Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
299/10.4TBLNH.L1-2
Relator: JORGE VILAÇA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
ERRO GROSSEIRO
PRAZO RAZOÁVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/13/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – Nos casos de pedido indemnizatório fundado na violação do direito a uma decisão em prazo razoável, a competência é, sempre, dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal (alínea g) do n.º 1 do citado artigo 4º do ETAF).
II – O erro de direito praticado pelo juiz só poderá constituir fundamento de responsabilidade civil do Estado quando seja grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas, demonstrativas de uma actividade dolosa ou gravemente negligente.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I

Relatório

“A”
Instaurou acção declarativa sob a forma de processo comum sumário, a correr termos pelo Tribunal Judicial da Comarca da Lourinhã, contra:
ESTADO PORTUGUÊS
Alegando, em síntese, que sofreu prejuízos causados pela demora no julgamento e conclusão do processo-crime sob a forma comum com nº .../05.6GALNH, que correu termos no Tribunal Judicial da Lourinhã, em que foi condenado por sentença de 02-03-2009 como autor material de um crime de devassa da vida privada, previsto e punido pelo artigo 192.º, n.º 1 do Código Penal (para o qual se convolou o crime por que vinha acusado), na pena de 120 dias de multa à razão de 10,00 € por dia, perfazendo 1.200,00 €, e, como demandado cível, na indemnização à assistente e demandante cível “B”, no valor de 5.000,00 €, bem como pelo erro grosseiro de julgamento que veio a ser reconhecido pela Relação de Lisboa em Acórdão de 27-01-2010, que por isso revogou aquela sentença e absolveu o ora Autor tanto do crime por que fora condenado como do pedido cível.
Concluiu pedindo a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de 7.804,00 €.

Citado regularmente, o Ministério Público contestou, alegando que o erro de julgamento não pode ser considerado grosseiro, pelo que pediu a absolvição do réu do pedido.

Foi proferido despacho saneador, declarando a incompetência absoluta em razão da matéria para conhecer do pedido na parte que versa sobre a eventual efectivação de responsabilidade civil extracontratual do Estado por danos decorrentes do dever de administrar a justiça em tempo razoável, e nessa medida absolveu o R. da instância.
De seguida foi proferida sentença, que julgou a acção improcedente e absolveu o réu do pedido.

