Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
604/12.9TCFUN.L1-6
Relator: ANTÓNIO MARTINS
Descritores: OBRIGAÇÕES CONTRATUAIS EM MATÉRIA CIVIL E COMERCIAL
CONFLITO DE LEIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/19/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - Não tendo as partes designado o regime jurídico a que ficava submetido o contrato e estando o mesmo conexo com várias circunstâncias de facto relevantes - foi celebrado em França, entre um cidadão italiano e uma sociedade comercial de direito português com sede em Portugal, redigido na língua italiana e através dele se conferiram poderes para “alugar” o direito de gozo de um apartamento situado no Mónaco - impõe-se apurar qual a lei reguladora do negócio jurídico em causa e as obrigações emergentes do mesmo.
- Pese embora a qualificação contratual efectuada pelas partes não vincule o tribunal, na medida em que este é livre na “indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” (cfr. art. 5º nº3 do CPC), nada impede, muito pelo contrário, tudo aponta para a necessidade de tomar em consideração essa qualificação e analisar se as cláusulas acordadas a confirmam ou infirmam.
- Qualificando-se o contrato celebrado entre as partes como de prestação de serviços inominado, deve o mesmo reger-se, em face do disposto art. 4º nº1 al. b) e nº3 do Regulamento nº 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho de 17 de Junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais em matéria civil e comercial que impliquem um conflito de leis, “pela lei do país em que o prestador de serviços tem a sua residência habitual”, até porque o “conjunto das circunstâncias do caso”, não permitem concluir que o contrato em causa “apresenta uma conexão manifestamente mais estreita com um país diferente” do que o da residência habitual do prestador de serviços.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa:



I- RELATÓRIO:



1. O A instaurou contra a R. a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum ordinário[1] pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 45 000,00, acrescida de juros, à taxa legal dos juros comerciais, calculados sobre o valor de cada uma das duas prestações já vencidas, a contar da data do respectivo vencimento e, sobre o remanescente, a contar da citação.

Alega, em resumo, que celebrou com a R um contrato que intitularam de “mandato de gestão”, através do qual encarregou a R. de arrendar um apartamento situado em Montecarlo (Mónaco), pelo período de seis anos, podendo a R dispor do período de utilização do apartamento como entendesse, sem obrigação de prestar contas ao A., o que a R aceitou e, em contrapartida, obrigou-se a garantir ao A a retribuição de € 45 000,00 por todo o tempo do contrato, a pagar em seis prestações anuais de € 7 500,00 cada. Porém, a R incumpriu este contrato não pagando as duas primeiras prestações já vencidas. 

Mais alega que a R se obrigou, verificada determinada condição, a prestar uma garantia bancária, para assegurar o pagamento daquelas prestações anuais e, não obstante o A ter cumprido aquela condição e solicitado a emissão da garantia bancária a R não a prestou.

Conclui assim, invocando os art.ºs 780º e 781º, ambos do Código Civil[2], que tem direito a exigir da R o pagamento da totalidade da retribuição acordada, acrescida de juros, à taxa dos juros comerciais. 
  
Contestou a R. pedindo, além do mais[3], a improcedência da acção e a sua consequente absolvição do pedido.

Admitindo ter celebrado o contrato em causa e não ter pago as prestações vencidas, estriba a sua defesa, por excepção, invocando, em súmula, que enviou ao A uma carta em que lhe comunicava a resolução do contrato. Fundava tal resolução no facto de o A ter perdido o direito de gozo do apartamento em causa (vulgarmente designado por time-sharing) em consequência de não ter pago à sociedade que procede à gestão imobiliária dos apartamentos do empreendimento imobiliário em que aquele está integrado - sociedade de que o A é sócio e por virtude disso tem direito ao gozo daquela apartamento no período designado por “C4”, correspondente à semana 16 de cada ano, no referido empreendimento imobiliário - as despesas de gestão extraordinária, em consequência do que a R se viu impedida de pôr no mercado de arrendamento o apartamento em questão.

Mais alega, para a hipótese de o tribunal se declarar competente, que não resulta do contrato assinado em França pelas partes (A., italiano e R. sociedade comercial com sede na zona franca da Madeira) qual a lei aplicável, sendo certo que, considerando o facto de o contrato ter por objecto o gozo de um apartamento localizado no Mónaco e atento o disposto no art.º 4º nºs 1 e 3 da Convenção sobre a lei aplicável às obrigações contratuais assinada em Roma no dia 19 de Junho de 1980 (80/934/CEE), presume-se que o contrato apresenta uma conexão mais estreita com o país onde o imóvel se situa, pelo que é forçoso concluir no sentido de que este contrato está sujeito à lei aplicável no Principado do Mónaco.

