Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2768/2006-6
Relator: CARLOS VALVERDE
Descritores: PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/04/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: A modificação das respostas aos quesitos só se justifica quando haja um erro evidente, na apreciação da matéria de facto (depoimentos que contradizem patentemente a resposta da 1ª instância aos quesitos) e isto porque, estando o juiz perante a pessoa que depõe, melhor do que ninguém se apercebe da forma como ela realiza o seu depoimento, da convicção com que o presta, da espontaneidade que revela, das imprecisões que deixa escapar, de tudo, enfim, o que serve para fundamentar a impressão que o depoimento deixa no espírito do julgador e contribui em menor ou maior grau para formar a sua convicção.

Existe cumprimento defeituoso em todos os casos em que o defeito ou irregularidade da prestação - a má prestação - causa danos ao credor.

Do cumprimento defeituoso deriva, como primeira consequência, a obrigação do ressarcimento dos prejuízos, por tal, causados ao credor - artº 798º do C.C. -, sem prejuízo deste poder exigir a redução da sua contraprestação ou ainda a reparação ou substituição da coisa, na compra e venda - arts. 911º e 914º do C.C. -, ou a eliminação dos defeitos, quando esta seja material e economicamente viável, na empreitada - artº 1221º do C.C..

Da conjugação dos arts. 562º e 566º, 1 do CC, temos que, em primeira linha, se deve proceder à restauração natural (à remoção do dano real ou concreto, de que é exemplo paradigmático a reparação da coisa danificada) e só depois e subsidiáriamente (quando a reparação específica se mostre materialmente impraticável, não cubra todos os danos, ou seja demasiado gravosa para o obrigado a indemnizar, por flagrante desproporção entre o interesse do lesado e o custo da restauração natural para o responsável) se podendo proceder à indemnização pecuniária.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

A. propôs a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, contra B., pedindo a condenação deste a pagar-lhe uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, no valor global de € 7458 - sendo os não patrimoniais no montante de € 2500 - , acrescido da quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, por coimas e penalidades a fixar pela administração fiscal, acrescida ainda de juros de mora, desde a citação até efectivo pagamento.

Em abono da sua pretensão, alega que é proprietário da Farmácia Calvário, tendo contratado os serviços do Réu que é técnico oficial de contas, para ser responsável pela contabilidade relativa à actividade comercial da dita farmácia, durante o exercício fiscal de 2001, o que veio a acontecer.
Tendo-lhe suscitado dúvidas os valores dos resultados patentes na declaração anual respectiva entregues pelo Réu e porque este não aceitasse efectuar quaisquer correcções, solicitou o Autor o processamento em paralelo de toda a contabilidade do exercício de 2001 a uma firma de contabilidade.
Na sequência do que foram detectadas diversas irregularidades, que se traduzem por falhas graves e erros crassos de classificação contabilística, os quais conduziram a um apuramento de resultados bastante inflacionado e ao preenchimento incorrecto de todas as declarações periódicas de IVA e da declaração anual de rendimentos.
Os erros do Réu originaram diversos prejuízos ao Autor, que teve de despender € 4988 para o novo apuramento contabilístico; que terá de pagar multas e penalizações em valor ainda não integralmente apurado, em consequência da entrega de declarações de substituição, para além do desembolso de quantias que já pagou à administração fiscal, no montante de € 15.034,91, de que não era realmente devedor e das quais ficou privado para fazer face à sua gestão corrente e que dificultou a sua gestão de tesouraria.
Sendo ainda que não deixará o autor de ficar com mácula junto da administração fiscal, para além das horas de ansiedade, frustração e desconforto resultantes do comportamento do réu.
Citado, contestou o Réu, por impugnação, alegando, em síntese, que o A. concordou com as respectivas declarações as quais assinou, sem ter feito qualquer reparo, sem ter levantado dúvidas ou ter pedido qualquer correcção, pelo que, a existirem erros, não lhe foi dada oportunidade de rever a contabilidade em causa, além de que os mesmos foram causados pelo Autor. Defende ainda que se aquele entregou quantias em excesso à administração fiscal, apenas será reembolsado, não sendo tal circunstância causa de mácula junto da mesma administração.

Dando também por não esclarecidos os invocados danos não patrimoniais, nem demonstrada a sua gravidade.

Conclui pela improcedência da acção.

O processo seguiu os seus termos até que foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou o réu a pagar ao autor a quantia de € 4998, acrescida de juros de mora vencidos, desde a citação e vincendos até integral pagamento.