Não se conformando com aquela sentença, dela recorreu o autor, que nas suas alegações de recurso formulou seguintes “CONCLUSÕES”:
– O recorrente baseou a sua pretensão em:
- atraso inadmissível nos serviços do Ministério Público: 3 anos e 4 meses sob erro de investigação ab initio sem crime e sem factos relevantes criminalmente …
- erro crasso do Senhor Juiz Julgador atentos os factos carreados para os autos e os arts 124 CPP e 192 do Cód. Penal;
- O caso é da competência do Tribunal Comum e não do Tribunal Administrativo pois está em causa um erro crasso na investigação ab initio que um Procurador diligente não acataria nem acusaria......
- Inexistindo pessoas ou marcas de viaturas ou sequer a cor com um mínimo de nitidez inexistia ilícito ou imagem perceptível. É inconcebível que um simples caso sem ilicitude, com o fito de visionar quem cometeu o dano de destruição do canteiro, penda por incúria do Ministério Público anos e anos, sendo certo que um caso como o dos autos deveria demorar os seguintes prazos, máximos:
- investigação e acusação: 8 meses conforme art° 276 do CPP;
- julgamento e sentença: 2 meses; o art. 658 CPC prescreve 30 dias....
- recurso: 3 meses tudo no máximo de 10 meses, quiçá 1 ano...nunca 4 anos ou mais!
- Um Procurador diligente, atento e respeitador do Principio da Legalidade, veria que, perante a observação do OPC a fls 87, 88, 89 e 90 - "não se conseguem distinguir as pessoas nem sequer as marcas, modelos ou a cor de viaturas"- que o caso deveria ter sido arquivado e nunca acusado, após anos e anos.....de pendência do Inquérito!!!!
- O O.P.C. procedeu a Auto de Visionamento das imagens e não detectou imagens pelo que só por erro crasso, palmar do Ministério Público se concebe a existência de uma Acusação sem crime ab initio!
- O A. sentiu vexame e vergonha por ter sido condenado, um enorme desgosto pois toda a Vida lidou e trabalhou em Tribunais e nunca pensou ou sequer imaginou vir a ser vítima de erro judicial e do próprio sistema!!!!!
- A condenação só ocorreu porque o Senhor Juiz de Direito da Lourinhã não atentou na ausência de factos ilícitos e, mesmo assim, condenou, sem fundamento, com ERRO NOTÓRIO, o A. o que podia e devia ter evitado em vez de secundar o Ministério Público numa perseguição impiedosa e injustificada.
- Efectivamente, o Senhor Juiz da Lourinhã decidiu que:
2- o arguido regista, grava e guarda todas as movimentações efectuadas naquele ... e em particular as entradas e saídas da casa da ofendida, assim como todas as viaturas que se encontram junto à porta de casa daquela.
5- agiu o arguido deforma livre e com o propósito concretizado, nas circunstâncias e pelo modo supra relatado, captar imagens referentes à vida particular da ofendida e do seu agregado familiar, suar dando-as para seu particular desígnio...” - Doc 5
- O SENHOR JUIZ SABIA QUE O A. NUNCA CAPTOU IMAGENS DA VIDA PARTICULAR DA OFENDIDA!! SÓ POR ERRO CRASSO, SOB PETIÇÃO DE PRINCIPIO INJUSTIFICADA E COM PRESUNÇÃO DE CULPA AB INITIO, SEM FUNDAMENTO CONCRETO SE CONCEBE QUE O SENHOR JUIZ JULGADOR TENHA ESCRITO QUE: agiu o arguido de forma livre e com o propósito concretizado, nas circunstâncias e pelo modo supra relatado, captar imagens referentes à vida particular da ofendida e do seu agregado familiar, guardando-as para seu particular desígnio;
10ª - O SR JUIZ JULGADOR SABIA SER INEXISTENTE IN TOTUM POIS O CRIME ERA INEXISTENTE DESDE A PRIMEIRA HORA DO INQUÉRITO: se a – fls. 87,88, 89 e 90 – “não se conseguem distinguir as pessoas nem sequer as marcas, modelos ou a cor de viaturas" como poderia haver DEVASSA ou violação da intimidade no Acórdão??? se o OPC não vislumbrou violação da intimidade....a fls 87 e ss como poderia o M.P. e o Sr. Juiz concluir por tal "devassa"? Efectivamente
11ª - Inexistem mais do que imagens difusas, sem percepção de rostos ou figuras humanas, de letras ou números de veículos, colhidas num jardim, no canteiro do A. e não no quarto privado, na casa de banho ou em outro aposento da casa da referida “B”. Bastava o Sr. Juiz ter-se colocado a si próprio estas questões quando "recebeu" os autos para REJEITAR o seu "recebimento":
- Que imagens foram recolhidas? com que nitidez? De quem? quando? como? com que fim? para quê? o que se vê nas imagens? quem é ali visto? em que posição? a fazer o que? quem e quando colocou a Câmara de filmar?
E a câmara está em posição de devassar quem e como? o que devassou? que factos da VIDA PRIVADA foram apurados atendendo ao AUTO de fls 86 e ss? foi alguém visto em actos privativos da sua própria intimidade?
12ª - Os danos não patrimoniais causados com a submissão do A. o julgamento devem ser quantificados em 4.000 € e que o R. deve ser condenado a pagar-lhe; o A. despendeu, em 4 viagens Lisboa a Lourinhã ao Tribunal, cerca de 100 Euros em combustível em viatura própria. Despendeu 204 € em taxa de justiça e deve pagar 1.000 € ao advogado constituído. Os danos ascendem a 5.304 € e que o R. Estado lhe deve pagar conforme decidiu o Tribunal Europeu em casos similares: Acórdão Apricella c. Itália -10-11-2004, Ac. Ernestina Zullo c.Itália -10-11-2004 e Ac.Riccardi Pizatti c. Itália -10-11-2004.
13ª - O Réu Estado Português incorreu em responsabilidade civil extracontratual pela falta de Justiça em prazo razoável, pelo deficiente funcionamento do serviço de Justiça e violação do direito a obter uma Decisão em prazo razoável e por perseguição criminal sem fundamento conforme impõem o art° 6.º- 1 da Convenção Europeia, o art° 20 da Lei Fundamental, os arts. I.º, 2.º, 6.º e 7.º do D. Lei 48051 de 2-11-1967, os arts. 2.º e 12.º da LEI 67/2007 de 31/12, art. 2.º do Código Processo Civil e artigo 483 do Cód. Civil.
Pelo que revogando a Decisão recorrida deve o R. Estado Português ser condenado a pagar 2.500 € pela duração e demora excessiva do caso e ainda as despesas e honorários que se calculam em 1.000 Euros pela abertura do dossier, despesas e honorários do advogado, conforme aliás impõe a Jurisprudência do Tribunal Europeu.
O Sr. Juiz a quo violou os arts. 2.º, 101, 288-1-a), 494-a), 495 do CPC pois a competência para julgar o erro de investigação e demora excessiva do Inquérito do Sr. procurador da República da Lourinhã que ab initio errou ao considerar existir um crime onde inexistiam filmagens de devassa de pessoas, arrastando ad nauseum (mais de 3 anos!!!) um inquérito que deveria ser concluído em 4 ou 5 meses....é do TRIBUNAL COMUM e não da Jurisdição Administrativa.
O Sr. Juiz a quo violou os arts. 124 e 311 do CPP, 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 20.º da Lei Fundamental; . I.º, 2.º, 6.º e 7.º do D.Lei 48051 de 2-11-1967, 2.º e 12.º da Lei 67/2007 de 31/12, 483 C.C. , 124 e 311 CPP.
O Tribunal competente é o Tribunal a quo. Há erro judiciário grave cometido pelo Senhor Juiz Julgador da Lourinhã que deveria ter recusado receber a Acusação face à inexistência de imagens de devassa da intimidade. Deve assim proceder o recurso, revogar-se a Decisão recorrida e o R. Estado condenado no quantum que V. Exas. melhor julgarem adequado in casu atenta a Jurisprudência Comunitária.

Nas contra-alegações o Ministério Público sustentou as decisões impugnadas e pugnando pelo não provimento do recurso.


