Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
26107/20.0T8LSB.L1-1
Relator: NUNO TEIXEIRA
Descritores: REMUNERAÇÃO
ADMINISTRADOR JUDICIAL PROVISÓRIO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I – Se o despacho que fixou a remuneração ao administrador judicial provisório foi proferido em data posterior à da entrada em vigor da Lei nº 9/2022, de 11 de Janeiro, é aplicável o regime legal previsto no artigo 23º do Estatuto do Administrador Judicial (aprovado pela Lei nº 22/2013, de 26 de Fevereiro), na redacção que lhe foi dada pela referida Lei.
II – Para efeitos do cálculo da remuneração variável do administrador judicial provisório, nos termos do artigo 23º, nº 4, alínea a) do Estatuto do Administrador Judicial, o montante do valor da recuperação é o valor do perdão dos créditos.
III – A majoração de 5%, prevista no artigo 23º, nº 7 do Estatuto do Administrador Judicial, será aplicável aos planos de recuperação aprovados e homologados, apenas se e quando o próprio plano preveja que parte dos créditos sejam satisfeitos por via de liquidação de bens, designadamente nos casos previstos nos artigos 195º, nº 2, alínea c) e 196º, nº 1, alínea e) do CIRE.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa,

1. O administrador judicial provisório nomeado no processo especial de revitalização nº 26107/20.0T8LSB, A., veio recorrer do despacho que lhe fixou a remuneração global em 2.000,00€, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
a) Por douto despacho proferido nos autos no dia 23.05.2022 foi homologado o plano de revitalização apresentado pela devedora, previsto no art.º 17-F n.ºs 5 e 7 do CIRE;
b) No referido despacho foi também fixada a remuneração do administrador judicial provisório, ora apelante, em €2.000,00 (dois mil euros);
c) O tribunal a quo aplicou a Lei nº 22/2013 de 26 de Fevereiro (sem as alterações decorrentes da Lei n.º 9/2022) com fundamento de que a atividade relevante do Sr. Administrador Judicial provisório decorreu antes da respetiva entrada em vigor;
d) À data da prolação do referido despacho, encontrava-se já em vigor a mais recente alteração legislativa ao Estatuto do Administrador Judicial introduzida pela Lei 9/2022, designadamente no seu art.º 5º, segundo o qual o art.º 23 n.º 1 do EAJ passou a prever expressamente a remuneração fixa de €2.000,00 para todos os processos de recuperação, incluindo o PER.
e) O n.º 4 do referido preceito legal prevê também a fixação de uma remuneração variável, considerando-se resultado da recuperação o valor determinado com base no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano;
f) No n.º 1 do seu artigo 10º a Lei 9/2022 determina que: “Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, a presente lei é imediatamente aplicável aos processos pendentes na data da sua entrada em vigor”;
g) As exceções à sua aplicabilidade elencadas nos números 2 a 4 do referido preceito legal não se subsumem à questão sub judice, designadamente quanto à remuneração do administrador judicial.
h) A decisão judicial de que se recorre aplicou as regras da fixação da remuneração nos termos da primitiva Lei nº 22/2013 de 26 de Fevereiro, sem as alterações decorrentes da Lei n.º 9/2022, com fundamento de que toda a atividade relevante do Sr. Administrador Judicial provisório decorreu à luz da lei anterior.
i) Acreditamos que o legislador foi claro na regulamentação da aplicação da lei no tempo ao estabelecer, na referida Lei 9/2022, um regime transitório especial para os processos pendentes à data da sua entrada em vigor.
j) Com efeito, na redação do seu art.º 10 lê-se o seguinte: “Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, a presente lei é imediatamente aplicável aos processos pendentes na data da sua entrada em vigor”.
k) A terminologia utilizada não parece oferecer oportunidade a interpretações diversas que não a aplicação imediata da Lei.
l) Aliás, os demais números do referido preceito legal estabelecem exceções à sua aplicabilidade em situações muito especificas que nada estão relacionadas com a fixação da remuneração ao administrador judicial provisório (…);
m) Acreditamos que a pretensão do legislador foi de afastar os juízos de equidade que pautavam as decisões judiciais de fixação da remuneração do Administrador Judicial Provisório e que “entupiram” os tribunais superiores de recursos.