Conclui que, de qualquer forma, o contrato foi resolvido, pelo que não assiste ao A qualquer direito de exigir à R. o pagamento dos valores que reclama.
   
Na réplica o A pugna pela improcedência das excepções deduzidas e, tecendo considerações sobre a competência internacional do tribunal, impugna que o contrato previsse “a transmissão” para a R. do direito de gozo do apartamento em questão, como pretexta a R., qualificando o contrato celebrado entre as partes como um contrato de mandato.

Naquela peça processual impugna ainda os fundamentos da invocada resolução do contrato, concluindo que a R não tem direito a tal resolução e, mesmo que tivesse, o seu exercício seria ilegítimo por exceder os limites impostos pela boa fé e pelo fim social e económico do direito.

Foi elaborado o despacho saneador, julgando-se improcedente a excepção de incompetência internacional do tribunal em razão da nacionalidade, aí se concluindo pela demais competência do tribunal e verificação dos restantes pressupostos processuais, assim como se concluiu pela inexistência de nulidades, outras excepções ou questões prévias de conhecimento oficioso.

Procedeu-se à selecção dos factos assentes e à elaboração da base instrutória, com reclamação por parte do A, a qual foi deferida.

2. Prosseguindo o processo os seus regulares termos, veio a final a ser proferida sentença que julgou a acção procedente e condenou a R. a pagar ao A. a quantia de € 45 000,00 acrescida dos juros moratórios vencidos e vincendos (desde a data do vencimento quanto às prestações que se venceram em 9 de Junho de 2011 e em 9 de Junho de 2012 e desde a data da citação quanto às restantes), calculados com base nas taxas que foram sendo mensalmente fixadas por aviso da DGT, conforme Portaria n.º 597/2005, de 19.07, e até integral pagamento.
 
3. É desta decisão que, inconformada, a R. vem apelar, pretendendo a revogação da decisão recorrida e terminando as alegações com as seguintes conclusões:

1ª. O objecto do recurso é delimitado pelas alegações do recorrente e, em especial, pelas conclusões dessas alegações, sendo que as questões fundamentais que se colocam dizem respeito à qualificação do contrato celebrado entre as partes e à lei aplicável.
2ª. Da análise do contrato celebrado denominado "Mandato de Gestione" é forçoso concluir que o Recorrido é titular de um direito real de habitação periódica, também conhecido por time-sharing, tendo por objecto o gozo do apartamento identificado nos autos no período em causa.
3ª. Através desse "Mandato de Gestione" o Recorrido cedeu o direito real de habitação periódica de que é titular à Recorrente mediante uma determinada remuneração anual, deforma a que esta pudesse alugar o apartamento em causa da forma como entendesse, fazendo seus os lucros resultantes desse aluguer.
4ª. O contrato de prestação de serviços é definido, nos termos da lei, como aquele uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho físico ou manual, com ou sem retribuição.
5ª. Contrariamente ao que é defendido na sentença recorrida não estamos perante um contrato de prestação de serviços inominado mas tão somente perante a cedência à Recorrente do direito real de habitação periódica de que é titular o Recorrido.
6ª. Está em causa a celebração de um contrato de cedência de um direito real de habitação periódica celebrado entre uma sociedade com sede na -- Zona Franca da Madeira - sendo que a única ligação da Recorrente é essa mesma - e um cidadão italiano que tem por objecto a cedência do gozo de um apartamento localizado no Principado do Mónaco.
7ª. Não estando prevista no contrato qual a lei aplicável, importa em consideração o disposto na Convenção sobre a lei aplicável às obrigações assinada em Roma no dia 19.06.1980 que estabelece, na falta de escolha da lei aplicável pelas partes contratantes, o princípio segundo o qual o contrato é regulado pela lei do país com o qual apresente uma conexão mais estreita.
8ª. Resulta do nº 3 do artigo 4° da mesma Convenção que, quando
o contrato tiver por objecto um direito de uso de um bem imóvel - como é o caso dos autos - presume-se que o contrato apresenta uma conexão mais estreita com o país onde o imóvel se situa.

