Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
311/15.0JAPDL.L1-5
Relator: CID GERALDO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/04/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: -Em 2007, a Lei nº 59/2007 autonomizou, do crime de maus tratos conjugais, o crime de violência doméstica, com natureza pública e estabeleceu um quadro típico diferenciado em relação às anteriores redacções.
-Da actual descrição do tipo do artigo 152º, resultante da Lei 59/2007 de 4 SET, resulta a ampliação do âmbito subjectivo do crime que passa a incluir as situações de violência doméstica, envolvendo ex-cônjuges e pessoas de outro ou do mesmo sexo que mantenham ou tenham mantido uma relação análoga à dos cônjuges; o recurso, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, com a consolidação do entendimento de que, condutas agressivas, mesmo que praticadas uma só vez, desde que se revistam de gravidade suficiente, podem ali ser enquadradas, sendo certo ainda, que a alteração legislativa introduzida pela Lei nº 19/2013, de 21/2, na alínea b), do nº 1, do artº 152º, do Código Penal, veio alargar o preenchimento do crime de violência doméstica aos casos em que os maus tratos ocorram entre pessoas que mantenham ou tenham mantido uma relação de namoro.
-Com tal alteração legislativa passou a deixar de ser exigível, para o preenchimento do crime, que exista ou tenha existido um grau de intimidade relacional própria da vida em comum, com ou sem coabitação, como até então, face à anterior redacção do preceito legal alterado, parecia apontar, ao se incluir apenas o relacionamento entre conjugues ou pessoas que vivam em união de facto.
-A panóplia de acções que integram o tipo de crime em causa, analisadas à luz do contexto especialmente desvalioso em que são perpetradas, constituem-se em maus tratos quando, por exemplo, revelam uma conduta maltratante especialmente intensa, uma relação de domínio que deixa a vítima em situação degradante ou um estado de agressão permanente.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência,os Juizes do Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


1.–No processo comum com intervenção do Tribunal Colectivo nº 311/15.0JAPDL, da Comarca dos Açores, Ponta Delgada - Inst. Central - 1ª Sec. Cível e Criminal - J2, o Digno Magistrado do Ministério Público acusou o arguido  T (em  diante  T.) e D. (por diante D.), 

Imputando ao T.:
- nestes autos 311/15.0JAPDL, a prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso sexual de criança agravado, p. p no artº.171º, nº.2 e 177º, nº.4 todos do Código Penal.
Imputando ao D.
- nestes autos 311/15.0JAPDL, a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso sexual de criança, p. p no artº.171º, nº.2 do CP;
- no apenso 311/15.0JAPDL-A (outrora 380/15.3JAPDL), a prática em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artº.152º, nº.1, al.b) do CP.
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Realizado o julgamento foi proferida decisão que: 

A)Decidiu convolar o crime de violência doméstica, p. e p. pelo artº.152º, nº.1, al.b) do CP que vinha apontado ao arguido D. em razão dos factos que estão em ii.4., para os crimes de ameaça (artº.153º, nº.1 do CP); de injúria (artº.181º do CP) e ofensa à integridade física simples (artº.143º, nº.1 do CP), declarando quanto a eles extinto o procedimento criminal por falta de legitimidade superveniente do Ministério Público para a ação penal quanto a tais factos artºs.48º, 49º, 50º e 51º do CPP e artºs.153º, nº.2, 188º, nº.1 e 143º, nº.2, todos do CP;
B)Condenou o arguido T., pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de abuso sexual de criança agravado, p. p no artº.171º, nº.2 e 177º, nº.4 todos do CP na pena de 1 (um) ano de prisão suspensa na sua execução por igual período com regime de prova voltado para a sua consciencialização para o cumprimento das regras da sociedade e respeito pelo direito vigente, com obrigação de acompanhamento pela DGRSP no âmbito da Estratégia Regional para Prevenção e Combate ao Abuso Sexual de Crianças e Jovens, contexto em que será sujeito a processo de avaliação psicológica e, em resultado deste, a eventual intervenção, associado à promoção do desenvolvimento de competências parentais e ajustada autonomização;
C)Condenou o arguido D., pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de abuso sexual de criança, p. p no artº.171º, nº.2 do CP na pena de 1 (um) ano de prisão suspensa na sua execução por igual período com regime de prova voltado para a sua consciencialização para o cumprimento das regras da sociedade e respeito pelo direito vigente, com obrigação de ter um comportamento proativo na integração laboral e a  acompanhamento pela DGRSP no âmbito da Estratégia Regional para Prevenção e Combate ao Abuso Sexual de Crianças e Jovens, contexto em que será sujeito a processo de  avaliação  psicológica  e,  em  resultado  deste,  a  eventual intervenção, associado à promoção do desenvolvimento de competências de combate ao abuso de consumo de álcool.
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Não se conformando com a decisão na parte em que absolveu o arguido D. do crime de violência doméstica, p. e p., pelo artº 152º, nº 1, alínea b), do Código Penal, o Magistrado do Ministério Público veio interpor recurso, com os fundamentos constantes da motivação e com as seguintes conclusões:

