Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
534/14.0PBLRS-A.L1-5
Relator: AGOSTINHO TORRES
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
MEDIDAS DE COACÇÃO
PRESSUPOSTOS
ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: A violência doméstica, e que tem como cenário principal o contexto de relacionamento conjugal e coabitação entre a ofendida e o arguido, no carácter continuado dos factos, e considerando que o arguido negou a prática dos factos em sede de interrogatório, não sendo assim possível inferir da sua postura uma qualquer atitude, impulso ou sequer vontade de mudança, à luz das regras da experiência comum, fazem concluir que a única forma de impedir a continuação da actividade criminosa é exactamente impor ao arguido o seu afastamento relativamente à ofendida.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM EM CONFERÊNCIA OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA — 5ª SECÇÃO (PENAL)

I-RELATÓRIO

1.1- O recorrente J... id° nos autos, foi ouvido em interrogatório judicial a 13.11.2014, após o que ficou em liberdade provisória sujeito às seguintes medidas:

" (...) nos termos do disposto no art.° 191°, 192°, 193°, 194°, 196°, 200° n.° 1 alíneas a)) e d) e 204° alínea c), do CPP, determino que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo sujeito às seguintes medidas de coação:

-proibição de permanência na habitação da vítima, sita na Rua (x) e, ainda à proibição de contactar, por qualquer forma, a vítima JM.... (...)que o arguido preste novo TIR em 15 dias considerando o teor da medida aplicada."

O despacho em causa considerou, para o efeito:

O arguido J... vive maritalmente com JM... desde o ano de 2003, tendo contraído casamento com a mesma em 27-11-2009.

O casal residiu sempre na habitação sita na Rua (x). Juntamente com os mesmos residem três crianças filhas de JM..., fruto de um anterior relacionamento.

Desde o início da relação o arguido dirige diariamente à sua mulher as seguintes expressões «sua puta», «vaca», «vai pro caralho», «vai-te foder».

Era ainda habitual, o arguido bater na ofendida com socos, pontapés e bofetadas, factos que ocorriam cerca de duas a três vezes por mês, no interior da habitação, no decurso de discussões provocadas pelo arguido quando se encontrava alcoolizado.

Assim, em data indeterminada, compreendida entre os anos de 2006 e 2007, o arguido entrou no quarto do casal e dirigiu-se à ofendida dizendo «puta, vaca, não vales a ponta de um corno, és toda desfigurada».

Em seguida, J... retirou o cinto das suas calças e atingiu a ofendida com o mesmo em diversas partes do corpo.

No dia 24-06-2009, pelas 20:00 horas, no interior da residência comum, o arguido dirigiu-se à mulher dizendo «puta vadia, enquanto eu ando a trabalhar tu fodes com os quem te bate à porta», «és uma vaca, uma porca do caralho», «um dia destes dou-te um tiro na cabeça».

No dia 08-06-2014, pelas 10:30 horas, no interior da residência comum, o arguido disse à mulher «Se eu te vejo com alguém dou-te um tiro, vou para a prisão, fico lá uns anos e venho para casa.

Em data indeterminada, o arguido guardou em parte incerta a viatura do casal de marca Peugeot, modelo 306, com a matrícula xx-xx-xx, que era usada habitualmente por JM... para se deslocar com as filhas, com o fim de impedir que a ofendida a utilizasse.

Todos os dias, quando sai de casa, o arguido desliga as tomadas, televisão, gás, água, negando o acesso da ofendida e suas filhas a esses bens e serviços e impedindo-as, desta forma de cozinhar, tomar banho.

Bem assim, J... cortou o fio da máquina de lavar roupa.

Sempre que a ofendida e as suas filhas se ausentam da habitação, o arguido desliga o elevador do prédio, a fim de evitar que as mesmas o possam utilizar.

Ao actuar do modo acima descrito, o arguido previu e quis agir de forma reiterada e prolongada no tempo, com o propósito de molestar fisicamente, atemorizar e ofender a sua mulher na sua honra e consideração, bem como de privá-la do acesso a bens essenciais, objectivos que logrou alcançar.

