Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
19439/11.0T2SNT-XC.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: DOCUMENTO EM PODER DA PARTE CONTRÁRIA
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
INDEFERIMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 08/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Quando se pretenda fazer uso de documentos em poder a parte contrária, o interessado deve, para além do mais, especificar os factos que com eles quer provar. Se o não fizer, deve ser convidado a fazê-lo, sob pena de indeferimento (arts. 429, 146/2 e 590/3, todos do CPC).

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:


Relatório:


Num apenso que tem por objecto a qualificação, como culposa, da insolvência da F-Lda, e, em caso afirmativo, a determinação das pessoas afectadas pela qualificação, entre elas (segundo o MP, o AI e um dos credores, R-Lda), J, veio este requerer, em 04/08/2015, no articulado de oposição a tal, que o MP autorize o exame à contabilidade da insolvente, relativa aos anos de 2010 e 2011, no lugar onde a mesma se encontra, devendo o AI examinar tais elementos de contabilidade, podendo o requerente fazê-lo também.

Nesse articulado de oposição dizia o requerente, entre o mais, que a insolvente tinha contabilidade organizada até Maio de 2011, encontrando-se a mesma à ordem do MP no âmbito de uma queixa-crime apresentado por um sócio gerente, nas instalações da C-Lda, como é do conhecimento do AI desde longa data; em 2010, o melhor ano comercial da empresa desde o seu início, os proveitos (contas 71 a 77) ascenderam a 1.483.206,96€, no que concerne a vendas e prestações de serviços conexos e do referido valor, a insolvente recebeu, em tal exercício, mais de 800.000€, a título de pagamento, por parte de clientes. Ora, não tendo sido apreendida [para a insolvência, entende-se – acrescento deste acórdão] e considerada a contabilidade de 2010 e de 2011, pelo menos até Maio, há distorção grave, muito grave, nos relatórios e demais documentação atinentes à insolvência e respectiva qualificação. Nos artigos subsequentes o requerente vai fazendo outras referências à contabilidade e a dados com relevo na contabilidade.

No requerimento feito a 03/09/2015, para junção de documentos que tinha protestado juntar, o requerente diz que factos deseja provar com os mesmos e vai fazendo, a propósito deles, outras referências à contabilidade de 2010 e 2011 e aos documentos que nela existirão.

No despacho saneador de 04/05/2017, aquele requerimento foi indeferido por não ter sido indicada factualidade concreta que possa ou deva ser provada com a diligência requerida.
Nesse despacho enuncia-se como objecto do processo o supra referido e, como temas de prova, a caracterização do requerente como gerente da insolvente, a inexistência de contabilidade organizada da insolvente e a responsabilidade do requerente (e de outro) por esse facto, para além de outros factos com necessário reflexo na contabilidade.

O requerente vem recorrer daquele despacho – para que seja revogado e substituído por outro que ordene “que o Sr. AI a consulte e apreenda a contabilidade, podendo o requerente servir-se dela como meio de prova” -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1.-É fundamental para o esclarecimento da verdade a análise à contabilidade de 2010 e 2011;
2.-Tal contabilidade já deveria ter sido analisada pelo AI;
3.-Para a defesa do requerente são determinantes os elementos da contabilidade referidos; 
4.-É clara a conexão de tais documentos de contabilidade com o que o requerente alega na sua oposição;
5.-Ainda não existia a definição dos temas de prova para o efeito da indicação da factualidade concreta dos respectivos temas, no que concerne a relevância dos elementos da contabilidade de 2010 e 2011, aquando da apresentação da oposição;
6.-Foram violados, entre outros, os arts. 188 e 132 e segs do CIRE e 615 do CPC.

Não foram apresentadas contra-alegações.
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Questões a decidir: se o requerimento não devia ter sido indeferido.

Os factos que importam à decisão da questão a decidir são apenas os que resultam do relatório que antecede.
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O despacho recorrido não indica as disposições legais em que se baseia o indeferimento. Mas isso só por si não é fundamento de nulidade do despacho, pois que o que importa é que o despacho refira a regra que levou ao indeferimento.

Essa regra consta do art. 429 do CPC.

Com efeito, o que o requerente queria, inicialmente – agora no recurso quer mais, mas o recurso não é o lugar próprio para se formularem requerimentos que teriam que ter sido dirigidos ao tribunal recorrido, pelo que a pretensão que consta do recurso não tem qualquer relevo processual – era que o MP autorizasse o exame à contabilidade da insolvente, relativa aos anos de 2010 e 2011, no lugar onde a mesma se encontra.

Ora, bem entendido este requerimento, o que se pretendia com ele é que o MP, do qual se dizia que tinha a contabilidade apreendida à sua ordem, facultasse o acesso da mesma ao requerente para que este a examinasse à procura dos elementos que tinha ido referindo nas suas peças processuais referidas acima. É certo que, para além disso, o requerente também queria que [o tribunal determinasse que, ou que fizesse cumprir o dever que o requerente dizia que impendia sobre] o AI examinasse tais elementos da contabilidade. Mas esta parte do requerimento não faz qualquer sentido, nem está fundamentada em qualquer regra ou norma legal. O que é o reconhecimento implícito, pelo requerente, de que o tribunal não tem poderes para determinar, a pedido de um interveniente, que um outro interveniente processual examine documentos.

Por isso, a questão era só aquela e tinha a ver, como já foi dito, com o disposto no art. 429 do CPC que diz, no seu n.º 1, que “quando se pretenda fazer uso de documento em poder da parte contrária, o interessado requererá que ela seja notificada para apresentar o documento dentro do prazo que for designado; no requerimento a parte identificará quanto possível o documento e especificará os factos que com ele quer provar.”

Assim, o requerente tinha que especificar os factos que, com a contabilidade em causa, queria provar.

Não o tendo feito, estava-se perante um requerimento que não obedecia aos requisitos legais, o que impunha, por aplicação analógica do art. 509/3 do CPC, um despacho de aperfeiçoamento do requerimento.

Quer isto dizer que ele não devia ter sido indeferido antes de se ter convidado o requerente a aperfeiçoar o requerimento.

Um caso paralelo fortalece a convicção de que esta é a solução correcta.

O art. 452 do CPC diz, grosso modo, que o juiz pode determinar a prestação de depoimento de parte a requerimento de alguma das partes, sendo que estas o devem fazer, indicando logo, segundo o seu n.º 2, de forma discriminada, os factos sobre que há-de recair.
O n.º 2 deste artigo corresponde ao art. 552 do CPC de 1961 na redacção de 1967, equivalente ao art. 568 na versão originária (segundo lembra Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, CPC anotado, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2008, pág. 499), por sua vez equivalente ao art. 572 do CPC de 1939, com a excepção de, pela reforma de 1995/96, lhe ter sido cortada a parte final que dizia: “sob pena de não ser admitido.”

Ora, o corte desta parte final da norma só pode ter o significado de se ter querido pôr a mesma de acordo com o espírito da reforma de 1995/1996 – que é o mesmo que o da reforma de 2013, embora menos desenvolvido -, de não se porem em causa os direitos das partes por simples vícios supríveis das respectivas peças processuais, pelo que, quando falta a indicação de forma discriminada dos factos sobre que há-de recair, o juiz deve convidar a parte a fazer essa indicação (neste sentido, veja-se a obra citada, agora pág. 500, com invocação no mesmo sentido do ac. do TRC de 10/04/1984, CJ.84, tomo II, pág. 52).

Ora, isto deve valer também para os casos de falta de indicação dos factos que se querem provar com os documentos pedidos, por a situação ser praticamente a mesma.

Neste sentido, a propósito do disposto no art. 146/2 do CPC, veja-se Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. I, 2014, Coimbra Editora, págs. 287/288, que lembram no mesmo sentido a obra de Ramos de Faria e Luísa Loureiro, Primeiras notas.

Nada havendo nos autos que demonstre que a falta da indicação dos factos que o requerente quer provar decorra de dolo ou culpa grave, ou que a sua correcção vá implicar prejuízo relevante para o regular andamento da causa, o requerente deve ser convidado a aperfeiçoar a sua oposição com a parte em falta.
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Pelo exposto, revoga-se o despacho recorrido e em sua substituição convida-se, ao abrigo do disposto nos arts. 590/3 e 146/2, ambos do CPC, o requerente a, em 5 dias, apresentar um requerimento a completar a oposição com a indicação precisa das afirmações de facto que quer provar com o exame da contabilidade em causa.
Notifique.
Custas pela massa.
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Este recurso está a correr em férias dada a natureza urgente do processo em causa (art. 9/1 do CIRE). E tendo em conta a data designada para julgamento e o fim visado com o disposto na parte final do art. 146/2 do CPC, entende-se que o mandatário do requerente deve ser notificado, pela secção de processos deste TRL, em férias, para o conteúdo deste despacho de aperfeiçoamento, para que venha a poder fazer o exame pedido, se o requerimento vier a ser deferido, antes ainda daquela data.
 
O mandatário do requerente deve ter o cuidado de notificar o requerimento que vier a apresentar (no tribunal recorrido) em cumprimento deste despacho, aos outros intervenientes processuais (MP, AI e o credor interessado), de modo a que a decisão – pelo tribunal recorrido - possa ser proferida em tempo útil.

Tenha-se o cuidado de devolver os autos ao tribunal recorrido logo que possível.


Lisboa, 07/08/2017


Pedro Martins
José Eduardo Sapateiro
Nuno Coelho