O réu recorreu para este tribunal que, por douto acórdão, decidiu em, alterando a decisão quanto à matéria de facto, anular o julgamento, ordenado a repetição do mesmo para ampliação da matéria de facto.

Aditados à base instrutória os factos atinentes, foi efectuado novo julgamento, posto o que foi proferida nova sentença que, voltando a julgar a acção parcialmente procedente, condenou o réu a pagar ao autor a quantia de € 4998, acrescida de juros de mora vencidos, desde a citação e vincendos até integral pagamento.


Igualmente inconformado com esta decisão, dela interpôs o R. recurso, em cujas conclusões, devidamente resumidas - artº 690º, 1 do C.P.C. -, a questiona de facto e de direito.

Não foram produzidas contra-alegações.

Cumpre decidir, tendo em conta que foram os seguintes os factos dados como provados na instância recorrida:

1. O autor é comerciante sendo o único proprietário da Farmácia X, em Lisboa;
2. O réu é técnico oficial de contas, inscrito na respectiva Câmara com o número 5810;
3. O A. contratou os serviços do réu como TOC, como responsável pela contabilidade relativa à actividade comercial da Farmácia X, durante o exercício fiscal de 2001;
4. Durante o ano de 2001, o réu foi responsável pela execução e processamento de toda a actividade contabilística da Farmácia X, compreendendo as suas funções designadamente: o lançamento e classificação de todos os documentos, processamento contabilístico e preenchimento de declarações periódicas, e todos os demais inerentes à função de TOC;
5. Era ainda da responsabilidade do réu o preenchimento e entrega à Administração Fiscal das declarações de IVA, IRS e declaração anual de rendimentos, tendo o réu procedido ao encerramento da contabilidade do exercício fiscal de 2001 no 1º semestre de 2002, e tendo sido entregue a declaração anual de rendimentos a 31 de Maio de 2002;
6. A declaração realizada pelo réu e aludida supra apresenta como valor de vendas contabilizadas 1.242.475,80€, a que corresponde o valor de colecta liquida de 43.747,62€ ( cfr. doc. de fls. 12 a 23 );
7. Na declaração apresentada pelo réu o valor de vendas declarado para efeitos de IRC foi de 1.242.475,80€ ( cfr. doc. referido );
8. Na declaração realizada pelo réu deveria constar a título de vendas contabilizadas o valor de 1.151.988,35€, a que corresponde o valor de colecta líquida de 34.981,46€ (1ºda BI );
9. Na declaração apresentada pelo réu consideraram-se facturas em duplicado, lançadas pelas próprias facturas e pelos valores inscritos no recapitulativo mensal ( 2º da BI );
10. Foi ainda contabilizado como proveito o valor de 1.000.000$00 constante da nota de lançamento nº 00701200012 de 12/2000 da Associação Nacional de Farmácias, contabilizada com o nº R-2 ( Janeiro/01 ) valor já considerado no exercício do ano de 2000 (3º da BI );
11. Foi considerado em duplicado o desconto de pronto pagamento da “Soquifa”, no valor de 442.075$00 ( 4º da BI );
12. Foi ainda considerada indevidamente, em Dezembro de 2001, a venda a dinheiro nº 9700001/2002 de Janeiro de 2002 da “Soquita Medicamentos, S.A.” no valor de 82.746,25€ ( 5º da BI );
13. O valor das vendas registadas e contabilizadas, para efeitos de declaração de IVA, foi de 1.211.915,28€ ( 6º da BI );
14. Como consequência dos erros referidos foi liquidado IVA em excesso no valor de 6.268,75€, bem como IRS em excesso de cerca de 8.766,16€ que o autor teve de suportar ( 7º da BI );
15. Na sequência dos erros efectuados pelo réu na declaração, o A. mandou proceder a novo apuramento contabilístico ( 8º da BI );
16. Para o que foi necessário reclassificar todos os documentos e processar novamente o lançamento de toda a contabilidade de modo a poder ser enviada para a Administração Fiscal todas as declarações de substituição de IVA, bem como de IRA e a declaração anual de rendimentos ( 9 da BI );
17. Com a realização do novo apuramento contabilístico referido o A. teve de despender a quantia de 4.998€ ( 10º da BI );
18. A entrega de declarações de substituição originou o pagamento de multas/coimas pela Administração Fiscal (11º da BI );
19. Na sequência do comportamento do réu supra descrito foi causado ao A. ansiedade, frustração e desconforto (13º da BI );
20. Era o A. que fornecia ao réu os documentos para tratamento contabilístico (15º da BI);
21. E a nota de lançamento da ANF referida supra foi entregue pelo A. ao réu em Janeiro de 2001( 16º da BI );
22. O réu não efectuou a contabilidade em causa relativamente ao ano de 2000 (17º da BI).
23. O A. por não concordar com os valores do exercício fiscal de 2001 apresentados pelo Réu fez reparos ao seu desempenho (19.º da BI)
24. O réu não aceitou quaisquer críticas. (21.º da BI)
25. O autor não solicitou quaisquer correcções ou revisões das contas ao réu por ter perdido a confiança no trabalho deste. (23.º da BI).

Começa o recurso por se reportar à decisão sobre a matéria de facto.
Relativamente a esta, é genericamente facultado às partes peticionarem a sua modificação, a sua anulação ou a sua fundamentação.
Sempre que se impugne a decisão relativa à matéria de facto incumbe ao recorrente observar dois ónus: o da discriminação fáctica e probatória - artº 690º-A do C.P.C. - e o ónus conclusivo - arts. 684º, 3 e 690º, 4 do mesmo diploma.
Quanto ao primeiro, cabe-lhe obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, "os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados" e, bem assim, "os concretos meios probatórios constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida".
Quanto ao segundo - sendo certo que o tribunal ad quem só pode apreciar as questões que se mostrem vertidas nas conclusões da minuta alegatória, estando impedido de o fazer relativamente a quaisquer outras que nelas não sejam afloradas, ainda que versadas nas alegações própiamente ditas -, logo se alcança que alguma lacuna conclusiva será suficiente para inviabilizar, sem mais, a sindicância deste Tribunal sobre a respectiva decisão.
É que a discordância do recorrente sobre a decisão fáctica - susceptível de implicar a sua alteração - não constitui matéria de conhecimento oficioso, ao invés do que sucede com as deficiências, obscuridades ou contradições de que eventualmente padeçam as respostas produzidas.
In casu, o recorrente cumpriu os ónus referidos, apresentando as conclusões da sua alegação, fazendo referência concreta aos pontos de facto da base instrutória que considera incorrectamente julgados, para o que se acobertou no depoimento da testemunha Ítalo Santos (transcrevendo, mediante escrito dactilografado, as passagens da gravação deste que, segundo a sua óptica, impunham decisão diversa) e ainda em alguma da documentação junta aos autos.
Ultrapassado este crivo liminar, enfrentemos a questão suscitada, coligindo a disciplina legal pertinente e confrontando-a, de seguida, com o concreto dos autos.
Por força dos princípios da imediação e da oralidade, consagrados no nosso sistema, a regra-base, em matéria probatória, é a da inalterabilidade pela Relação da resolução da matéria de facto operada pela 1ª instância.
Esta regra sofre, no entanto, os desvios constantes do nº 1, do artº 712º do C.P.C., estando-se, no caso em apreço, perante a excepção da alínea a) deste normativo adjectivo, por, como se disse, ter ocorrido a gravação dos depoimentos que serviram de base à formação do juízo expresso pelo tribunal da 1ª instância.
Assim, apreciando a mesma matéria, pode este tribunal alterar a decisão, devendo fazê-lo dentro do princípio da livre apreciação da prova, que ambas as instâncias devem observar.
Este princípio, consagrado no artº 655º do C.P.C., significa que a prova é apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios preestabelecidos (cfr. Alberto dos Reis, C.P.C. Anotado, IV, pág. 544).
Ainda de harmonia com este princípio, que se contrapõe ao princípio da prova legal, as provas são valoradas livremente, sem qualquer grau de hierarquização, nem preocupação do julgado quanto à natureza de qualquer delas (cfr. A. Varela, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 455); o tribunal responde em sintonia com a convicção que tenha firmado acerca de cada facto quesitado, salvo se a lei exigir, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada. Não é essa, porém, a situação em apreço.
O recorrente questiona as respostas dadas aos quesitos 19º e 21º, que, em seu entender, devem ser dados como não provados.
Nestes quesitos verteu-se parte da matéria factual relacionada com o reparos feitos pelo A. aos serviços prestados pelo R. e à não aceitação por este de proceder à reparação dos danos, mandada aditar à base instrutória, por relevante para a decisão.
Ao quesito 19º, o tribunal respondeu “provado que o autor, por não concordar com os valores do exercício fiscal de 2001 apresentados pelo réu fez reparos ao seu desempenho” e ao quesito 21º “provado que o réu não aceitou quaisquer críticas”.
O tribunal motivou as respostas aos quesitos em referência nuclearmente no depoimento da testemunha Ítalo Santos, adiantando que, não obstante algumas contradições, a testemunha demonstrou conhecimentos das circunstâncias que rodearam a relação entre o A. e o R., aproveitando do seu depoimento o que lhe mereceu credibilidade, em conjugação com os documentos juntos a fls. 72, 88, 91 e 92.
Salvo o devido respeito, da parte do depoimento da testemunha Ítalo em que se louva o recorrente para a pretendida alteração da decisão factual e que transcreve nas suas alegações, não pode retirar-se que não se tenha provado que o A., por não concordar com os valores do exercício fiscal de 2001, fez reparos ao desempenho do R. e que igualmente não se tenha provado que este não aceitou quaisquer críticas.
O que resulta, na verdade, mais claramente do depoimento transcrito dessa testemunha é que ela, testemunha, só em Setembro de 2002, contactou o R., dando-lhe conta das incorrecções da contabilidade, todavia, estando apenas em causa o comportamento do A. perante o R. e deste perante o A., desse depoimento já não resulta que o A. não tivesse anteriormente criticado os serviços prestados pelo R. e que este tivesse aceitado tais críticas, ou, minime, que a prova de tal se tenha como afastada, antes o mesmo depoimento deixa transparecer a realidade da factualidade que se apurou, quando a testemunha se refere por mais de uma vez à falta de confiança do A. na prestação do R..
E o mesmo se diga em relação à documentação referenciada pelo recorrente, pois, ainda que datada de Setembro de 2002, do seu teor não se colhe, sem mais, que não se possa ter como provado que o A. tenha, antes de ter contactado novo técnico para proceder à revisão da contabilidade do seu estabelecimento, feito reparos ao trabalho do R. e que este os não tenha aceitado; antes e pelo contrário tal parece revelar-se do teor da carta do A. para o R., junta a fls. 88, quando nela se fazem referências às circunstâncias anormais que rodearam a execução da prestação do R., pelo que o mais que se pode dizer é que tal documentação não representa mais do que simples elemento coadjuvante da prova, sujeita, enquanto tal, a ser compaginada pelo tribunal com os demais elementos recolhidos, sem qualquer preferência ou hierarquia e sempre sujeita ao princípio da livre apreciação de que supra se falou.
Do que vem de dizer-se já ressalta a incensurabilidade da decisão factual, mas tal ainda se mostra mais evidente se tivermos em conta que a utilização da gravação dos depoimentos em audiência, como vem entendendo a maioria da Jurisprudência, não modela de forma diversa o princípio da prova livre ínsito no direito adjectivo, nem dispensa as operações de carácter racional ou psicológico que gerem a convicção do julgador, nem substituem esta convicção por uma fita gravada (neste sentido o Ac. desta Relação de 27-3-2001, CJ, XXVI, II, 86).