Sabendo que, dessa forma, além das lesões infligidas, criava na ofendida sentimento de receio pela sua integridade física e pela própria vida, desrespeito, desonra e humilhação, bem como a sujeitava a privações de diversa ordem, pondo em causa a sua dignidade enquanto pessoa. Tais factos integram a prática de um crime de violência doméstica, p.p. pelo artigo 152°, n.° 1, al. a), e n.° 2, do Código Penal.

Considerando que a conduta do arguido tem perdurado no tempo, pelo menos desde 2009, e das declarações das testemunhas resulta que se tem agravado nos últimos tempos, verifica-se a existência de perigo de continuação da atividade criminosa.

A única forma de acautelar esse perigo é através da proibição de contactos com a vítima e de permanecer na habitação da mesma, pois só desta forma se poderá evitar a continuação das agressões e maus tratos por parte do arguido à sua cônjuge.

Por outro lado, ao contrário do que é invocado pela defesa, a situação do arguido não ficará mais gravosa, uma vez que é ele o único a providenciar pelo sustento do agregado familiar, constando dos autos que a residência é arrendada e não propriedade do arguido. Na verdade, quem poderá ficarem situação mais debilitada economicamente com o afastamento do arguido será a própria vítima,

(…)"

1.2 — Desta decisão recorreu o arguido dizendo em conclusões da motivação apresentada:

"A - O despacho recorrido aplicou a medida de proibição de permanência na habitação e a proibição de contactar por qualquer forma com a Ofendida, fundamentando-se no estatuído nos art.°s 191.°, 192.°, 193.°, 194.°, 196.°, 200.°, n.° 1, als. a) e b) e 204.°, al. c) do Código de Processo Penal pela existência de indícios da prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.° 152.° do Código Penal.

B - A medida de proibição de permanência na habitação tem, à semelhança de todas as outras (à excepção do T.I.R.), um carácter excepcional, devendo apenas ser aplicada quando todas as outras medidas de coacção não se mostrarem suficientes ou adequadas para acautelar os fins do processo.

C - O Arguido está perfeitamente integrado na sociedade, pelo que outra medida de coacção deveria ser aplicada por se mostrar adequada e suficiente.

D - A medida de obrigação de apresentações periódicas prevista no art.° 198.° do Código de Processo Penal é adequada e suficiente para cautela dos fins do processo, afastando o receio previsto na alínea c) do art.° 204.°, também do Código de Processo Penal.

E - O Douto Despacho recorrido violou o disposto no art.° 18.°, n.° 2 da Constituição da República Portuguesa e 191.° n.° 1,193.° e 204.°, todos do Código de Processo Penal.

F - Deveria ter sido aplicado o art.° 198.° do Código de Processo Penal, com o que seria respeitado o n.° 2 do art.° 18.° da Constituição da República Portuguesa."

1.3- Em resposta disse o M°P°, em síntese :

"Por todo o exposto, afigura-se que a decisão recorrida não violou os artigos 191°, n.° 1, 193° e 204°, do Código de Processo Penal.

Por força dos mesmos argumentos, conclui-se também que a interpretação efectuada pela mesma decisão das referidas normas não violou o preceituado no artigo 18°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa, onde se dispõe que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

Com efeito, concluindo-se que as medidas de coacção aplicadas são as únicas adequadas a debelar as exigências cautelares em concreto verificadas e não se considerando excessivas, mostra-se integralmente respeitado o princípio da proporcionalidade consagrado em tal disposição constitucional.

Assim, e em conclusão, afigura-se que não assiste razão ao recorrente, motivo pelo qual deve ser negado provimento ao recurso e integralmente mantida a decisão recorrida."

1.4- Admitido o recurso e remetido a esta Relação, o M°P° emitiu parecer no sentido da sua rejeição.

1.5- Após exame preliminar e vistos legais foram remetidos os autos à Conferência, cumprindo agora decidir.

II- CONHECENDO

2.1-O âmbito dos recursos encontra-se delimitado em função das questões sumariadas pelo recorrente nas conclusões extraídas da respectiva motivação, sem prejuízo do dever de conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, designadamente dos vícios indicados no art. 410°, n.°2 do CPP[1].
Tais conclusões visam permitir ou habilitar o tribunal ad quem a conhecer as razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida[2].
Assim, traçado o quadro legal temos por certo que as questões levantadas no recurso são cognoscíveis no âmbito dos poderes desta Relação.