II

- FACTOS
Na sentença recorrida foram considerados assentes os seguintes factos:
1) Em 21/10/2005, “B” apresentou queixa contra o ora A alegando que o mesmo instalara uma câmara de filmar na janela do 1.º andar da casa do A, a qual estava virada para o portão de entrada da sua residência, queixa essa que deu origem ao Inquérito n.º .../05.6 GALNH;
2) O A foi constituído arguido no Inquérito n.º .../05.6 GALNH no dia 31/08/2006, tendo prestado as declarações constante de fls. 96-97, que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais [e em que designadamente declarou ter efectivamente colocado uma câmara de filmar na sua residência direccionada para um canteiro existente no logradouro afecto à sua propriedade, podendo apanhar cerca de um metro para além do mesmo, logradouro esse que serve de serventia à propriedade da queixosa; e que, na sequência de desentendimento acerca de obras de ampliação desse canteiro, começaram a partir de certa altura a aparecer na sua propriedade coisas danificadas; e que foi com vista a identificar o ou os autores dos danos que procedeu à referida câmara “de vigilância”, não sendo sua intenção a devassa da vida privada de pessoas que eventualmente viessem a ser filmadas];
3) No âmbito de tal inquérito, foi promovida pela Digna Magistrada do Ministério Público e ordenada pelo Meritíssimo JIC, a realização de buscas aos locais mencionados a fls. 100-101, que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais, com as finalidades aí referidas;
4) Enviados os competentes mandados de busca e apreensão à GNR da Lourinhã para cumprimento, tal diligência não foi levada a cabo em virtude de ter sido constatado que o prazo para realização da diligência fixado no despacho proferido pelo Meritíssimo JIC já havia decorrido;
5) No dia 16/12/2006, o A entregou no Posto Territorial da GNR da Lourinhã uma cassete VHS de marca Maxell, com a duração de 240 minutos, a qual foi visionada nos termos constantes do Auto de fls. 109, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais [e em que foi consignado que “Nas imagens visionadas, foi observado que além do canteiro, é possível observar um portão da residência, que fica defronte do local onde se encontra instalada a câmara de videovigilância…” e que “Foi também observado que nas gravações é possível ver o movimento de pessoas, das quais se consegue distinguir serem do sexo masculino ou feminino, não se conseguindo identificar as mesmas, e veículos, dos quais não é possível ver a marca, o modelo, a matrícula ou a cor” constando ainda que tais gravações datam de períodos compreendidos entre 14.8.2006 e 25.11.2006, remetendo o mesmo auto para fotografias de que constam fotocópias a fls. 110 a 113 dos autos];
6) No mencionado processo, foi proferido o despacho de acusação constante de fls. 114-116, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
7) O A apresentou o requerimento de fls. 117-119, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, o qual foi objecto do despacho de fls. 123-124, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
8) O A apresentou o requerimento de fls. 126-134, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, o qual foi objecto do despacho de fls. 135, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
9) Recebida a acusação e designada data para o julgamento, procedeu-se à realização da audiência de julgamento, tendo, no final da mesma, sido proferida a sentença constante de fls. 136-144, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais [que concluiu pela condenação do ora Autor como autor material de um crime, na forma consumada, de devassa da vida privada, p. e p. pelo artigo 192.º, n.º 1. alínea b) do Código Penal, para o qual se convolou o crime por que vinha acusado, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 10,00 €, perfazendo a pena global de multa de 1.200,00; €, em custas e honorários ao seu defensor oficioso e ainda o condenou a pagar a indemnização civil à assistente “B”, por danos não patrimoniais sofridos, no montante de 5.000,00 € e em parte das custas do pedido cível deduzido];
10) Inconformado com tal sentença, o A recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, que proferiu o Acórdão constante de fls. 44-72, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais [e que decidiu no sentido da revogação da decisão impugnada, tanto na parte penal como na cível].
O tribunal a quo fundamentou assim a decisão da matéria de facto:
“ Tribunal louvou-se no teor dos documentos de fls. 44-72, 89-90, 95-97, 100-102, 106-107, 109-144, que se tratam de documentos autênticos nos termos do art. 369.º do Código Civil e sendo certo que a veracidade do seu conteúdo jamais foi posta em causa pelas partes (maxime pelo A, pese embora alguns deles até contradigam factos por si alegados na petição inicial, designadamente no que à realização das buscas tange), como impõe o art. 372.º, n.º 1, do Código Civil.
De notar que é irrelevante se o A colocou a câmara por “conselho” de militares da GNR, dado que uma tal “dica” jamais “legalizaria” algo que fosse ilícito e nada acrescentaria à licitude “originária” de uma qualquer conduta, caso seja lícita.
Os demais factos alegados pelo A, ou são irrelevantes (atenta a solução jurídica que o caso deverá merecer, maxime tendo em conta a verificação/não verificação dos pressupostos da obrigação de indemnizar, na vertente de responsabilidade civil extra-obrigacional), já para não falar no facto de algumas das alegações do A serem “desmentidas” pelo teor de documentos autênticos cujo conteúdo, como se disse, nem sequer foi posta em causa pelo A (em articulado ou sequer requerimento autónomo”.