-Os factos constantes do ponto 3. dos factos dados como provados e que correspondem aos factos que eram imputados na acusação integram o conceito de maus tratos;
-Com a alteração legislativa introduzida pela Lei nº 19/2013, de 21/2, que na alínea b), do nº 1, do artº 152º, do Código Penal, veio alargar o preenchimento do crime de violência doméstica aos casos em que os maus-tratos ocorram entre pessoas que mantenham ou tenham mantido uma relação de namoro, passou a deixar de ser exigível, para o preenchimento do crime, que exista ou tenha existido um grau de intimidade relacional semelhante à da vida em comum, com ou sem coabitação, como até então, a anterior redacção daquele preceito legal parecia apontar;
-Ao incluir as relações de namoro, para as quais, como todos sabem, não é necessário sequer qualquer projecto de vida em comum, nem é necessário aquele grau de intimidade que nutre e é fruto da vida a dois, necessariamente, o legislador, não só alargou em número a sua tutela a possíveis situações entre agente/vítima, mas sobretudo, alargou o seu âmbito a situações, em termos qualitativos, bem diferentes;
-A uma variedade de relacionamentos tão diferentes agora abrangidos, sucede ainda, que a conduta que se visa incriminar, continua a incluir aquela que é posterior a tais relacionamentos, quando pode já nem existir qualquer intimidade ou proximidade;
-Com a interpretação que foi dada, mostra-se violado o disposto no preceito legal acima referido;
Pelo exposto, deve o presente recurso merecer provimento, ordenando-se, a revogação do douto acórdão e modificado em conformidade.
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Neste Tribunal a Ex.m.ª Procuradora-Geral Adjunta apôs o seu visto.
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2.–A decisão recorrida fixou a matéria de facto e a respectiva motivação, da seguinte forma:

II-Fundamentação.

A-Factos provados.
AA-Da prova produzida resultou assente a seguinte factualidade:
 i. Quanto à matéria destes autos 311/15.OJAPDL:

1.
As menores M H e V P , nascidas a 29.8.2001, são filhas de P P e de MP e residem na Rua … , Ponta Delgada;
A menor VP mantinha um relacionamento de namoro (nos dias de hoje como se de marido e mulher se tratasse) com T. desde 19 de abril de 2015;
Desde junho de 2015 que o arguido começou a pernoitar em casa da VP aos fins-de-semana e, nessas ocasiões, ia ter com ela ao quarto dela e depois de se despirem o arguido introduzia o seu pénis na vagina daquela sem a utilização de preservativo;
O arguido sabia e sabe que a VP em junho de 2015, tinha apenas 13 anos de idade;
A VP em consequência do relacionamento sexual mantido com o arguido, engravidou (e à data do julgamento já tinha dado à luz dessa gravidez);
O arguido atuou voluntária e conscientemente, movido pelo desejo de satisfazer os seus impulsos sexuais, apesar de saber que atuando da forma descrita, atentava contra a liberdade de determinação sexual da VP e prejudicava gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade na esfera sexual;
O arguido manteve, assim, relações de cópula com a VP sabendo que ela tinha apenas 13 anos de idade e que, pela falta de experiência sexual, não tinha capacidade para avaliar o significado daqueles atos, ciente de que a mesma podia engravidar em consequência daquelas relações, como veio a suceder e, apesar disso, não se coibiu de os praticar com perfeito conhecimento da reprovabilidade da sua conduta;
A menor MH em 3.6.2015 iniciou namoro com o arguido D.;
Desde 4 de julho de 2015 e até setembro de 2015 que o arguido D. ia passar os fins-de-semana a casa da menor e, em algumas dessas ocasiões, durante a noite ia ter com ela ao quarto dela e, depois de se despirem, o arguido introduzia o seu pénis na vagina daquela sem a utilização de preservativo;
O arguido sabia e sabe que a MH tinha apenas 13 anos de idade quando iniciaram o relacionamento sexual;
O arguido atuou voluntária e conscientemente, movido pelo desejo de satisfazer os seus impulsos sexuais, apesar de saber que atuando da forma descrita, atentava contra a liberdade de determinação sexual da MH e prejudicava gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade na esfera sexual;
O arguido manteve, assim, relações de cópula com a MH sabendo que a mesma tinha apenas 13 anos de idade e que, pela falta de experiência sexual, não tinha capacidade para avaliar o significado daqueles atos e, apesar disso, não se coibiu de os praticar com perfeito conhecimento da reprovabilidade da sua conduta;
Sabiam ambos os arguidos ser a respetiva conduta proibida e punida pela lei penal;

ii.Quanto à matéria dos autos 311/15.OJAPDL-A (outrora 380/15.3JAPDL):

4.
O arguido D. e a MH mantiveram uma relação de namoro durante cerca de quatro meses e até Outubro de 2015;
No decurso dessa relação por diversas vezes o arguido pernoitou na casa dos pais da ofendida, onde esta, com catorze anos de idade ainda reside, sita na Rua N .78 L, em Ponta delgada;
Em Outubro de 2015 a MH pôs termo à relação de namoro com o arguido, facto que este não aceitou, tendo desde então e por mais do que uma vez, pelo telefone dito à ofendida e aos seus pais que iria fazer com ela ofendida e a irmã fossem "fechadas" querendo com isto dizer que tudo faria para que fossem internadas em casa de acolhimento, a propósito de um processo que corre na CPCJ de Ponta delgada a favor de ambas, por notícia de serem vítimas de abuso sexual;
No dia 6 de Novembro de 2015, pela manhã, o arguido foi ao estabelecimento de ensino que a ofendida frequenta "CM" em Ponta delgada, a pretexto de esta lhe devolver um relógio de sua pertença;
No decurso da conversa o arguido exaltou-se e em voz alta chamou nojenta e puta à arguida tendo apenas cessado o seu comportamento após os contínuos o terem expulsado do local;
No dia 10 de Novembro de 2015, à hora do almoço, a ofendida dirigia-se ao centro comercial Solmar, em Ponta Delgada, na companhia de uma amiga quando já junto do edifício onde aquele estabelecimento está instalado, foi abordada pelo arguido que de imediato lhe deu uma bofetada na cara, gritando-lhe que se tinha acabado com ele é porque tinha outro.
A ofendida, na companhia da amiga, conseguiu escapar do arguido que as seguia de bicicleta e com receio do que pudesse mais suceder dirigiu-se ao edifício da Polícia Judiciária que conhecia por já lá ter prestado declarações, para relatar o sucedido e pedir auxílio;
O arguido conseguiu alcança-las e no percurso foi gritando que se ela fosse fazer queixa iria a casa dos pais dela fazer' leilão" e ainda os mataria a todos;
Quando MH na companhia da amiga, abandonaram as instalações da Polícia Judiciária, foram perseguidas de novo pelo arguido que as abordou junto ao edifício do banco "Santander Totta" junto à praça Gonçalo Velho e as cercou impedindo-as de escaparem, enquanto chamava puta à ofendida, esbracejando, tendo ainda lhe desferido uma bofetada no lado direito da cara;
O arguido agiu deliberada e conscientemente com o propósito de ofender, pressionar e maltratar fisicamente a MH que fora sua namorada;
Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei e não se absteve de a prosseguir;

iii.Resulta dos relatórios sociais e dos CRC dos arguidos:

T. reside desde há cerca de 6/7 meses no agregado de VP de 14 anos de idade, ofendida nos presentes autos. Fazem ainda parte do agregado a filha do casal, M., nascida a 11 de março passado, a irmã gémea de VP, MH, também ofendida nos presentes autos, e os pais. Há um bom relacionamento intrafamiliar e o arguido sente-se bem aceite pela família da companheira, a qual gosta dele. A mãe da VP encontra-se laboralmente ativa, como empregada doméstica na firma "A “, enquanto o pai, pedreiro de profissão, encontra-se desempregado. A situação económica do agregado é limitada, mas suficiente para fazer face às despesas, sendo a família beneficiária do Rendimento Social de Inserção, vindo o arguido a contribuir para as despesas mensais com metade do seu vencimento. Em termos sociais esta família é referenciada por alguma disfuncionalidade ligada ao consumo abusivo de bebidas alcoólicas (no presente melhorado) por parte de ambos os membros do casal, com impacto no acompanhamento educativo e supervisão do quotidiano das filhas. Até então, o arguido integrava o agregado constituído pelos pais, e dois irmãos, atualmente com 18 e 13 anos, residentes com o pai em Lagoa. O pai é pescador e a mãe doméstica. Recentemente os pais separaram-se, tendo a mãe deixado o agregado familiar, sem que tenham emergido situações de violência. O agregado de origem era estruturado e a dinâmica familiar caraterizada de harmoniosa e coesa. Contava o T. 6 anos de idade quando iniciou a escolaridade...percurso escolar regular até ao 5° ano - que repetiu, acabando por dar termo ao seu processo escolar aos 18 anos enquanto frequentava o 7° ano de escolaridade. Começou a desmotivar-se pelas tarefas escolares, pelo que faltava às aulas, maioritariamente para ficar a conversar com colegas, muitas das vezes no espaço escolar, sendo que outras vezes se ausentava da escola para ir desenvolver tarefas ligadas à pesca, junto de pares mais velhos. Desde os 18 anos que trabalha regularmente em atividades de apoio à pesca, auferindo rendimentos variáveis e de acordo com o pescado pela embarcação para a qual trabalha, profissão que lhe agrada ainda que deseje poder beneficiar de uma situação laboral mais estável e melhor remunerada. No presente não tem qualquer ocupação estruturada do tempo livre. Consumiu "xamom" durante vários anos, contudo de forma pontual e recreativa. Regra geral, as relações afetivas do arguido tiveram curta duração, pouco envolvimento afetivo e baixo compromisso por parte do arguido, com a exceção da relação com a ofendida, com quem o arguido vem-se revelando afetuoso e preocupado, bem como para com a filha do casal. A primeira experiência sexual ocorreu aos 15 anos, com uma namorada, à data com 14 ou 15 anos de idade, experiência que refere ter sentido como gratificante, ainda que o envolvimento afetivo do arguido no relacionamento fosse descrito pelo próprio como reduzido. Quanto aos factos descritos na acusação, em abstrato, o arguido reconhece-lhes ilicitude e gravidade. Contudo, no caso em concreto, salienta os vínculos afetivos que o unem à ofendida e a sua vontade em assumir as suas responsabilidades para com esta e para com a filha do casal. Indicia alguma imaturidade, ainda que revele algum grau de autonomia funcional e assunção de responsabilidade nomeadamente em termos laborais e financeiros. T. é um jovem de 21 anos, cujo processo de socialização decorreu num contexto familiar modesto mas aparentemente funcional e propiciador de um desenvolvimento minimamente harmonioso da sua personalidade, não indiciando o arguido problemáticas comportamentais de relevo, pese embora alguma imaturidade. Tendo abandonado o sistema de ensino aos 18 anos de idade, frequentava então o 7° ano de escolaridade (que não concluiu) - tendo registado algum absentismo escolar e um comportamento revelador de imaturidade e desmotivação pelas tarefas escolares – vem desde então a manter atividade laboral) regular, na área da pesca, ainda que em condições precárias. As relações afetivas do arguido, contextualizadas na fase da adolescência, caraterizaram-se pelo pouco envolvimento afetivo e curta duração, evidenciando alguma imaturidade e alguma superficialidade. O relacionamento com a ofendida revela-se como a primeira relação afetiva mais profunda estabelecida pelo arguido, que mostra sentimentos de afeição e preocupação para com ela, mantendo o casal uma relação emocional gratificante.

Face ao exposto, caso o arguido venha a ser condenado dispõe de condições para cumprir uma pena de execução na comunidade, eventualmente acompanhada pela DGRSP, entidade parceira da Direção Regional de Solidariedade Social no âmbito da Estratégia Regional para Prevenção e Combate ao Abuso Sexual de Crianças e Jovens, contexto em que seria sujeito a processo de avaliação psicológica e, em resultado deste, a eventual intervenção, que se antecipa de caráter iminentemente psicoeducativo, associada ainda à promoção do desenvolvimento de competências parentais e ajustada autonomização;
O arguido não conta antecedentes criminais;

D., natural de Ponta Delgada, é o segundo de cinco filhos de um casal de baixa condição sociocultural – pai, carpinteiro, desempregado, e mãe doméstica, ambos com baixa escolaridade -, tendo a família sempre enfrentado uma situação de grande precariedade económica, ainda que conte com apoio de estruturas comunitárias desde há alguns anos, sendo beneficiários do rendimento social de inserção. Neste contexto, beneficiam do acompanhamento de uma assistente sociofamiliar no apoio à gestão da vida doméstica. O ambiente familiar apresenta significativa disfuncionalidade e limitadas competências dos progenitores para proverem de forma adequada às necessidades dos descendentes, expostos desde cedo a um contexto de violência doméstica. Recentemente e na sequência de decisão judicial, proferida no âmbito de um inquérito penal em que o pai do arguido se encontra indiciado da prática do crime de violência doméstica, foi o mesmo afastado da residência de família e sujeito a tratamento ao alcoolismo. A dinâmica desta família é marcada pela carência de afeto entre os seus elementos, inexistência de partilha de hábitos e rotinas, ausência de regras/limites entre a fratria e figuras parentais e pela predominância de um estilo educativo punitivo por parte do pai do arguido, gerador de incongruências face ao estilo permissivo adotado pela mãe do arguido. Não há uma figura de referência e proteção neste núcleo, o que se reflete no comportamento desajustado de alguns elementos da fratria, principalmente de um dos irmãos do arguido, referenciado na comunidade por tender a resolver os problemas nos grupos de pares com base na violência e agressividade verbal.

D.era inclusivamente considerado um dos elementos mais pacíficos do agregado, tendendo sobretudo a uma atitude passiva, contexto que se terá alterado nos últimos meses e que é associado à relação de namoro estabelecida com a ofendida nos presentes autos. O arguido iniciou o seu percurso escolar aos 6 anos de idade e sem problemas disciplinares de relevo ainda que com registo de algum absentismo e dificuldades de aprendizagem, associados a um aparente défice intelectual e cognitivo. Reprovou ainda no primeiro ciclo, e abandonou o sistema de ensino por vontade própria no passado ano letivo, perto de completar os 18 anos de idade, tendo como habilitações literárias o 4° ano de escolaridade. Nunca exerceu atividade laboral e não foi referida qualquer ocupação estruturada do seu tempo, passado essencialmente em casa e nas imediações desta, sendo que o jovem reside num bairro social conotado com a elevada incidência de problemáticas sociais e criminais. Iniciou o consumo de bebidas alcoólicas por volta dos 17 anos de idade...estando dependente desse consumo. O namoro mantido durante cerca de quatro meses com MH, ofendida nos presentes autos, terá sido único e terá sido nesse contexto que terá iniciado a sua vida sexual. Aborda de forma ambivalente esta relação e ainda que o negue, mostra-se emocionalmente vinculado à ofendida, veiculando no presente mais sentimentos negativos do que positivos quer em relação a esta quer ao namoro. D. sabe-se "nervoso", reconhecendo o seu carácter temperamental e dificuldades em conter os impulsos agressivos, exaltando-se com facilidade, situação que se agravou recentemente, tendo-se o arguido tornado num jovem revoltado que reage mal a qualquer abordagem. Manifesta sentimentos de injustiça e receio de eventual reação penal por conta dos factos aqui em causa e, ainda que os assuma parcialmente, não se sente totalmente responsável pelos mesmos, auto percecionando-se como vitima. D. é um jovem de 19 anos que cresceu num contexto familiar socioeconómico e cultural desfavorecido, cuja dinâmica disfuncional e violenta não foi protetora nem propiciadora de segurança e autoconfiança, situação potencialmente agravada pelo facto de ter sido vítima de um crime de importunação sexual aos 12 anos de idade. Revelou desde a infância dificuldades de aprendizagem - tendo abandonado a formação escolar no passado ano letivo, perto dos 18 anos de idade, com apenas o 4° ano de escolaridade -, as quais entroncarão nas limitadas competências cognitivas e intelectuais que indicia. Nunca exerceu atividade profissional vivendo na dependência da família de origem que, por sua vez, vive de subvenções públicas. Para além dos referidos défices e da aparente imaturidade, vem o arguido a revelar crescentes dificuldades de autocontrolo e problemas de comportamento, manifestos sobretudo na dificuldade em controlar o comportamento agressivo e na ingestão abusiva de bebidas alcoólicas. O arguido evoca o relacionamento de namoro mantido durante cerca de 4 meses com a alegada vítima nos presentes autos com sentimentos ambivalentes, verbalizando no presente mais sentimentos negativos do que positivos em relação à ofendida, ainda que indicie manter-se emocionalmente ligado àquela, tendo sido esta a única relação de namoro que estabeleceu. Face ao exposto, caso o arguido venha a ser condenado beneficiaria se sujeito a um regime de prova que, para além de prever algum controlo externo por parte da DGRSP, permita, a avaliação e eventual tratamento ao alcoolismo bem como uma intervenção no âmbito da Estratégia Regional para Prevenção e Combate ao Abuso Sexual de Crianças e Jovens, contexto em que seria sujeito a avaliação psicológica a fim de melhor se definir os pilares da intervenção, eventualmente de cariz psicoterapêutico e psicoeducativo, associada à promoção do desenvolvimento de competências pessoais e sociais;
O arguido não tem antecedentes criminais.

AB-Factos não provados:
Não ficaram factos por provar;

AC-Motivação da matéria de facto:

O Tribunal formou a sua convicção com base no conjunto da prova produzida e examinada em audiência, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, como preceitua o ar-P.127° do Código de Processo Penal.

No que toca aos factos deste processo 311/15.OJAPDL e que estão acima no ponto i.1. a i.3., apesar dos arguidos terem usado do seu direito ao silêncio, resultaram de forma cristalina dos depoimento da MH e dos pais das ofendidas e testemunhas PP e MP. Não restam dúvidas, porque a testemunha MP o referiu de forma clara, que os arguidos, que passavam praticamente todos os fins-de-semana em sua casa, sabiam bem da idade delas porque nisso se falava, tendo eles inclusivamente estado num aniversário delas. De qualquer modo decorre da ordem natural das coisas...os arguidos bem sabiam que as suas namoradas andavam na escola e que ano frequentavam o que lhe dava nota evidente da idade delas.

Analisando os depoimentos coincidentes das testemunhas acima identificadas resulta de forma inegável que os arguidos passavam os fins-de-semana em casa das ofendidas e, durante a noite, após se certificarem de que os progenitores se tinham ido deitar, procuravam as namoradas nos respetivos quartos e com elas tinham relações sexuais de cópula...sem preservativo. No que toca à MH foi ela que o declarou em audiência e no que toca à VP demonstra-o o facto de ter engravidado do arguido com quem, agora, tem uma relação de marido e mulher em casa dos progenitores onde ambos residem com a filha recém nascida.

Não se valoraram as declarações da VP ainda que prestada anteriormente em memória futura, por causa da relação de coabitação que mantém com o arguido T. e que na altura já tinham e porque ela recusou ser testemunha - art°.134°, n°.1, al.b) do CPP.

Tiveram-se ainda em conta os documentos de fls.10 e 11; o documento de fls.45 e o exame pericial de fls.48 a 50.

No que toca aos factos que estão no ponto ii.4. resultaram de forma cristalina dos depoimentos das testemunhas MH e TC, que os relataram de forma escorreita, circunstanciada e por isso credível. Percorreram de forma coerente todo o iter dos acontecimentos mostrando clarividência no discurso e conhecimento direto dos factos.

Os factos que temos no ponto iii. resultaram dos relatórios sociais dos arguidos e dos cr's que estão no processo.
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3.–É pacífica a jurisprudência do STJ no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.

Da leitura dessas conclusões, afigura-se-nos que a questão a analisar diz respeito à errada qualificação jurídica dos factos dados como provados vertidos no ponto 4., defendendo o recorrente, ao contrário do decidido, que tais factos integram o conceito de maus tratos do crime de violência doméstica, p. e p., pelo artº 152º, nº 1, alínea b), do Código Penal.
                                                            
Vejamos:

O crime de maus tratos previsto actualmente no artigo 152º foi introduzido no C. Penal no artigo 153º, então sobre a epígrafe de «maus tratos ou sobrecarga de menores e de subordinados ou entre cônjuges» consubstanciando desde então, pela sua pouco clara formulação, um tipo criminal de grande conflito dogmático e jurisprudencial.

A redacção do primitivo artigo, na versão original do Código penal de 1982, aprovado pelo Decreto lei n.º 400/82 de 23 e Setembro, estabelecia no artigo 153º n.º 1 que «O pai, mãe ou tutor de menor de 16 anos ou todo aquele que o tenha a seu cuidado ou à sua guarda ou a quem caiba a responsabilidade da sua direcção ou educação será punido com prisão de 6 meses a 3 anos e multa até 100 dias quando, devido a malvadez ou egoísmo: a) lhe infringir maus tratos físicos, o tratar cruelmente ou não lhe prestar os cuidados ou assistência à saúde que os deveres decorrentes das suas funções lhe impõem; b) o empregar em actividades perigosas, proibidas ou desumanas, ou sobrecarregar, física ou intelectualmente, com trabalhos excessivos ou inadequados de forma a ofender a sua saúde, ou o seu desenvolvimento intelectual, ou a expô-lo a grave perigo». No n.º 3 do artigo estabelecia-se então que «da mesma forma será ainda punido quem infringir ao seu cônjuge o tratamento descrito na alínea a) do n.º 1 deste artigo».

Até 1995, após a reforma introduzida pelo Dec. Lei n.º 48/95, discutia-se e julgava-se nos tribunais a questão de saber se só as condutas cometidas com «malvadez ou egoísmo» consubstanciavam o crime de maus-tratos entre cônjuges.       Com aquela reforma o legislador introduziu várias modificações no tipo de crime nomeadamente prevendo a partir de então os maus-tratos psíquicos, eliminando a questão da malvadez e egoísmo, mas tornando o procedimento criminal dependente de queixa.

Em 1998, através da Lei n.º 65/98 de 2 de Setembro, o legislador veio novamente alterar o dispositivo legal que envolvia o tipo de crime e mantendo o tipo de crime dependente de queixa atribuiu ao Ministério Público a possibilidade de «dar inicio ao procedimento se o interesse da vítima o impuser e não houver oposição do ofendido antes de ser deduzida a acusação».

Em 2000, com a Lei n.º 7/2000 de 27 de Maio, nova alteração legislativa ao tipo de crime retirando a dependência da queixa e criando a pena acessória de proibição de contacto com a vítima e criando ainda um conjunto de normas processuais sobre a possibilidade de aplicação da suspensão provisória do processo.

Finalmente em 2007, a Lei nº 59/2007 a autonomizou do crime de maus tratos conjugais o crime de violência doméstica, com natureza pública e estabeleceu um quadro típico diferenciado em relação às anteriores redacções.~

Na verdade, os elementos típicos do crime, mantiveram-se praticamente incólumes desde a reforma de 1995, a partir do momento em que incluíram como condutas típicas várias formas de violência, para além da violência física propriamente dita que decorrem de humilhações, vexames, insultos, ameaças e que constituem, para efeitos do crime os maus-tratos psíquicos. Em 2007, esse leque de condutas é alargado nomeadamente a ofensas sexuais.

Uma outra decorrência das oscilações normativas do tipo de crime decorre do próprio conceito de «maus tratos» (físicos ou psíquicos), nomeadamente, da ocorrência pontual das condutas que consubstanciam os maus tratos terem que ser reiteradas ou bastarem-se na sua concretização ocasional. O crime de maus tratos pressupunha, em regra, uma reiteração de condutas – assim, Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense, Coimbra Editora, 1999, p. 334.

O bem jurídico protegido pelo crime de maus-tratos é a saúde física e mental da vítima, ou seja, é a própria pessoa individual e a sua dignidade humana que se visa proteger com o citado preceito legal. O âmbito punitivo deste tipo de crime inclui os comportamentos que lesam esta dignidade. Como tal, o tipo de crime pressupõe uma conduta que integra o tipo objectivo e que são susceptíveis de, singularmente consideradas, integrarem em si mesmas, outros crimes, tais como, os de ofensa à integridade física simples, ameaça, injúria e difamação. A autonomização do crime de violência doméstica, porém, implica que tais condutas não sejam atomisticamente consideradas mas, antes, valoradas globalmente, estabelecendo-se uma relação de concurso aparente, por existir uma relação de especialidade face ao comportamento reiterado do tipo de ilícito em análise.

O tipo da violência doméstica pune o exercício de maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais sobre o cônjuge ou ex-cônjuge; pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite.

Os maus-tratos previstos neste tipo são os actos que, pelo seu carácter violento sejam, por si só, ou conjugados com outros, idóneos a reflectir-se negativamente sobre a saúde física e psíquica da vítima, ou, noutra formulação, são os actos que provocam “… lesões graves, pesadas da incolumidade corporal e psíquica do ofendido, diríamos que no campo da tensão entre os tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos e a tutela da integridade física e moral…”(André Lamas Leite, in “A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o direito penal e a criminologia”, na Revista Julgar, n.º 12 (Especial), 2010, p. 45).

O bem jurídico que o tipo da violência doméstica visa proteger é a saúde, enquanto integridade das funções corporais da pessoa, nas suas dimensões física e psíquica – neste sentido, cfr. Nuno Brandão, in “A tutela penal reforçada da violência doméstica”, na Revista Julgar, n.º 12 (Especial), 2010, p. 14 e Plácido Conde Fernandes, in “Violência doméstica – Novo quadro penal e processual penal, na Revista do CEJ, n.º 8 (Especial), 2008,p. 305,  que defende que o bem jurídico aqui em causa é “… a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos crueis, degradantes ou desumanos, um bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral. …” – sendo um crime de perigo, porque não pressupõe a verificação da lesão –  cfr. Acórdãos do STJ de 30/10/2003, relatado por Pereira Madeira, in CJ, III, do qual citamos: “I - Os bens jurídicos protegidos pela incriminação estabelecida no nº. 2 do art. 152º do CP são, em geral, os da dignidade humana, particularmente, a saúde compreendendo-se nesta o bem estar físico, psíquico e mental podendo a sua violação ocorrer por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade do cônjuge e seja susceptível de por em causa qualquer dos bens acima mencionados.…”; Acórdão da RP de 19/09/2012, relatado por Ernesto Nascimento, no processo 901/11.0PAPVZ.P1, in www.dgsi.pt,  “…A conduta típica da violência doméstica é descrita através do conceito de “maus-tratos físicos ou psíquicos”, que podem incluir, designadamente, “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”;  Acórdão da RP de 26/09/2012, relatado por Airisa Caldinho, no processo 176/11.1SLPRT.P1, in www.dgsi.pt, do qual citamos:
I–No ilícito de violência doméstica é objectivo da lei assegurar uma “tutela especial e reforçada” da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto ao perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima.
II–Visa tutelar a dignidade humana dos sujeitos passivos aí elencados, mormente na vertente da sua saúde, seja a nível físico ou psíquico, ou na vertente da sua privacidade, seja de liberdade pessoal ou de autodeterminação sexual.
III–O bem jurídico protegido por este tipo legal é, assim, primordialmente, a saúde da vítima, entendida nas suas vertentes de saúde física, psíquica e mental, visando a incriminação protegê-la de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal desenvolvimento de uma pessoal, afectem a dignidade pessoal e individual da pessoa que com o agente mantém (ou manteve) vínculos relacionais estreitos e/ou duradouros-
IV–Trata-se de crime específico porquanto pressupõe que o sujeito activo se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo, a vítima dos seus comportamentos. V - As condutas típicas preenchem-se com a inflição de maus tratos físicos (ofensas à integridade física simples) e maus tratos psíquicos (ameaças, humilhações, provocações, molestações).VI - Estes maus tratos podem ser infligidos de modo reiterado ou não (conduta isolada).”; Acórdão da RC de 29/01/2014, relatado por Jorge Dias, no processo 1290/12.1PBAVR.C1, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “…O crime de violência doméstica apenas exige que alguém, de modo reiterado ou não inflija maus tratos físicos ou psíquicos no âmbito de um relacionamento conjugal, ou análogo, e determinada por força desse relacionamento e que, por força das lesões verificadas, se entenda que tenha ofendido a dignidade da vítima.…”.

O dolo exigido, que, para alguns, é variável, em função da espécie de comportamento do agente, há-de sempre abarcar, pelo menos, o dolo de perigo da afectação da saúde, no sentido supra exposto e “… o conhecimento da relação de protecção-subordinação e da menoridade, deficiência, doença ou gravidez do sujeito passivo.” – Taipa de Carvalho, in “Comentário Conimbricense do CP”, tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 334.

Uma vez que este tipo abarca condutas que são também puníveis por outros tipos legais, neste caso, a ameaça (artº.153º, nº.1 do CP), injúria (artº.181º do CP) e ofensa à integridade física simples (artº.143º, nº.1 do CP)., torna-se necessário distinguir, com um mínimo de segurança, quais as condutas que integram uns e outros.

Para que integre a violência doméstica, a acção do agente há-de constituir o comportamento violento, visto em toda a sua amplitude, que, “… seja tal que, pela sua brutalidade ou intensidade, ou pela motivação ou estado de espírito que o anima, seja de molde a ressentir-se de modo indelével na saúde física ou psíquica da vítima. …” – cfr. Nuno Brandão, in “A tutela penal reforçada da violência doméstica”, na Revista Julgar, n.º 12 (Especial), 2010, p. 22.

Ou, como se diz no acórdão do STJ de 14/11/1997, in CJ,III, p. 235 e ss..: “…a incriminação, decorrente da lei penal, de condutas agressivas, mesmo que praticadas uma só vez, que se revistam de gravidade suficiente para poderem ser enquadradas na figura dos maus tratos. Não são, assim, todas as ofensas corporais entre cônjuges que cabem na previsão criminal do referido artigo 152º, mas aquelas que se revistam de uma certa gravidade, ou, dito de outra maneira, que, fundamentalmente, traduzam crueldade, ou insensibilidade, ou, até, vingança desnecessária, da parte do agente.…”.

No presente caso, são relevantes os seguintes factos:

O arguido D. e a MH mantiveram uma relação de namoro durante cerca de quatro meses e até Outubro de 2015;
No decurso dessa relação por diversas vezes o arguido pernoitou na casa dos pais da ofendida, onde esta, com catorze anos de idade ainda reside, sita na Rua ..., nº ... L, em ponta Delgada;
Em Outubro de 2015 a MH pôs termo à relação de namoro com o arguido, facto que este não aceitou, tendo desde então e por mais do que uma vez, pelo telefone dito à ofendida e aos seus pais que iria fazer com ela ofendida e a irmã fossem «fechadas» querendo com isso dizer que tudo faria para que fossem internadas em casa de acolhimento a propósito de um processo que corre na CPCJ de Ponta Delgada, por notícia de serem vítimas de abuso sexual;
No dia 6 de Novembro de 2015, o arguido foi ao estabelecimento de ensino que a ofendida frequenta «C» em Ponta Delgada, a pretexto de esta lhe devolver um relógio de sua pertença;
No decurso da conversa o arguido exaltou-se e em voz alta chamou nojenta e puta à arguida tendo apenas cessado o seu comportamento após os contínuos o terem expulsado do local;
No dia 10 de Novembro de 2015, à hora do almoço, a ofendida dirigia-se ao centro comercial Solmar, em Ponta Delgada, na companhia de uma amiga quando já junto ao edifício onde aquele estabelecimento está instalado, foi abordada pelo arguido que de imediato lhe deu uma bofetada na cara, gritando-lhe que se tinha acabado com ele é porque tinha outro;
A ofendida, na companhia da amiga, conseguiu escapar do arguido que as seguia e com receio do que lhe pudesse mais suceder dirigiu-se ao edifício da Polícia Judiciária que conhecia por já lá ter prestado declarações, para relatar o sucedido e pedir auxílio;
O arguido conseguiu alcança-las e no percurso foi gritando que se ela fosse fazer queixa iria a casa dos pais dela fazer «leilão» e ainda os mataria a todos;
Quando a MH na companhia da amiga, abandonaram as instalações da Polícia Judiciária, foram perseguidas de novo pelo arguido que as abordou junto do edifício do banco «Santander» junto à praça Gonçalo Velho e as cercou impedindo-as de escaparem, enquanto chamava puta à ofendida, esbracejando, tendo ainda desferido uma bofetada no lado direito da cara;
O arguido agiu deliberada e conscientemente com o propósito de ofender, pressionar, e maltratar a MHque fora sua namorada;
Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei e não se absteve de a prosseguir.

Perante tais factos, entendeu o tribunal a quo, socorrendo-se da posição vertida no Ac. do T.R.P., de 19/2/2012, que apesar de os actos praticados pelo arguido relativamente à ofendida serem plúrimos ou reiterados, os mesmos, citando o acórdão recorrido, «não podem eles ser caracterizados como formas de maus-tratos a ex-namorada, pois apreciados à luz da intimidade relacional, não têm relevância na vida em comum, que não existe, nem colocam a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente relacional que exista…e que como se disse já não é nenhum».

Porém, contrariamente ao que se considerou na sentença recorrida, deve considerar-se que da actual descrição do tipo do artigo 152º, resultante da Lei 59/2007, de 4SET, resulta, a ampliação do âmbito subjectivo do crime, que passa a incluir as situações de violência doméstica envolvendo ex-cônjuges e pessoas de outro ou do mesmo sexo que mantenham ou tenham mantido uma relação análoga à dos cônjuges; o recurso, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, com a consolidação do entendimento de que, condutas agressivas, mesmo que praticadas uma só vez, desde que se revistam de gravidade suficiente, podem ali ser enquadradas, sendo certo ainda, que a alteração legislativa introduzida pela Lei nº 19/2013, de 21/2, na alínea b), do nº 1, do artº 152º, do Código Penal, veio alargar o preenchimento do crime de violência doméstica aos casos em que os maus tratos ocorram entre pessoas que mantenham ou tenham mantido uma relação de namoro.

Como bem salienta o recorrente, com tal alteração legislativa passou a deixar de ser exigível, para o preenchimento do crime, que exista ou tenha existido um grau de intimidade relacional própria da vida em comum, com ou sem coabitação, como até então, face à anterior redacção do preceito legal alterado, parecia apontar, ao se incluir apenas o relacionamento entre conjugues ou pessoas que vivam em união de facto. Ou seja, ao incluir as relações de namoro, para as quais, como todos sabem, não é necessário sequer qualquer projecto de vida em comum, nem é necessário aquele grau de intimidade que nutre e é fruto dessa vida a dois, necessariamente, o legislador, não só alargou, em termos quantitativos, a abrangência de situações entre agente/vítima, mas também, em termos qualitativos, a situações bem diferentes. A verdade é que, em contexto de namoro, como cada um, se já tiver tido essa felicidade, pode confirmar, o relacionamento entre os seus intervenientes é pautado por cada um apenas dar a conhecer aquilo que vê de si mais positivo, pois é natural que procure esconder aquilo de menos positivo, vindo apenas a descobrir-se os seus defeitos, por vezes, passado muito tempo, mas sobretudo, quando a relação se torna mais séria, quando os seus intervenientes, passam grande parte dos seus dias um com o outro ou a viver em comum.

A panóplia de acções que integram o tipo de crime em causa, analisadas à luz do contexto especialmente desvalioso em que são perpetradas, constituem-se em maus tratos quando, por exemplo, revelam uma conduta maltratante especialmente intensa, uma relação de domínio que deixa a vítima em situação degradante ou um estado de agressão permanente.

No caso dos autos, é indiscutível que a situação de namoro existiu, e como se retira dos factos dados como provados, o relacionamento durante cerca de quatro meses e até Outubro de 2015, chegando o arguido D. a pernoitar na casa da ofendida e por vezes relações de cópula, apesar de aquela só ter 13 anos de idade.

Após o fim de tal relação de namoro, que peca pelo aproveitamento da inexperiência e imaturidade da ofendida, correspondeu o arguido D., com uma sequência de episódios integram o conceito de maus tratos.

Na verdade, dirigir expressões como nojenta e puta à ofendida tendo apenas cessado o seu comportamento após os contínuos o terem expulsado do local; desferir, quatro dias depois, uma bofetada na cara, gritando-lhe que se tinha acabado com ele é porque tinha outro e, depois de a ofendida conseguir escapar do arguido e de se dirigir ao edifício da Polícia Judiciária para relatar o sucedido e pedir auxílio ainda ser perseguida pelo arguido que no percurso foi gritando que se ela fosse fazer queixa iria a casa dos pais dela fazer «leilão» e ainda os mataria a todos, tendo ainda abordado a  ofendida junto do edifício do banco «Santander» junto à praça Gonçalo Velho, cercando-a impedindo de escapar, enquanto chamava puta à ofendida, esbracejando, tendo ainda desferido uma bofetada no lado direito da cara, assim a rebaixando, tendo os factos sido praticados, para além do mais, em plena via pública ou na escola que a ofendida frequenta, é, na normalidade dos casos, suficientemente grave para ofender a saúde psíquica e emocional da vítima, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana, assim representando um aviltamento e humilhação da vítima que, claramente, não são suficientemente protegidos pelo tipo de crime de injúria, ameaça e ofensa à integridade física simples, pelo que integram o conceito de maus tratos psíquicos e, portanto, preenchem os elementos do tipo da violência doméstica p. e p. pelo art.º 152º/1-b) do CP.

Por isso, concordando com o recorrente, entendemos que no presente caso a conduta do arguido D. preenche os elementos do tipo da violência doméstica, pelo que o recurso é procedente.

Uma tal procedência, com a tipificação da conduta do arguido como integrando a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º/1-b)/2 do CP, implica a determinação da pena a aplicar.

A determinação da espécie e da medida concreta da pena a aplicar incumbe ao tribunal a quo, visto que só assim se pode cumprir o princípio do duplo grau de jurisdição acolhido no art. 32º/1 da CRP, aliás, em consonância com o Acórdão, em Plenário, do Tribunal Constitucional nº 429/2016, de 13 de julho de 2016, que decidiu “julgar inconstitucional a norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovatoriamente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos, constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, por violação do direito ao recurso enquanto garantia de defesa em processo criminal, consagrado no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição.”

Decidida a questão da culpabilidade, com a matéria de facto fixada, determina-se que o tribunal recorrido, como tribunal de julgamento, complete a sua tarefa, levando a cabo a 2ª parte do julgamento – que é a da determinação da sanção com a reabertura da audiência para eventual produção de prova, se isso for necessário, e para a acusação e a defesa se pronunciarem sobre esta questão. 
*

3.–Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal ... deste Tribunal em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e determinando que o tribunal recorrido proceda à determinação da pena a aplicar ao arguido D. pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º/1-b)/2 do CP, de acordo com o acima exposto, procedendo à reabertura da audiência se isso for necessário.



Lisboa, 4 de Outubro de 2016



Cid Geraldo
Ana Sebastião