Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
73345/21.4YIPRT-A.L1-2
Relator: ORLANDO NASCIMENTO
Descritores: DADOS PESSOAIS
RESIDÊNCIA
TELECOMUNICAÇÕES
SIGILO PROFISSIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. O “princípio da prevalência do interesse preponderante” estabelecido pelo n.º 3, do art.º 135.º,do C. P. Penal, determina que, para efeitos da prática do ato processual de citação para os termos de uma ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias subsequente a injunção, o direito à privacidade da residência do utente de uma rede de comunicações electrónicas deva ceder perante o direito de acesso à justiça da sociedade operadora de outra rede de comunicações electrónicas. 
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que constituem o Tribunal da Relação de Lisboa.

1. RELATÓRIO.
No âmbito de ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias subsequente a injunção, requerida por … Comunicações, S.A. contra G…, não sendo encontrado o R e para efeitos de citação, a requerimento da requerente, foi oficiado a … Comunicações Pessoais S.A. para que informasse sobre a residência do R, tendo esta denegado a informação, apresentando pedido de escusa, invocando o sigilo das comunicações, nos termos do disposto nos artigos 34.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, 4.°, n.º 1, da Lei n.º 41/2004, de 18/08, alterada pela Lei n.º 46/2012, de 29/08, 48.º, n.º 1, al. i), da Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro e os pareceres n.ºs 16/94 e 21/2000 do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral de República, com fundamento em que o R, seu cliente, solicitou confidencialidade dos seus dados aquando da subscrição do serviço.
O tribunal de 1ª instância conheceu do pedido de escusa aduzindo que a informação em causa, respeitando à morada do R, não constitui violação da sua privacidade “…porque a obtenção da informação em causa é de extrema importância para os presentes autos - por representar a diferença entre a citação pessoal e a citação edital, sendo esta última a que menos garante a segurança e certezas jurídicas e o efectivo exercício dos direitos processuais do Réu…” e afastando implicitamente, a aplicação do disposto no n.º 1, do art.º 418.º, do C. P. Civil, determinou a abertura de incidente de dispensa de confidencialidade, nos termos do disposto no n.º 4, do art.º 417.º, do C. P. Civil e ordenou o envio dos autos a este Tribunal da Relação para ser proferida decisão, nos ternos do disposto no n.º 3, do art.º 135.º, do C. P. Penal.

2. FUNDAMENTAÇÃO.

A) OS FACTOS.
A matéria de facto a considerar é a acima descrita, sendo certo que a questão submetida a decisão desta Relação se configura, essencialmente, como uma questão de direito.