Embora seja permitida a reapreciação dos elementos de prova constantes do processo, podendo a 2ª instância adquirir uma convicção diferente daquela a que chegou a 1ª instância e expressá-la em concreto, alterando a decisão do tribunal inferior nos pontos questionados, não se impõe, em nosso entender, a realização de novo e integral julgamento nem se admite recurso genérico contra a errada decisão da matéria de facto.
Há que ter em conta que o registo da prova através da gravação dos depoimentos não introduziu na ordem jurídica uma nova instância que levaria à repetição do julgamento efectuado na primeira instância, sob pena de sermos levados a pensar que o legislador teria criado uma quarta instância resultante do registo de prova.
Como se refere no Ac. desta Relação de 13-11-2001, “apesar da maior amplitude conferida pela reforma do processo civil a um segundo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, a verdade é que não se trata de um segundo julgamento, devendo o tribunal reapreciar apenas os aspectos sob controvérsia. É necessário que se demonstre, através dos concretos meios de prova que foram produzidos, que existiu um erro na apreciação do seu valor probatório, conclusão difícil quando os meios de prova porventura não se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo apelante ou quando também eles sejam contrariados por outros meios de prova de igual ou superior valor ou credibilidade” (in CJ, XXVI, Tomo V, pág. 85)
Na verdade, mantendo-se em pleno vigor os princípios da oralidade, da imediação, da concentração e da livre apreciação das provas e orientando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de absoluta certeza, o uso pela Relação dos poderes de alterar a decisão da 1ª instância acerca da matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão nos concretos pontos questionados.
A modificação das respostas aos quesito só se justifica quando haja um erro evidente, na apreciação da matéria de facto (depoimentos que contradizem patentemente a resposta da 1ª instância aos quesitos) e isto porque, estando o juiz perante a pessoa que depõe, melhor do que ninguém se apercebe da forma como ela realiza o seu depoimento, da convicção com que o presta, da espontaneidade que revela, das imprecisões que deixa escapar, de tudo, enfim, o que serve para fundamentar a impressão que o depoimento deixa no espírito do julgador e contribui em menor ou maior grau para formar a sua convicção.
Ora, perante este quadro e se o juíz não está subordinado na valoração da prova a critérios legais apriorísticos, não procedendo, no dizer de Rodrigues Bastos, “como um autómato” (cfr. Notas, vol. III, pág. 221), antes segundo a sua própria experiência vivencial, não vemos, segundo a nossa própria convicção (pese embora não dispormos de todos os elementos susceptíveis de a condicionar, como sejam os aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes, que, não podendo ser importados para a gravação, seja áudio, seja mesmo vídeo, apenas podem ser percepcionados, apreendidos e valorados por quem os presencia e sabe-se - como já supra se salientou - como estes podem ser importantes na formação da convicção de quem tem o dever de julgar; como refere Chiovenda, a propósito do diálogo de Sócrates e Platão - in Procedimento Oral, tradução de Osvaldo Magou, Revista Forense, Ano XXXV, pág. 42 -, na palavra viva falam também o vulto, os olhos, a cor, o movimento, o tom de voz, o modo de dizer e tantas outras pequenas circunstâncias que modificam o sentido das palavras), razões para alterar a decisão factual do tribunal recorrido.
Posto isto, não sendo de censurar a decisão factual nos termos sobreditos, temos que também não é de censurar a vertente jurídica da sentença sindicanda, até porque tal, na atenção da alegação do recorrente, em boa parte, passava pela peticionada alteração da decisão factual.
Face à resposta ao quesito 19º, não pode ter-se como verificada a aprovação tácita pelo A. da conduta do R. e, logo, a aceitação por aquele da inexactidão do cumprimento da prestação deste, caindo por base o recurso ao disposto no artº 1163º do C.C., sendo ainda de dizer que a alteração da resposta a este quesito para não provado irrelevaria para o efeito pretendido. É que a aprovação tácita pelo A. da execução da prestação do R., enquanto factualidade impeditiva do direito do primeiro, só ao último competia provar (artº 342º, 2 do C.C.).
Não vem questionado e tal resulta da factualidade apurada que o A. contratou os serviços do R., enquanto técnico oficial de contas, como responsável pela contabilidade relativa à actividade comercial da farmácia de que é proprietário, durante o exercício fiscal de 2001, já que o que se discute é o incumprimento pelo R. de tal contrato e a medida da sua responsabilização.
Em matéria de incumprimento contratual a regra basilar é a de que as partes devem cumprir pontualmente as obrigações decorrentes dos contratos que celebram (art. 406º, nº1 do C.C.).
Por outro lado, diz-se que o devedor cumpre pontualmente a obrigação quando realiza integralmente e em tempo a prestação a que está vinculado (artº 762º, 1 do C.C.).
Se, aquando do vencimento da obrigação, o devedor não realizar, no todo ou em parte, a sua prestação ou se a realiza mal, ocorre uma situação de inexecução lato sensu.
No que concerne às consequências jurídicas do incumprimento obrigacional, a lei distingue entre a falta de cumprimento, a mora e o cumprimento defeituoso.
Existe cumprimento defeituoso em todos os casos em que o defeito ou irregularidade da prestação - a má prestação - causa danos ao credor.
Os efeitos específicos do cumprimento defeituoso não se encontram no capítulo das obrigações, encontrando-se dispersos pelas normas que regulamentam alguns contratos em especial, como acontece, v.g., nos contratos de compra e venda e de empreitada.
Do cumprimento defeituoso deriva, como primeira consequência, a obrigação do ressarcimento dos prejuízos, por tal, causados ao credor - artº 798º do C.C. -, sem prejuízo deste poder exigir a redução da sua contraprestação ou ainda a reparação ou substituição da coisa, na compra e venda - arts. 911º e 914º do C.C. -, ou a eliminação dos defeitos, quando esta seja material e economicamente viável, na empreitada - artº 1221º do C.C..
O R. era o responsável pela execução e processamento de toda a actividade contabilística da Farmácia X, compreendendo as suas funções, designadamente, o lançamento e classificação de todos os documentos, processamento contabilístico e preenchimento de declarações periódicas e todos os demais inerentes à função de TOC e ainda o preenchimento e entrega à Administração Fiscal das declarações de IVA, IRS e declaração anual de rendimentos, tendo o R. procedido ao encerramento da contabilidade do exercício fiscal de 2001 no 1º semestre de 2002 e tendo sido entregue a declaração anual de rendimentos a 31 de Maio de 2002.