Com interesse para o conhecimento do objecto do recurso, destacam-se ainda os seguintes elementos constantes de documentos dos autos:
11) O Tribunal da Relação alterou parcialmente a decisão sobre a matéria de facto, retirando do elenco dos factos provados os enunciados sob os nºs 5 e 6 da sentença de 1ª instância (que passaram a constar dos factos não provados e são do seguinte teor respectivo: “2. Agiu o arguido de forma livre e com o propósito concretizado, nas circunstâncias e pelo modo supra relatado, captar imagens referentes à vida particular da ofendida e do seu agregado familiar, guardando-as para seu particular desígnio, bem sabendo que não tinha o consentimento da visada e que actuava contra a sua vontade, o que representou, persistindo todavia na sua conduta” e “3. Bem sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal”) tendo ainda alterado outros factos dados como provados na sentença de 1ª instância (caso do nº 1: “1. Desde data não apurada, mas certamente desde Outubro de 2005, que o arguido instalou junto a uma janela do primeiro andar da sua residência, sita no ..., n.º 3, ..., uma câmara para registo de imagem, direccionada para a porta de entrada da casa de “B””e do nº 2: “O arguido regista, grava e guarda todas as movimentações efectuadas naquele ... e em particular as entradas e saídas de casa da ofendida, assim como todas as viaturas que se encontram junto à porta de casa daquela”) e dando-lhes a seguinte redacção respectiva: “1. Desde data não apurada, mas certamente desde Outubro de 2005, que o arguido instalou junto a uma janela do primeiro andar da sua residência, sita no ..., n.º …, ..., uma câmara para registo de imagem, direccionada para um jardim situado naquele Beco, em que regista as entradas e saídas de casa da ofendida, assim como todas viaturas que se encontram junto à porta da casa daquela” e, “2. O arguido regista, guarda e grava todas as movimentações efectuadas naquele ...”.
12) O Tribunal da Relação aditou ainda aos factos não provados o seguinte: “1. Que o arguido tenha instalado a câmara para registo de imagens, direccionada para a porta de entrada da casa de “B” e que, em particular, registe as entradas e saídas de cada da ofendida, assim como todas as viaturas que se encontram junto à porte de casa daquela (não provado apenas que em particular registe aquelas movimentações”.
13) No mesmo Acórdão, o Tribunal da Relação conheceu oficiosamente (nos termos do artigo 410º, nºs 2 e 3 do Código de Processo Penal, de eventual erro notório na apreciação da prova, produzindo as seguintes considerações (fls. 62-63): “trata-se, como pacificamente tem vindo a ser considerado, de um erro (ignorância ou falsa representação da realidade) evidente, facilmente detectado, e resultante do texto a decisão ou do encontro deste com a experiência comum.
Em tese geral diremos que a decisão impugnada mostra-se correctamente fundamentada quer no aspecto de facto quer no direito aplicado, de forma a poder apreender-se plenamente os motivos e o processo lógico-formal que o julgador usou para, de acordo com as regras da experiência comum, formar a sua livre convicção – cfr. art. 127º do Código de Processo Penal.
Foram invocados mais propriamente erros de julgamento – que não notórios – que serão apreciados em sede própria”.
14) Apreciando esse erro de julgamento, consta do dito Acórdão, nomeadamente, o seguinte: “Ocorreu no caso vertente um erro de julgamento, em nosso entender.
[…]
Desde logo, da visualização das fotografias de fls. 87 a 90 permite verificar que a câmara não grava “em particular” as “entradas e saídas da casa da ofendida, assim como todas as viaturas que se encontram junto à porta de casa daquela”, como se deu provado sob o nº 2.
Com efeito, daquela visualização resulta que por um lado, que, em particular, a câmara grava o jardim do arguido para onde está manifestamente direccionada, contra o que foi provado sob o n.º 1, sendo que aparece na parte superior das imagens, de forma difusa a entrada da casa da ofendida, onde circulam pessoas e viaturas que são todavia reconhecíveis.
No entanto, não existe prova de que o arguido tivesse tido a intenção específica de devassa a privacidade da ofendida, este não cometeu o ilícito de que vinha acusado, devendo, pois, ser absolvido.
O mencionado crime só se verifica com o dolo específico, ou seja, que o autor tenha tido a intenção de devassar a vida privada da ofendida, já que a câmara está particularmente direccionada para o jardim do arguido e não para a porta da casa da ofendida.
Não interessa aqui se no auto de visionamento de imagens junto aos autos se consegue vislumbrar / distinguir as pessoas, marcas, modelos ou matrículas de viaturas, e que, por este facto, não teria ocorrido qualquer devassa da vida privada por parte do arguido e relativamente à assistente. A situação tem sempre que reportar-se ao caso concreto e na situação em análise consegue ver-se quem se movimenta, no caso a assistente e família e seus carros, até por que sendo um Beco sem movimentação minimamente relevante de pessoas e viaturas aos moradores da zona, a devassa existiria sempre.
Como resulta do depoimento prestado pela assistente nos autos, que, com base no visionamento das imagens captadas pelo arguido, consegue distinguir a si própria, à sua viatura automóvel e alguns elementos da sua família.
De facto, não é possível ver a matrícula das viaturas que constam daqueles autos, mas distinguem perfeitamente pelo vulto as pessoas que estão sob o alvo da câmara. Porém, tal não significa que o próprio, ou alguém próximo, não consiga distinguir o seu próprio veículo. Nem que a pessoa que a colocou consiga ver quem aparece nas imagens.
Naturalmente que a assistente, que ali reside, bem como demais residentes, têm conhecimento das viaturas que frequentam o local bem como das pessoas que também o frequentam. Naturalmente, terão maior facilidade em reconhecer os veículos e as pessoas (captadas nas imagens) do que alguém que não conheça o local e não esteja familiarizado com as pessoas que ali residem e veículos que frequentam aquele mesmo local.
Acresce que, para o preenchimento do tipo objectivo do crime ora em apreço, não é necessário que a captação de imagens o seja feito de modo perfeitamente nítido e que as pessoas e viaturas que se vislumbram naquelas imagens sejam reconhecidas por todos. Efectivamente, para o preenchimento do tipo legal é bastante e suficiente que os próprios se reconheçam naquelas imagens.
Outra situação é a de saber se o arguido teve intenção de devassar a vida privada alheia, uma vez que o pretendido com a colocação daquela câmara "era somente a captação de imagens de um canteiro que ali se encontrava."
O arguido sabia, aquando da colocação - por si mesma efectuada - da câmara naquele local, que a mesma para alem do mencionado canteiro apanhava na imagem uma porta de entrada da residência da assistente, captando imagens do que ocorria naquele local.
Ora a intenção é algo que pertence ao domínio íntimo dos indivíduos, sendo certo que é pela manifestação exterior que se pode extrair e verificar da intenção de qualquer pessoa. A levar a um extremo nunca se poderia saber qual seria a intenção de alguém, a não ser que o mesmo confessasse.
De facto, conforme jurisprudência do STJ "os elementos subjectivos do crime pertencem à vida íntima e interior do agente. Contudo, é possível captar a sua existência através e mediante a factualidade material que os possa inferir ou permitir divisar, ainda que por meio de presunções ligadas ao princípio da normalidade ou às regras da experiência comum" (Ac. STJ de 25/09/97 no Processo n° 479/97, citado por Leal Henriques e Simas Santos in Código Penal Anotado I Vol. 2002 p. 224).
Ainda, sobre a intenção criminosa que: " os actos interiores (ou "factos internos" como lhes chama Cavaleiro de Ferreira), que respeitam à vida psíquica, a maior parte das vezes não se provam directamente, mas por ilação de indícios ou factos exteriores (Germano Marques da Silva, Curso de Proc. Penal, II, pag. 101)".
Com o disposto no artigo 192° do Código Penal pretende o legislador proteger a intimidade da vida privada, no seu conjunto, mas tem de haver um dolo específico por parte de quem devassa a vida privada”.


