Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
13/15.8YHLSB-A.L1-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: MARCAS
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
CONEXÃO OBJECTIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/21/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: -Tendo sido alegado na petição inicial que a Autora produz e exporta produtos para o mercado moçambicano, tendo a sua marca protegida pelo registo em Portugal e em Moçambique, e sendo igualmente alegado que a Ré, aproveitando-se do prestígio da marca da Autora está a vender no mercado moçambicano, a mais baixo preço, produtos com a mesma designação dos da Autora, do que tem resultado diminuição das encomendas recebidas pela Autora com vista à exportação para aquele País, verifica-se estar preenchido um dos requisitos para atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses.
-Com efeito, nos termos do art. 62º b) do CPC, basta que um dos elementos constitutivos da causa de pedir se localize em Portugal, para que a aludida competência esteja assegurada.
-Uma acção de condenação baseada em responsabilidade civil, apresenta uma causa de pedir complexa, integrada pela conduta ilícita e culposa da Ré, a qual é causa de prejuízo para a Autora.
-Ocorrendo o prejuízo em Portugal (no caso dos autos diminuição das encomendas e das vendas por exportação, em Portugal, onde está sediada a Autora) verifica-se uma conexão objectiva que confere ao tribunal português competência internacional.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.


I-Relatório:


Veio A... deduzir acção contra a Ré J... SA alegando que a marca que a Ré usa, denominada “tempero português” é abrangido pelo direito de propriedade industrial, conferido pelo registo a favor da Autora. A autora alega factos relacionados com a violação de marca, ocorridos em Moçambique, designadamente venda de produto com marca similar nesse país e danos sofridos com essa actuação.

Por outro lado, alegou ainda que a R. também, em Portugal, expôs na feira SISAB produto equivalente ao seu.

Conclui pedindo a condenação da R. :
a)-a reconhecer que a marca "tempero português" é da titularidade da A.;
b)-a condenar a R. a recolher todos os produtos que se encontrem à venda ao público;
c)-a condenar a R. a abster-se de apor nos produtos do seu comércio a marca da A;
d)-a pagar sanção pecuniária compulsória por incumprimento da sentença,
e)-a pagar a quantia de € 59.280,00.

A Ré veio invocar a excepção da incompetência internacional deste tribunal por a Autora ter apenas alegado, corno causa de pedir, o uso pela R. da marca por aquela registada em território moçambicano.

A Autora respondeu à excepção invocada.

Foi proferido despacho saneador, no qual, considerando-se que, à excepção de uma referência efectuada quanto à exposição de produtos em Portugal, toda a restante petição inicial se estriba em factos, derivados da violação da marca, ocorridos em Moçambique, foi decidido que os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para apreciar os pedidos correspondentes às alíneas B) e C) da petição inicial, no que respeita ao uso da marca da A. em território moçambicano.

Foi ainda decidido que o pedido indemnizatório poderá ser apreciado por tribunal português na medida em que decorra da prova a produzir factos que se prendam com danos advindos da actuação da R. no âmbito da exposição dos produtos na feira SISAB em Portugal.

Inconformada recorre a Autora, concluindo que:

