Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2869/20.3T8LRS.L1-2
Relator: MARIA JOSÉ MOURO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA PERFILHAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – Muito embora o acto de perfilhação seja irrevogável, ela poderá ser anulável judicialmente quando viciada por erro ou coacção moral, ou por incapacidade do perfilhante; além de que a veracidade da perfilhação pode ser impugnada, nos termos do art. 1859 do CC, visando-se aqui afastar a paternidade biologicamente falsa.
II - A acção de impugnação da perfilhação tem como objecto a demonstração de que o perfilhante não é o progenitor do perfilhado, sendo o fundamento do pedido a desconformidade entre a verdade jurídica e a verdade biológica.
III – Tendo o A., na p.i., claramente demonstrado que aquilo que pretendia era impugnar a perfilhação, uma vez que nos encontramos perante uma acção de impugnação da perfilhação, nos termos previstos no art. 1859 do CC, e não perante uma acção de anulação por erro ou coacção regulada no art. 1860 do mesmo Código, não é aplicável o prazo de caducidade previsto no nº 3 deste último artigo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível (2ª Secção) do Tribunal da Relação de Lisboa:

IAAA, intentou contra BBB a presente acção declarativa com processo comum.
Alegou o A., em resumo:
A R. nasceu em 10-2-2000, no decurso de um relacionamento amoroso que o A. teve com a mãe daquela, perfilhando-a o R., convicto de que seria o seu pai em virtude desse relacionamento. Terminado o relacionamento do A. com a mãe da R., devido a rumores que lhe levantaram dúvidas sobre a sua paternidade, o A. decidiu, por acordo com a mãe da R., efetuar exame pericial ao ADN, sendo que nesse exame foi concluído estar excluída a possibilidade de o A. ser o pai da R..
Sendo inequívocas as conclusões científicas no sentido de que o A. não é o pai biológico da R., o A. invoca expressamente tal circunstância para efeitos de impugnação da perfilhação da R., tendo a acção de impugnação como objecto a demonstração de que o perfilhante não é progenitor do perfilhado.
Concluiu o A. que por via da instauração desta acção impugna a perfilhação da R., estando aqui em causa, também, a reposição da verdade registral.
Pediu o A. que seja anulada a perfilhação da R. pelo A, por não corresponder à verdade biológica, com o consequente cancelamento da paternidade registada, no sentido de o A. deixar de constar como pai da R..
Citada, a R. contestou, invocando, nomeadamente, a caducidade da acção de anulação, nos termos do nº 3 do art. 1860 do CC, uma vez que intentada em 18-3-2020.
O A. respondeu, salientando que o fundamento do pedido deduzido é a desconformidade entre a verdade jurídica e a verdade biológica, não se estando na situação prevista no art. 1860 do CC, pelo que deveria improceder a excepção.
Foi proferido despacho saneador, havendo o Tribunal de 1ª instância julgado verificada a excepção da caducidade e, em consequência, absolvido a R. do pedido.
Desta decisão apelou o A., concluindo nos seguintes termos a respectiva alegação de recurso:
1. O Recorrente AAA, instaurou junto do Tribunal a quo uma ação declarativa de impugnação de perfilhação contra a Recorrida BBB.
2. Em concreto o Recorrente na aludida ação judicial peticionou pela impugnação e consequente anulação da perfilhação da Recorrida efetuada pelo Recorrente.
3. A ação de impugnação da perfilhação ora instaurada pelo Recorrente teve e tem como objeto a demonstração de que o perfilhante - Recorrente - não é o progenitor da perfilhada - Recorrida - sendo o fundamento do seu pedido a desconformidade entre a verdade jurídica e a verdade biológica, fundamento esse que o Recorrente invocou, expressa e concretamente para efeitos da aludida impugnação de perfilhação: que o Recorrente não é o pai biológico da Recorrida.
