Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
282/23.0PAVFC-A.L1-9
Relator: CRISTINA SANTANA
Descritores: SUSPEIÇÃO
JUIZ
IMPARCIALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/06/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: ESCUSA
Decisão: PROVIDO
Sumário: Sumário (da responsabilidade da Relatora):
I - Nos pedidos de escusa não se coloca a questão da imparcialidade do Requerente, que nem pode declarar-se suspeito.
II - O motivo invocado como apto a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do Juiz tem que ser grave e sério.
III – No caso, a Requerente invoca a existência de um relacionamento pessoal e profissional, próximo e público, entre si e o Sr. Escrivão de Direito, sendo este casado com a Assistente e demandante cível.
IV - Perante o quadro factual invocado, impõe-se aferir se o mesmo é susceptível de gerar dúvidas na comunidade sobre a equidistância do juiz.
V – Tal quadro, apreciado do ponto de vista do cidadão comum, é adequado a suscitar dúvidas sobre a imparcialidade do julgador.
VI – E, tais dúvidas ficariam definitivamente instaladas caso fosse proferida alguma decisão favorável à Assistente.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I Relatório
1.
AA, Juíza de Direito em exercício de funções no Tribunal Judicial da Comarca dos Açores no Juízo de Competência Genérica de Vila Franca do Campo, veio pedir escusa de intervir nos autos de Processo Comum com o nº 282/23.0PAVFC.
Invocou, para o efeito, que:
- No supra referido Processo, a Assistente, BB, deduziu acusação particular contra CC e contra DD, imputando-lhes a prática de crime de injúrias, p. e p. pelo artigo 181º do C.Penal, tendo também deduzido contra as mesmas pedido de indemnização civil.
- Assistente e Arguidas residem em ... e os factos sub judice terão sido despoletados por uma contenda entre vizinhos.
- A Assistente é mulher de EE, que exerce funções de Escrivão de Direito na Secção onde a requerente exerce funções.
- O contacto diário, seja nas infra-estruturas do Tribunal seja no espaço social e comunitário, entre a Requerente e o mencionado Escrivão de Direito, bem como a estima e consideração pessoal que a signatária manifesta em relação ao mesmo são do conhecimento daquela comunidade, atenta a reduzida dimensão da mesma.
- As circunstâncias referidas podem gerar alguma desconfiança sobre a imparcialidade da requerente, gerando dúvidas na comunidade sobre as decisões que venham a ser tomadas, seja qual for o sentido das mesmas.
- O Ministério Público decidiu não acompanhar a acusação particular deduzida pela Assistente, tendo os autos sido remetidos ao Juízo de que a Requerente é titular a fim de se proceder ao recebimento da acusação particular deduzida e do pedido de indemnização civil supra referidos. Trata-se do primeiro contacto da Requerente com os autos.
2.
Não se mostrando necessária a realização de qualquer diligência de prova, colhidos os vistos, o processo foi à conferência.
II Apreciando e decidindo.
O artigo 32º, nº 9, da CRP consagra o princípio do juiz natural: “Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior.”.
“ Esse princípio só pode ser afastado em situações-limite, quando outros princípios ou regras, porventura de maior ou igual dignidade, o ponham em causa, como o da imparcialidade e isenção, igualmente com consagração constitucional no º 1 do artigo 32º da Lei Fundamental ( cfr. ainda artª.s 203º e 216º), que pode subsistir na ordem jurídica, compatibilizando aqueloutro, assim se obstando à ocorrência, em concreto, e efeitos perversos do princípio do juiz natural, acautelando-os através de mecanismos que garantam aquelas imparcialidades e isenção, como pressuposto objectivo na sua percepção externa pela comunidade, e que compreendem os impedimentos , suspeições, recusas e escusas….”.1
Esses “mecanismos” estão consagrados na lei ordinária, nos artigos 39º a 47º do CPP que estabelecem o regime dos impedimentos, recusas e escusas.
Dispõe o art. 43ºdo CPP, sob a epígrafe Recusas e escusas, que:
“1- A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando ocorrer o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
2..
3- ..
4 – O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nºs 1 e 2.