9ª. No caso em apreço, estamos perante uma cedência à Recorrente do direito real de habitação periódica de
que é titular o Recorrido, tendo por objecto um apartamento sito em Monte Carlo, pelo que o contrato está sujeito à lei aplicável no Principado do Mónaco.

10ª. Errou a Mma. Juiz a quo ao considerar que estamos perante um contrato de prestação de serviços inominado sujeito à lei portuguesa.
11ª. Resulta do nº 1 do artigo 6440 do Código de Processo Civil que cabe recurso de apelação da decisão, proferida em lª instância, que ponha termo à causa e estabelece o n" 3 do mesmo preceito legal que as restantes decisões proferidas pelo tribunal de la instância podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto da sentença.
12ª. Esta disposição permite à Recorrente colocar e discutir a questão
relativa à não audição da testemunha BF, considerada fundamental para o conhecimento dos factos e para a boa decisão da causa.

13ª. Trata-se de uma testemunha BF que foi arrolada por ambas as partes e, não obstante as tentativas efectuadas, não foi possível ouvi-la por video conferência porquanto mudou de residência depois de ter sido indicada como testemunha nos requerimentos probatórios, tendo passado a residir em Monte Carlo (Mónaco).
14ª. Resulta do nº 4 do artigo 5020 do Código de Processo Civil que
as testemunhas residentes no estrangeiro são inquiridas por teleconferência sempre que no local da sua residência existam os meios técnicos necessários;

15ª. É sabido que Principado do Mónaco não faz parte da União Europeia e, como tal, não está abrangido pelo disposto no Regulamento (CE) nº 1206/2001 de 28.05.2001 do Concelho da União Europeia que estabelece normas para a inquirição de testemunhas por video conferência.
16ª. Não obstante, resulta do autos que a testemunha em causa se disponibilizou p ara se deslocar ao Tribunal de Gênova para ser ouvida por video conferência, o que não foi aceite pela Mma. Juiz a quo.
17ª. Estando prejudicada a possibilidade legal de ouvir a referida testemunha por videoconferência, não restava outra hipótese que não fosse a expedição de uma carta rogatória para a Justiça Monegasca.
18ª. A Mma. Juiz a quo deu como provado que a sociedade SCA
Castel Monte Carlo tem como gerente a testemunha Bertola Fíoravante, sendo certo que a maior parte dos factos dados pelo Tribunal como Provados e Não Provados referem-se ou dizem respeito a esta sociedade.

19. Assim sendo, não se compreende nem se aceita que a Mma. Juiz a quo tenha indeferido o pedido de expedição de uma carta rogatória para o Principado no Mónaco com o argumento de que não se retirava da prova produzida uma óbvia essencialidade do depoimento da aludida testemunha.
20ª. O argumento do tempo também não colhe porque não estava demonstrado qual o tempo estimado para o cumprimento da carta rogatória e, independentemente deste aspecto, tal facto não pode sobrepor-se a um interesse superior que é, de forma clara e inequívoca, o da procura da verdade material tendo em vista a justa composição do litígio (cfr. art. 6° do CPC).
4. O A apresentou contra-alegações, as quais termina pugnando pela confirmação da sentença recorrida, por não ser merecedora de censura.

5. Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

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II- FUNDAMENTAÇÃO.

1. De facto.
                      
É a seguinte a factualidade provada (f. p.) constante da decisão recorrida e que não se mostra impugnada:

1. Em documento escrito, assinado por autor e ré, através de seu representante, datado de 9 de Junho de 2010, intitulado de “Mandato de Gestão”:

(i) o autor aí designado como “Mandante”, declarou encarregar a ré, identificada como “Mandatária”, que através do seu legal representante declarou aceitar o encargo, de alugar o apartamento denominado “ST.10”, integrado no edifício “...”, situado em Avenue ..., Montecarlo, Mónaco, durante o período designado por “C-4”;
(ii) mais declararam as partes que esse mandato era celebrado pelo prazo de seis anos.
(iii) declararam também que a Ré poderia dispor do referido período de utilização do apartamento como entendesse, sem obrigação de prestar contas ao Autor.
(iv) a Ré, em contrapartida, declarou garantir ao Autor a retribuição de quarenta e cinco mil euros por todo o tempo do contrato, a pagar em 6 prestações anuais de sete mil e quinhentos euros cada.
(v) declaram ainda que essas prestações deviam ser pagas, a 1ª até 9 de Junho de 2011, a 2ª até igual dia de 2012, e assim sucessivamente, até final do contrato.
(vi) declararam também as partes que depois de a ré receber o saldo do preço da compra das quotas da “C”, contratada também a 9 de Junho  de  2010, a  Ré  emitiria  a  favor do autor, a  pedido  deste,  uma  garantia bancária para assegurar o pagamento das sobreditas prestações anuais.
(vii) declararam igualmente que as despesas de gestão ordinária relativas ao período de estadia e por todo o tempo do arrendamento serão a cargo da Mandatária, a qual pagará directamente à C. As despesas de gestão extraordinária (caso existam) serão a cargo do Mandante (alínea A).

2. O autor pagou o saldo daquele preço, no valor de trinta mil euros, na data do seu vencimento, mas a ré não procedeu à entrega da garantia bancária, apesar daquele o ter solicitado (alínea B)).

3. A ré não procedeu ao pagamento ao Autor das duas primeiras prestações vencidas (alínea C)).

4. No dia 1 de Junho de 2011 a mandatária da ré enviou uma carta ao autor, onde chamava a atenção para a grave crise existente no mercado imobiliário e o facto de não ter obtido resultados positivos no que diz respeito ao arrendamento do mencionado apartamento (ponto 1.).

5. A ré transmitiu, nessa mesma carta, que estavam reunidos os pressupostos para se poder libertar das obrigações que assumiu no âmbito do “Mandato de Gestão” (ponto 2.).

6. Com data de 14 de Outubro de 2011, a sociedade C enviou uma carta ao autor onde referia que em anexo era enviada cópia da acta da assembleia-geral ordinária da C que se realizou em 7 de Outubro de 2011 (ponto 3.).

7. Na carta referida em 6. foi solicitado ao autor o pagamento da quantia de  € 406,20 euros com a referência de que “esta soma corresponde ao montante devido pelo adiantamento de uma prestação de 0,60 € por cada parte social que lhe pertence.” (ponto 4.).

8. O autor não procedeu ao pagamento da quantia de € 406,20 (ponto 7.).

9. Com data de 20 de Dezembro de 2011, a ré enviou ao autor uma carta na qual comunicava a resolução do acordo (“Mandato de Gestão”) por razões imputáveis a este com o seguinte teor: “A sociedade C informou -nos do facto de que, até, hoje, não providenciou o pagamento das rubricas de despesa solicitadas e deliberadas durante a assembleia de 07.10.2011. Este seu incumprimento, nos termos do art. 23.2) e dos artigos 54.1) e 54.2) dos Estatutos da C, tem como consequências a perda por sua parte do usufruto do imóvel pelo período que lhe está atribuído. Neste momento, tal situação não nos permite propor no mercado de locação o usufruto do apartamento, o que constitui da sua parte um grave incumprimento ao contrato de gestão subscrito em devido tempo. Em resultado do acima exposto, o contrato supracitado deve entender-se como resolvido por facto e culpa a si imputável, com o consequente direito da MT, Lda a ver reconhecido o seu direito ao ressarcimento dos danos, que nos reservamos de quantificar proximamente.” (ponto 10.).

10. Com data de 3 de Agosto de 2012 a sociedade C enviou uma nova carta ao autor reclamando os valores em dívida para com aquela sociedade, no montante total de € 1 753, 99 (ponto 11.).

11. A sociedade C tem como gerente BF (ponto 13.).

12. MM, residente em Génova, Itália, outorgou o acordo referido em 1 em representação da sociedade MT, Lda, bem como o acordo de cessão de acções da C que consta de fls. 139 a 141 dos autos, na qualidade de representante do senhor RB, representante legal da sociedade MT, Lda, em virtude de procuração lavrada em 23 de Março de 2007 (ponto 14.)        
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2. De direito:

Sabe-se que é pelas conclusões das alegações que se delimita o âmbito da impugnação, como decorre do estatuído nos art.ºs 635º nº 4 e 639º nº 1, ambos do Código de Processo Civil[4].

Decorre daquelas conclusões dos recorrentes que as questões que importaria[5] dilucidar e resolver se podem equacionar da seguinte forma:

1ª: Houve erro na aplicação do direito ao indeferir-se o pedido de expedição de carta rogatória para o Principado do Mónaco, com vista à audição da testemunha BF?
2ª: O contrato celebrado entre as partes está sujeito à lei aplicável no Principado do Mónaco, tendo havido erro do tribunal a quo ao qualificar o contrato em causa como de prestação de serviços inominado, sujeito à lei portuguesa?

Vejamos pois.
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2.1. Indeferimento da carta rogatória.