1.Em síntese, o presente Recurso de Apelação vem interposto do Despacho Saneador, que julgou parcialmente procedente, a excepção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal, por falta de competência intemacional do Tribunal, determinando que o Tribunal "a quo", apenas tenha conhecido de alguns dos factos essenciais alegados pela A., e ora Recorrente na sua Petição Inicial.
2.Prima facie, salvo melhor opinião em sentido contrário, e em nosso modesto entendimento, o Despacho ora Recorrido, traduz um erro na interpretação da norma constante da al. b) do Art. 62° do Código de Processo Civil, violando a sua previsão, por restritiva, do âmbito de aplicação.
3.Em segundo lugar, e caso assim se não entenda, subsidiariamente, constata-se que o Despacho Saneador ora impugnado, enferma do vício de violação da Lei, por erro na operação de subsunção da al. b) do Art. 62° do Código de Processo Civil, pelo facto de o Tribunal "a quo", não ter valorado os elementos ponderosos de conexão, subjectiva, e por isso pessoais, e de carácter objectivo, que fundamentam a Acção.
4.Cumpre explicar, conclusivamente, o primeiro fundamento do presente Recurso.
5.No caso sub judice, não existe, nem tão pouco foi celebrado qualquer pacto privativo ou atributivo de jurisdição entre a Recorrente e a Recorrida, e nem tão pouco o litígio envolve, por completo, quaisquer Estados-Membros da União Europeia, que determine a aplicação dos Regulamentos da União Europeia, ou de qualquer instrumento de Direito Internacional Público.
6.Pelo que, é forçoso aferir da competência internacional do Tribunal, em razão da relação material controvertida, tal como é configurada no A., na sua Petição Inicial, entrecruzando-a, com os critérios, de verificação autónoma, constantes do Art. 62° do Código de Processo Civil.
7.Com efeito, atendendo à causa de pedir, apenas alegados sob os Arts. 16°, 21°, 33°, 34°, 38°, e 40°, todos da Petição Inicial.
8.Pelo que, resulta evidente que a causa de pedir é complexa, envolvendo facto ocorridos em território da República de Moçambique.
9.E outros, em território português.
10.Com efeito, em nosso modesto entendimento, e salvo melhor opinião em sentido contrário, cremos que a norma constante da al. b) do Art. 62° do Código de Processo Civil, deverá ser interpretada, in casu, no sentido de permitir o conhecimento do Tribunal, não só dos factos alegados pela A. e ora Recorrente, ocorridos em Portugal, mas, também, dos factos ocorridos em Moçambique.
11.Conquanto, a interpretação do sobredito preceito deverá ser abrangente, e não restritiva, como o Tribunal "a quo", efectuou.
12.Ao invés de ter sido interpretado de forma restritiva, como sucedeu, violando a sua previsão.
13.Tais conclusões encontram-se devidamente respaldadas na doutrina e na jurisprudência, conforme alegámos na motivação recursória.
14.Todavia, e caso assim se não entenda, o que apenas por mera cautela de patrocínio se equaciona, e caso o primeiro fundamento do presente Recurso de Apelação seja julgado improcedente, sufragamos, salvo melhor opinião e em nosso modesto entendimento, que o Tribunal "a quo", com a prolação do Despacho Saneador ora recorrido, a norma constante da al. c) do Art. 62° do Código de Processo Civil, constituindo o segundo fundamento do presente Recurso.
15.E isto porque no caso sub judice, destacam-se enquanto elementos de conexão relevantes entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa, o facto de, quer a Recorrente, quer a Recorrida, serem duas sociedades comerciais, constituídas à luz do Direito Português, tendo ambas a sua sede, e a administração principal a funcionar em Portugal.
16.Como também, os factos geradores do uso abusivo da marca da Recorrente, terem ocorrido tanto em Portugal, como em Moçambique, e aquela se encontrar registada a favor da Recorrente, tanto em Portugal, como Moçambique, e sobretudo, a operação de produção e embalamento dos produtos da R. e ora Recorrida, ter ocorrido em Portugal conforme alegou na sua Contestação.
17.Pelo que, em nosso modesto entendimento, o Tribunal "a quo" não subsumiu e integrou, na norma constante da al. c) do Art. 62° do Código de Processo Civil, os sobreditos elementos ponderosos de conexão pessoal, e objectivos na previsão da norma, e na concretização dos conceitos indeterminados que se encontram nela.
18.Mais a mais, quando é a própria Lei de Processo, que determina os critérios de concretização dos conceitos indeterminados, fixando-lhes, portante, um sentido normativo, enquanto parâmetro de valoração.
19.Porquanto, como vimos com recurso à doutrina e à jurisprudência, resulta evidente que Despacho Saneador ora impugnado, enferma do vício de violação da Lei, por erro na operação de subsunção da aI. b) do Art. 62° do Código de Processo Civil.
20.Por conseguinte, e em síntese, deverão Vs. Ex.as. Venerandos Juízes Desembargadores, julgar procedente, por provado, o presente Recurso de Apelação, e, em consequência, declararem, ordenando a revogação do Despacho Saneador ora impugnado, no segmento, que julgou parcialmente procedente, a excepção dilatória de incompetência internacional do Tribunal.
21.O que determinará, em momento ulterior, a realização de nova Audiência Prévia, a fim de proceder à discussão dos temas da prova, com a consequente prolação de novo Despacho Saneador.
A Ré deduziu contra-alegações sustentando a bondade do despacho recorrido.

