Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8547/2007-7
Relator: ORLANDO NASCIMENTO
Descritores: ARRESTO
TRANSACÇÃO
PROCEDIMENTOS CAUTELARES
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
INSTRUMENTALIDADE
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/30/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: I- A transacção efectuada no processo principal, que as partes não tenham estendido ao procedimento de arresto daquele dependente, não determina a extinção da instância no arresto por inutilidade superveniente da lide (artigo 287.º, alínea e) do Código de Processo Civil)

II Deve, assim, manter-se o arresto o qual deverá , dada a sua função de garantia de satisfação do crédito, no silêncio das partes, manter-se até cumprimento voluntário da sentença proferida na acção principal - caso em que se poderá configurar a inutilidade superveniente da lide - ou, já na fase executiva,  até à sua conversão em penhora

(SC)

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.

1. RELATÓRIO
B. […]  S. A. Requereu contra,
E. […] Ld.ª, este procedimento cautelar de arresto pedindo o arresto de imóveis da requerida com fundamento em que sendo titular de um direito de crédito esta tem vindo a alienar e onerar o seu património, pondo em perigo a garantia desse mesmo crédito.
Decretado o arresto, foi proferido nos autos o seguinte despacho: “Atento o teor da decisão homologatória de fls. 63 dos autos principais, declaro extinta a instância por inutilidade superveniente da lide – art.º 287.º, al. e) do C. P. Civil…”.
Na sequência desse despacho e tendo a arrestada requerido o cancelamento do respectivo registo relativamente a um prédio urbano, foi ordenado o levantamento do arresto.
Inconformada com o despacho que declarou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, a requerente dela interpôs recurso, recebido como agravo, pedindo a sua revogação e a substituição por outro que mantenha o arresto e o respectivo registo até satisfação integral do crédito, formulando as seguintes conclusões:
1. A Decisão sob sindicância não procede à correcta aplicação da lei, pois, à luz do sistema Processual Civil Português vigente e ao contrário do que faz crer a decisão em crise, a transacção judicial em sede de acção principal não despoleta ipso iuris a extinção do procedimento cautelar dela dependente.
2. Não é a transacção referente ao pedido formulado na acção principal que de per se determina a inutilidade da lide cautelar, mas o teor da transacção e os efeitos materiais que produz sobre a pretensão do autor que ditam a subsistência ou não da utilidade da providência decretada.
3. A sentença homologatória da transacção celebrada entre a Agravante e a Agravada figura como uma sentença condenatória, na medida em que a transacção traduz na prática a procedência total do pedido da Agravante e, em consequência, a condenação da Agravada no pagamento, ainda que de forma parcelada, da quantia reclamada ab initio por aquela.
4. Contudo, a referida transacção ignora in totum o arresto decretado para garantia do crédito da Agravante, não fazendo qualquer menção ao procedimento cautelar que corre termos por apenso aos autos no qual foi celebrada a transacção, pelo que se deve concluir, à luz das regras gerais de interpretação das declarações negociais, que as partes não quiseram alterar os efeitos alcançados em sede da providência cautelar, cingindo-se a transaccionar quanto ao objecto da acção principal.