n) É assumida a importância no tratamento da questão da remuneração do AJ, e em geral na perspectiva financeira da sua actuação: clareza dos valores aplicáveis e do seu pagamento.
o) Está em causa, aliás, um evidente corolário do princípio da segurança e certeza jurídicas, aqui encarado na vertente da cognoscibilidade, estabilidade e previsibilidade do direito, que possibilita às pessoas prever os efeitos jurídicos da vida social, conhecer os seus direitos e deveres, saber, em suma, com o que contam na ordem jurídica.
p) Sempre se dirá, em jeito de conclusão, o seguinte:
q) Antes da referida reforma de 2022, vasta é a jurisprudência no sentido da fixação de uma componente fixa e variável ao administrador judicial provisório (cfr. por todos citamos o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 9.02.2017);
r) À luz da nova Lei 9/2022, designadamente no art.º 23 n.ºs 1, 4, alínea a) e 5 do EAJ, a remuneração do ora apelante passará a fixar-se da seguinte forma: - €2.000,00 a título de remuneração fixa (art.º 23 n.º 1 do EAJ);
s) Os administradores judiciais auferem ainda uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor, cujo valor é calculado nos termos do artigo 23º, nº 4, alínea a) do EAJ.
t) O legislador refere-se a um conceito – “situação líquida” – sem o definir, sem referir sequer a que se reporta e aparentemente a despropósito, pois face ao corpo do nº 4 e ao nº 5, tudo apontava para que o único critério relevante fosse “o resultado da recuperação do devedor”.
u) No sentido de agilizar o referido cômputo remuneratório a Associação Portuguesa de Administradores Judiciais forneceu a todos os seus associados, como guia, uma proposta de cálculo, conforme tabela supra in art.º 31;
v) Ou seja, à data da apresentação do PER a devedora relacionou na sua petição inicial o montante de €584.531,43 (cfr. doc.16 do requerimento de 5.12.2020).
w) O plano de recuperação homologado implementou a medida de perdão total dos juros vencidos e um perdão de 25% do capital em divida, excecionando-se os créditos do Instituto da Segurança Social (doravante ISS) que não beneficiaram de qualquer medida restritiva.
x) Previu também a conversão dos créditos subordinados, do montante de €6.770,03, em capital.
y) Pelo que, ao valor de €584.531,43, subtraiu-se os créditos do ISS do montante de €3.057,94, e bem assim o perdão de 25% do capital em divida de €145.368,37, acrescido do aumento de capital, ficando assim com a situação líquida de €432.393,03.
z) Por sua vez, a referida situação líquida em comparação com o valor dos créditos reclamados e admitidos em sede de elaboração da lista provisória de credores, prevista no art.º 17 n.º 2 e 3, junta aos autos em 29.03.2021, atribui um grau de satisfação dos créditos de 76,53%.
aa) O somatório das duas parcelas – remuneração em função da situação líquida e em função da satisfação dos créditos – fixa uma remuneração variável global de €64.858,95, acrescida de IVA à taxa legal.
bb) A remuneração variável relativa ao resultado da recuperação do devedor deverá ser paga em duas prestações de igual valor, sendo a primeira liquidada no momento da aprovação do plano de recuperação e a segunda dois anos após a aprovação do referido plano, caso o devedor continue a cumprir regularmente o plano aprovado (cfr. art.º 29 n.º 5 do EAJ).
Termina pedindo a revogação da decisão final proferida pelo tribunal a quo, a ser substituída por outra que “reconheça que o valor global a fixar ao administrador judicial provisório, a título de remuneração fixa a quantia de €2.000,00 (dois mil euros) e de remuneração variável de €64.858,95, ambas acrescidas de IVA à taxa legal.”
Notificada da interposição do presente recurso, veio a Requerente, “S., LIMITADA”, apresentar as suas contra-alegações, que termina formulando as seguintes conclusões:
I. A Lei n.º 9/2022 de 11 de janeiro é aplicável por força do disposto no seu artigo 12.º que determina que a mesma entra em vigor 90 dias após a sua publicação e nos termos do artigo 10.º, n.º 1 é «imediatamente aplicável aos processos pendentes na data da sua entrada em vigor».
II. O Estatuto dos Administradores Judicias após as alterações introduzidas pela Lei 9/2022 prevê duas componentes remuneratórias do administrador judicial: uma fixa no valor de €2000,00 (dois mil euros) e outra variável.
III. A componente variável, remuneração do resultado de recuperação da empresa é «10% da situação líquida, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor, nos termos do n.º 5» do artigo 23.º do EAJ e no caso de liquidação da massa tem direito a «5% do resultado da liquidação da massa insolvente, nos termos do n.º 6».
IV. A definição da situação líquida de uma empresa é basicamente a soma dos valores contabilístico do capital social, das reservas e dos resultados transitados. Aliás, não só o conceito não é polissémico, como há uma pacifica unanimidade na doutrina económica e jurídica em geral sobre o seu significado.
V. Por isso, quando a lei estabelece uma remuneração variável para os senhores administradores judiciais calculada em função da situação líquida reporta-se naturalmente à situação líquida da sociedade, isto é, à soma dos valores contabilístico do capital social, das reservas e dos resultados transitados, calculados 30 dias após a homologação do plano, considerando o resultado da recuperação determinado com base no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano.
VI. Os senhores administradores judiciais não têm direito a 10% do valor dos créditos reclamados e a pagar no âmbito do plano. Seria uma solução interpretativa que deitaria por terra, todo e qualquer plano de recuperação. No caso dos autos, após um cut-off de 25% impor o pagamento de 15% ao administrador judicial, como ele preconiza nas suas alegações de recurso, seria reduzir o cut-off a 10% e alterar todos os pressupostos do plano de recuperação.
VII. No caso dos autos, e não obstante o plano apresentado, a sociedade mantém-se com uma situação líquida negativa mesmo considerando o plano aprovado, pelo que nos termos da lei, não há lugar ao pagamento da componente variável, só devida se essa situação fosse positiva.
VIII. Acresce referir que o senhor administrador judicial não alegou nem provou que a sociedade tivesse ficado com uma situação líquida positiva após 30 dias da homologação do plano. Aliás, o senhor administrador judicial não fez qualquer referência nas suas alegações à situação líquida da empresa, pelo que sempre teria que improceder o recurso sob resposta.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

2. Como é sabido, o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes define o objecto e delimitam o âmbito do recurso (artigos 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 3 e 639º, nº 1 todos do Código de Processo Civil).
Assim, atendendo ao teor das alegações apresentada pela Recorrente, as questões a apreciar são as seguintes:
- verificar se a Lei nº 9/2022, de 11 de Janeiro é aplicável aos presentes autos, pese embora estes já estivessem pendentes à data da sua entrada em vigor;
- caso a resposta à anterior questão seja positiva, apurar qual a fórmula de cálculo da remuneração variável devida ao Administrador Judicial Provisório, resultante do artigo 23º, nº 4 e 5 da Lei nº 22/2013, de 26 de Fevereiro (que estabeleceu o Estatuto de Administrador Judicial, doravante EAJ), na redacção dada pela Lei nº 9/2022, de 11 de Janeiro; e
- se a majoração de 5% prevista no artigo 23º, nº 7 do EAJ é aplicável nos presentes autos.

3. Pese embora a decisão recorrida não tivesse elencado quaisquer factos (provados ou não provados), do seu teor e do teor do despacho de homologação deduzem-se os seguintes:
1) Por despacho de 26/02/2021 (Refª 403129881), A. foi nomeado administrador judicial provisório.
2) O Sr. Administrador judicial provisório nomeado juntou aos autos a lista provisória de créditos, constituída por 42 credores, com o valor global de 564.968,69 €, a qual foi publicada no portal Citius em 29 de Março de 2021.
3) Não foram apresentadas impugnações.
4) O prazo de dois meses para conclusão das negociações foi prorrogado por um mês, mediante acordo prévio escrito entre administrador judicial provisório nomeado e a devedora.
5) O depósito do plano foi publicitado no portal Citius no dia 26 de Outubro de 2021, correndo a partir dessa data o prazo de 5 dias para qualquer credor alegar nos autos o que tivesse por conveniente quanto ao mesmo plano, ou seja, até 2 de Novembro de 2021.
6) No plano de revitalização constam como reconhecidos créditos no valor global de 584.531,43€, assim distribuídos:

Descritivo
Crédito
Categoria
Estrutura
Instituto da Segurança Social
3.057,94€
Privilegiado
0,5%
Autoridade Tributária
1.510,66€
Privilegiado
0,3%
Instituições Bancárias
18.653,32€
Garantido
3,2%
Fornecedores
561.309,51€
Comum
96,0%
Sócios
6.770,03€
Subordinado
1,2%

7) No referido plano foi proposto:
a. Em relação ao crédito do ISS, o pagamento de 100% das contribuições e cotizações, juros e custas sem qualquer redução;
b. Em relação ao crédito da AT, o pagamento da totalidade dos tributos em dívida, juros e custas, em prestações;
c. Em relação aos créditos das instituições financeiras (CGD e CETELEM), a manutenção de todas as garantias prestadas e do plano de pagamentos;
d. Em relação aos créditos dos fornecedores, o perdão total dos juros vencidos, bem como de 25% do capital em dívida; e
e. Em relação aos créditos subordinados, a integração do respectivo valor em capital.
8) O plano de revitalização da devedora foi aprovado em 26/11/2021 e homologado por sentença proferida em 23/05/2022 (Refª 415419419).
9) Na mesma data foi proferido despacho a fixar a remuneração do administrador judicial provisório em 2.000,00 €.

4. Fixados os factos com interesse, cumpre agora apreciar as questões colocadas pelo recurso.
4.1. O Recorrente considera, em primeiro lugar, que o Tribunal a quo errou ao aplicar à situação dos autos – cálculo da remuneração do administrador judicial provisório – a Lei nº 22/2013 de 26 de Fevereiro (que aprovou o EAJ), na redação anterior à Lei nº 9/2022, de 11 de Janeiro.
Com efeito, considerou a 1ª instância que, tendo decorrido toda a actividade do administrador judicial provisório antes da entrada em vigor da referida Lei nº 9/2022, é aplicável o regime anterior previsto no EAJ, mas não especificamente o artigo 23º, nº 1, 2 e 3. Por isso, o critério usado para determinar a remuneração do administrador judicial provisório nomeado foi o do número e natureza dos créditos que determinaram a elaboração da lista.
Contudo, é de toda infundada a tese do tribunal a quo, a qual carece de qualquer fundamento legal.
Na verdade, para evitar o problema da sucessão das leis no tempo, algumas das leis aprovadas contêm as chamadas disposições transitórias, que, na distinção feita por BAPTISTA MACHADO, tanto podem ser de carácter formal, como de carácter material. As primeiras, limitam-se a determinar qual das leis, se a antiga, se a nova, é aplicável a determinadas situações. As segundas, por sua vez, já estabelecem uma regulamentação própria, não coincidente nem com a lei antiga nem com a lei nova, para certas situações que se encontram na fronteira com as duas leis.[1]
Assim, se é a lei nova que, através de normas de direito transitório especial, disciplina a sua aplicação no tempo, não tem o seu aplicador de recorrer, sucessivamente, a normas de direito transitório geral ou sectorial, como é o regime fixado no artigo 12º do Código Civil.[2]
Ora, a Lei nº 9/2022, de 11 de Janeiro, prevê, precisamente, no seu artigo 10º um “regime transitório”, segundo o qual “sem prejuízo do disposto nos números seguintes, a presente lei é imediatamente aplicável aos processos pendentes na data da sua entrada em vigor.”, que foi em 11/04/2022. Trata-se, sem dúvida, de uma disposição transitória de carácter formal.