Cumpre apreciar.

A questão que se coloca é a de saber se ocorre incompetência do tribunal português em razão da nacionalidade, no tocante à distribuição e comercialização do produto da Ré em Moçambique.

Haverá assim que ter em atenção que:

a)Os pedidos da Autora, para cuja apreciação o tribunal se julgou incompetente em razão da nacionalidade, são os que visam a condenação da Ré a recolher todos os produtos que se encontrem à venda ao público e a abster-se de apôr nos produtos do seu comércio a marca da Autora.
b)A maior parte da actividade comercial da Ré tem lugar em Moçambique.
c)Autora e Ré são empresas portuguesas, com sede em Portugal.
De notar que, nos termos do despacho recorrido, a declaração de incompetência apenas se repercute na comercialização do produto da Ré em Moçambique. A comercialização do produto feita SISAB em Portugal e a exportação do mesmo para Moçambique são susceptíveis de apreciação pelo tribunal recorrido.

O art. 62º do CPC delimita os factores de atribuição da competência internacional dos tribunais portugueses.

Em primeiro lugar, nos casos em que a acção possa ser proposta em tribunal português de acordo com as regras de competência territorial.

Em segundo lugar, quando o facto que serve de causa de pedir ou os factos que a integram, tenham sido praticados em território português.

Finalmente, quando o direito não possa tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português, ou se verifique dificuldade considerável para o Autor na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um ponderoso elemento de conexão, pessoal ou real.

Parece evidente que a comercialização do produto em Moçambique exclui o factor da competência internacional em função da competência territorial - alínea a) do mencionado art. 62º.

Entende contudo a recorrente ter havido violação do disposto nas alíneas b) e c) do art. 62º.

O art. 62º b) estabelece o chamado critério da causalidade. Implica desde logo que o facto que serve de causa de pedir, ou algum dos factos que integram uma causa de pedir complexa, tenham sido praticados em território português.

Alega o recorrente que os factos constitutivos da causa de pedir ocorreram tanto em Moçambique como em Portugal e que deveremos ter atenção aquilo que alegou nos artigos 16º, 21º, 33º, 34º, 38º e 40º da petição inicial.

E isto porque, afirma, a comercialização é feita em Moçambique. Contudo, a marca da Autora e ora recorrente encontra-se registada quer em Portugal quer em Moçambique. A produção e a embalamento dos produtos da Ré que usurpam tal marca e são comercializados em Moçambique, ocorreram em Portugal.

Sobre isto cumpre dizer que o art. 16º da p.i. alude ao registo da marca da Autora em Moçambique. O art. 21º menciona o momento em que um dos administradores da Autora detectou a venda em Moçambique de produtos com idêntica marca (“tempero português”) por parte da Ré.

Os artigos 33º, 34º, 38º e 40º referem-se ao preço de venda dos produtos da Ré que usam a marca da Autora, em Moçambique e ao facto de tais preços serem inferiores aos da Autora o que ocasionou diminuição nas vendas e proveitos da mesma Autora, com diminuição nas encomendas.

Contudo, será bom não esquecer que a Autora, ao precisar os danos sofridos com a conduta da Ré, enumera a diminuição de encomendas referente à exportação para o mercado moçambicano. Ou seja o dano da Autora ocorre em Portugal, dado que é aqui que fabrica o produto e o exporta consoante as encomendas  de um empresa distribuidora de produtos alimentares naquele mercado.

Ou seja, a Autora, sediada em Portugal, vende menos produtos aqui fabricados à empresa ou empresas que operam a distribuição em Moçambique.