III

- FUNDAMENTAÇÃO

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:

Nos termos do art.º 684º, n.º 3, do Código de Processo Civil, o objecto do recurso é limitado e definido pelas conclusões da alegação dos recorrentes.

Assim, no âmbito do presente recurso de apelação as questões a conhecer são as seguintes:
1) Competência do tribunal em razão da matéria;
2) Existência de erro judiciário.


1. Competência do tribunal em razão da matéria

A primeira questão a conhecer é, assim, a de saber se o Tribunal comum da comarca de Lourinhã é ou não competente para conhecer de um pedido de efectivação de responsabilidade civil do Estado pela alegada violação do dever de proferir decisão judicial em tempo razoável nos autos do processo-crime em que o aqui autor foi acusado e julgado.
Está em causa, como resulta do atrás referido, a competência dos tribunais comuns para conhecerem do pedido fundado na responsabilidade civil do Estado por danos decorrentes do não cumprimento do dever de administrar a justiça em tempo razoável, invocando para tanto, quer a delonga que o processo-crime teve, desde a abertura de inquérito pelo Ministério Público, até à prolação da sentença de 1ª instância, quer os danos pessoais e materiais a que tal delonga causalmente e alegadamente o sujeitou.

A responsabilidade civil em causa é da espécie extracontratual (já que não fundada em incumprimento de obrigação individualmente estabelecida entre autor e réu, pelo contrário se fundando no incumprimento de um dever da Administração do Estado (em sentido lato), de dirimir causas jurisdicionais em tempo razoável (o que permite aprofundar a caracterização da dita responsabilidade qualificando-a como por actos de gestão pública).
O artigo 26º, n.º 1, da LOFTJ (Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto), determina que “Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
A residualidade da competência jurisdicional dos tribunais da ordem comum implica, pois, que se averigue se a lei comete a tribunais de outra ordem jurisdicional a competência para a aludidas acções de responsabilidade civil.

Dispõe o artigo 4º, n.º 1, alínea g), do ETAF (com a redacção dada pelo artigo 1º da Lei n.º 107-D/2003, de 31 de Dezembro) que “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: […] Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa”.
A alínea a) do n.º 3 do mesmo artigo exclui do âmbito da dita jurisdição “A apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das correspondentes acções de regresso”, sendo que já o nº 2 desse artigo 4º excluía igualmente os litígios que tenham por objecto a impugnação de “Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal” [alínea b)] de “Actos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da acção penal e à execução das respectivas decisões” [alínea c)].
Com base nestes normativos, e em relação ao pedido indemnizatório que visa actuar a responsabilidade civil por demora excessiva no exercício da acção penal (em diversas fases do seu processamento) e na prolação da decisão penal, entendeu o tribunal a quo que o tribunal competente para dele conhecer só poderia ser o da ordem jurisdicional administrativa e fiscal, com a concomitante invocação da inexistência de competência “por arrastamento” [que se poderia eventualmente invocar, uma vez que quanto ao pedido fundado em erro de julgamento (erro judiciário) dúvidas não restam (à luz do já citado e transcrito dispositivo da alínea a) do n.º 3 do artigo 4º do ETAF) de que são os tribunais comuns os competentes, tendo por isso o tribunal aceitado a sua competência].
O ora recorrente contrapõe, sem mais, que o atraso alegadamente havido na dita acção penal e seu julgamento em 1ª instância releva não apenas do deficiente funcionamento da justiça (como na petição inicial invocou), mas sobretudo de um “erro crasso na investigação ab initio que um Procurador diligente não acataria nem acusaria” (n.º 2 das conclusões, a fls. 374).
Importa, para decidir a questão, atentar ainda em que na responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional se podem considerar distintas vertentes, essencialmente as seguintes duas: por danos decorrentes violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável, a que o artigo 12º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, determina seja aplicável “tout court”, o regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa, e por danos decorrentes da prolação de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto (artigo 13º, n.º 1, da mesma Lei), casos em que o pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente (n.º 2 do artigo 13º) - o que no caso dos autos efectivamente aconteceu.
Atribuir a demora alegadamente excessiva do processo-crime em causa a erro crasso seja do Magistrado do Ministério Público, que acusou, seja dos Magistrados Judiciais que receberam a acusação e julgaram e prolataram sentença em 1ª instância, é pura afirmação tautológica, sem a menor fundamentação em alegação fáctica, aliás não facilmente concebível, a menos que se tivesse em vista a ignorância por parte de tal ou tais magistrados dos prazos processuais em causa, o que não vem invocado.
Temos, pois, que os alegados atrasos que poderão qualificar a denegação de justiça em prazo razoável são apenas atrasos, e não fruto de erros de qualquer espécie.
Assim, o regime de definição de jurisdição competente é o que decorre dos preceitos legais citados.

Ora, ao remeter para a jurisdição administrativa e fiscal a competência para julgar as questões decorrentes do exercício da função jurisdicional, o artigo 4º, nos seus nºs 1, alínea g), 2, alínea b) e c) e 3, alínea a), do ETAF, acabou por delimitar, por uma forma não inteiramente explícita, a seguinte regra: o conhecimento das acções para indemnização de danos que sejam causados no grosseiramente incorrecto exercício da função jurisdicional, isto é, na sua vertente materialmente específica (a resolução de um litígio, pela aplicação razoavelmente adequada das normas constitucionais e legais), constituindo “erros judiciários”, compete aos tribunais da respectiva ordem jurisdicional (só o sendo da ordem administrativa e tributária se o erro tiver sido praticado em processo a ela pertencente).
Por cautela, especificou-se ainda que a mesma regra deve ser aplicada quando se tiver em vista, essencialmente, a impugnação jurisdicional da própria sentença ou despacho, tal como de actos de inquérito e instrução, exercício da acção penal e execução das respectivas decisões.
Em todos os demais casos de pedido indemnizatórios, inclusivamente os fundados na violação do direito a uma decisão em prazo razoável, a competência é, sempre, dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal (alínea g) do n.º 1 do citado artigo 4º do ETAF).
Esta delimitação decorre, afinal, da destrinça entre a função jurisdicional, enquanto pura emanação do poder estadual de administrar a justiça, e a função jurisdicional stricto sensu, enquanto acto concreto de julgar e decidir um litígio ou aspectos dele.
Neste sentido se pronuncia a jurisprudência, que seguimos, invocada nas doutas alegações do Ministério Público, do Tribunal de Conflitos, em concreto o Acórdão de 21-03-2006, proferido no processo 0340, do qual (http://www.dgsi.pt) se reproduz o seguinte trecho:
“[…] pode, hoje, considerar-se pacífico o entendimento de que estando em causa responsabilidade emergente da função de julgar, a competência cabe aos tribunais judiciais, pois os actos e actividades próprias dos juízes na sua função de julgar são praticados no exercício específico da função jurisdicional e não da função administrativa.
Todos os outros actos e omissões de juízes, bem como toda a actividade e actuação dos restantes magistrados, órgãos e agentes estaduais que intervenham na administração da justiça, em termos de relação com os particulares ou outros órgãos e agentes do Estado, e, portanto, sejam estranhos à específica função de julgar, inscrevem-se nos conceitos de actos e actividades administrativas ou de “gestão pública administrativa”, da competência da jurisdição administrativa.
Com efeito, pode considerar-se firmada a jurisprudência deste Tribunal de Conflitos e também do STA, na sequência do já citado acórdão do Tribunal de Conflitos de 12.05.1994, Conflito nº266, no sentido de que, «o critério para a repartição de competência entre tribunais administrativos e tribunais judiciais para conhecimento de acções de responsabilidade civil extracontratual do Estado por factos ocorridos no domínio da actividade dos tribunais passa pela distinção entre os casos em que a causa de pedir é um facto ilícito imputado a um juiz no exercício da sua função jurisdicional (na sua função de julgar), hipótese em que serão competentes os tribunais judiciais, e os casos em que a causa de pedir é um facto ilícito imputado a um órgão da administração judiciária (ou a este serviço globalmente considerado, quando não seja individualizável - falta de serviço) no exercício de actividade estranha à função de julgar, hipótese em que serão competentes os tribunais administrativos.» (cf. entre outros, os citados acórdãos deste Tribunal de Conflitos e ainda, entre outros, os Acs. do STA de 13.02.1996, rec. 38.350, de 15.10.98, rec. 36.811, de 12.10.2000, rec. 45.862 e de 12.10.2000, rec. 46.313.)”.

Não se descortinam razões para entender de forma diferente, pelo que, nesta parte, há que negar provimento ao recurso, julgando-o improcedente.


2. Existência de erro judiciário

Nesta segunda questão trata-se de conhecer se a sentença condenatória proferida em 1ª instância, e que foi revogada por Acórdão desta Relação, resultou de erro judiciário

Invoca o ora autor, como segundo fundamento do presente recurso, ser errada a sentença versando sobre a sua segunda pretensão, fundada em alegado erro crasso, ou grosseiro, tanto por parte do juiz que proferiu decisão de mérito no processo-crime em que foi arguido, como em diversas fases do inquérito do Ministério Público, na dedução de acusação e no recebimento desta.
Em termos de alegação fáctica, invoca o teor do documento de visualização das gravações captadas com a câmara de vigilância que instalou, que, a seu ver, só por si afastava toda a possibilidade de lhe ser imputada a intenção de devassar a vida privada da ofendida e membros do respectivo agregado familiar ou visitas, quer pelo local para que foi direccionada, quer pela imprecisão das imagens colhidas, insusceptíveis de identificar pessoas e veículos automóveis.
Em especial, argumenta com o facto de ter sido exactamente por essas razões que o Tribunal da Relação de Lisboa revogou a sentença de 1ª instância, absolvendo-o tanto do crime por que vinha acusado como do pedido de indemnização cível da ofendida.

O regime jurídico da responsabilidade civil extracontratual do Estado, no específico domínio de que tratam os autos, consta do artigo 13º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, que de novo se transcreve:
“1 - Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.
2 - O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.”

Excluídos os casos da 1ª parte do n.º 1 (como se entendeu na sentença impugnada e o recorrente não discute), resta o erro judiciário.
Não alegou o recorrente a inconstitucionalidade da norma que fundamentou a decisão, sendo que a invocação que nas alegações faz do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa relevaria apenas para a responsabilidade civil por não prolação de decisão em prazo razoável.
Também a ilegalidade da decisão (por erro na interpretação e aplicação da lei) se não mostra realmente configurada nas alegações.
De todo o modo, sempre haveria que levar em linha de conta o mais correcto entendimento do campo de aplicação dessa 1ª parte do n.º 1 do artigo 13º, que se encontra a nosso ver na afirmação contida no douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-09-2009, Processo n.º 368/09.3YFLSB, em que foi relator o Conselheiro Sebastião Póvoas:
“A decisão não é inconstitucional, salvo se tomada por um órgão não competente segundo a lei fundamental.
Poderá é aplicar uma norma, seu segmento ou interpretação, em violação do normativo constitucional.
O mesmo se dirá da decisão ilegal ou injustificada”.

O cerne da impugnação do recorrente reside em erro, que qualifica de “crasso”, e corresponde ao erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de algumas decisões proferidas no processo-crime.

Como é referido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-12-2009, Processo n.º 9180/07.3TBBRG.G1.S1, em que foi Relator o Conselheiro Moreira Camilo, por sua vez citando o Acórdão do mesmo Supremo Tribunal de 15-02-2007, (ambos consultáveis em http://www.dgsi.pt):
“O erro de direito praticado pelo juiz só poderá constituir fundamento de responsabilidade civil do Estado quando seja grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas, demonstrativas de uma actividade dolosa ou gravemente negligente”.
A responsabilidade civil extracontratual do Estado por erro na interpretação e aplicação do direito pressupõe, pois, conforme explicitado no primeiro aresto citado, “a manifesta falta de razoabilidade da decisão, o dolo do juiz, o erro grosseiro em grave violação da lei, a afirmação ou negação de factos incontestavelmente não provados ou assentes nos autos, por culpa grave e indesculpável do julgador”.

Também no citado Acórdão do Supremo de 08-09-2009 se refere, a respeito do erro grosseiro, que
Tal erro terá de ser indesculpável, intolerável ou, na dura expressão do Prof. Manuel de Andrade, “escandaloso, crasso, supino, que procede de culpa grave do errante.” (in “Teoria Geral da Relação Jurídica”, 1974, 2.ª, 239), terá, enfim, de constituir uma “aberratio legis”.(cf ainda Cons. Guilherme da Fonseca in”A responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional (em especial o erro judiciário)” in Julgar nº5, Maio- Agosto 2008 51ss; Acordãos do STJ de 12 de Outubro de 2000- Pº 2321/00 2ª Secção- e o já citado de 11 de Setembro de 2008 -08B1747).
Não se trata de mero erro ou lapso que afecta a decisão mas não põe em causa a sua substância (“error in judicio”).
Não será, outrossim, um lapso manifesto.
Terá de se traduzir num óbvio erro de julgamento, por divergência entre a verdade fáctica ou jurídica e a afirmada na decisão, a interferir no seu mérito, resultante de lapso grosseiro e patente, por desconhecimento ou flagrante má compreensão do regime legal (neste sentido, também os Acórdãos do STJ de 31 de Março de 2004 –CJ/STJ 20044-I 157)”.

Na sentença recorrida averiguou-se da existência de um tal erro acerca dos diversos actos processuais que o autor considera terem resultado dele.
Em primeiro lugar, considerou-se, e bem, que as buscas em sua casa acabaram por se não concretizar (em face da ultrapassagem do prazo legal para execução do respectivo mandato), tendo sido o próprio autor, enquanto inquirido, que entregou à autoridade policial os suportes das gravações efectuadas em diversas datas com a câmara de vigilância por si instalada.
Depois, os despachos proferidos acerca das arguições de nulidade a que se reportam os factos enunciados sob os nºs 7 e 8 dos factos provados são insusceptíveis de gerar responsabilidade civil extracontratual do Estado, já que não recorridos (n.º 2 do artigo 13º da Lei n.º 67/2007).
Resta considerar a acusação do Ministério Público e a sentença condenatória, já revogada em sede de recurso.

Quanto à primeira:
O artigo 283º do Código de Processo Penal estabelece, para o caso de encerramento do inquérito pela dedução de acusação, o seguinte:
1 - Se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, no prazo de 10 dias, deduz acusação contra aquele.
2 - Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.

A sentença recorrida considerou que o Ministério Público, usando da experiência comum como lhe é consentido pelo artigo 127º do mesmo Código, (e, já agora, segundo o princípio da livre convicção da entidade competente, como o mesmo preceito também estabelece), ao deduzir acusação, não incorreu em erro grosseiro, pois que as imagens colhidas pela câmara permitiam visualizar pessoas junto à porta de casa da queixosa, veículos automóveis (embora uns e outros não cabalmente identificáveis, se bem que a própria se reconhecesse a si mesma) tal como as declarações da ofendida corroboravam a objectiva devassa da entrada da sua casa.

Note-se que, como é consensual, o crime por que o aqui autor veio a ser julgado - e que foi, não o da acusação (de gravações e fotografias ilícitas p. e p. pelos artºs 30º, n.º 2 e 199º, nºs 1 e 2, alínea a), do Código Penal, mas sim o de devassa da vida provada, p. e p. pelos artigos 30º, n.º 2, e 192º, n.º 1, alínea b), do mesmo Código) – é um crime de dolo específico, em que se exige a intenção de devassa da vida privada e não um simples dolo genérico.
Considerando os ditos elementos documentais, e as declarações da queixosa, embora estas contraditadas pelas do próprio arguido, não se afigura que haja sido temerário, e constituísse erro grosseiro ou palmar, promover a sujeição a julgamento de um tal arguido, pois que, sendo a prova relevante em julgamento a que nele viesse a ser produzida, não pode deixar de se considerar como razoavelmente possível que ao arguido viesse a ser aplicada a pena correspondente.
Anote-se, ainda, que estava o Ministério Público no conhecimento de que o arguido, previamente à colocação da câmara, alegando embora a questão dos danos causados no seu canteiro, tivera a iniciativa de requerer junto do Ministério Público autorização para essa colocação (fls. 197-198), e, sendo esclarecido de tal competência não ser daquele Magistrado (mas, como é sabido, da Comissão para a Protecção de Dados), não deixou de ser advertido para a possível ilicitude do acto que visava (despacho de 08-10-2003, documentado a fls. 199), assim como do facto de haver gravações datadas de momento posterior ao conhecimento pelo arguido da queixa da ofendida por devassa da sua vida privada.
Sendo o elemento subjectivo de difícil prova e só podendo pela sua existência concluir-se a partir de dados que constituem realidades exteriores, não se configura como erro grosseiro deduzir, em tais circunstâncias, acusação contra o então arguido.
Assim, no que respeita à acusação, estamos inteiramente de acordo com a análise contida na sentença recorrida.