A apelante insurge-se contra o despacho proferido a 13.05.2014[6] que, apreciando o requerimento da R, em que solicita a inquirição da testemunha BF por carta rogatória, indeferiu tal pretensão (cfr. conclusões 11ª a 20ª das conclusões).

Invocando o art.º 644º nºs 1 e 3 alega a apelante que tal decisão pode ser impugnada com o recurso que venha a ser interposto da sentença (cfr. conclusão 11ª).

Ora, não cremos que assim seja.

Na verdade, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 644º nº 2 al. d) e 638º nº 1, cabe recurso de apelação autónoma, no prazo de 15 dias, do despacho “de admissão ou rejeição de algum articulado ou meio de prova”.

Nesta medida, o despacho em causa, ao não admitir um meio de prova, a expedição de uma carta rogatória para audição de uma testemunha, devia ter sido impugnado pela R no prazo de 15 dias. Ora, tendo-o impugnado apenas quando interpôs recurso da sentença, em 24.09.2014, já há muito tinha o mesmo transitado em julgado (cfr. art.º 628º).

Nesta medida, não há que conhecer do recurso, quanto a esta questão.                     
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2.2. Qualificação do contrato e lei aplicável [7]

A decisão recorrida, depois de proceder à análise do contrato em causa nos autos e de afastar a sua qualificação como contrato de mandato ou contrato de mediação imobiliária, conclui que entre as partes foi celebrado um contrato de prestação de serviços inominado.

Após ponderou-se, na decisão recorrida, que havia elementos de conexão com várias ordens jurídicas e que, não tendo as partes escolhido qual a lei pela qual se regeria o contrato, devia ser regulado pela lei do país em que o prestador de serviços tem a sua residência habitual, em face do disposto no art.º 4º nº 1 al. c) do Regulamento nº 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho de 17 de Junho de 2008 sobre a lei aplicável às obrigações contratuais em matéria civil e comercial, que impliquem um conflito de leis.[8]

Mais se ponderou, na decisão recorrida, que estatuindo o Regulamento que a residência habitual das sociedades é o “local onde se situa a sua administração central”, no momento da celebração do contrato (cfr. art.º 19º nºs 1 e 3 do Regulamento) e atendendo que a R tem a sua sede no Funchal, conclui-se depois que a lei pela qual se deve reger o contrato é a lei portuguesa.

A apelante insurge-se contra estas conclusões, por entender que estamos perante “uma cedência do gozo de um direito real de habitação periódica”, vulgar e internacionalmente conhecido por time-sharing, que foi instituído em Portugal pelo DL 355/81 de 31.12, depois substituído pelo DL 130/89 de 18.04 e que, face ao princípio consagrado no art.º 4º nº 1 da Convenção de Roma de 19.06.1980 (80/934/CEE), sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, nos termos do qual o contrato é regulado pela lei do país com o qual apresente uma conexão mais estreita e ao disposto no nº 3 do mesmo preceito, nos termos do qual se presume que o contrato apresenta uma conexão mais estreita com o país onde o imóvel se situa quando o contrato tem por objecto o direito de uso de um bem imóvel, a lei aplicável deve ser a do Principado do Mónaco.

Vejamos.

É inquestionável que as partes não designaram, no contrato, o regime jurídico a que o mesmo ficava submetido. Por outro lado, também é certa a conexão do contrato em causa com várias circunstâncias de facto que podem ser relevantes para aferir qual o regime jurídico que lhe deve ser aplicável. Desde logo o facto de o contrato ter sido celebrado em França[9], de o A ser cidadão italiano e de o contrato estar redigido na língua italiana, bem como de a R ser uma sociedade comercial de direito português, com sede em Portugal, a que acresce a circunstância de, através do contrato, se conferirem poderes para “alugar” o direito de gozo de um apartamento situado no Mónaco.
       
Nesta medida impõe-se apurar qual a lei reguladora do negócio jurídico em causa e das obrigações resultantes do mesmo.

As normas pertinentes para proceder a tal exercício afiguram-se-nos serem os art.ºs 35º e 41º do Código Civil (CC) e os pertinentes preceitos do Regulamento 593/2008, a analisar infra.

Mas já não, ao contrário do que pretexta a apelante, a Convenção de Roma de 19.06.1980 porquanto se deve considerar, atento o estatuído no art.º 24º nº 1 do Regulamento 593/2008, que tal Convenção foi “substituída entre os Estados membros”, como são Portugal e Itália, por aquele regulamento, sem prejuízo, claro de, por força do princípio de aplicação universal, a lei designada pelo regulamento poder ser aplicável “mesmo que não seja a lei de um Estado-membro” (cfr. art.º 2º do Regulamento).
   
Já vimos que as partes não designaram a lei aplicável ao contrato, pelo que a regra da liberdade de escolha, prevista no art.º 41º nº 1 do CC e art.º 3º nº 1 do Regulamento, não pode operar.

E analisado o acordo contratual celebrado entre as partes, que estas denominaram de “mandato de gestão”, não cremos que possam extrair-se dele elementos para afirmar que as partes tiveram em vista uma determinada lei, para regular as obrigações resultantes do mesmo, pelo que não se nos afigura possível recorrer a esse critério, previsto na parte final do nº 1 do art.º 41º do CC e por remissão no art.º 35º nº 1, do mesmo diploma, para interpretar as declarações negociais e determinar as obrigações emergentes do contrato.

Assim sendo e não se enquadrando a situação em análise nos art.ºs 5º a 8º do citado Regulamento, há que determinar a lei aplicável em função da integração do contrato numa ou em várias das diversas alíneas do nº 1 do art.º 4º do Regulamento, sem prejuízo de se aferir, posteriormente a esta análise, da eventual aplicabilidade da previsão dos nºs 2 a 4 do mesmo preceito.

Partindo para essa análise não podemos deixar de o fazer em face dos termos do acordo celebrado entre as partes, pois essa é uma regra, diríamos que universal, de interpretação da vontade dos contraentes.

Por outro lado, pese embora a qualificação contratual efectuada pelas partes não vincule o tribunal, na medida em que este é livre na “indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” (cfr. art.º 5º nº 3 do CPC), nada impede, muito pelo contrário, tudo aponta para a necessidade de tomar em consideração essa qualificação e de saber se as cláusulas acordadas a confirmam ou infirmam.

Como vimos as partes denominaram o acordo de “mandato de gestão”, o que aproxima o contrato em causa muito mais da qualificação operada pelo tribunal a quo – na medida em que o mandato é uma modalidade do contrato de prestação de serviços - do que do “contrato de cedência de um direito real de habitação periódica” que a apelante pretexta ter sido celebrado. No mesmo sentido vão as denominações adoptadas no acordo, para o A de “mandante” e para a R de “mandatária” e não outras denominações, como “cedente” e “cessionário”, ou “proprietário/senhorio” versus “arrendatário”. Assim como a previsão, na cláusula 5ª de “revogação do mandato”. Ainda nesse sentido a forma como as partes encararam a execução do contrato, nomeadamente a R na carta de 20.12.2011, ao apelidá-lo de “contrato de gestão” (cfr. nº 9 da f. p.)
 
Acresce que os termos convencionados pelas partes também não são favoráveis à tese da apelante.

Na verdade, o acento tónico do contrato não é colocado na cedência do direito real de habitação periódica, por parte do A à R., para esta usufruir do mesmo. Antes tal acento tónico é colocado na vontade do A de “alugar” uma sua propriedade, considerando-se como tal o direito a gozar, por um determinado período, um apartamento situado no Mónaco – v. considerandos do acordo – e, para o efeito, confere à apelada o “encargo” de proceder a esse aluguer, por aquele período, o que a apelante “aceita”.

Em bom rigor, porém, dos demais termos do contrato extrai-se que não se trata propriamente de um “encargo”, mas antes da concessão dos poderes necessários para a apelada poder “dispor dos períodos de utilização nos termos mais apropriados” (cfr. cláusula 7), a que acresce que tal é feito “sem [a apelada] ter a obrigação de dar satisfação dos … recebimentos relativos aos arrendamentos” (idem, cláusula 7).

Por outro lado, a contrapartida do A conceder poderes à R para gerir ou “alugar" o apartamento e receber as rendas, sem ter que lhe prestar contas, foi o convencionado pagamento de um valor global e fixo de € 45 000,00, a satisfazer em seis prestações anuais de € 7 500,00 cada (cfr. cláusula 2).

Assim, perante os termos convencionados pelas partes, não cremos que tenha fundamento defender-se que o contrato em causa “tem por objecto um direito real sobre um bem imóvel ou o arrendamento de um bem imóvel” (sublinhados da nossa autoria, evidentemente, assim como os subsequentes), com vista a reger-se pela “lei do país onde o imóvel se situa”, ao abrigo da al. c) do nº 1 do art.º 4º do Regulamento 593/2008.