Atenta a configuração da petição inicial, os pedidos da Autora assentam numa causa de pedir complexa: a atitude ilícita da Ré ao vender  em Moçambique um produto com uma marca idêntica à da Autora, estando esta protegida por registo, e fazendo-o por preço inferior, do que resulta o dano da Autora consubstanciado na diminuição do número de encomendas do seu produto, ou seja, na diminuição de exportação de tal produto para Moçambique.

Assim, um dos elementos constitutivos da causa de pedir ocorre em Portugal, onde a Autora produz e de onde exporta as embalagens contendo o produto designado como “tempero português”.

Esta causa de pedir complexa é comum aos pedidos formulados em B), C), D) e E).

A relação material controvertida tal como a configura a Autora consiste na alegação de que esta produz diversos produtos nomeadamente alimentares, um dos quais tem a designação de “tempero português” e que está protegido pelo registo da marca quer  em Portugal quer em Moçambique. Tal produto é exportado pela Autora para o mercado moçambicano onde, fruto da qualidade do produto, detém uma quota de mercado de cerca de 90%. A Ré, aproveitou-se do prestígio da marca da Autora e usa-o no seu produto – sem sequer ter qualquer protecção de registo, em Portugal ou em Moçambique – que vende no mercado moçambicano a um preço inferior àquele a que os produtos exportados pela Autora sem vendidos. Do que resulta uma diminuição das encomendas da Autora e consequentemente do valor das suas exportações.

Na sua contestação,  a Ré afirma que não comercializa o produto, tendo-se limitado a fornecer o mesmo à empresa “99 Overseas Lda” uma sociedade sediado no Porto, sendo esta que exporta o mesmo produto para Moçambique.

Entendemos contudo que a questão suscitada pela Ré, embora crucial quanto ao mérito da causa, não afecta a competência dos tribunais portugueses. Esta competência, repete-se, deve ser aferida nos termos em que o autor configura a relação material controvertida.

E é aqui que se situa a nossa discordância com o despacho do Mº juiz a quo. Ao alegar a diminuição de encomendas provenientes de Moçambique e assim a diminuição da venda/exportação do seu produto, devido à conduta da Ré, a Autora faz situar os danos em Portugal, onde tem a sua sede e onde fabrica e exporta o produto em causa.

Como sublinha Rui Pinto em comentário ao art. 62º b) do CPC - “Notas ao Código de Processo Civil” pág. 110 - “efectivamente, no plano literal do preceito, atenta a sua indistinção, e no plano histório (...) é nossa opinião que a alínea em apreço parece querer abranger qualquer facto causal da procedência do pedido (...) sendo suficiente qualquer conexão objectiva com o nosso País, integrante da causa petendi”.

Conclui-se assim que:

-Tendo sido alegado na petição inicial que a Autora produz e exporta produtos para o mercado moçambicano, tendo a sua marca protegida pelo registo em Portugal e em Moçambique, e sendo igualmente alegado que a Ré, aproveitando-se do prestígio da marca da Autora está a vender no mercado moçambicano, a mais baixo preço, produtos com a mesma designação dos da Autora, do que tem resultado diminuição das encomendas recebidas pela Autora com vista à exportação para aquele País, verifica-se estar preenchido um dos requisitos para atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses.

-Com efeito, nos termos do art. 62º b) do CPC, basta que um dos elementos constitutivos da causa de pedir se localize em Portugal, para que a aludida competência esteja assegurada.

-Uma acção de condenação baseada em responsabilidade civil, apresenta uma causa de pedir complexa, integrada pela conduta ilícita e culposa da Ré, a qual é causa de prejuízo para a Autora.

-Ocorrendo o prejuízo em Portugal (no caso dos autos  diminuição das encomendas e das vendas por exportação, em Portugal, onde está sediada a Autora) verifica-se uma conexão objectiva que confere ao tribunal português competência internacional.

Nestes termos, julga-se o tribunal recorrido competente em razão da nacionalidade para conhecer da causa, e assim de todos os pedidos formulados pela Autora.
Custas pela recorrida.


LISBOA, 21/4/2016


António Valente
Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais
Decisão Texto Integral: