, citado por aquele Senhor Magistrado junto do Supremo, publicado na CJ - Acórdãos do STJ, Ano V, Tomo III, a págs. 254-255, que se afirma ter servido de fundamento para decisão tomada em conflito negativo de competência apreciado, pelo mesmo Tribunal, sim.
«(…) declarada que foi aberta a audiência, como da acta consta, estava ultrapassada a possibilidade de ser declarada a pretensa incompetência territorial. (...) O que bem se compreende, aliás, pois aberta a audiência, mormente, com todas as pessoas convocadas presentes, não pode uma questão secundária como o é a discussão de um pressuposto processual relativo, no caso a competência territorial - que pode ser justificação para o transtorno de todas essas pessoas que constitui uma deslocação em vão ao pretório. A salvaguarda desses interesses sempre teria de ser prevalecente.
Por isso, a declaração de abertura de audiência é obstáculo intransponível para ser tida em conta uma declaração de incompetência relativa, como é a incompetência territorial».
Nesta conformidade

III – Decisão:
Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se dirimir o presente conflito atribuindo a competência para realizar o julgamento da Arguida AA, nos presentes autos, ao Juízo Local Criminal de Sintra (Juiz 1), Comarca de Lisboa Oeste.
Sem tributação.
Cumpra-se o art. 36.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal.
Elaborado em computador. Revisto nos termos do art. 94.º, n.º 2, do mesmo Diploma.

Lisboa. 01-03-2024
Luís Gominho