Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8914/2006-2
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: PROVEITO COMUM DO CASAL
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
PRESUNÇÃO JURIS TANTUM
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/04/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I Em termos de regras gerais sobre o ónus da prova, opera o preceituado no disposto no artigo 342º do CCivil: àquele que invoca um direito, cabe fazer a prova dos factos constitutivos do mesmo (nº1) e a prova dos factos extintivos do direito, compete àquele contra quem a invocação é feita (nº2).
II Se a parte não se limita a uma defesa directa, carreando para os autos factos tendencialmente extintivos do direito que a contraparte se arroga – maxime para a conclusão de inexistência de proveito comum - a referida factualidade terá de ser integrada em sede de defesa indirecta, tal como dispõe o normativo inserto no artigo 342º, nº2 do CCivil.
II A regra geral do ónus da prova, supra enunciada, no caso sub juditio, teria a seguinte concretização: sobre a Autora, Apelada, impenderia a alegação e prova dos factos constitutivos do seu direito, os integradores do proveito comum do casal, nos termos do normativo inserto no artigo 1691º, nº1, alínea c) do CCivil, se quisesse obter a responsabilidade de ambos os Réus e sobre estes o ónus da alegação e prova dos factos extintivos daquele direito, nos termos do nº2 do artigo 342º do mesmo diploma.
III Integrando-se a pretensão da Autora/Apelada no preceituado no artigo l691º, nº1, alínea d) do CCivil, onde se estabelece uma presunção - (juris tantum) - do proveito comum dos Réus, as regras gerais do ónus da prova invertem-se, nesta situação, fazendo, agora, impender sobre a Ré/Apelante, o ónus da prova do contrário, ex vi do disposto no artigo 344º, nº1 do CCivil.
IV A prova do contrário destina-se a tornar certo não ser verdadeiro um facto já demonstrado formalmente, v.g., como no caso em apreço, por via de presunção legal e, esta prova, nada tem a ver com a contraprova (ou prova contrária), pois esta destina-se apenas a tornar incerto o facto visado, a criar a dúvida no espírito do julgador (um non liquet).
(APB)
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA


I BANCO MAIS, SA, intentou acção declarativa com processo ordinário contra ANTONIO … e MARIA …, pendindo a sua condenação solidária no pagamento da quantia de € 12.331,80, acrescida de € 4.981,37, a titulo de juros vencidos, e € 199,25, a titulo de imposto de selo sobre esses juros e, ainda, os juros que se vencerem sobre a referida quantia de € 12.331,80, à taxa anual de 24,25% desde 10/12/2004 até efectivo e integral pagamento, bem como o imposto de selo (à taxa de 4%) que sobre tais juros recair, alegando para o efeito e em síntese que no exercício da sua actividade mutuou ao Réu a quantia de € 15.000 com juros à taxa nominal de 20,25%/ano, para aquisição de um veículo automóvel, nas condições constantes do contrato que juntou, obrigando-se aquele ao pagamento de 60 prestações mensais e sucessivas, no valor de € 411,06 cada uma, e que o Réu não pagou a 18ª prestação bem como as seguintes, tendo-se aquela vencido em 10/10/2003, tendo-se vencido, assim, todas as prestações. Alega também que o empréstimo assim concedido reverteu em proveito comum do casal constituído pelos Réus, uma vez que o veículo se destinou ao património comum do casal, pelo que, entende, a Ré é solidariamente responsáveis com Réu pelo pagamento das importâncias peticionadas.


O Réu foi citado editalmente e dado cumprimento ao artigo 15º do CPCivil, o Ministério Público não contestou, e a Ré, citada na sua pessoa, contestou.

Foi realizada audiência preliminar, tendo o Tribunal entendido encontrar-se já na posse de todos os elementos necessários à decisão, e, subsequentemente foi proferida sentença a julgar a acção porcedente, com a condenação solidária dos Réus nas quantias peticionadas, da qual inconformada recorreu a Ré, apresentando, em síntese, as seguintes conclusões:
- Entre o ora recorrido e o ex-marido, (agora divorciados), de nome, António …, da ora recorrente, Maria …, foi feito um contrato de mútuo, no valor de € 15.000,00, para aquisição de um veículo automóvel.
- Tal empréstimo feito pela sociedade financeira e ora recorrido, BANCO MAIS, S. A., ao Réu, por contrato datado de 10/09/2001.
- A questão de fundo que se suscita no caso em apreço, é a de saber até que ponto existe responsabilidade da ora Recorrente pela dívida e pelo respectivo incumprimento contratual por parte do Réu.
- A presunção legal vertida no art.º 1691.° n.° 1, al. d) do Código Civil, é estabelecida em favor do credor, cabendo, assim, ao cônjuge que se pretenda valer da excepção, ilidi-la.
- A sentença conclui erradamente que, no caso em concreto, a Ré mulher nenhuns factos alegou no sentido de ilidir a presunção legal, acrescentando-se que: “bem pelo contrário: foi por confissão expressa na sua contestação, a processualmente válida, que foi trazido aos autos o facto de que o veículo havia sido adquirido e afecto à actividade comercial do Réu marido”.
- Mais refere a sentença: “E não se argumente em contrário que a Ré se encontra separada de facto e que corre termos processo de divórcio, pois tal circunstância é irrelevante face ao disposto pelo art.º 1690.° n.°2 do Cod. Civil".
- Na contestação, a Ré, ora recorrente vem dizer que:
a) Há mais de um ano que o Réu marido abandonou o lar conjugal, e foi viver para o estrangeiro, portanto estão separados de facto, (vide doc. que se juntou da Junta de Freguesia local que atesta que desde antes do ano de 2003, salvo erro, desde Novembro de 2002, que já não viviam como marido e mulher);
b) o R. marido exercia a actividade comercial de publicidade, e reitera-se, apesar de se tratar de um acto comercial, de este ser comerciante, na altura dos factos, e a divida, eventualmente, ter sido contraida no exercício do comércio, não foi em proveito comum do casal;
c) e, não foi em proveito comum do casal porque, o Réu marido nunca usou o veiculo para transportar a familia, logo, nunca foi afecto ao proveito comum do casal;
d) além disso, o carro foi levado para França pelo Réu marido, desde a separação do casal, há mais de um ano e que entretanto, se deduz que deixou de exercer tal actividade publicitária;
e) e que o usa agora em proveito próprio;
f) o Réu marido, encontra-se desde a separação de facto do casal, agora divorciados, em Franca, especificamente em Marselha, e na posse do referido veículo;
g) logo, a ora Recorrente não retirou daqui quaisquer benefícios da aplicação do produto da compra do respectivo veículo automóvel e como tal não deve ser responsabilizada pela dívida do ex-marido, só podendo ser afectos a essa dívida bens próprios do ex-marido.
- 0 art.º 1691.° do Cod. Civil enumera seis hipóteses em que a responsabilidade, em princípio, é de ambos os cônjuges, mas poderá não ser exactamente assim.
- O ex-cônjuge devedor contraíu tal divida para a aquisição de um veículo automóvel que foi usado e afecto a actividade comercial, a saber, a publicidade.
- No entanto, uma vez provados estes requisitos o cônjuge do devedor para evitar a sues responsabilidade, vai ter que, ilidir a presunção legal estabelecida no art. 1691.° alíneas c) a d) do Cod. Civil, ou seja, a presunção de proveito comum do casal.
- Existem duas situacoes distintas, quanto ao cnjuge do devedor:
a) Ou ilide a presunção do art.º 15.° do Cod. Comercial, de que o seu cônjuge, à partida a comerciante, e o acto de que surgiu a dívida é acto de comércio, mas nada tem a ver efectivamente com o comércio do seu autor, o que não é o caso concreto;
b) Ou ainda, não conseguindo provar a lª presunção (ou desistindo dela), vem provar que não houve proveito comum do casal:
- ou seja, de que a divida, apesar, de ser ou emergir de um acto de comércio
- de quem a contraiu ser comerciante;
- e eventualmente contraída no exercício do comércio.
- Ainda assim, não foi contraída em proveito comum do casal, que é este o caso concreto: o ex-marido foi para França e tem na sua posse o carro, deixou de exercer a actividade publicitária, usa o carro para afectação pessoal, deixando de estar adstrito à sua actividade profissional e não partilhando com a mulher e filhos quaisquer lucros, nem sequer os transportando nesse veículo, o que responsabiliza apenas este que contraíu a dívida.

Nas contra alegações – apresentadas inexplicavelmente antes daquelas alegações – a Autora pugnou desde logo pela manutenção do julgado.
II A única questão que se põe no âmbito do presente recurso é a de saber se face à contestação da Ré, Apelante, se poderia ou não tê-la, desde logo, condenado no pedido.

A sentença sob recurso deu como assentes os seguintes factos:
- A Autora no exercício da sua actividade comercial, por contrato
datado 10/09/2001, emprestou ao Réu António a importância de € 15.000,00;
- Segundo informação então prestada pelo reu António o empréstimo
destinava-se à aquisição do veículo automóvel marca Land Rover, modelo Discovery, com matrícula …..;
- Nos termos do contrato celebrado entre Autora e o Réu António a
importância de € 15.000,00 foi emprestada com juros à taxa nominal de 20,25% ao ano;
- A importância do empréstimo, os juros à taxa de 20,25% ao ano e os prémios de seguros seriam pagos, nos termos acordados, em 60 prestações mensais e sucessivas, com vencimento a primeira em 10/10/2004 e as seguintes nos dias 10 dos meses subsequentes;
- Conforme expressamente acordado, a falta de pagamento de
qualquer das referidas prestações na data do respectivo vencimento implicava o vencimento imediato de todas as demais prestações;
- Foi ainda acordado entre Autor e o Réu António que em caso de mora, sobre o montante em débito acrescia, a titulo de cláusula penal, uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada -20,25 % acrescida de 4 pontos percentuais, ou seja, um juro à taxa anual de 24,25%;
- O valor de cada prestação era de € 411,06;
- A Autora é uma instituição de crédito, nos termos e de harmonia com o disposto na alínea a) do artigo 31º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei 298/92, de 31 de Dezembro;
- Não foi efectuado o pagamento da 18ª prestação, vencida em 10110/2003, e das seguintes;
- O veículo adquirido com o empréstimo destinava-se à actividade comercial do Réu marido;
- Esse veículo foi afecto e era usado na actividade comercial do Réu marido;
- Corre termos no Tribunal de Família e de Menores do Barreiro, sob o n° 1488/04.6, divórcio litigioso em que é Autora a ora Ré e Réu o aqui Réu.

Antes de nos pronunciarmos sobre a matéria do recurso, não podemos deixar de fazer uma pequena consideração sobre a condenação do Réu.

Salvo o devido respeito, a sentença sob recurso desconsiderou as regras básicas sobre a defesa dos Réus ausentes, citados editalmente e representados pelo MP, nos termos do artigo 15º do CPCivil, aos quais não se aplica a cominação da confissão fáctica inserta no artigo 484º, nº1 do CPCivil, ex vi da alínea b) do artigo 485º do mesmo diploma legal, constituindo a ausência do Réu e a sua subsequente citação edital, uma das excepções àquela regra.

Todavia, porque tal nulidade não foi arguída, nem a condenação operada foi objecto de qualquer recurso por parte do representante daquele Réu, o MP, a mesma mostra-se transitada e é insusceptível de sindicância por parte deste Tribunal, impondo-se apenas este pequeno apontamento, uma vez que neste particular a revelia não poderia ser operante, como acabou por se considerar.

Do objecto do recurso.

Insurge-se a Apelante contra a sentença recorrida uma vez que a presunção legal vertida no artigo 1691° n° 1, al. d) do Código Civil, é estabelecida em favor do credor, cabendo, assim, ao cônjuge que se pretenda valer da excepção, ilidi-la e a sentença conclui que, no caso em concreto, a Ré mulher nenhuns factos alegou no sentido de ilidir a presunção legal, sendo certo que na contestação foram alegados vários factos consubstanciadores da ilisão da mesma, os quais não foram tidos em atenção pelo Tribunal.

Tem razão a Apelante, se não.

A causa de pedir na presente acção é constituída pelo contrato de mútuo que a Autora alega ter celebrado com o Réu, e para que este adquirisse um veículo automóvel, o que foi feito, tendo ficado acordado que aquela quantia deveria ser satisfeita em prestações mensais, iguais e sucessivas, importando a falta de pagamento de alguma delas o vencimento das restantes, mas que o Réu deixou de a satisfazer a 18ª prestação, sendo que o veículo reverteu a favor do casal constituído por ambos os Réus.

O normativo inserto no artigo 1691º, nº1 do CCivil, faz-nos referência, nas suas várias alíneas, aos casos em que as divídas responsabilizam ambos os cônjuges, nomeadamente na sua alínea d), «As dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal (…)».

A Apelante na sua contestação, vem-nos esclarecer que o empréstimo para aquisição do veículo, bem como esta aquisição, se destinou à actividade comercial do Réu, seu marido na altura, mas que o mesmo não ficou afecto ao património do casal, tendo sido afecto, exclusivamente àquela actividade , nunca tendo sido usado sequer para transportar a família, cfr artigos 1º, 6º, 10º e 13º, daquela peça processual.

Ora, quer dizer, a Apelante não se limitou a uma defesa directa, tendo carreado para os autos factos tendencialmente extintivos do direito que a Apelada se arroga, já que alega que o veículo não reverteu de forma alguma para o casal e nem sequer nunca serviu para transportar a família, o que nos levaria a integrar a referida factualidade em sede de defesa indirecta, tal como dispõe o normativo inserto no artigo 342º, nº2 do CCivil e daí a subsequente réplica da Apelada.

Em termos de regras gerais sobre o ónus da prova, opera o preceituado no disposto no artigo 342º do CCivil: àquele que invoca um direito, cabe fazer a prova dos factos constitutivos do mesmo (nº1) e a prova dos factos extintivos do direito, compete àquele contra quem a invocação é feita (nº2).

No caso sub juditio, tal regra teria a seguinte concretização: sobre a Autora, Apelada, impenderia a alegação e prova dos factos constitutivos do seu direito, os integradores do proveito comum do casal, nos termos do normativo inserto no artigo 1691º, nº1, alínea c) do CCivil, se quisesse obter a responsabilidade de ambos os Réus e sobre estes o ónus da alegação e prova dos factos extintivos daquele direito, nos termos do nº2 do artigo 342º do mesmo diploma.

Todavia, integrando-se a pretensão da Autora/Apelada no preceituado no artigo l691º, nº1, alínea d) do CCivil (já que a Apelante veio esclarecer o Tribunal que o veículo era para a actividade comercial do Réu), onde se estabelece uma presunção - (juris tantum) - do proveito comum dos Réus, as regras gerais do ónus da prova invertem-se, nesta situação, fazendo, agora, impender sobre a Ré/Apelante, o ónus da prova do contrário, ex vi do disposto no artigo 344º, nº1 do CCivil.

É que, no caso de existir uma presunção juris tantum, o ónus da prova do contrário imposto à outra parte, in casu, a Apelante, significa que se essa prova não for feita nem resultar de elementos do processo, se tem como assente o facto presumido.

A prova do contrário destina-se a tornar certo não ser verdadeiro um facto já demonstrado formalmente, v.g., como no caso em apreço, por via de presunção legal e, esta prova, nada tem a ver com a contraprova (ou prova contrária), pois esta destina-se apenas a tornar incerto o facto visado, a criar a dúvida no espírito do julgador (um non liquet), cfr Manuel de Andrade, Nocões Elementares de Processo Civil, 1976, 207.

Ora, não se pode concluir, como se faz na sentença recorrida, que a Apelante nenhuns factos alegou, porque como assinalámos supra, foram carreados para os autos vários elementos fácticos, acrescentando-se ainda a circunstância de aquela ter ainda alegado, que se encontrava a correr uma acção de divórcio e que há mais de um ano (tendo em atenção a data da propositura da acção) o Réu se encontrar em França, com o veículo em sua posse, cfr artigos 16º e 17º da contestação, elementos estes relevantes para o apuramento da eventual responsabilidade solidária assacada a ambos os Réus e que se encontram controvertidos, não obstante seja necessária a concretização de factos, maxime, no que tange ao proveito comum, já alegado.

É que este conceito, não se encontra suficientemente enunciado em termos fácticos, pois a Apelante confessou desde logo que o veículo se destinava à actividade comercial do Réu, seu marido, de onde a necessidade de se especificar se os proventos obtidos em tal actividade revertiam ou não para o casal, posto que foi alegado que o veículo se destinou apenas a uso próprio do Réu e para a actividade deste, daí se podendo retirar, embora incipientemente, que nenhuns réditos adviriam para aquela de tal actividade.

Abarca-se de todo o exposto que prematuramente se decidiu pela condenação da Apelante, havendo necessidade de serem concretizados aqueles pontos, através de um convite à mesma, nos termos do normativo inserto no artigo 508º, nº1, alínea b) e 3 do CPCivil, por forma a que seja corrigida a sua contestação como se expôs supra.

As conclusões, procedem, assim, parcialmente .

III Destarte, julga-se parcialmente procedente a Apelação, anulando-se a sentença recorrida na parte em que condenou a Apelante no pedido, solidariamente com o Réu, devendo ser proferido o despacho a que alude o artigo 508º, nº1, alínea b) e 3 do CPCivil, convidando-se aquela a suprir as insuficiências da sua contestação, no que tange ao proveito comum, prosseguindo os autos os seus termos subsequentes no que à mesma concerne, mantendo-se no mais a decisão proferida.

Custas pela Apelada.

Lisboa, 4 de Dezembro de 2006


(Ana Paula Boularot)
(Lúcia de Sousa)
(Luciano Farinha Alves)