2.2-Está em discussão para apreciação , em síntese, a seguinte de questão:

A medida aplicada poderia ser proporcional e adequadamente substituída por outra consistindo em meras apresentações periódicas policiais?

2.3- A POSIÇÃO DESTE TRIBUNAL

A única questão em discussão terá uma resposta assaz simples de tão óbvia que é.

Estamos perante imputação de um crime de violência doméstica entre um casal que mantêm laços de convivência desde 2003.

O arguido não põe em causa no recurso a forte indiciação dos factos mas apenas que, estando bem integrado socialmente e sendo profissionalmente activo, a medida mais adequada seria a de se apresentar peridodicamente à polícia.

Ou seja, por outras palavras, que quer continuar a residir com a esposa, na habitação onde os actos de violência doméstica têm sido praticados reiteradamente.

O tribunal entendeu e muito bem que era precisamente essa situação de convivência a potenciadora dos actos de violência e a melhor forma de a prevenir era afastar o arguido do contacto com a vítima. Era uma regra de bom senso de acordo com a experiência de vida e tendo em conta a sociologia deste fenómeno familiar recorrente.

Ao arguido não se detectou sinal algum de arrependimento sério nem de vontade e capacidade de mudança radical de comportamento.

Como muito doutamente salientou o M°P° no seu articulado de resposta ao recurso, a interpretação efectuada pela mesma decisão das normas processuais penais aplicadas não beliscou sequer minimamente o artigo 18°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa, (onde se impõe que a lei só possa restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos).

No despacho recorrido entendeu-se que as medidas de coacção aplicadas eram as únicas adequadas a debelar as exigências cautelares em concreto verificadas.

A natureza e contingência familiar do comportamento do arguido exigiria precisamente a proibição total de contactos não controlados entre o arguido e a ofendida esposa, sendo disso consequência inevitável que eles não pudessem manter laços de proximidade na residência.

Tal medida era a mais adequada e nunca poderá ser tida como excessiva, por isso se revelando integralmente respeitado o princípio da proporcionalidade consagrado em tal disposição constitucional.

No caso do crime em questão, a violência doméstica, e que de acordo com a factualidade indiciada nos autos tem como cenário principal o contexto de relacionamento conjugal e coabitação entre a ofendida e o arguido, no carácter continuado dos factos, que ocorreram entre 2003 e a data em que o arguido foi presente a primeiro interrogatório judicial e atendendo ao facto de este ter negado a prática dos factos em sede de interrogatório, não sendo assim possível inferir da sua postura uma qualquer atitude, impulso ou sequer vontade de mudança, só poderia concluir-se como foi decidido.

Aqueles factores, à luz das regras da experiência comum, fazem concluir que a única forma de impedir a continuação da actividade criminosa era exactamente impor ao arguido o seu afastamento relativamente à ofendida.

Não se vislumbra em que é que o facto de se apresentar periodicamente minimizaria o risco de novas práticas de violência doméstica. Tal medida apenas serviria para controlar eventual perigo de fuga, nada mais. Para os efeitos preventivos e securitários pretendidos quanto ao perigo de continuação criminosa, seria de todo ineficaz senão mesmo incompreensível.

Em consequência, o recurso não merece provimento

III- DECISÃO

3.1.- Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.

3.2- Taxa de justiça criminal a cargo do recorrente em 3 UC

Lisboa, 17 de Fevereiro de 2015

Os Juízes Desembargadores

Agostinho Torres

João Carrola

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[1] vide Ac. STJ para fixação de jurisprudência 19.10.1995 publicado no DR, 1-A Série de 28.12.95
[2] vide ,entre outros, o Ac STJ de 19.06.96, BMJ 458, pág' 98 e o Ac STJ de 13.03.91, prOC° 416794, 3' see., tb cit° em anot. ao art° 412° do CPP de Maks Gonçalves 12° ed; e Germano Marques da Silva, Curso Proc° Penal ,111, 2a ed., pán' 335: e ainda jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Acs. do STJ de 16-11-95, in BMJ 451/279 e de 31-01-96, in BMJ 453/338) e Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), bem como Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5° ed., p. 74 e decisões ali referenciadas