Uma das alterações levadas a efeito pela Lei nº 9/2022 recaiu sobre o artigo 23º do EAJ, que passou a prever uma forma de cálculo da remuneração variável também para os administradores judiciais provisórios.
E, como tem sido decidido, várias vezes, designadamente por esta Relação, “a redacção dada pela Lei nº 9/2022, de 11 de Janeiro, ao artigo 23º do EAJ, no tocante à forma de cálculo da remuneração variável, é de aplicação imediata nos processos pendentes, sempre que a fixação da remuneração variável ocorra após a data da entrada em vigor do diploma, que deve ser calculada nos termos da nova redacção do mesmo”.[3]
Tendo em conta que o despacho que fixou a remuneração ao administrador judicial provisório está datado de 23/05/2022, portanto em data posterior à da entrada em vigor da Lei nº 9/2022, de 11 de Janeiro, não temos quaisquer dúvidas de que a remuneração devida ao ora Recorrente deverá ser calculada de acordo com os critérios previstos no artigo 23º do EAJ na redacção que lhe foi dada pela referida Lei nº 9/2022. Aliás, é esse também o entendimento da Recorrida.
4.2. Face à conclusão anterior, cumpre agora calcular o valor da remuneração variável devida ao ora Recorrente, tendo em conta o quadro normativo aplicável, uma vez que o despacho recorrido limitou o valor da remuneração global do administrador judicial provisório ao legalmente previsto para a remuneração fixa.
Como decorre do artigo 23º, nºs 1 e 4 do EAJ, a remuneração do administrador judicial provisório em processo especial de revitalização é constituída por uma parte fixa de 2.000,00€ (artigo 23º, nº 1 do EAJ) e uma parte variável, sendo esta última calculada em função do “resultado da recuperação do devedor”, correspondente a “10% da situação líquida, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor, nos termos do nº 5;” (artigo 23º, nº 4, alínea a) do EAJ), onde se considera como “resultado da recuperação”, “o valor  determinado com base nos montantes de crédito a satisfazer aos credores integrados no plano.”
Ora, da conjugação dos nºs 4 e 5 do artigo 23º do EAJ resulta que o valor concreto da remuneração variável, correspondente aos 10%, dependerá do que o intérprete entenda por “resultado da recuperação”, expressão que, apesar de referida em ambos os números, não foi delimitada com a necessária objectividade e clareza que se impunha.
Por isso, tem o intérprete a tarefa de, a partir do texto da lei, considerar, de entre os possíveis ou potenciais resultados interpretativos, “apenas aqueles que se contenham ainda nas fronteiras da letra da lei do preceito, mesmo que de modo imperfeitamente expresso (artigo 9º, nº 2, in fine do Código Civil), visando “a fixação do sentido da norma enquanto expressão da vontade do legislador, alcançada pela interação do texto em que se expressa e dos demais elementos que circunscrevem, explicam e explicitam o seu sentido”.[4]
Assim, o sentido a dar à expressão “resultado da recuperação”, deverá ter em conta a finalidade principal do processo especial de revitalização, que é a da recuperação da empresa (após renegociação do passivo), no pressuposto da sua viabilidade económico-financeira. Daí que, a recuperação da empresa “será tanto maior quanto maior forem as restrições dos direitos dos credores previstas no plano, já que, será precisamente por via de tais restrições que aquela obterá o necessário desafogo económico e financeiro e como tal a sua recuperação. E será em função da medida de tal recuperação que o legislador visará remunerar de forma acrescida o administrador judicial.”[5]
Desta feita, a interpretação daquela expressão legal (“resultado da recuperação”) que melhor previne as finalidades do processo especial de revitalização, é a que foi corroborada pelo recente Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17/11/2022 (proc. 3592/21.3T8GMR.G1), “segundo a qual o montante do valor da recuperação, para efeitos do cálculo da remuneração variável, é o valor do perdão dos créditos. É sobre esta diferença que há de ser buscado o prémio devido ao senhor administrador judicial, traduzido na atribuição da remuneração variável. Quanto maior for o perdão das dívidas (e consequentemente o benefício da recuperanda), maior será o valor da remuneração variável.”
Contrariamente, a forma de cálculo da remuneração variável sugerida pelo Recorrente – que equipara a situação líquida ao resultado da recuperação[6] –, resultaria numa remuneração variável sem qualquer correspondência com a recuperação, podendo mesmo o valor (exorbitante) da remuneração inviabilizar qualquer recuperação. Na verdade, a ser como proposto pelo Recorrente, quanto menor fosse a redução dos créditos, maior seria a remuneração variável do administrador judicial. E, caso o plano não previsse qualquer redução, mas tão somente um mero diferimento de pagamentos, mesmo que curto, ainda assim seria devida a remuneração variável num montante correspondente a 10% da situação líquida, o que, nas contas do Recorrente, continuaria a dar o valor de 43.239.30€!!
Por sua vez, a interpretação que a Recorrida propõe de a situação líquida corresponder à “soma dos valores contabilísticos do capital social, das reservas e dos resultados transitados, calculados 30 dias após a homologação do plano, considerando o resultado determinado com base nos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano” (cfr. conclusão V das contra-alegações), para além de não ter correspondência na letra da lei (alínea a) do nº 4 do artigo 23º do EAJ), não faz sentido, tendo em conta o que acima se deixou dito. O entendimento que melhor se coaduna com o teor do nº 5 do artigo 23º do EAJ será o de o valor da recuperação, e consequentemente o da remuneração variável, “ter por base e estar dependente da maior ou menor redução do valor dos créditos a satisfazer no plano, no confronto com o que existia antes”.[7] Aliás, no nº 5 do artigo 23º do EAJ não se diz que o valor a ter em conta para alcançar o resultado da recuperação tenha de corresponder a uma percentagem do valor dos créditos a satisfazer, mas antes que tal percentagem será determinada “com base” no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano, o que não é rigorosamente a mesma coisa.
Em suma, reitera-se, para efeitos do cálculo da remuneração variável do administrador judicial provisório, o montante do valor da recuperação, é o valor do perdão dos créditos.
4.3. Por fim, resta apreciar a questão da majoração de 5% referida no artigo 23º, nº 7 do EAJ, que o Recorrente reclama e inclui nos seus cálculos do valor da remuneração global, atribuindo-lhe o valor de 21.619,65€.
Com efeito, decorre daquele nº 7 que “o valor alcançado por aplicação das regras referidas nos nºs 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5% do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles.”
A referência aos nºs 5 e 6 leva-nos a concluir que a dita majoração está, sem dúvidas, prevista tanto para a liquidação do activo, como para a recuperação de empresas. Com isto, não queremos dizer que ela ocorra em todas as situações. Como se refere, no já citado Acórdão do TRG de 17/11/2022, e com cuja fundamentação se concorda quase na íntegra, “se a intenção do legislador fosse que a majoração contemplasse todos os casos, não faria sentido o nº 7. Bastaria, para tanto, aumentar a percentagem referida no nº 4 do preceito.” Assim, como se conclui naquele aresto, pese embora a majoração do nº 7 do artigo 23º se aplique, em regra, apenas nos casos em que exista liquidação do activo, no que respeita aos planos de recuperação aprovados e homologados, será possível essa majoração, mas apenas se e quando o próprio plano preveja que parte dos créditos sejam satisfeitos por via de liquidação de bens, designadamente nos casos previstos nos artigos 195º, nº 2, alínea c) e 196º, nº 1, alínea e) do CIRE.
A referência na norma a “créditos satisfeitos” e o facto de nela se prever o pagamento do valor da majoração antes do pagamento dos credores, leva-nos a concluir que apenas será aplicável quando os credores tenham valores a receber de imediato por via de qualquer liquidação. Ora, no âmbito da recuperação, os créditos serão satisfeitos à medida que se forem vencendo de acordo com o previsto no plano, sendo certo que a remuneração variável só se vencerá após dois anos em função do cumprimento do plano. Por isso, no que respeita à recuperação, não existirão créditos satisfeitos e nem o pagamento da remuneração será possível conforme previsto no nº 7 do artigo 23º.
4.4. Analisadas e respondidas as questões colocadas pelo Recorrente, é tempo de regressar à situação dos autos para, de acordo com as posições supra assumidas, quantificar o valor devido ao administrador judicial provisório, ora Recorrente, a título de remuneração variável.
Assim, tendo em conta que, segundo o plano de recuperação, foram perdoados 25% dos créditos comuns (capital em dívida e juros vencidos) no valor de 561.309,51 € e que os créditos dos sócios por suprimentos, no valor de 6.770,03 €,  passou a integrar o capital social, temos que, para efeitos do disposto no artigo 23º, nº 4, alínea a) e nº 4 do EAJ, o montante do valor da recuperação é de 147.097,41 € (561.309,51€ x 25% + 6.770,03 €).
Por isso, a remuneração variável devida ao Recorrente é fixada no valor de 14.709,74€ (147.097,41 € x 10%), valor que não é majorado nos termos do nº 7 do artigo 23º do EAJ, dado que o plano de recuperação não prevê que os créditos reconhecidos sejam satisfeitos por via da liquidação do activo da Recorrida.
Procede, pois, parcialmente a apelação.

5. Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar parcialmente procedente o presente recurso de apelação, pelo que, alterando o despacho recorrido, fixa-se ao administrador judicial provisório, ora Recorrente, para além do valor de 2.000,00€, a remuneração variável de 14.709,74€, acrescida de IVA à taxa legal.
A remuneração variável ora fixada será paga em duas prestações de igual valor, sendo a primeira liquidada de imediato e a segunda dois anos após a data de aprovação do plano, caso o devedor continue a cumprir regularmente o plano aprovado (artigo 29º, nº 3 do EAJ).
Custas da apelação pelo Recorrente e Recorrida, na proporção de 78% e 22%, respectivamente.

Lisboa, 24/01/2023
Nuno Teixeira
Rosário Gonçalves
Manuel Marques
_______________________________________________________
[1] Cfr. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1985 (reimpressão), pág. 230.
[2] Cfr. neste sentido STJ, Ac. de 20/03/2022 (proc. 2309/16.2T8PTM.E1-A.S1). Também MARIA JOÃO MATIAS FERNANDES, “Anotação ao Artigo 12”, in Comentário ao Código Civil. Parte Geral [coord. de LUÍS CARVALHO FERNANDES e BRANDÃO PROENÇA], Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, pág. 59, considera que “o artigo 12º do CC vê a correspondente aplicação ser ultrapassada pela eventual existência de critérios de direito transitório particulares que se afigure pertinente considerar”.
[3] Cfr. TRL, Ac. de 20/09/2022 (proc. 9849/14.6T8LSB-E.L1-1), bem como, no mesmo sentido, Ac. de 06/12/2022 (proc. 35/13.3TBPVC.L1-1) e TRP, Ac. 1211/17.5T8AMT.P1), todos publicados em www.dgsi.pt/jtrl.
[4] Cfr. TATIANA GUERRA DE ALMEIDA, “Anotação ao Artigo 9º”, in Comentário ao Código Civil. Parte Geral [coord. de LUÍS CARVALHO FERNANDES e BRANDÃO PROENÇA], Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, pp. 48-49.
[5] Cfr. a decisão da 1ª instância, objecto de recurso, transcrita no Acórdão da Relação de Guimarães de 17/11/2022 (proc. 3520/21.3T8GMR.G1), e que este acompanhou, a cuja argumentação aderimos.
[6] Que, no caso dos autos, corresponderia ao valor da totalidade dos créditos reconhecidos (584.531,43€), deduzido do valor dos créditos (capital e juros) perdoados (145.368,37€) e do valor do aumento do capital social (6.770,03€), o que resultaria na situação líquida 30 dias após homologação de 432.393,03€ (cfr. quadro constante do artigo 31º das alegações recursórias).
[7] Cfr. o já citado Acórdão do TRG de 17/11/2022.