Quanto à sentença:
O tribunal deu como provada a instalação da câmara de registo de imagem direccionada para a porta de entrada da casa da ofendida, a captação e gravação de movimentações efectuadas no ... e em particular as entradas e saídas da casa da ofendida e das viaturas que se encontram junto a essa porta, a manutenção na posse do arguido de vários registos datados de Agosto de 2006 a Novembro de 2006, a manutenção da dita câmara em funcionamento em Dezembro de 2006 e a actuação livre e consciente com o propósito de captar imagens referentes à vida privada da ofendida e seu agregado familiar, contra a vontade desta e sabendo da ilicitude da sua conduta.
Fundamentou a prova de tais factos nas declarações do arguido (apenas quanto à materialidade da colocação da câmara, sem deixar de referir que a motivação por ele invocada era apenas a de filmar um canteiro, mas sabendo que a porta de entrada da casa da vizinha era filmada), assim como nas declarações da ofendida e nas do marido desta.
O Tribunal da Relação valorou o facto de as imagens captadas pela câmara serem, em primeiro plano, as do canteiro e só em segundo plano, na parte superior da imagem, surgirem as figuras e veículos localizados junto à porta da casa da ofendida, e, por isso, entendeu não se poder dar como provado o propósito deliberado de devassa da vida particular da ofendida, tanto mais que a única intenção admitida pelo arguido fora a de tentar identificar quem alegadamente lhe vinha de pretérito causando danos nas plantas existentes no canteiro pertencente ao arguido.
Alterando em conformidade, partes relevantes da matéria de facto, e com fundamento na não prova do dolo específico, deu como não provada a prática do crime e absolveu o arguido de tal crime e consequentemente do pedido de indemnização cível.
Questiona-se, então se estaremos perante um erro palmar, crasso, grosseiro, que um juiz normalmente experiente não cometeria jamais, em erro temerário.
Consideramos que não.
Com efeito, a factualidade que a Relação alterou foi exactamente aquela da qual se poderia inferir a intenção de devassa e fê-lo através de uma interpretação diversa dos mesmos factos materiais: o tribunal de 1ª instância entendeu que o facto de o arguido ter colocado a câmara direccionada para o canteiro mas bem sabendo que tal como a colocara poderia também visionar a porta de entrada de casa da ofendida, concluiu haver intenção de devassa (implicitamente admitindo a coexistência de dois objectivos na conduta em questão).
O Tribunal da Relação, pelo contrário, considerou que a intenção de vigiar o canteiro decorria do facto de ser este que é visionado em primeiro plano, pelo que o facto de na parte superior da imagem captada se ver, mais longinquamente e sem contornos definidos, a entrada da casa da ofendida, tal como as pessoas e veículos junto dela situados, não permitia concluir que fosse intenção dele devassar dados da vida privada daquela – mais correctamente, entendeu “não haver prova” de tal intenção.

Obviamente, não compete a este tribunal, nem à jurisdição cível, dirimir tal discordância, sendo sempre certo que a decisão do tribunal superior será em todo o caso a que deverá prevalecer, para todos os efeitos.
Mas, as considerações produzidas pelo Tribunal da Relação e que transcrevemos na parte II - Factos supra, revelam que aquele próprio tribunal expressamente excluiu a existência de erro notório de julgamento e que considerou existir apenas um erro de julgamento, no concernente ao substrato factual do elemento “dolo específico”.

Refere-se, ainda, nessas considerações supra transcritas, que para o preenchimento do tipo objectivo do crime ora em apreço, não é necessário que a captação de imagens seja feita de modo perfeitamente nítido e que as pessoas e viaturas que se vislumbram naquelas imagens sejam reconhecidas por todos.
Efectivamente, para o preenchimento do tipo legal é bastante e suficiente que os próprios se reconheçam naquelas imagens (consideração ostensivamente ignorada e até contrariada pelo ora autor nas suas alegações).
Assim, como não deixou aí de se salientar, a intenção é algo que pertence ao domínio íntimo dos indivíduos, sendo certo que é pela manifestação exterior que se pode extrair e verificar da intenção de qualquer pessoa.
A levar a um extremo nunca se poderia saber qual seria a intenção de alguém, a não ser que o mesmo confessasse.
De facto, conforme jurisprudência do STJ os elementos subjectivos do crime pertencem à vida íntima e interior do agente.
Contudo, é possível captar a sua existência através e mediante a factualidade material que os possa inferir ou permitir divisar, ainda que por meio de presunções ligadas ao princípio da normalidade ou às regras da experiência comum.
Em face deste conjunto de elementos e considerações, tendemos claramente para considerar que estamos meramente perante diversas conclusões tiradas de presunções ligadas ao princípio da normalidade e às regras da experiência comum (uma e outras aplicadas pelos diversos julgadores em função das suas próprias percepções e experiências e sempre dentro do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal) e não perante um erro grosseiro ou temerário do juiz de 1ª instância.
Aliás, valorar como erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto toda e qualquer divergência de apreciação da prova determinante da revogação de uma sentença (mormente quando penal e condenatória), equivaleria a responsabilizar o Estado sempre que um tribunal superior revogasse uma sentença recorrida decidindo ainda em sentido contrário.
Mas a responsabilização do Estado pelo erro judiciário não tem, nem poderia ter, sem ofensa do princípio da independência do juiz, um tal alcance.

Perante o exposto, a apelação terá de improceder.

IV

Decisão

Em face de todo o exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.

Lisboa, 13 de Setembro de 2012

Jorge Vilaça
Vaz Gomes
Jorge Leitão Leal