Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4140/2007-7
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores: VALOR DA CAUSA
PROTECÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS
ACESSO AO DIREITO
MENORIDADE
OMISSÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/29/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO O PROVIMENTO
Sumário:
I- Ministério Público não carece de indicar o valor da acção no processo judicial de promoção e de protecção referenciado na Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro).
II- Uma decisão que, por falta de indicação do valor imponha em processos desta natureza a extinção da instância, impede, de forma manifestamente excessiva e desproporcionada, o direito de acção do Estado no sentido de promover a defesa dos direitos das crianças e de as proteger do perigo (artigo 20.º da Constituição da República).

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa


1. O Ministério Público junto do Tribunal de Família e Menores de Sintra veio pedir a abertura da instrução e a realização de diligências de instrução, no âmbito de um processo de promoção e protecção relativo à menor […], alegando que a mesma se encontra numa situação de perigo, a que urge pôr cobro, aplicando-se uma das medidas de protecção previstas no art. 35º, da LPCJP.

2.
Foi proferido despacho convidando o requerente a indicar, no prazo de 10 dias, o valor da causa, sob a cominação de a instância se extinguir.

O Ministério Público não correspondeu ao convite, pelo que foi proferido despacho que julgou extinta a instância.

3. Inconformado, agrava o M.ºP.º e, nas suas alegações, em conclusão, diz:

O processo de promoção e protecção rege-se por regras próprias, só  subsidiariamente sendo aplicável o processo civil, e ainda assim, «com as necessárias adaptações».


A atribuição do valor da causa nestes processos afigura-se desnecessária, por estarem pré-definidos os pressupostos processuais, designadamente a competência do tribunal, a forma de processo e a instância de recurso, sendo certo que estes processos estão isentos de tributação.

4. Cumpre apreciar e decidir, sendo os elementos a considerar para a decisão do recurso os constantes do relatório.

5. Sobre a questão submetida a nossa apreciação, não tem havido unanimidade na jurisprudência produzida nesta Relação. Estamos, porém, sem qualquer hesitação, com a corrente jurisprudencial (que supomos maioritária) que defende que a falta de indicação do valor da causa não é, nos processos como o dos autos, causa de extinção da instância.

Procuraremos, por isso, demonstrar que a promoção dos direitos e a protecção das crianças e dos jovens em perigo não pode ficar paralisada por incidentes de natureza processual.

Vejamos, então.

5.1. Como se sabe, no processo civil, a obrigação de indicar o valor da causa logo na petição inicial (art. 467º, nº1, al. f), do CPC) é essencial para determinar a  competência do tribunal, a forma do processo comum e a relação da causa com a alçada do tribunal. Por sua vez, para efeito de custas e demais encargos legais, estabelece o nº3, daquele artigo que o valor da causa é fixado segundo as regras estabelecidas na legislação respectiva.

Assim, em princípio, não pode haver processo sem valor, uma vez que do valor depende o regime dos recursos e pode depender a competência do tribunal e a forma do processo. Daí a razão de ser de cominação tão severa como a imposta no art.314º, nº3, 1ª parte, do C.P.C., segundo o qual, quando a petição inicial não contenha a indicação do valor e, apesar disso, haja sido recebida, deve o autor ser convidado, logo que a falta seja notada e sob a cominação de a instância se extinguir, a declarar o valor (cf.
Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol.3º, pág.687).

Não será, porém, assim no caso que analisamos.

Tenha-se em consideração que o processo judicial de promoção e protecção é constituído pelas fases de instrução, debate judicial, decisão e execução da medida (art. 106º, LPCJP) e, na fase de debate judicial e de recursos, (e apenas nestas) é-lhe aplicável, subsidiariamente, com as devidas adaptações, as normas relativas ao processo civil de declaração sob a forma sumária (art.126º, da LPCJP).

Assim sendo, uma conclusão se impõe:

Estando o processo a que os autos se reportam (ainda) na fase de instrução não lhe são aplicáveis as disposições do processo civil, designadamente as que impõem a indicação do valor da causa logo no articulado inicial.

5.2. Ainda assim:

Nas fases de debate judicial e de recursos, em que, como já se disse, lhe são aplicáveis subsidiariamente as normas do processo sumário de declaração, o processo de promoção e protecção, sendo um processo especial, rege-se em primeiro lugar pelas disposições que lhe são próprias (art. 463º, nº1, CPC). De entre estas, há que atender ao art.101º, da LPCJP, que atribui aos tribunais de família e menores a competência para a instrução e o julgamento;[1] ao art.115º, da mesma Lei que define a composição do tribunal e ainda ao art.123º, nos termos do qual, cabe recurso das decisões que, definitiva ou provisoriamente, se pronunciem sobre a aplicação, alteração ou cessação de medidas de promoção e protecção.[2]

Ou seja:

Mesmo nos campos em que, no processo civil, o valor da causa é, em regra, convocado a desempenhar uma função relevante, no processo de promoção e protecção, qualquer que seja o valor da causa,[3] a competência para a instrução e julgamento cabe sempre ao tribunal de família e menores, ou ao tribunal de comarca constituído como tal. Por sua vez, a forma de processo, sendo especial, não está dependente do valor da causa (arts.460º a 462º, do C.P.C.). Finalmente, em matéria de recursos, por força do disposto no art. 126º, da LPCJ, é sempre admissível recurso até à Relação (cf.. art. 678º, nº1, do CPC).

Sendo assim, não assumindo o valor da causa qualquer função de relevo no âmbito dos processos de promoção e protecção, repugnaria por certo à consciência jurídica que a não indicação do valor pudesse ser sancionada com a extinção da instância.

Acresce que:

Estamos perante um processo de jurisdição voluntária. Isto implica, desde logo, que se lhe apliquem as regras constantes dos artigos 1409º e seguintes do Código de Processo Civil, regras que, no essencial, ampliam o poder de cognição do tribunal em matéria de facto e no domínio da prova (artigo 1409º, n.º 2), atribuem ao juiz o poder de julgar segundo critérios de conveniência e oportunidade (artigo 1410º) e permitem alterar as medidas decretadas quando as circunstâncias o justifiquem, sem que a força de caso julgado própria das decisões judiciais o impeça (artigo 1411º n.º 1, sempre do Código de Processo Civil).

Mas não só.

Como ensinam A. Varela, J. M. Bezerra e S. Nora, Manual de Processo Civil, «nos processos de jurisdição contenciosa, que constituem a regra, há um conflito de interesses entre as partes (credor e devedor; proprietário e possuidor; locador e locatário; etc.) que ao tribunal incumbe dirimir, de acordo com os critérios estabelecidos no direito substantivo. Nos processos de jurisdição voluntária há um interesse fundamental tutelado pelo direito (acerca do qual podem formar-se posições divergentes), que ao juiz cumpre regular nos termos mais convenientes. [...] Nos processos de jurisdição voluntária (...), a função exercida pelo juiz não é tanto de intérprete e aplicante da lei, como de verdadeiro gestor de negócios – negócios que a lei coloca sob a fiscalização do Estado através do poder judicia.»

O tribunal é, assim, colocado perante a necessidade de adoptar as medidas mais adequadas à prossecução do interesse que lhe cabe acautelar, não se esperando que adopte uma posição exigida no comum dos processos, valorando de igual forma os interesses de que as partes são portadoras. De facto, por muito que exista controvérsia no âmbito da jurisdição voluntária, acima do interesse de cada um dos envolvidos nessa controvérsia está aquele que justifica a inclusão do processo no âmbito da jurisdição voluntária.

5.3. Nesta perspectiva, compreende‑se que se considere essencial responder à seguinte pergunta: será conforme ao ar­tigo 20.º, n.º 1, da CRP considerar que a falta de indicação do valor da causa, no requerimento de abertura de instrução, determina a extinção da instância?

Ora bem.

O acesso ao direito e aos tribunais, condensado no art. 20º, da Constituição, implica a garantia de uma protecção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efectiva. Por outras palavras: o direito de acesso aos tribunais inclui, no seu âmbito normativo, o direito de acção, isto é, o direito subjectivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional, solicitando a abertura de um processo, com o consequente dever de obter uma decisão, em prazos razoáveis, o que se reveste de particular sensibilidade nos casos (como o dos autos) em que estão em causa direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas.

Observe-se também que «a Constituição não enuncia expressamente  quaisquer princípios ou garantias a que deva subordinar-se o processo judicial em geral, salvo o consignado nos arts. 209º e 210º. É, todavia, inquestionável, que as regras do processo, em geral, não podem ser indiferentes ao texto constitucional de que decorrem implicitamente, quanto à sua conformação e organização, determinadas exigências impreteríveis, que são directo corolário da ideia de estado de direito democrático» (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP, anotada, 163).

O que acaba de se expor assume particular significado nos processos como o dos autos, uma vez que a promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo incumbe precisamente ao Estado, através dos seus órgãos próprios (cf. Estatuto do Ministério Público - Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro, com as alterações introduzidas pelas Leis nºs 2/90, de 20 de Janeiro, 23/92, de 20 de Agosto, 10/94, de 5 de Maio e 60/98 de 27 de Agosto – e, ainda, os arts. 6º e ss., da LPCJP), não podendo estes, salvo razões muito ponderosas, deixar de agir em conformidade com os poderes que lhes estão atribuídos.

Além disso, a intervenção obedece a determinados orientadores, enunciados no art. 4º, da LPCJP, dos quais se salienta o do interesse superior da criança (que prevalece sobre quaisquer outros) e o da intervenção precoce (que obriga a uma actuação das entidades responsáveis tão rápida quanto possível). Precisamente para garantir uma resposta eficaz e imediata, estes processos são de natureza urgente e não estão sujeitos a distribuição (art. 102º, da LPCJP).

Como se escreveu no Ac. Trib. Const. Nº 52/2007, de 30/1/2007, de que foi relator o Exmo. Juiz Conselheiro Pamplona de Oliveira, a respeito da legitimidade para intervir num processo de regulação do exercício do poder paternal de quem detinha a guarda de facto, “no julgamento desta questão, é inevitável fazer apelo ao parâmetro constitucional que garante a tutela jurisdicional efectiva, constante do n.º 1 do artigo 20º da Constituição, o qual assegura "a todos" o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos. O Tribunal Constitucional tem interpretado esta garantia no sentido da proibição de regimes adjectivos que em absoluto retirem a uma das partes o seu direito de defesa.”

Ora, a decisão recorrida, ao extinguir a instância por falta de indicação do valor da causa, impede, de forma manifestamente excessiva e desproporcionada, o direito de acção do recorrente, no sentido de promover a defesa dos direitos das crianças e de as proteger do perigo, sendo certo que, por força da lei (art. 72º, nº3, da LPCJP), lhe «compete, de modo especial, representar as crianças, propondo acções, requerendo providências e usando de quaisquer meios judiciais necessários à promoção e defesa dos seus direitos e à sua protecção».

Conclui-se, pois, que, do ponto de vista constitucional, ficaria violado o direito de acesso à tutela jurisdicional efectiva, consagrado no n.º 1 do artigo 20º da Constituição, se, nestas circunstâncias, não for permitido ao Ministério Público requerer as diligências de instrução que reputa indispensáveis à salvaguarda dos interesses da criança.

6. Em face do exposto, concedendo provimento ao recurso, acorda-se em revogar a decisão recorrida, devendo o processo prosseguir os seus termos.

Sem custas.


Lisboa, 29 de Maio de 2007

(Maria do Rosário Morgado)

(Rosa Ribeiro Coelho)

(Arnaldo Silva)

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[1] Evidentemente, fora das áreas abrangidas pela jurisdição especializada cabe ao tribunal da respectiva comarca conhecer das causas que àquele estão atribuídas, constituindo-se, para o efeito, em tribunal de família e menores.
[2] Tendo legitimidade para recorrer, de acordo com o nº2, do mesmo artigo, o M.ºP.º, a criança ou o jovem, os pais, o representante legal e quem tiver a guarda de facto da criança ou do jovem.
[3] Evidentemente, o valor desta acção, tratando-se, como se trata, de interesses imateriais, seria sempre de valor equivalente à alçada da Relação e mais €0,01 (art. 312º, CPC).