4. Para esse efeito juntou um relatório referente a um teste de averiguação de paternidade realizado pelo Centro de Genética Clínica, com data de 17/01/2006, onde de forma clara, atenta às conclusões, o ora Recorrente é excluído como Pai da Recorrida, cf. se transcreve da PI e Doc.2 junto a esta a fls.. do qual se transcreve parte para devidos efeitos : “(…)Conclusões (…)O estudo dos diversos loci genéticos moleculares utilizados: 1. São concordantes com a relação de maternidade de CCC relativamente a BBB.2 .Revelaram a existência de 8 exclusões de 1ª ordem nos sistemas D8S1179, D21S11, D7S820, D13S317, D19S433, Hum vWA, Penta E Penta D, e 1 exclusão de 2ª ordem no sistema CSF1PO que, segundo as leis de Landsteiner, só seriam compatíveis com hipótese de paternidade em causa invocando a ocorrência de fenómenos por si raros e cuja conjugação simultânea seria em termos práticos impossível, o que permite excluir AAA com pai de BBB. (…)”
5. Como esta questão terá de obrigatoriamente passar pelo crivo judicial, o Recorrente requereu ainda, como é normal nesta tipologia de processos, a perícia médico-legal de acordo com o disposto no art.º 467º do CPC, traduzida no exame biológico de amostras de ADN recolhidas em todos os intervenientes a fim de se demonstrar que o Recorrente não é o Pai biológico da Recorrida.
6. A Recorrida contestou, e de entre vários fundamentos invocados, alegou que o direito inovado pelo Recorrente havia caducado - exceção perentória de caducidade - por estarmos perante factos que têm como fundamento, ou visam, a demonstração de que, a declaração de registo de perfilhação, in casu, o ato declarativo do perfilhante, se encontra viciado por erro ou coação moral, nos termos previstos no art.º 1860º do CC.
7. O Recorrente respondeu à exceção de caducidade, invocando para o efeito, que os factos alegados em causa, nada tem a ver com a situação de erro ou coação moral conforme o previsto no art.º 1860º do C.C..
8. Pelo contrário, os factos alegados pelo Recorrente, estão relacionados com uma situação concreta, a reposição da verdade biológica que não coincide com a verdade jurídica, cuja ação por via da impugnação da perfilhação pode ser intentada a todo tempo: “A perfilhação que não corresponda à verdade é impugnável em juízo mesmo depois da morte do perfilhado.” - cfr. o n.º 1.º do art.º 1859.º do CC, razão pela qual o direito do Recorrente do Recorrente não caducou nem nunca em circunstância alguma poderá caducar.
9. O despacho / sentença proferida pelo Tribunal a quo, salvo melhor opinião, assenta numa interpretação de direito errónea com referência aos factos trazidos a litígio: está em causa conforme já referido a desconformidade entre a verdade jurídica e a verdade biológica e não outra realidade jurídico factual, nomeadamente a situação de erro conforme o Mmo.Juiz preconiza nos termos previstos no art.º 1860º do C.C., pelo que o direito do Recorrente não caducou, nem poderia caducar.
10. Na realidade, em meados do ano 2000 o Recorrente iniciou um relacionamento amoroso com a Sra. CCC, mãe da Recorrida, que durou sensivelmente 4 anos.  
11. A 10 de Fevereiro de 2002, ainda no decurso de tal relacionamento nasceu a Recorrida e o Recorrente “convicto” de que era o Pai da Recorrida registou-a como sendo sua filha, ou seja, perfilhou-a.
12. Posteriormente, com o passar do tempo, já após o fim do relacionamento com a mãe da Recorrida, surgiram rumores que levantaram dúvidas sobre a paternidade do Recorrente relativamente à sua então filha a ora Recorrida.
13. No dia 17/01/2006 foi efetuado um teste de averiguação de paternidade no Centro de Genética Clínica, que contou com a participação do Recorrente, da mãe da Recorrida e da própria Recorrida, onde foram recolhidas amostras de ADN de todos os intervenientes, tendo o mesmo resultado na exclusão do Recorrente como pai da Recorrida.
 14. É assim em face destes factos que o Recorrente expressamente impugnou a perfilhação, uma vez que, o Recorrente não é o pai biológico da Recorrida, juntando para esse efeito inclusive prova documental teste de averiguação de paternidade no Centro de Genética Clínica, não mais do que isso.
 15. Ao contrário do decidido pelo Tribunal a quo, não está, nem nunca esteve em causa que a perfilhação da Recorrida tenha ocorrido por erro: em nenhum dos factos alegados pelo Recorrente ele indica ter estado em erro quando efetuou a declaração no registo civil que consubstancia a perfilhação da ora Recorrida pelo Recorrente assumindo ser o pai daquela, pelo que e mais uma vez, ao contrário do afirmado na douta sentença, não resulta “cristalinamente” dos factos alegados na PI, que o Recorrente perfilhou a Recorrida por estar em “erro”.
16. A “convicção” que o Recorrente expressa na PI é no sentido de que a Recorrida é sua filha, resulta, como é normal, da confiança que qualquer pessoa tem no seu companheiro / a, num contexto de relacionamento amoroso normal.
17. É normal que, no decurso de um relacionamento normal, que é pautado por laços amorosos de afetividade e de confiança mútuas, não surjam sequer dúvidas sobre um evento tão importante como é o nascimento de um filho: pelo contrário o sentimento é de alegria por se verificar a concretização do amor de duas pessoas.
18. Mal se compreende com o devido respeito que o Tribunal a quo alicerce a sua decisão numa realidade factual que não ocorreu, nem tão pouco foi aquela a trazida a juízo pelo Recorrente, uma vez que no momento / ato em que Recorrente perfilhou a Recorrida, este tinha a plena certeza e a convicção que aquela era sua filha, sem margens para qualquer dúvida acerca desse facto.
19. O Tribunal a quo resolveu emanar conclusões presumidas sobre os factos alegados pelas partes que não correspondem ao seu petitório, bem como carecem de prova, pelos menos no que concerne ao ora Recorrente.
20. A perfilhação é um ato pessoal e livre (artigo 1849º), e, pode fazer-se, por declaração prestada perante o funcionário do registo civil, testamento, escritura pública e por termo lavrado em juízo (art.º 1853º), mas, no entanto, é anulável, judicialmente, a requerimento do perfilhante, quando viciada por erro ou coação moral (artigo 1860º, nº 1), todos do CC.
21. A ação judicial a intentar, verificados os supramencionados requisitos - ação de anulação da perfilhação - caduca nos prazos previstos no n.º 3.º e 4.º do art.º 1860º do CC.
22. Ao contrário do alegado no douto despacho / sentença, não estamos perante factos que têm como fundamento, ou visam, a demonstração de que, a declaração de registo de perfilhação, in casu, o ato declarativo do perfilhante, se encontra viciado por erro ou coação moral, nos termos previstos no art.º 1860º do CC.
23. O que está em causa é a demonstração de que o perfilhante Recorrente, não é o progenitor da perfilhada ora Recorrida, sendo este o fundamento do pedido, a desconformidade entre a verdade jurídica e a verdade biológica: dito de outra forma, o Recorrente não é o Pai biológico da Recorrida.
24. Estamos assim perante uma situação concreta de impugnação da perfilhação que visa a reposição da verdade biológica que não coincide com a verdade jurídica.
25. Estipula o n.º 1.º do art.º 1859.º do CC que “A perfilhação que não corresponda à verdade é impugnável em juízo mesmo depois da morte do perfilhado.”, e , o n.º 2 do aludido artigo e diploma legal refere que “A acção pode ser intentada, a todo o tempo, pelo perfilhante, pelo perfilhado, ainda que haja consentido na perfilhação, por qualquer outra pessoa que tenha interesse moral ou patrimonial na sua procedência ou pelo Ministério Público.”, sublinhado e negrito nosso.
