Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
173976/14.2YIPRT-B.L1-8
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: PROCESSO DE INJUNÇÃO
REQUERIMENTOS PROBATÓRIOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/11/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: -Os ambiciosos objectivos do caderno de encargos que a gestão processual impõe ao juiz só podem ser atingidos se dele se obtiver colaboração, mas também, uma postura super partes, num intransigente respeito pelo seu dever de imparcialidade.
-A boa e efectiva gestão exige dos juízes uma não menos superior capacidade de simplificação processual, uma abordagem do processo não dogmática, antes imaginativa, quando não mesmo heterodoxa, sempre com respeito pelos princípios fundamentais que informam o direito adjectivo.
-Seguindo o processo de injunção a forma de processo comum, por força da distribuição a que se refere o artigo 16º nº 1 do DL 269/98 (foi deduzida oposição) e não tendo a autora apresentado testemunhas (que poderiam ser apresentadas na audiência), poderá agora fazê-lo, pois, distribuído o requerimento injuntivo, deverá ser dada a oportunidade às partes de apresentarem os respectivos requerimentos probatórios (artº 6º nº 1 do NCPC)”.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa.


I - RELATÓRIO:


Em 18 de Novembro de 2014 Massa Insolvente de E... Ldª apresentou requerimento de injunção contra I..., SA- Sucursal em Portugal, formulando o pedido e expondo os factos que fundamentam a sua pretensão.

A requerida deduziu oposição.

No requerimento de apresentação de injunção a requerente, ora reclamante, não apresentou meios de prova, designadamente a prova testemunhal.

Em 26 de Junho de 2015, a reclamante veio arguir a nulidade consistente na omissão dos deveres de gestão processual por não se ter convidado as partes, nos termos do nº 4 do artigo 590º do NCPC, “para suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, procedendo assim a uma melhor exposição dos factos que constituem a causa de pedir e a junção do requerimento probatório”.

Pede que seja fixado prazo para a apresentação de petição inicial aperfeiçoada e/ou requerimento probatório ou relegar para a audiência prévia a apresentação de  requerimento probatório, sanando-se assim a nulidade.

Os presentes autos de reclamação não demonstram que a parte contrária se tivesse pronunciado sobre tal requerimento.

Em 01 de Julho de 2015 foi proferido o seguinte DESPACHO:

“ Indefiro o requerido a 26 de Junho de 2015, uma vez que, conforme decorre do artigo 590º nºs 2, 3 e 4 do C.P.C., o aperfeiçoamento dos articulados não está previsto para as partes suprirem a falta de apresentação de requerimento probatório com a petição, no caso do A, e com a contestação, no caso do R., sendo de salientar que o A., podendo e devendo prever a possibilidade de a injunção ser apresentada à distribuição e, portanto, seguir como processo comum de declaração, poderia ter aproveitado o espaço do requerimento de injunção destinado à exposição dos factos que fundamentam a sua pretensão para arrolar testemunhas. Acresce dizer que, mesmo que o tribunal considerasse existir insuficiências e imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada e convidasse a A. a aperfeiçoar a petição – o que não foi o caso -, a A. teria de respeitar os limites do convite, não podendo ser admitido qualquer requerimento probatório  apresentado com o articulado aperfeiçoado”.

Não se conformando com tal despacho, dele recorreu a autora, tendo apresentado as seguintes CONCLUSÕES:

I-Vem o presente recurso interposto do douto despacho de fls. proferido pela Meritíssima Juiz da 1ª Secção Cível da Instância Central de Lisboa, que não admitiu a junção de meios  probatórios.
II-O sempre douto Tribunal a quo fundamentou a sua decisão na convicção de que a A., ora recorrente, deveria ter aproveitado o espaço do requerimento de injunção destinado à exposição dos factos que fundamentam a sua pretensão para arrolar testemunhas.
III-O espaço destinado à exposição dos factos é limitado, permitindo apenas a exposição do necessário ao cumprimento do previsto no artigo 10° do DL 269/98, de 01 de Setembro.
IV-O requerimento electrónico veda a junção de prova naquele momento, como aliás refere o artigo 3° do citado DL, por remissão do n° 1 do artigo 17°.
V-O DL 62/2013, de 10 de Maio veio agilizar os pagamentos das transacções comerciais, garantindo não só o direito do credor em recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida (n° 1, do artigo 10), como permite a remessa dos autos para o tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum (n° 2, do artigo 10º).
VI-Se o citado DL teve o cuidado de dar "mais armas" às partes, não poderá o credor, ora recorrente, ficar impedido de aperfeiçoar a sua petição inicial, nem tão pouco impedido de juntar o seu requerimento de prova.
VII-Os presentes autos são provenientes da injunção n° 173976/14.2YIPRT, na qual foi deduzida contestação com reconvenção, tomando a acção a forma de processo comum.
VIII-O ora recorrente considerou não ser legalmente admissível a reconvenção, razão pela qual optou por não replicar, ficando a aguardar despacho para aperfeiçoamento da petição inicial, junção de requerimento probatório e/ou marcação de audiência prévia.
IX-Cumpre ao juiz dirigir activamente o processo promovendo as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, determinando a realização de actos necessários à  regularização da instância, nos termos do artigo 6° do CPC.
X-Face à impossibilidade anterior da recorrente em apresentar requerimento probatório, poderia sempre, salvo douto entendimento em contrário, a Meritíssima Juiz proferir despacho pré-saneador para aperfeiçoamento dos articulados (alª b) do artigo 590°) ou ainda convidar as partes, nos termos do n° 4 do artigo 590° do CPC a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada.
XI-A Meritíssima Juiz ao interpretar o n° 3 do artigo 10º do DL n° 62/2013, de 10 de Maio, como norma que obriga as partes, ab initio, a proceder à junção de requerimento probatório, viola o direito à tutela jurisdicional efectiva da requerida, artigo 20° da Constituição da República Portuguesa.
XII-Tal indeferimento violou também o princípio da adequação formal ínsito no artigo 574° do CPC.
XIII-Encontramo-nos, pois, perante uma nulidade que afecta os direitos processuais e constitucionais da recorrente.
XIV-Deverá tal despacho ser alterado por outro que determine a apresentação de petição inicial aperfeiçoada com apresentação do respectivo requerimento probatório.
Termina, pedindo que seja revogada a decisão anteriormente proferida, substituindo-a por outra que determine a apresentação de petição inicial aperfeiçoada e o requerimento probatório, mormente a apresentação de prova testemunhal.

Em 19 de Outubro de 2015 foi proferido novo despacho a indeferir o requerimento de interposição do recurso, louvando-se no disposto no artigo 641º nº 2 alª a) do NCPC, com o argumento de que o despacho proferido a 01 de Julho de 2015 não é um despacho de admissão ou rejeição de articulado ou meio de prova, pelo que é aplicável o artigo 644º nº 3 e não a alínea d) do nº 2 do artigo 644º do NCPC – (fls 38).
 
A autora reclamou nos termos do disposto no artigo 643º do Código de Processo Civil que foi deferida e, em consequência, admitido o recurso interposto, que foi considerado de apelação, a subir em separado e com efeito meramente devolutivo (artigos 643º nºs 4 e 6, 644º nº 2 alª d), in fine, 645º nº 2 e 647º nº 1, do C.P.Civil).

É sobre esta apelação que índice o presente acórdão.

Não houve contra-alegações.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO.

A) Fundamentação de facto:
A matéria a considerar é a que resulta do relatório que antecede.

B) Fundamentação de direito:

A questão colocada e que este tribunal deve decidir, nos termos dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, em vigor desde 1 de Setembro de 2013, consiste em saber se, distribuído o requerimento injuntivo, deverá ser dada a oportunidade às partes de apresentarem os respectivos requerimentos probatórios (artº 6º nº 1)”.

A partir de agora os argumentos jurídicos para julgar procedente a apelação, serão, como é óbvio, os mesmos que serviram para decidir a reclamação.

A autora intentou o requerimento de injunção e não apresentou o rol de testemunhas com tal requerimento, pois as provas são oferecidas na audiência, podendo cada parte apresentar até três testemunhas, se o valor da acção exceder a alçada do tribunal de 1ª instância, ou até cinco testemunhas, nos restantes casos – artigo 3º nº 4 do DL 269/98, de 1 de Setembro, na redacção dada pelo DL 107/2005, de 1 de Julho, que não foi revogado pelo DL 62/2013, de 10 de Maio.

Seguindo o processo de injunção a forma de processo comum, por força da distribuição a que se refere o artigo 16º nº 1 do DL 269/98 (foi deduzida oposição) e não tendo a autora apresentado testemunhas, poderá agora fazê-lo?

Afigura-se-nos positiva a resposta.

O nº 4 do artigo 590º do Código de Processo Civil preceitua que incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.
A propósito do papel gestionário do juiz e em anotação ao artigo 590º, transcrevemos aqui o que escreveram Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro[1] “ Os ambiciosos objectivos do caderno de encargos que a gestão processual impõe ao juiz só podem ser atingidos se dele se obtiver colaboração, mas também, uma postura super partes, num intransigente respeito pelo seu dever de imparcialidade (…). Para além de uma superior formação técnica – a capacidade para prescindir das formas com propriedade será tanto maior quanto for o seu conhecimento sobre elas -, a boa e efectiva gestão exige dos juízes uma não menos superior capacidade de simplificação processual, uma abordagem do processo não dogmática, antes imaginativa, quando não mesmo heterodoxa, sempre com respeito pelos princípios fundamentais que informam o direito adjectivo. É este o papel que o juiz desempenha no “argumento” processo civil actual”.