Na verdade, os poderes conferidos para a R gerir ou “alugar” o direito de gozo do apartamento por um determinado período e a prestação convencionada pela R, de proceder a esse “aluguer”, não podem qualificar-se como um “direito real” sobre um imóvel, mesmo na perspectiva do direito da apelante como “direito real de habitação periódica” e não mero “direito de habitação turística”[10]. Uma coisa são os eventuais direitos do apelado a exercer perante o proprietário das unidades de alojamento sujeitas ao regime de direitos reais de habitação periódica, outra os poderes conferidos por aquele à apelante para gerir ou “alugar” o seu direito de usar e fruir de uma determinada unidade de alojamento, num determinado período anual. Igualmente, por estas razões, não pode considerar-se que estamos perante um “arrendamento de um bem imóvel”.

Por outro lado, cremos ser óbvia a não aplicabilidade da al. d) do nº 1 do mesmo preceito, desde logo pela exigência de estarmos perante “arrendamento de um bem imóvel celebrado para uso pessoal temporário por um período máximo de seis meses consecutivos”, desde logo por este período máximo não ser observado.

Quanto às demais alíneas, a única cuja aplicabilidade se afigura possível ser de equacionar é a da al. b) do nº 1 do citado art.º 4º, nos termos da qual, “o contrato de prestação de serviços é regulado pela lei do país em que o prestador de serviços tem a sua residência habitual”, o que aliás ocorreu com o tribunal a quo, ao qualificar o contrato em causa como de prestação de serviços inominado.

Analisada a argumentação da recorrente, não vemos fundamento para colocar em causa a qualificação operada pelo tribunal a quo e, consequentemente, a aplicabilidade da al. b) do nº 1 do citado art.º 4.  
                            
Desde logo porque não tem fundamento, como se procurou justificar supra, a qualificação do contrato celebrado entre as partes como um “contrato de cedência de um direito real de habitação periódica”.

Acresce que, como bem se justificou na decisão recorrida, pese embora a qualificação do contrato como de mandato, as próprias partes afastaram as “prestações típicas de um contrato de mandato”, ao não preverem a prestação de informações sobre o estado da gestão, bem como a comunicação da execução do mandato e, especialmente, ao afastarem expressamente a obrigação de prestação de contas da gestão ou a entrega ao mandante do que foi recebido no decurso do mandato.

Nesta medida afigura-se-nos que tem todo sentido e justificação a qualificação do contrato como de prestação de serviços inominado, sendo objecto imediato do mesmo, por parte da R., desenvolver uma actividade tendente a lograr o “aluguer” do apartamento do A num determinado período, sendo remunerada, por essa actividade, pela diferença entre o que lograsse obter desses “alugueres” e o que ficou convencionado pagar ao A., por este disponibilizar à R a possibilidade de dispor do período anual de utilização do apartamento nos termos que considerasse mais apropriados.

Aqui chegados não pode deixar de se concluir, como se fez na decisão recorrida, que o contrato em causa deve reger-se “pela lei do país em que o prestador de serviços tem a sua residência habitual”, ao abrigo da al. b) do nº 1 do citado art.º 4º do Regulamento nº 593/2008.

Por outro lado, esta conclusão não é colocada em causa pelo estatuído nos nºs 2 a 4 do citado art.º 4º.

Quanto aos nºs 2 e 4, a sua inaplicabilidade ao caso afigura-se-nos manifesta.

No que tange ao nº 3, não resulta dos autos factualidade suficiente que permita concluir que, “do conjunto das circunstâncias do caso”, o contrato em causa “apresenta uma conexão manifestamente mais estreita com um país diferente” do que o da residência habitual do prestador de serviços, ou seja, o da sede da R., Portugal. A circunstância de o direito de gozo, cuja “gestão” ficou de ser efectuada pela R, incidir sobre um imóvel localizado no Principado do Mónaco, não é elemento suficiente, cremos, para concluir que o contrato em causa apresenta uma “conexão manifestamente mais estreita” com o Principado do Mónaco. Salienta-se que o contrato não versa, directamente, sobre um imóvel situado no Mónaco, mas antes sobre a realização de uma prestação de serviços, por parte de uma sociedade com sede em Portugal. 
  
Nesta medida afigura-se-nos adequada e correcta a decisão do tribunal a quo ao concluir pela aplicabilidade da lei portuguesa ao contrato celebrado entre as partes.