26. Nesse sentido citam-se os seguintes Acórdãos: Acordão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/04/2002, proferido no Proc. n.º 02B737, disponível em www.dgsi.pt : “I - Só uma ausência absoluta de fundamentação, que não uma fundamentação escassa, deficiente ou mesmo medíocre, pode ser arvorada em causa geradora da nulidade da decisão. II - Constitui fundamento da acção de impugnação de perfilhação a falta de conformidade entre a paternidade declarada no registo e a paternidade biológica. III - A prova dessa desconformidade pode ser feita por qualquer meio, mesmo o testemunhal, sendo ainda de admitir os exames sanguíneos ou quaisquer outros meios cientificamente idóneos. (…)”, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17/07/2002, proferido no Proc .n.º 3264/08.8TBVCD.P1, disponível em www.dgsi.pt : “I - Na acção de impugnação directa da perfilhação, a procedência depende apenas da prova de a declaração feita pelo perfilhante não corresponder à verdade, ou seja da falta de conformidade entre a paternidade declarada no registo e a paternidade biológica. (…)” e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15/11/2012, proferido no Proc . n.º 1324/11.7TBTVD.L12, disponível em www.dgsi.pt : “I - A acção de impugnação da perfilhação tem como objecto a demonstração de que o perfilhante não é o progenitor do perfilhado, sendo o fundamento do pedido a desconformidade entre a verdade jurídica e a verdade biológica; não bastam aqui as dúvidas – haverá que alegar, para posteriormente demonstrar, factos dos quais resultem que o perfilhante não é o pai biológico. (…)”, sublinhado nosso.
27. O Tribunal à quo andou mal quando decidiu pela caducidade do direito do Recorrente, porquanto, a impugnação da perfilhação pode ser invocada a todo o tempo, por todo o interessado, com o simples fundamento de não haver coincidência entre a verdade jurídica e a verdade biológica, entre eles o Recorrente, cf. o estipulado no art.º 1859.º do C.C.
28. O que sucede no caso em apreço, e que mais uma vez o Recorrente expressamente invoca para os devidos efeitos, que não é o Pai biológico da Recorrida.
29. O direito do Recorrente em impugnar a perfilhação da Recorrida não caducou, nos termos e para os efeitos do previsto no art.º 1859.º do C.C..
30. O douto despacho / sentença violou, ou no mínimo fez uma incorreta apreciação dos princípios e disposições legais previstas, no art.º 1859.º do Código Civil e nos artigos 18.º, n.º 2, 25º, nº1, 26º nº 1 e 36º, nº1 da C.R.P., devendo a final a douta sentença ser revogada, e ser ordenado consequentemente o prosseguimento dos autos, com vista à produção de prova, nomeadamente a realização de exame biológico de amostras de ADN, tudo conforme tempestivamente peticionado.
Dos autos não constam contra alegações.
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II - Sendo as conclusões da alegação de recurso, no seu confronto com a decisão recorrida, que determinam o âmbito da apelação, salvo quanto a questões de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo, face ao teor das conclusões de recurso temos como questão que se coloca qual o objecto da acção intentada pelo A. e, feita essa determinação, se ocorre a excepção da caducidade prevista no nº 3 do art. 1860 do CC.
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III – A factualidade a considerar, tendo em vista a decisão, é a que decorre do relatado em I), fundando-se essencialmente nos termos em que a acção foi proposta – a conjugar com as disposições legais atinentes.
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IV - Considerou o Tribunal de 1ª instância, em termos de facto:
- Que o exame ao ADN que permitiu ao A. saber que não era o pai da R. teve lugar em 29-12-2005, datando o relatório pericial de 17-1-2006, tomando o A. conhecimento do seu teor poucos dias depois;
- Que o A. instaurou a presente acção em 18-3-2020.
Pressupondo aquele Tribunal:
«No caso, e conforme cristalinamente alegado na petição inicial, o autor perfilhou a ré, por supor erradamente que a ré era sua filha biológica, uma vez que, na altura mantenha uma relação amorosa estável (que durou 4 anos) com a mãe da autora».
E concluindo:
«Ora, ao só instaurar a presente ação em 2020 (mais concretamente em 18/03/2020), o autor fê-lo muito mais de um ano (e até mais de 13 anos !) depois de ter tido conhecimento dos factos que lhe permitam concluir ter laborado em erro quando perfilhou a ré. Fê-lo, portanto, quando estava há muito caducado o seu direito a intentar a presente ação».
Vejamos.
O reconhecimento jurídico da paternidade do filho nascido fora do casamento poderá fazer-se por perfilhação ou decisão judicial em acção de investigação – ver o art. 1847 do CC.