5-…”
Do exposto decorre que a Exmª Requerente tem legitimidade para apresentar o pedido de escusa e tal pedido é tempestivo, atento o teor dos artigos 43º, nº 4, e 44º ambos do C.P.P..
Vejamos então:
A lei não define o que constitui motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, sendo que tal conceito tem sido integrado pela doutrina e pela jurisprudência.
No Ac. STJ de 13.1.1998, Processo nº 877/97, relatado pelo Exmº Senhor Juiz Conselheiro Lopes Rocha, in BMJ nº 473, p. 307, pode ler-se: “ A imparcialidade, como exigência específica de uma verdadeira decisão judicial, define-se, por via de regra, como a ausência de qualquer prejuízo ou preconceito em relação à matéria a decidir ou às pessoas afectadas pela decisão…”.
O TEDH e a jurisprudência nacional têm defendido que a imparcialidade pode ser apreciada de acordo com um teste subjectivo ou um teste objectivo.
E, seguindo a exposição feita in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção de Direitos do Homem ( UCP, 4º Ed., p.132):
“…:
- O teste subjectivo da imparcialidade visa apurar se o juiz deu mostras de um interesse pessoal no destino da causa ou um preconceito sobre o mérito da causa. Ao aplicar o teste subjectivo a imparcialidade do juiz deve ser presumida e só factos objectivos evidentes devem afastar essa presunção ( acórdão do TEDH Piersack v. Bélgica, de 1.10.1982, acórdão do TEDH Hauschildt v. Dinamarca, de 24.5.1989, e acórdão do TEDH Le Compte, Ban Leuven e De Meyere v. Bélgica, de 23.6.1981…
- O teste objectivo da imparcialidade visa determinar se o comportamento do juiz, apreciado do ponto de vista do cidadão comum, pode suscitar dúvidas fundadas sobre a sua imparcialidade ( acórdão do TEDH Piersack v. Bélgica, de 1.10.1982ª perspectiva do queixoso pode ser importante mas não é decisiva ( acórdão do TEDH Ferrantelli e Santanjelo v. Itália, de 7.8.1996)…”.
Assim, quer a recusa quer a escusa terão de fundar-se em motivo sério e grave, susceptível de gerar desconfiança sobre a imparcialidade de juiz e tal risco terá que ser avaliado com base em factos concretos invocados pelo requerente.
Aqui chegados, importa analisar se os motivos invocados são, objectivamente, susceptíveis de gerar desconfianças sobre a imparcialidade da requerente.
Os juízes vivem integrados na sociedade, pelo que não será qualquer relacionamento cordial entre estes e as pessoas lhes cabe julgar que gerará desconfiança sobre a sua imparcialidade.2
Repete-se que o motivo invocado como apto a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do Juiz tem que ser grave e sério.
Invoca a Requerente que a existência de um relacionamento pessoal e profissional, próximo e púbico, entre si e o Sr Escrivão de Direito, apreciado do ponto de vista do cidadão comum, é adequado a suscitar dúvidas sobre a imparcialidade do julgador.
Não se coloca a questão de da imparcialidade da Requerente, que nem pode ser declarada pela própria e que se presume que não ficaria condicionada pelas referidas circunstâncias.
Mas, para o cidadão comum não seria compreensível a manutenção no processo de um juiz que mantém relações pessoais e profissionais com o Escrivão de Direito, casado com a Assistente nos autos.3
Acresce que está em causa um meio pequeno, ....
O quadro factual descrito é, pois, susceptível de gerar dúvidas na comunidade sobre a equidistância do juiz. E, refira-se, tais dúvidas ficariam definitivamente instaladas caso fosse proferida alguma decisão favorável à Assistente.
Assim, o pedido de escusa deve ser deferido.
III Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder à Exmª Senhora Juíza AA a escusa de intervir no processo com o nº282/23.0PAVFC.
Sem tributação.
*
Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e revisto pela relatora e primeira signatária.
Lisboa, 6 de Novembro de 2025
Cristina Santana
Maria de Fátima R. Marques Bessa
Ana Paula Guedes
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1. Ac. STJ de 5.7.2007, Proc. 07P2565
2. Neste sentido, vide Ac STJ de 24.9.2003, Prc. Nº 2156/03-3
3. Neste sentido, vide Ac. STJ de 18.1.2007, Proc. 07P163