5. Ademais, tendo em conta que a dita transacção, por um lado, confirma em termos definitivos o direito de crédito da Agravante na exacta medida do peticionado na acção principal e, por outro, não encerra qualquer juízo sobre o arresto decretado, nem estabelece qualquer outra garantia do crédito reconhecido, é por demais evidente que a necessidade revelada ab initio nos presentes autos de acautelar o direito reclamado pela Agravante ainda subsiste, subsistindo, por conseguinte, a proficuidade do presente procedimento, porquanto da transacção não resulta de todo o afastamento do periculum in mora que o arresto tem vindo a assegurar até à presente data.
6. Nesta conformidade, é de todo descabido e um contra-senso acautelar o crédito quando a sua existência figura no cenário processual ainda como facto meramente indiciário e provável, para depois lhe retirar tal tutela, considerando inútil a conservação da garantia inicialmente decretada, pelo simples facto de a probabilidade do direito ter cedido lugar à certeza.
7. Ora, o arresto visa afastar a perda da garantia patrimonial do crédito que o titular pretende fazer valer na acção principal, pretende garantir que este crédito, caso seja declarado, venha a ser efectivamente satisfeito pelo devedor - cfr. art. 406°, n.º 1, do CPC.
8. A simples existência da sentença não fez desaparecer o periculum in mora que se pretendeu afastar com a decretação da providência, o perigo da insatisfação do crédito, pelo que se o arresto fosse efectivamente levantado após a prolação da sentença condenatória, o devedor sempre poderia onerar ou alienar o único bem mediante o qual pode a Agravante assegurar a satisfação do seu crédito, inviabilizando deste modo a futura e eventual execução da sentença.
9. Quer a doutrina, quer a jurisprudência defendem que, não obstante a prolação da sentença condenatória, o arresto goza de ultravigência, devendo a medida cautelar ser conservada até à sua conversão em penhora no âmbito da acção executiva ou até à satisfação integral do crédito garantido, porquanto só em um destes momentos deixará de fazer sentido a sua função cautelar.
10. Entendendo que a transacção do pedido formulado nos autos processuais condiciona a marcha do procedimento cautelar, o Tribunal a quo deveria ter declarado, ao invés da extinção, a suspensão da instância cautelar até integral pagamento da dívida ou incumprimento de uma das prestações acordadas, porquanto só no esquema da suspensão poder-se-á garantir a conservação da função cautelar do arresto.
11. A suspensão do procedimento não seria de modo algum desapropriada, não só porque entende a Agravante haver in casu motivo ponderante que justifique o recurso ao poder discricionário que a lei processual concede ao julgador (art. 279°, n.º 1, do CPC), como também, e em especial, porque a lei prevê expressamente a possibilidade de a instância executiva ser suspensa na sequência da celebração de um acordo entre as partes com vista ao pagamento em prestação da quantia exequenda – cfr, art. 882°, n.º 1, do CPC,
12. Mantendo-se o arresto decretado como garantia da satisfação do crédito, conforme determinado pela conjugação dos arts. 406°, n.º 2, e 883°, n.º 1, do CPC.
13. Termos em que entende a Agravante que Decisão recorrida viola os arts. 279°, n.º 1, 406°, n.º 1 e n.º 2, 389°, n.º 1, 410° e 883.º do CPC e art. 20°, n.º 5, da CRP, devendo a mesma ser revogada e substituída por outra que mantenha o arresto decretado até satisfação integral do crédito.

A agravada não apresentou contra-alegações.
O Tribunal a quo sustentou a sua decisão.

2. FUNDAMENTAÇÃO

A) OS FACTOS
A matéria de facto pertinente é a acima descrita, sendo certo que a questão submetida ao conhecimento deste Tribunal se configura, essencialmente, como uma questão de direito.

B) O DIREITO APLICÁVEL

O conhecimento deste Tribunal de 2.ª instância, quanto à matéria dos autos e quanto ao objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 684.º, n.º 3 e 690.º, n.º 1 e 2 do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 660.º, n.º 2 do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso).
Atentas as conclusões do agravo, supra descritas, a questão submetida ao conhecimento deste Tribunal pela agravante consiste, tão só, em saber se uma transacção sobre o objecto do processo, feita na acção principal e aí homologada, determina a extinção da decisão anteriormente proferida em procedimento cautelar de arresto, com o levantamento do arresto decretado.
Vejamos.
I. Os procedimentos cautelares constituem o veículo processual adequado à composição provisória de um litígio[1], em face do fundado receio da lesão de um direito, que pode resultar da espera demorada pela composição final desse litígio, no âmbito de uma acção declarativa (periculum in mora), sendo essa composição provisória decidida com fundamento na probabilidade séria da existência do direito (fumus boni juris) que se pretende fazer valer.
Tem, por isso, uma tramitação simplificada e mais célere que o processo declarativo comum (art.º 384.º do C. P. Civil), sendo que tanto o procedimento cautelar, como a decisão nele proferida (a decisão final transitada em julgado) são sempre dependência da acção principal (art.º 383.º do C. P. Civil), seguindo as vicissitudes a esta inerentes.  
Esta natureza de instrumentalidade e dependência poderia levar-nos a considerar que, uma vez estabelecida a composição definitiva do litígio na acção principal, a tramitação do procedimento cautelar cessaria por virtude dessa composição.
Uma tal consideração, a que se aporta através de um exercício de lógica formal a partir da natureza de instrumentalidade do procedimento cautelar, não pode, todavia, impedir-nos de considerar que este se propõe um desiderato que não é totalmente atingido com a composição do litígio na acção principal.
Esse é, antes de mais, a antecipação dessa composição, mas outros efeitos jurídicos lhe estão associados, não se esgotando com aquela, pois nem sequer existe uma total coincidência entre a decisão e a execução do procedimento cautelar e a decisão e a execução da acção definitiva[2].
II. No caso sub judice, tendo sido decretado o arresto de determinados bens da agravada, na acção principal as partes efectuaram transacção sobre o objecto do litigio, tendo esta sido homologada por sentença que condenou e absolveu nos seus precisos termos (art.º 300.º, n.º 3, do C. P. Civil).
Ora, o facto de ter sido proferida sentença, ainda que sobre transacção das partes, de modo algum permite falar de inutilidade superveniente da lide, relativamente ao procedimento cautelar de arresto, pois, como referimos, os efeitos deste não se limitam à antecipação da decisão declarativa definitiva comportando, também, ingredientes da respectiva execução, como sejam o retirar os bens da disponibilidade do arrestado (art.º 406.º, n.º 2, 2.ª parte, do C. P. Civil), que mais tarde, não sendo cumprida voluntariamente a sentença proferida na acção principal, podem vir a ser penhorados por conversão do arresto (art.º 846.º do C. P. Civil)[3].
Assim não seria se as partes, no exercício da sua autonomia privada, tivessem estendido os termos da transacção, também ao procedimento cautelar de arresto, caso em que findaria, não por inutilidade superveniente, mas por virtude dessa mesma transacção.
No silêncio das partes, o arresto deve manter-se até cumprimento voluntário da sentença proferida na acção principal – caso em que se poderá configurar a inutilidade superveniente da lide – ou até à sua conversão em penhora, em caso de cumprimento coercivo (cfr. o art.º 817.º do C. Civil) da sentença, sem prejuízo, em qualquer caso, da diligência das partes quanto à sua tramitação subsequente.
Encontrando-se finda, por transacção homologada, a sentença proferida na acção principal e elaborada a conta de ambos os processos, subsistindo dúvidas quanto à subsistência do arresto, podia o Tribunal ouvir as partes a esse respeito decidindo, em seguida, em conformidade. 
O que não podia era decretar a extinção do arresto por inutilidade superveniente, por sua iniciativa e sem ouvir as partes, assim propiciando à arrestada o pedido de levantamento do arresto, quando é certo que a sentença proferida na acção principal permanece por cumprir.  
Procedem, pois, as conclusões do agravo, devendo revogar-se o despacho recorrido, o qual será substituído por outro que ordene a notificação das partes para se pronunciarem quanto à subsistência do arresto, decidindo-se em seguida em conformidade.   

3. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao agravo revogando o despacho recorrido, o qual será substituído por outro que ordene a notificação das partes para se pronunciarem quanto à subsistência do arresto, decidindo-se em seguida em conformidade.  
Sem custas.

Lisboa, 30 de Outubro de 2007

(Orlando Nascimento)
(Ana Resende)
(Dina Monteiro)

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[1] O que pressupõe uma composição definitiva a ter lugar na respectiva acção declarativa.
[2] A título de exemplo.
A prestação de alimentos provisórios comporta uma autonomia significativa relativamente à prestação definitiva (art.º 402.º do C. P. Civil e art.º 2007.º, n.º 2, do C. Civil).
Tratando-se de apreensão de bens/arresto, o mesmo não deixará de ser realizado, sendo mais tarde, na acção executiva, convertido em penhora (art.º 846.º do C. P. Civil).
Tratando-se de embargo de obra nova, a decisão e a execução do procedimento cautelar têm uma conformação diversa da acção definitiva, pois, com as primeiras pretende-se a suspensão da obra (art.º 412.º do C. P. Civil) enquanto que as segundas se dirigem à sua destruição.
Tratando-se de arrolamento, a descrição, avaliação e depósito dos bens (art.º 424.º do C. P. Civil) não pode ser substituída pela partilha ou entrega subsequente á decisão definitiva (art.ºs 421.º, n.º 2 e 427.º, do C. P. Civil).

[3]  Neste sentido, o Ac. desta Relação de 25/11/03, P.º 9899/2003-7 (Relator: Arnaldo Silva), in dgsi.pt, aliás, citado pela agravante e, em questão conexa, o nosso Ac. de 18/09/07, P.º 6370/2007-7, in dgsi.pt.