A perfilhação «consiste numa manifestação de um indivíduo que se apresenta como progenitor de um filho que ainda não tem a paternidade estabelecida» ([1]); tal manifestação passa a constar do registo civil, considerando-se a paternidade estabelecida com efeito retroactivo até à data de nascimento do filho.
Conquanto o acto de perfilhação seja irrevogável – art. 1858 do CC – ela poderá ser anulável judicialmente a requerimento do perfilhante quando viciada por erro ou coacção moral (nos termos do art. 1860 do CC) ou por incapacidade do perfilhante (nos termos do art. 1861 do CC).
Efectivamente, o erro que tenha afectado o processo de formação do juízo de paternidade de um modo decisivo torna a perfilhação anulável, sendo esse o caso, por exemplo, de o perfilhante ter acreditado erradamente na exclusividade das relações sexuais com a mulher no período legal da concepção ([2]).
Por outro lado, a perfilhação não é revogável, como vimos, mas a sua veracidade pode ser impugnada, nos termos do art. 1859 do CC.
Visa-se, aqui, afastar a paternidade biologicamente falsa. O propósito do autor será demonstrar que o perfilhante não é o progenitor do perfilhado, sendo o fundamento do pedido a desconformidade entre a verdade jurídica e a verdade biológica.
A acção de impugnação da perfilhação tem como objecto a demonstração de que o perfilhante não é o progenitor do perfilhado, sendo o fundamento do pedido a desconformidade entre a verdade jurídica e a verdade biológica.
Referindo, a propósito, Pires de Lima e Antunes Varela ([3]) que no nº 1 do art. 1859 «destacando e autonomizando o facto da não correspondência da perfilhação à verdade como fundamento distinto dos vícios do consentimento e da falta de capacidade do perfilhante a que se referem as disposições seguintes, e conferindo legitimidade para a impugnação não só ao próprio autor da perfilhação, como ao Ministério Público, a lei sublinha de modo expressivo o interesse público que reveste, na área da filiação fora do casamento, a regra da coincidência da filiação com a realidade biológica da procriação».
E acrescentando ([4]) que a imprescritibilidade da impugnação – acção proponível a todo o tempo – revela de modo bem expressivo o interesse público que aos olhos da lei reveste o princípio da coincidência entre a relação jurídica da filiação e o acto biológico da procriação.
Ora, ao contrário do pressuposto pelo Tribunal de 1ª instância, o A. claramente demonstrou na p.i. apresentada que aquilo que pretendia era impugnar a perfilhação, descrevendo o exame de ADN realizado, referindo que a presente acção tem como fundamento a desconformidade entre a verdade jurídica e a verdade biológica, concluindo que por via da instauração desta acção impugna a perfilhação da R.. O que relata sobre o relacionamento com a mãe da R. e aquilo que lhe veio ao conhecimento, corresponde, tão só, a um enquadramento circunstancial.
 É certo que o pedido formulado é o de que seja “anulada” a perfilhação da R. pelo A. – mas, expressamente, por não corresponder à verdade biológica. Não é pretendida uma anulação por vício de erro ou coacção moral – erro ou coacção moral que nem são mencionados na p.i., nem são concretizados em termos de facto.
Neste contexto, uma vez que estamos perante uma acção de impugnação da perfilhação, nos termos previstos no art. 1859 do CC, e não perante uma acção de anulação por erro ou coacção, regulada no art. 1860 do mesmo Código, não é aplicável o prazo de caducidade previsto no nº 3 deste último artigo.
Pelo que não se verifica a excepção da caducidade em que o Tribunal de 1ª instância se fundamentou.
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V – Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida que julgou procedente a excepção da caducidade e julgando não verificada tal excepção, havendo o processo que prosseguir os respectivos termos.
Custas da apelação pela apelada.

Lisboa, 11 de Fevereiro de 2021
Maria José Mouro
Sousa Pinto                                                 
Vaz Gomes
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[1] Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, «Curso de Direito da Família», vol. II, pag. 149.
[2] Ver Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, obra citada, pag. 176 e Pires de Lima e Antunes Varela, «Código Civil Anotado», vol. V, pag. 271.
[3] No «Código Civil Anotado», vol. V, pag. 267.
[4] Obra citada, pag. 270.