B) O DIREITO APLICÁVEL.
Atentos os termos deste incidente, acima descritos, a questão submetida a decisão deste Tribunal da Relação consiste, tão só, em saber se no âmbito desta ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias deve ser levantado o sigilo profissional das comunicações electrónicas no que respeita à residência do R, para efeitos de citação, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante.
Vejamos.
Estando em causa o sigilo profissional relativo à proteção de dados pessoais e privacidade nas telecomunicações, consagrado nos art.ºs 34.º da Constituição da República Portuguesa (C. R. P) e 4.°, n.º 1, da Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto, relativa à Proteção de Dados Pessoais e Privacidade nas Telecomunicações, por força da al. c), do n.º 3, do art.º 417.º, do C. P. Civil, à escusa invocada nos autos é aplicável o n.º 4, do mesmo preceito, nos termos do qual:
Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado”.
Tendo apreciado o objeto da escusa de informação em confronto com o ato processual da citação a praticar nos autos, o tribunal de 1ª instância concluiu pele legitimidade do pedido de informação e remeteu a decisão final sobre o mesmo a esta Relação, nos termos do n.º 3, do art.º 135.º, do C. P. Penal.
É esta decisão final que agora se impõe que seja proferida por esta Relação.
Na prolação desta decisão final do incidente de levantamento de sigilo profissional, invocado em relação à informação de residência do R em poder da sociedade de comunicações recusante, nos termos do disposto no n.º 3, do art.º 135.º, do C. P. Penal, esta Relação “…pode decidir da … quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade … para a descoberta da verdade, …e a necessidade de protecção de bens jurídicos”.
O “princípio da prevalência do interesse preponderante” aqui estabelecido em matéria processual encontra-se em sintonia com os princípios gerais estabelecidos pelo art.º 335.º, do C. Civil para a colisão de direitos, segundo o qual:
1. Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.
2. Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior”,
aproximando-se do principio consagrado no seu n.º 2, para a colisão de direitos desiguais ou de espécie diferente, uma vez que, enquanto no regime substantivo da colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, o valor relativo dos direitos em colisão já está determinado à partida, havendo apenas que determinar a medida da cedência de cada um, no caso sub judice haverá que determinar qual o concreto direito, de acesso à justiça ou de privacidade na contratação relativa a comunicações, que deva prevalecer, por preponderante, tal como acontece no n.º 2 do art.º 335.º, em que prevalece o interesse superior.
Para esse efeito, o conceito aberto ínsito na expressão “princípio da prevalência do interesse preponderante” é balizado pelo próprio legislador, de forma exemplificativa ou aproximada, ao mandar atender à “imprescindibilidade … para a descoberta da verdade, …e a necessidade de protecção de bens jurídicos”.
Munidos deste conceito legal e do respectivo critério legal de preenchimento, por aproximação, importa, pois, aquilatar dos interesses legalmente protegidos em presença, em ordem a definirmos qual o interesse preponderante que, por isso, deve prevalecer.
A inviolabilidade do sigilo dos meios de comunicação privada, compreendendo as comunicações electrónicas, encontra-se consagrada no n.º 1, do art.º 34.º, da Constituição da República Portuguesa (C. R. P), é reforçada no que respeita à ingerência das autoridades públicas pelo disposto no n.º 4, do mesmo preceito, limitada aos casos previstos na lei em matéria de processo criminal, e encontra-se em conexão com a reserva da intimidade da vida privada, consagrada no n.º 1, do art.º 26.º, da C. R. P e com a dignidade da pessoa humana, princípio estruturante da República Portuguesa, segundo o disposto no n.º 1, da mesma C. R. P.
Para realização deste direito fundamental estabelece o n.º 1, do art.º 4.º da Lei n.º 41/2004, o dever de as empresas que oferecem redes e ou serviços de comunicações electrónicas garantirem a inviolabilidade das comunicações e respetivos dados de tráfego.
Digamos desde já que a residência do utente dos serviços não se configurará como uma comunicação nem como um dado de tráfego de comunicações, tal como definidas na al. a) e na al. d), do art.º 2.º, da Lei n.º 41/2004, mas antes como um elemento/dado relativo à sua identificação e que, assim sendo, o dever de garantir a confidencialidade da residência do utente se não reconduz ao dever de garantir a inviolabilidade das comunicações e respetivos dados de tráfego, mas antes ao dever de proporcionar aos assinantes a confidencialidade dos seus dados pessoais, tal como definidos pelo n.º 1, do art.º 4.º do Regulamento (UE) n.º 679/2016, de 27 de Abril (Regulamento Geral Sobre a Proteção de Dados (RGPD)[1], a que também se reporta a al. g), do n.º 1, do art.º 2.º e o art.º 3.º-A da mesma Lei n.º 41/2004, este relativo à notificação da violação de dados pessoais, e de garantir o direito de decidir da inclusão dos seus dados pessoais numa lista públicae o direito de consentir, ou não, na utilização dessa lista pública, tal como previsto nos n.ºs 2 e 4, do art.º 13.º, da Lei n.º 41/2004 e no n.º 2, do art.º 120.º, da Lei n.º 62/2022, com remissão para o Anexo III, ponto II, n.º 2, à mesma Lei.
Não estaremos, pois, perante a garantia de inviolabilidade do sigilo das comunicações e respetivos dados de tráfego, mas perante informação relativa à identificação de uma pessoa singular, através dos seus dados de localização, tal como resulta da definição de “dados pessoais” constante do n.º 1, do art.º 4.º, do RGPD, ainda assim perante um sigilo profissional que impende sobre a sociedade recusante e que lhe permitia a invocação da respectiva escusa.
Com esta delimitação do sigilo a que está sujeita a recusante - dever de sigilo relativo a dados pessoais e não dever de garantir a inviolabilidade das comunicações e respetivos dados de tráfego –
Importa agora aquilatar dos termos em que este direito e dever de sigilo deve ser considerado perante o direito e dever de acesso à justiça, consagrado no n.º 1, do art.º 20.º da C. R. P, em causa na ação, no que respeita à realização do ato processual de citação.
No sentido da prevalência do direito ao acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva sobre o direito à proteção do dado pessoal, residência, se pronunciaram, entre outros, os acórdãos da Relação de Évora de 9/9/2021, citado pelo tribunal a quo (Relatora: Elizabete Valente), de 28/10/2021 e de 12/5/2022 (Relatora: Anabela Luna de Carvalho), este último com voto de vencido[2].
E no sentido de que os “dados de base”, entre eles, a residência do utente do serviços de comunicações electrónicas deve ser submetido ao regime do art.º 135.º, do C. P. penal, se pronunciaram, entre outros, o Professor Paulo Pinto de Albuquerque[3], aduzindo que a “…obtenção dos dados de base, … tais como a identidade do titular do telefone, a sua morada … ainda que cobertos pelo sistema de confidencialidade a solicitação do assinante, obedece ao regime do artigo 135.º do CPP” e o parecer n.º 21/2000 do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral de República[4].
No caso sub judice, estando em causa a localização do R na ação para efeitos de citação e tendo sido realizadas infrutiferamente as diligências pertinentes, a recusa da informação sobre a residência declarada pelo R à sociedade com a qual mantém um contrato de telecomunicações em execução, correspondendo ao cumprimento do dever de sigilo sobre um dado pessoal do R, é susceptível de se configurar como uma proteção injustificada do respetivo direito de confidencialidade de residência, uma vez que, mais do que assegurar a privacidade do local de residência do R, acaba por dificultar a sua localização para efeitos de citação, para os termos da ação contra ele proposta, e por consequência em dificultar a tutela jurisdicional efetiva dos direitos da A nessa ação.
Nestas condições, tal como pressuposto pelo tribunal a quo, “e porque a obtenção da informação em causa é de extrema importância…”, o direito da A ao acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva configura-se como um direito de grau superior, como tal devendo prevalecer sobre o direito do R à proteção dos dados pessoais relativos à sua residência atual, uma vez que, tal como dispõe o n.º 3, do art.º 135.º, do C. P. Penal, a inerente quebra do segredo profissional … se mostre(a) justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, … tendo em conta a …necessidade de protecção de bens jurídicos”.
Procede, pois, este incidente de dispensa de sigilo profissional, relativo a comunicações electrónicas, devendo determinar-se, segundo o “princípio da prevalência do interesse preponderante” estabelecido pelo n.º 3, do art.º 135.º,do C. P. Penal que, para efeitos da prática do ato processual de citação no âmbito desta ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias subsequente a injunção, o direito de sigilo da residência do R, integrante dos seus “direitos pessoais”, deve ceder perante o direito de acesso à justiça e tutela jurisdicional efetiva da A, ordenando-se em consequência que a sociedade escusante preste ao tribunal de 1ª instância a informação por este oportunamente determinada.


C) SUMÁRIO
1. O “princípio da prevalência do interesse preponderante” estabelecido pelo n.º 3, do art.º 135.º,do C. P. Penal, determina que, para efeitos da prática do ato processual de citação para os termos de uma ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias subsequente a injunção, o direito à privacidade da residência do utente de uma rede de comunicações electrónicas deva ceder perante o direito de acesso à justiça da sociedade operadora de outra rede de comunicações electrónicas. 

3. DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente este incidente, determinando, segundo o “princípio da prevalência do interesse preponderante” estabelecido pelo n.º 3, do art.º 135.º,do C. P. Penal, que, para efeitos da prática do ato processual de citação no âmbito desta ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias subsequente a injunção, o direito de sigilo da residência do R, integrante dos seus “direitos pessoais”, deve ceder perante o direito de acesso à justiça da A, ordenando em consequência que a sociedade escusante preste ao tribunal de 1ª instância a informação por este oportunamente determinada.
Custas pela A na ação, que do incidente retirou proveito (art.º 527.º, n.º 1, 2ª parte e n.º 2, do C. P. Civil).

Lisboa, 16 de março de 2023
Orlando Santos Nascimento
Vaz Gomes
Nelson Borges Carneiro
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[1] Nos termos do n.º 1, do art.º 4.º, sob e epígrafe “Definições”, “Para efeitos do presente regulamento, entende-se por:1) «Dados pessoais», informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável («titular dos dados»); é considerada identificável uma pessoa singular que possa ser identificada, direta ou indiretamente, em especial por referência a um identificador, como por exemplo um nome, um número de identificação, dados de localização, identificadores por via eletrónica ou a um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa singular
[2] Publicados in dgsi.pt.
[3] Comentário ao Código de Processo Penal, anotação ao art.º 189.º.
[4] Publicado no Diário da República, II Série, de 08/08/2000.