Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1812/18.4T8BRR-I.L1-4
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO (VICE-PRESIDENTE)
Descritores: SUSPEIÇÃO
RESPOSTA A INCIDENTE DE SUSPEIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/27/2024
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: SUSPEIÇÃO – ART. 120.º CPC
Decisão: INDEFERIDA
Sumário: Perante os elementos disponíveis e o contexto em que teve lugar a intervenção do Sr. Juiz – em exercício de direito de resposta a incidente de suspeição - , podendo, porventura, considerar-se criticáveis ou mesmo supérfluas as afirmações aí produzidas, não se conclui que, objetiva e subjetivamente, se mostre posta em causa a imparcialidade do julgador, não se mostrando reunidos os pressupostos que materializam o incidente de suspeição, o que conduz à sua improcedência.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: “A” e “B”, autores nos autos principais, vieram apresentar incidente de suspeição relativamente ao Sr. Juiz, “C”.
Para tanto, invocaram em síntese, que o Sr. Juiz adotou “uma postura inequívoca e continuada quanto à tomada de posição ao longo do processo, quer na condução dos trabalhos, quer na prolação de despachos, apta à convicção de que o Senhor Juiz já assimilou os factos em apreço imputados aos Autores como verdadeiros, evidenciando a sua parcialidade”, reportando-se, em concreto, a despacho proferido em 17-01-2024, no qual o Sr. Juiz se vem pronunciar nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 122.º, n.º 1, do CPC, relativamente ao incidente de suspeição que tramita no apenso H.
Na sua resposta (com data de 08-02-2024), o Sr. Juiz, para além da extemporaneidade do incidente, entende inexistirem razões válidas para sustentar a suspeição.

*
Vejamos:
Vieram os requerentes deduzir o presente incidente de suspeição relativamente ao Sr. Juiz titular dos autos em apreço.
Nos termos do disposto no nº. 1 do artigo 120.º do CPC., as partes podem opor suspeição ao juiz quando ocorrer motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, nomeadamente, as situações elencadas nas suas alíneas a) a g).
Com efeito, o juiz natural, consagrado na CRP, só pode ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas, sérias e graves.
E os motivos sérios e graves, tendentes a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador resultarão da avaliação das circunstâncias invocadas.
O TEDH – na interpretação do segmento inicial do §1 do art.º 6.º da CEDH, (“qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei”) - desde o acórdão Piersack v. Bélgica (8692/79), de 01-10-82 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57557) tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um “teste subjetivo”, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito (na expressão anglo-saxónica, “bias”) face a determinado caso, e a um “teste objetivo” que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade (cfr., também, os acórdãos Cubber v. Bélgica, de 26-10-84 (https://hudoc.echr.coe.int/ukr?i=001-57465), Borgers v. Bélgica, de 30-10-91, (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57720) e Micallef v. Malte, de 15-10-2009 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-95031) ).
Assim, o TEDH tem vindo a entender que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou porque tenha exteriorizado relativamente ao demandante, juízos antecipados desfavoráveis, ou no processo, tenha emitido algum juízo antecipado de culpabilidade.
A dedução de um incidente de suspeição, pelo que sugere ou implica, deve ser resguardado para casos evidentes que o legislador espelhou no artigo 120.º do CPC, em reforço dos motivos de escusa que se refere o artigo 119.º do CPC.
A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo.
O direito a um julgamento justo, não se trata de uma prerrogativa concedida no interesse dos juízes, mas antes, uma garantia de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, de modo a que, qualquer pessoa tenha confiança no sistema de Justiça.
Do ponto de vista dos intervenientes nos processos, é relevante saber da neutralidade dos juízes face ao objeto da causa.
Com efeito, os motivos sérios e válidos atinentes à imparcialidade de um juiz terão de ser apreciados de um ponto de vista subjetivo e objetivo.
*
Colocados os parâmetros enunciados que importa observar, analisemos a situação concreta.
O incidente de suspeição deve ser deduzido desde o dia em que, depois de o juiz ter despachado ou intervindo no processo, nos termos do artigo 119.º, n.º 2, do CPC, a parte for citada ou notificada para qualquer termo ou intervier em algum ato do processo, sendo que, o réu citado pode deduzir a suspeição no mesmo prazo que lhe é concedido para a defesa – cfr. artigo 121.º, n.º 1, do CPC.