Procedendo a essa aplicação também não vemos fundamento para colocar em causa a decisão do tribunal a quo de condenar a R a proceder ao pagamento ao A da retribuição acordada, face ao seu incumprimento do contrato celebrado, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 1154º, 405º nº 1, 406º nº 1, 762º nº 1, 781º e 798º, todos do CC, depois de afastar ter a R fundamento válido para resolver o contrato, questão esta – a falta de fundamento para a resolução do contrato - com a qual a apelante se conformou, pois não a suscita no recurso.

Em conclusão, não nos merecem censura quer a qualificação do contrato, quer a aplicação da lei portuguesa, levadas a cabo pelo tribunal a quo, pelo que é de concluir que é negativa a resposta à 2ª questão supra equacionada, improcedendo assim as conclusões 1ª a 10ª das alegações da apelante, impondo-se pois julgar improcedente o recurso e confirmar a decisão recorrida.
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            III- DECISÃO:

Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes que integram a ...ª Secção Cível deste Tribunal em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas a cargo da apelante.


Lisboa, 19.11.2015


António Martins
Maria Teresa Soares
Maria de Deus Correia



[1]Proc. nº 604/12.9TCFUN, da 2ª Secção das Varas de Competência Mista do Funchal, actualmente Comarca da Madeira, Funchal – Instância Central – Secção Cível – J2 
[2]Adiante designado abreviadamente de CC.
[3]Nesta peça processual a R. deduziu ainda a excepção de incompetência absoluta do tribunal, por infracção das regras de competência internacional em razão da nacionalidade, a qual foi julgada improcedente no despacho saneador, por decisão transitada em julgado. 
[4]Aprovado pelo art.º 1º da Lei nº 41/2013 de 26.06, aplicável aos presentes autos por força do disposto no art.º 5º nº 1 da citada lei, código a que pertencerão os preceitos a seguir citados sem qualquer outra indicção.
[5]Dizemos “importaria” porquanto, como adiante se justificará, não haverá que conhecer da primeira questão.
[6]Embora sem o concretizar expressamente pela data ou pela referência, como salienta o apelado, é inquestionável ser este o despacho colocado em causa pela apelante. 
[7]Quanto à lei aplicável, face à posição da apelante de que a lei aplicável era a do Principado do Mónaco e ao ónus previsto no art.º 348º do Código Civil, nos termos do qual quem invoca direito estrangeiro deve fazer a prova da sua existência e conteúdo, foi proferido despacho determinando a notificação da R. para juntar aos autos a lei do Principado do Mónaco aplicável às diversas qualificações do contrato em causa nos autos - contrato de prestação de serviços inominado como decidiu o tribunal a quo, contrato de mandato como o qualifica o A na réplica, ou contrato de cedência das faculdades do exercício do direito real de habitação periódica como o qualifica a R. nas alegações do recurso -, devidamente traduzida. Não obstante tal notificação ter sido posteriormente reiterada, a R. apelante não procedeu a junção da lei em causa e o mesmo aconteceu com o A que, não obstante não ter esse ónus, também foi convido a efectuar tal junção, querendo.
Por outro lado, não obstante este Tribunal ter procurado, oficiosamente, obter junto do Gabinete de Documentação e Direito Comparado da Procuradoria-Geral da República a colaboração desta entidade, no sentido de nos ser remetida a lei do Principado do Mónaco aplicável às diversas qualificações do contrato em causa, os nossos esforços não foram coroados de êxito, tendo-nos sido remetida apenas a informação constate de fls 662.  
[8]Regulamento denominado Roma I, aplicável às obrigações contratuais de contratos de matéria civil e contratual, celebrados após 17.12.2009, que impliquem um conflito de leis – cfr. art.ºs 1º nº 1, 28º e 29º do Regulamento.
[9]No contrato refere-se como local “Li”, sendo tal facto, a celebração do contrato em França, alegado no art.º 67º da contestação, o qual não foi impugnado na réplica.
[10]Saliente-se que a factualidade provada é insuficiente para afirmar, como pretexta a apelante, que é titular de um “direito real de habitação periódica”, vulgarmente conhecido por “time-sharing”, isto à luz do direito português, atendendo à diferença de regime entre o “direito real de habitação periódica” e o “direito de habitação turística”, face ao disposto nos art.ºs 1º e segs. e 45º e segs do DL 275/93 de 05.08.

Decisão Texto Integral: