Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
662/18.2T8ALM.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: ARRESTO
JUSTO RECEIO DE PERDA DA GARANTIA PATRIMONIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/22/2018
Votação: MAIORIA COM UM VOTO VENCIDO
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I.– Tendo o requerente alegado que: os requeridos lhe devem perto de 78.000€, tendo deixado de pagar rendas desde Junho de 2010; o contrato de arrendamento do locado onde está o negócio dos requeridos foi resolvido (mas a dívida irá continuar a aumentar enquanto permanecerem no local, a título de indemnização); o locado está instalado num centro comercial com cada vez menos clientes e por isso com cada vez menos volume de negócios, o que implica menos rendimentos para os requeridos; apenas lhes conhece um imóvel, que se sabe, face ao registo predial, estar onerado com 3 hipotecas para garantia de empréstimos de valor total muito superior ao do imóvel, e o recheio desse imóvel e do locado, tudo bens facilmente alienáveis (embora provavelmente com um valor reduzido face à oneração com as hipotecas), sendo o produto da venda facilmente ocultável; está justificado o receio de perda da garantia patrimonial do crédito do requerente representado pelos bens indicados, o que basta, se provado sumariamente, para permitir o arresto dos mesmos.

II.– A entender-se que deste requerimento de arresto não constavam factos concretos para justificar o receio, o mesmo devia ser alvo de despacho de aperfeiçoamento e não de indeferimento liminar.


(Sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:


Relatório:


A requereu contra B, e seu marido, C, um arresto de uma fracção predial autónoma, e de todos os bens móveis que nela forem encontrados, bem como naqueles que forem encontrados na fracção autónoma que o requerente lhes arrendou.

Alegou para o efeito que é dono de uma fracção autónoma correspondente a uma loja, dada de arrendamento aos requeridos por 750€ mensais; desde Junho de 2010 os requeridos não pagam as rendas; tanto assim é que o requerente resolveu o contrato por carta recebida pela requerida a 28/06/2017 sem pagamento posterior; o que aumenta o receio do requerente em ver frustrado o recebimento do seu crédito, com o valor total de 77.817,13€ incluindo juros; o locado situa-se num centro comercial que, como é do conhecimento público da maioria dos habitantes locais, tem cada vez menos clientes o que se tem vindo a reflectir num cada vez maior número de lojas desocupadas, o que tem reflexos no volume de negócio que aquele local gera diariamente, o que, necessariamente, tem impacto negativo no volume de negócio dos requeridos; o requerente não conhece quaisquer bens propriedade dos requeridos que não sejam um imóvel (que identifica) e os recheios deste imóvel e da loja arrendada, não sendo expectável que esses recheios sejam suficientes para satisfazer a quantia em dívida; o requerente tem o receio de que, no lapso de tempo que dura a acção de despejo (de que o presente procedimento constitui preliminar) mais concretamente desde a citação naquela acção (a propor) até à prolação de uma decisão final, poderão estes, atento o montante da dívida e a probabilidade séria do seu reconhecimento judicial, alienar os seus bens, prejudicando assim a satisfação do crédito. Junta uma certidão predial da qual resulta que os requeridos compraram, em Dez1983, uma fracção autónoma com o valor tributável actual de 12.858,83€, com 3 hipotecas: uma de Junho de 1998 para garantia do valor máximo de 11.420.600$ (perto de 57.000€), ampliada em Dez98; uma outra de Nov1999 para garantia do valor máximo de 6.536.500$ (perto de 32.600€) e uma outra de Maio de 2006, para garantia do valor máximo de 23.522,53€.

O arresto foi indeferido liminarmente, com o seguinte fundamento, em síntese:
O arresto é uma providência conservatória da garantia patrimonial de um crédito, para cuja procedência é necessário o preenchimento de três requisitos, a saber: a probabilidade de existência de um crédito; o receio de perda da garantia patrimonial do mesmo e o carácter justificado desse mesmo receio (arts. 619/1 do Código Civil e 393/1 e 392/1 do Código de Processo Civil). O requerente alega os factos que fundamentam a existência de um crédito. Não alega, por contraponto, factos que possam conduzir à conclusão pela verificação dos dois outros pressupostos. Ou seja, os bens identificados não estão ameaçados por qualquer acto concreto e previsível de alienação ou oneração; enfrentam apenas o risco genérico, abstracto e extensível a todos os credores, de o devedor alienar esses bens. Esta eventualidade não constitui fundamento para um arresto, pois, de outro modo, nada permitiria distinguir a providência cautelar de uma mera antecipação da penhora. Como se escreveu no sumário do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/06/2011 [proc. 1909/10.9TBPDL-A.L1-1]: “Para convencer da existência do pressuposto do ‘justo receio’, é necessário que o requerente alegue factos ou acontecimentos visíveis e objectivos que, na sua perspectiva, justificavam a apreensão cautelar de bens do requerido, designadamente, actos concretos de dissipação, ocultação ou extravio de bens, a inexistência de bens.” Na situação em presença nenhuns factos com essas características – objectivos, visíveis, demonstráveis - são invocados, limitando-se o requerente a tecer os termos de um receio abstracto, aliás, injustificado em relação ao imóvel, uma vez que a alienação do mesmo em condições normais de mercado depende do distrate das quatro hipotecas que o oneram. Assim, por manifesta improcedência do pedido, o arresto requerido não se encontra em condições de proceder, avultando inútil o prosseguimento da providência, pelo que o requerimento vai indeferido liminarmente nos termos conjugados dos art.s 226/4-b e 590/1 do CPC.

O requerente interpõe recurso deste despacho – para que seja revogado e substituído por outro que ordene o prosseguimento dos autos ou pelo menos que convide o requerente ao aperfeiçoamento da petição inicial -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (com alguma simplificação feita por este acórdão e sem as repetições que delas constam):
1ª– Resulta do disposto no art. 391/1 do CPC, que o arresto depende, essencialmente, da verificação cumulativa de dois requisitos: (1) da probabilidade da existência do crédito; e (2) da existência de justificado receio de perda da garantia patrimonial;
2ª– Ao concluir que o arresto depende, essencialmente, da verificação cumulativa dos três requisitos que indicou, nomeadamente o receio de perda da garantia patrimonial, o tribunal a quo lavrou em erro de direito na interpretação daquela norma; é pacífico na doutrina e na jurisprudência, que esse requisito não existe neste tipo de procedimentos ou, no limite, resulta inerente ao facto do requerente ter interposto o arresto;
3ª– Ao concluir que o requerente não invocou factos específicos da existência de justo receio de perda da garantia patrimonial, o tribunal a quo lavrou em erro na interpretação da matéria de facto, tendo em conta aquilo que foi invocado pelo requerente;
4º– Ao concluir que o imóvel cujo arresto se requer será dificilmente vendido porquanto tem quatro hipotecas, o tribunal a quo lavrou em erro de direito, porquanto a hipoteca não é inibidora da alienação de um imóvel, quando muito será um factor de determinação do preço;
5ª– Atenta a natureza urgente do presente procedimento, o requerente desde já invoca o facto (cujo conhecimento lhe adveio após a entrada do procedimento cautelar) de que o imóvel tem escritos colocados na marquise anunciado para o público que se encontra à venda, facto que o requerente pretendia informar o tribunal a quo mas que não foi possível em virtude do indeferimento liminar.
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Questão a decidir:
Se, face ao alegado pelo requerente, o requerimento de arresto estava em condições de poder vir a proceder, devendo por isso ter sido recebido, ou se, entendendo-se o contrário, devia então ter sido mandado aperfeiçoar.
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Dispõe o artigo 391/1 do CPC, com a epígrafe ‘Fundamentos’ que: “O credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor.” Ou seja, como o art. 392/1 do CPC esclarece: “O requerente do arresto deduz os factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado […]”.
Seja como for, e como dizem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 2.º. 3ª edição, Almedina, Julho de 2017, pág. 144. “afastada a enunciação legal dos respectivos fundamentos, qualquer causa idónea a provocar num homem normal esse receio, é concretamente invocável pelo credor, constituindo o periculum in mora: pode tratar-se do receio de insolvência do devedor (a provar através do apuramento geral dos seus bens e das suas dívidas) ou do da ocultação, por parte deste, dos seus bens (se, por exemplo, ele tiver começado a diligenciar nesse sentido, ou usar fazê-lo para escapar ao pagamento das suas dívidas); mas pode igualmente tratar-se do receio de que o devedor venda os seus bens (como quando se prove que está tentado fazê-lo […]) ou os transfira para o estrangeiro […], ou de qualquer outra actuação do devedor que levasse uma pessoa de são critério, colocada na posição do credor, a temer a perda da garantia patrimonial do seu crédito […].”

Vejam-se também os vários casos jurisprudenciais referidos por Marco Gonçalves, para além da referência que faz ao “risco concreto de insolvência do devedor” (Providências cautelares, 2015, Almedina, pag. 233 a 235, especialmente parte final do texto da pág. 234):
– Ac. do STJ de 11/12/1973, 064881, também publicado no BMJ 232/110: A acentuada desproporção entre o crédito exigido pelo arrestante e o valor do património conhecido ao arrestado, bastante inferior aqueloutro, juntamente com a circunstância de o património do devedor ser facilmente ocultável, constitui suficiente receio de perda da garantia patrimonial […].
– Ac. do STJ de 13/02/1996, proc. 088265: Se o requerido não tem capitais, nem bens próprios que permitam superar ou controlar as dificuldades económicas porque está a passar, e se, além disso, abandonou a actividade agrícola, sua única fonte de rendimento, justifica-se, assim, que o requerente tenha sério receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito. Perante um devedor que se encontra na situação do requerido, qualquer credor medianamente cauteloso e prudente teria sério receio de não receber os créditos que sobre ele tivesse.
– Ac. do TRL de, 15/11/2011, proc. 1707/10.0TVLSB-B.L1-7: Tendo a requerida vários credores, um volume de negócios cada vez mais reduzido e não lhe sendo conhecidos outros bens para além da conta bancária, fica suficientemente indiciado o perigo de perda da garantia patrimonial.
– Ac. do TRE de 27/11/2013, proc. 2180/09.0TBEVR.E1: o montante elevado do crédito, a falta de liquidez dos requeridos, a oneração parcial do património destes, com hipotecas para garantia de valores também elevados, a inactividade de um deles e o não pagamento, por parte deste, de uma dívida de montante muito inferior ao crédito constituem, uma vez provados, causa idónea para provocar justificado receio de perda da garantia patrimonial.
Note-se que em todos estes casos, não está em causa nenhum comportamento concreto do devedor, referido em factos que tivessem sido alegados pelo requerente, mas sim a situação do mesmo, que serve, sem mais, para a procedência do arresto.
Ora, no caso, o requerente alega que: os seus locatários lhe devem perto de 78.000€, tendo deixado de pagar rendas desde Junho de 2010; o contrato de arrendamento do locado onde está o negócio dos requeridos foi resolvido (mas a dívida irá continuar a aumentar enquanto permanecerem no local, a título de indemnização); o locado está instalado num centro comercial com cada vez menos clientes e por isso com cada vez menos volume de negócios, o que implica menos rendimentos para os requeridos; apenas lhes conhece um imóvel, que se sabe, face ao registo predial, estar onerado com 3 hipotecas para garantia de empréstimos de valor total muito superior ao do imóvel, e o recheio desse imóvel e do locado, tudo bens facilmente alienáveis (embora provavelmente com um valor reduzido face à oneração com as hipotecas), sendo o produto da venda facilmente ocultável. Tudo isto justificaria naturalmente o receio de qualquer outro credor, colocado na mesma posição do requerente, de perder a garantia patrimonial do seu crédito representado pelos bens indicados, o que basta, se tal se provar sumariamente, para permitir o arresto dos mesmos.
É certo, entretanto, que o requerente também alegou que os requeridos poderão “atento o montante da dívida e a probabilidade séria do seu reconhecimento judicial, alienar os seus bens, prejudicando assim a satisfação do crédito” e que esta alegação, como diz o despacho recorrido, está completamente desapoiada de quaisquer factos concretos.
Só que isso não evita que o arresto possa prosseguir com base no restante, com eventual responsabilidade civil do requerente, para com os requeridos, se aquelas outras alegações não se justificassem minimamente (arts. 374/1 e 376/1, ambos do CPC), tendo entretanto, os requeridos, direito ao contraditório subsequente nos termos do art. 372 do CPC, se o arresto vier a ser decretado depois da produção da prova (art. 393 do CPC), onde possam alegar que têm mais bens do que os referidos pelo requerente, ou que as dívidas invocadas não existem, de modo, entre o mais, a porem em causa o credito e/ou o receio invocados.
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Por fim, como diz o requerente, a entender-se que não tinham sido alegados os factos que justificavam o receio, sendo no entanto evidente que o requerimento não era inepto, por estarem suficientemente invocados os requisitos do arresto, então devia-se ter convidado o requerente a aperfeiçoar o requerimento, alegando os factos que justificavam o receio (arts. 6/2 e 590/4 do CPC).

Neste sentido, vão os acórdãos invocados pelo requerente em abono desta pretensão subsidiária: ac. do TRL de 02/07/2009, proferido no proc. 663/09.1TVLSB-A.L1-6 onde se diz que “Uma deficiente alegação dos factos tendentes a comprovarem o justo receio de perda de garantia patrimonial não justifica o indeferimento liminar de arresto, antes reclama o convite ao aperfeiçoamento da petição” e ac. do TRE de 13/01/2010, proferido no proc. 1009/09.4TBSLV.E1 onde se diz que “A insuficiência da alegação de factos integradores do requisito do justo receio não permite fundamentar um indeferimento liminar do requerimento inicial, sendo antes caso de formulação de despacho de aperfeiçoamento.”
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Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se o indeferimento liminar do requerimento do arresto, devendo dar-se seguimento a este, com a produção de prova dos factos alegados para se decidir se o arresto deve ou não ser decretado.
Sem custas (não há parte vencida).



Lisboa, 22/03/2018



Pedro Martins
Arlindo Crua
António Moreira, vencido conforme voto que segue:



Vencido, por concordar com os fundamentos expressos na decisão recorrida para indeferir liminarmente o requerimento inicial, na medida em que, quanto ao receio de perda de garantia patrimonial do crédito em questão, não vem aí alegado qualquer facto, nem tal resulta ainda que indirectamente dos factos alegados, a partir de onde se possa concluir que existe o receio em questão.
Com efeito, para que se possa considerar a existência de receio da perda da garantia patrimonial, correspondente ao perigo de verificação de prejuízo grave para o património do requerente do procedimento cautelar de arresto, caso se aguarde por decisão a proferir na acção definitiva, torna-se necessário que sejam alegados factos de onde possa resultar qualquer atitude do requerido no sentido de dissipar ou ocultar o património respectivo, para que não possa responder pelas suas dívidas.
Mas a factualidade alegada no requerimento inicial não aponta nesse sentido. É que, da simples afirmação da existência de património dos requeridos que se afigura ser insuficiente para a satisfação do crédito do requerente, a par da ausência de actividade negocial no imóvel arrendado, não se pode afirmar a existência de um circunstancialismo relacionado com a existência de actos voluntários de dissipação ou ocultação do património dos requeridos, desde logo porque não vem alegada qualquer conduta dos mesmos que conduza a afirmar que, em relação ao património indicado, fizeram ou estão em vias de fazer o mesmo desaparecer, para assim ficarem impossibilitados de responder perante o requerente pela obrigação pecuniária no valor de € 77.817,13 (já incluindo juros).
E a singela circunstância de vir afirmado que, no lapso de tempo que durará uma acção de despejo, os requeridos poderão alienar o património imobiliário que lhes é conhecido, não permitirá nunca concluir que tal corresponde a uma actuação tendente à dissipação ou ocultação do seu património, com o fim de impedir a satisfação do crédito do requerente, já que daí apenas decorre uma conjectura e não a alegação de factos susceptíveis de preencher o conceito de actuação dissipadora ou ocultadora de património.
Ou seja, a alegação do requerente não permite, por si só, chegar à conclusão de que se está perante actos de dissipação ou ocultação do património dos requeridos, com o intuito de frustrar a satisfação do crédito do requerente, desde logo porque não alega o mesmo os factos concretos que permitam chegar a essa conclusão, nem qualquer outro facto que corresponda a uma actuação concreta dos requeridos tendente à dissipação ou ocultação de património, mas apenas a própria conclusão conjecturada.
Assim sendo, não estando alegados factos bastantes de onde resulte o receio da lesão do direito de crédito do requerente, e não competindo ao tribunal trazer para o processo tais factos não alegados (a não alegação é situação processual distinta da alegação deficiente ou imprecisa, única que justifica o aperfeiçoamento), tal como o procedimento cautelar se apresenta, nunca poderá o requerente obter qualquer garantia patrimonial do seu crédito, desde logo porque não se verifica qualquer receio de perda de garantia patrimonial do crédito invocado. O que equivale a afirmar que não se mostram reunidos os pressupostos de que depende a concessão da providência requerida, motivo pelo qual se há-de considerar a mesma manifestamente improcedente.
E estando-se em sede de procedimento cautelar, a manifesta improcedência da pretensão da requerente conduz ao indeferimento liminar do requerimento inicial, de acordo com o disposto nos art.º 226º, n.º 4, al. b), e 590º, nº 1, ambos do Novo Código de Processo Civil, não havendo lugar à aplicação do disposto no nº 4 deste último preceito legal, por não se estar perante qualquer insuficiência ou imprecisão na exposição ou concretização de matéria de facto (não) alegada.

                  António Moreira