Provou-se que a declaração anual de rendimentos realizada pelo R. e entregue a 31 de Maio de 2002, apresenta como valor de vendas contabilizadas 1.242.475,80€, a que corresponde o valor de colecta liquida de 43.747,62 €. e que na declaração apresentada pelo R. o valor de vendas declarado para efeitos de IRC foi de 1.242.475,80€; e mais se provou que na declaração realizada pelo réu deveria constar a título de vendas contabilizadas o valor de 1.151.988,35€, ou seja uma diferença de 904.487,5€, a que corresponde o valor de colecta liquida de 34.981,46€; na declaração apresentada pelo réu consideraram-se facturas em duplicado, lançadas pelas próprias facturas e pelos valores inscritos no recapitulativo mensal; foi ainda contabilizado como proveito o valor de 1.000.000$00 constante da nota de lançamento nº 00701200012 de 12/2000 da Associação Nacional de Farmácias, contabilizada com o nº R-2 (Janeiro/01 ) valor já considerado no exercício do ano de 2000; por outro lado, foi considerado em duplicado o desconto de pronto pagamento da “Soquifa”, no valor de 442.075$00, e foi ainda considerada indevidamente em Dezembro de 2001 a venda a dinheiro nº 9700001/2002 de Janeiro de 2002 da “Soquita Medicamentos, S.A.” no valor de 82.746,25€; o valor das vendas registadas e contabilizadas para efeitos de declaração de IVA foi de 1.211.915,28€; como consequência dos erros referidos foi liquidado IVA em excesso no valor de 6.268,75€, bem como IRS em excesso de cerca de 8.766,16€, que o autor teve de suportar.

Esta actuação errática do R. traduziu-se no cumprimento defeituoso das suas obrigações contratuais, culposo, por o R. não ter ilidido a presunção de culpa que sobre si recaía (artº 799º, 1 do C.C.) e a consequenciar, em primeira linha, a obrigação de indemnizar o A. pelos prejuízos causados (artº 798º do C.C.).

Dispõe o artº 562º do C.C. que quem estiver obrigado a reparar um dano, deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação e acrescenta o artº 566º, nº 1 que a indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.

Da conjugação destes preceitos, temos que, em primeira linha, se deve proceder à restauração natural (à remoção do dano real ou concreto, de que é exemplo paradigmático a reparação da coisa danificada) e só depois e subsidiáriamente (quando a reparação específica se mostre materialmente impraticável, não cubra todos os danos, ou seja demasiado gravosa para o obrigado a indemnizar, por flagrante desproporção entre o interesse do lesado e o custo da restauração natural para o responsável) se podendo proceder à indemnização pecuniária (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações, vol. I, 9ª ed., págs. 933 e sgs.).
No concreto dos autos, temos que o A. fez reparos ao desempenho do R., mas este não aceitou quaisquer críticas e o A. não solicitou a correcção ou revisão das contas ao R. por ter perdido a confiança no trabalho deste.

Não aceitando o R. as críticas do A., a este, não possuindo conhecimentos técnicos que lhe permitissem equacionar devidamente os erros da prestação, só restava a contratação de alguém tecnicamente habilitado para a determinação e precisão fundamentada desses erros, o que implicou um novo apuramento contabilístico, para o que foi necessário reclassificar todos os documentos e processar novamente o lançamento de toda a contabilidade de modo a poderem ser enviadas para a Administração Fiscal todas as declarações de substituição de IVA e a declaração anual de rendimentos, ou seja, no fundo, a correcção e revisão das contas feitas pelo R., pelo que, em última análise, foi o comportamento deste, ao não aceitar as críticas do A., que tornou impossível a restauração natural, não sendo, por isso, sequer de equacionar a excessiva onerosidade desta, pois a lei não exige a verificação cumulativa dos óbices colocados à indemnização pecuniária do dano, bastando-se com a ocorrência de qualquer um deles.

Por tudo o que exposto ficou, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.


Custas pelo apelante.

Lisboa, 04- 05-2006

Carlos Valverde
Granja da Fonseca
Pereira Rodrigues