O fundamento de suspeição pode, contudo, ser superveniente, devendo a parte denunciar o facto logo que tenha conhecimento dele, sob pena de não poder, mais tarde, arguir a suspeição – cfr. artigo 121.º, n.º 3, do CPC.
Ora, considerando que o requerimento de suspeição foi apresentado em 03-02-2024, na sequência do conhecimento que os requerentes tiveram do despacho de 17-01-2024, o incidente é de ter por tempestivo.
*
Vejamos se o incidente de suspeição deverá proceder ou improceder.
Importa referir que, com precedência aos presentes autos, em 14-09-2020, dando origem ao apenso F, os ora requerentes deduziram incidente de suspeição relativamente ao mesmo Sr. Juiz, que, por decisão de 24-11-2020 veio a ser indeferido.
Dir-se-á desde já, que a apreciação objetiva que irá ser feita, se prende tão só com a materialização ou não dos requisitos do incidente, e não, com qualquer apreciação de natureza jurisdicional, a qual não nos incumbe nem poderemos efetuar.
No seu requerimento, os requerentes consideram que, no despacho de 17-01-2024, o Sr. Juiz refere que “os factos dos autos se reconduzem “à prática de sevícias, conta, na altura, jovens de menoridade, dependentes dos seus monitores, instrutores ou professores, sendo crianças/jovens institucionalizados, frágeis, muito carentes e ávidos de cuidados e atenções por parte de quem, a final, tem o dever de os proteger, formar e educar”, e que “o que a Ré Rumo alega quanto ao comportamento dos Autores é “de uma gravidade extraordinária, equiparável ao que o conhecido Autor Charles Dickens relata em muitos dos seus romances, nomeadamente, no famoso Oliver Twist.””
Consideram, ainda, os requerentes que a qualificação efetuada pelo Sr. Juiz lhe está vedada nesta fase, sendo o momento oportuno, para tal, a sentença.
Mais referem os requerentes que o Sr. Juiz veio corrigir a razão de ser da menção literária que efetuou, afirmação que os requerentes consideram incompatível com o que o Sr. Juiz afirmou em audiência, revelando atitude não isenta que veicula já a sua leitura sobre os factos, apta a legítima desconfiança sobre a sua imparcialidade, efetuando uma leitura da prova – em parte produzida – mas ainda não terminada, “qualificando de “extraordinária” a gravidade da conduta alegadamente assacada aos Autores que traduz como prática de sevícias”.
Na resposta – de 08-02-2024 – o Sr. Juiz refere, em suma, que não se verificam os fundamentos a que se referem quaisquer das alíneas do n.º 1 do artigo 120.º do CPC, dizendo não conhecer as Senhoras Advogadas e nem sequer ter tido com as Senhoras Advogadas qualquer diligência neste ou noutro Tribunal, não sendo inimigo, nem íntimo, de nenhuma delas, o mesmo valendo para as partes. Refere, ainda, que não tem qualquer convicção quanto à matéria de facto: “face ás declarações das testemunhas que motivaram a dedução desde incidente – declarações que parecem não terem agradado às Senhoras Advogadas – limitei-me a ilustrar o que poderia depreender-se de tais declarações, ou seja, um ambiente digno de Oliver Twist, escrito por Charles Dickens ignorando completamente que tal obra era do desconhecimento das Senhoras Advogadas, por se tratar de uma obra universal e, geralmente, conhecida por todos que, por alguma razão, leram as obras clássicas, quer nacionais, quer estrangeiras”.
Cumpre salientar que, liminarmente, não se patenteia qualquer das circunstâncias a que se referem as alíneas a) a f) do n.º 1, do artigo 120.º do CPC.
Quanto à alínea g) – existência de inimizade grave ou grande intimidade entre o juiz e alguma das partes ou seus mandatários – tem-se entendido que “não constitui fundamento específico de suspeição o mero indeferimento de requerimento probatório (RL, 7-11-12, 5275/09) nem a inoportuna expressão pelo juiz sobre a credibilidade das testemunhas (RG 20-3-06, 458/06)” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa; Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 148).
Conforme se lê neste último aresto, o fundamento para a recusa do juiz, “não pode basear-se em considerações de direito ou juízos de valor, como a afirmação de que a sra. juiz “manifestou inqualificável impaciência com as arguidas e testemunhas de defesa, em claro tratamento de desigualdade…”, que “a sra. juiz disse às arguidas e às testemunhas J, F, A e M que estavam a mentir” e que “a testemunha A (foi) ameaçada com processo crime por falsas declarações”, pois isso revela apenas um modo de exercício dos poderes de direção da audiência que não pode ser censurado pela Relação, no âmbito do pedido de recusa.
As simples expressões através das quais o juiz revele a credibilidade que dá a determinada declaração, ou a outro meio de prova, não bastam para deduzir a sua recusa e a violação de alguma das regras sobre a aquisição da prova pode ser impugnada por vários os meios (desde a arguição de irregularidades ou nulidades até à interposição de recurso), mas nenhum deles passa pela dedução do incidente da recusa do juiz.
O processo de decisão do juiz não se inicia apenas depois de terminadas as alegações orais, pois, inevitavelmente, ele vai analisando e confrontando os diversos depoimentos e fazendo juízos sobre a credibilidade de cada um deles, mas o importante é que, até ao final das alegações, não feche o espírito à possibilidade de valorar todas as contribuições para a prova, quer confirmem ou infirmem os juízos que foi fazendo.
As regras da boa prudência aconselham que o juiz não revele os seus juízos, mas, como se referiu, por vezes deve tomar decisões que, ao menos implicitamente, indicam a credibilidade que, até aí, lhe parece merecer determinado depoimento, sem que, em todo o caso, da circunstância da convicção já estar em processo de formação, possa ser tirada a conclusão de que já existia um «pré juízo»”.
Ora, no caso em apreço, as menções efetuadas pelo Sr. Juiz no despacho de 17-01-2024, expressando o que, em sede de audiência, havia já assinalado, aliás, por reporte ao afirmado pela ré, não patenteiam algum «pré-juízo» sobre a motivação decisória, o que também não se afere em face da referência à obra literária efetuada.
Compulsados os autos, vemos que a tramitação seguida se baseia na lei, correspondendo o despacho de 17-01-2024, aliás, ao exercício do direito de resposta perante a dedução de incidente de suspeição.
Não se denota, quanto ao mais, o acesso ou o exercício dos direitos permitidos às partes, ou seja, não se evidencia qualquer violação de direitos conducentes à conclusão de falta de imparcialidade.
Podemos entender que os requerentes se não revejam no conteúdo de posições tomadas, mas tal descontentamento não implica parcialidade do julgador, mesmo podendo considerar-se poderem padecer de crítica algumas das expressões empregadas pelo Sr. Juiz.
Os recursos são os mecanismos legais para se poder reagir em tais situações e para se aquilatar da correta ou incorreta aplicação da lei.
A Justiça é feita caso a caso, tendo em consideração a real e objetiva situação a dirimir.
O Juiz não é parte nos processos, devendo exercer as suas funções com a maior objetividade e imparcialidade, sabendo-se que nem sempre se consegue passar esta imagem, mas, o que releva é que esta conceção esteja materializada no julgador e que o utente da justiça a final a compreenda.
Perante os elementos disponíveis e o contexto em que teve lugar a prolação do despacho de 17-01-2024 – em exercício de direito de resposta - e, podendo, porventura, considerar-se criticáveis ou mesmo supérfluas as afirmações aí produzidas, não se conclui que, objetiva e subjetivamente, se mostre posta em causa a imparcialidade do julgador.
Assim sendo, entendemos não se encontrarem reunidos os pressupostos que materializam o incidente, o que conduz à sua improcedência.
Não se nos afigura a existência de litigância de má-fé dos requerentes.
Face ao exposto, indefiro a requerida suspeição relativamente ao Sr. Juiz “C”.
Custas a cargo dos requerentes.
Notifique.

Lisboa, 27-02-2024,
Carlos Castelo Branco (Vice-Presidente, com poderes delegados).