A filosofia subjacente ao Código de Processo Civil – concretizada por diversos modos em várias disposições legais – visa assegurar, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, pretendendo que o processo e a respectiva tramitação possam ter a maleabilidade necessária para que possa funcionar como um instrumento (e não como um obstáculo) para alcançar a verdade material e a concretização dos direitos das partes, como claramente se evidencia no preâmbulo do Dec-Lei nº 329-A/95 de 12/12 (note-se que toda essa filosofia foi reafirmada e até reforçada no CPC actualmente vigente), quando ali se diz que as linhas mestras do processo assentam, designadamente na “Garantia de prevalência do fundo sobre a forma, através da previsão de um poder mais interventor do juiz…”; quando ali se refere que “visa, deste modo, a presente revisão do Código de Processo Civil torná-lo moderno, verdadeiramente instrumental no que toca à perseguição da verdade material, em que nitidamente se aponta para uma leal e sã cooperação de todos os operadores judiciários, manifestamente simplificado nos seus incidentes, providências, intervenção de terceiros e processos especiais, não sendo, numa palavra, nem mais nem menos do que uma ferramenta posta à disposição dos seus destinatários para alcançarem a rápida, mas segura, concretização dos seus direitos”; quando se alude ao “…objectivo de ser conseguida uma tramitação maleável, capaz de se adequar a uma realidade em constante mutação…” e quando se afirma que o processo civil terá que ser perspectivado “…como um modelo de simplicidade e de concisão, apto a funcionar como um instrumento, como um meio de ser alcançada a verdade material pela aplicação do direito substantivo, e não como um estereótipo autista que a si próprio se contempla e impede que seja perseguida a justiça, afinal o que os cidadãos apenas pretendem quando vão a juízo”.

Foi neste nº 4 do artigo 590º que se louvou o despacho de 01 de Julho de 2015. A autora pretende que a primeira instância a convide a apresentar meios de prova, o que foi objecto de recusa.
Já dissemos que no processo de injunção as provas são oferecidas na audiência.

Actualmente, no artigo 552º nº 2 do Código de Processo Civil preceitua que, no final da petição, o autor deve apresentar o rol de testemunhas e requerer outros meios de prova.

Os autores acima mencionados, em anotação a este artigo escreveram lapidarmente o seguinte[2]:

“ Estamos perante um ónus da parte cuja não observância é insusceptível de gerar um convite do tribunal ao aperfeiçoamento do articulado (para apresentação serôdia do requerimento probatório), sob pena de violação do dever de imparcialidade. Todavia, importa ter presente que este ónus é imposto à parte que apresente ou possa apresentar um articulado na acção de processo comum, e não ao requerente ou ao requerido no procedimento de injunção, pelo que, nestes casos, distribuído o requerimento injuntivo, deverá ser dada a oportunidade às partes de apresentarem os respectivos requerimentos probatórios (artº 6º nº 1)”.
 
Foram estes, em suma, os argumentos que serviram de base para a procedência da reclamação da autora e que aqui se aproveitam na totalidade para a procedência da apelação.

EM CONCLUSÃO:

-Os ambiciosos objectivos do caderno de encargos que a gestão processual impõe ao juiz só podem ser atingidos se dele se obtiver colaboração, mas também, uma postura super partes, num intransigente respeito pelo seu dever de imparcialidade.
-A boa e efectiva gestão exige dos juízes uma não menos superior capacidade de simplificação processual, uma abordagem do processo não dogmática, antes imaginativa, quando não mesmo heterodoxa, sempre com respeito pelos princípios fundamentais que informam o direito adjectivo.
-Seguindo o processo de injunção a forma de processo comum, por força da distribuição a que se refere o artigo 16º nº 1 do DL 269/98 (foi deduzida oposição) e não tendo a autora apresentado testemunhas (que poderiam ser apresentadas na audiência), poderá agora fazê-lo, pois, distribuído o requerimento injuntivo, deverá ser dada a oportunidade às partes de apresentarem os respectivos requerimentos probatórios (artº 6º nº 1 do NCPC)”.
 
III - DECISÃO.

Atento o exposto, julga-se procedente a apelação, revogando-se o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro em conformidade com o agora decidido.
Custas pela apelada.


Lisboa, 11/2/2016


Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais
Octávia Viegas

[1]Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Os Artigos da Reforma, 2014, 2ª Edição, Volume I, Almedina, pág. 511-512.
[2]Ob cit pág 475.
Decisão Texto Integral: