Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | ANA RUTE COSTA PEREIRA | ||
| Descritores: | INSOLVÊNCIA LEVANTAMENTO DA APREENSÃO IMÓVEL RENDAS RENDIMENTO DO INSOLVENTE | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 10/28/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | IMPROCEDÊNCIA | ||
| Sumário: | SUMÁRIO (art. 663º, n.º7 do Código de Processo Civil). I. Quando em causa está a nulidade assente na omissão dos fundamentos (de facto e de direito) que justificam a decisão e resultando do art.º 613º, n.º3 do Código de Processo Civil que tal causa de nulidade é aplicável aos despachos, não se poderá olvidar que tal sucede “com as necessárias adaptações”. Ou seja, se ao juiz se impõe, quando profere um despacho, que nele sejam apreciadas as questões colocadas pelas partes, a maior ou menor exigência de fundamentação das razões pelas quais a pretensão será ou não atendida terá que ser proporcional à relevância, pertinência e enquadramento da questão face as especificidades do processo ou à luz da particular fase da tramitação processual em que a questão é suscitada. II. A pretensão da insolvente de ver excluído de apreensão o imóvel de que é proprietária e que corresponde ao único bem apreendido em benefício da massa insolvente, com o argumento de que desse imóvel provêm rendas que correspondem à sua única fonte de rendimento, evidencia que a mesma encara o processo de insolvência como um processo destinado apenas a reconhecer a confessada impossibilidade de cumprimento das suas obrigações vencidas, após o que seria avalizada a opção da insolvente de se propor a entregar à massa o que puder (um quantitativo à medida das suas possibilidades), sem que a mesma perdesse qualquer direito sobre o seu património, que deixaria, assim, de ser a garantia geral das suas obrigações (art. 601º do Código Civil). III. Em suma, pretende a insolvente manter todos os seus bens e, após entregar à massa a parte do rendimento de que considera poder dispor, ficar, decorridos três anos, exonerada dos seus créditos, propugnando uma solução que converteria, sem mais, um processo destinado à satisfação dos interesses dos credores num processo destinado a proteger o devedor das investidas dos credores sobre o seu património. IV. Essa subjetiva interpretação é clara quando, no requerimento que esteve na origem do despacho sob recurso, a insolvente refere que a finalidade/objetivo do processo de insolvência “é o fresh start do insolvente”, invocando um conjunto de regras e citando jurisprudência aplicável ao incidente de exoneração do passivo restante (ainda não admitido) e transformando esta possível fase incidental do processo no modelo amplo de definição da tramitação do processo principal. V. A consequência de efetiva ofensa aos direitos basilares do devedor insolvente que é privado de todo o seu património é acautelada pelo art. 84º, n.º1 do CIRE, que torna o regime da insolvência coerente com as regras gerais de impenhorabilidade previstas no Código de Processo Civil e conforme com os princípios constitucionais que a apelante entende terem sido violados. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa I. 1. Em 04-12-2024, AL apresentou-se à insolvência. Alegou, além do mais, que vive sozinha em casa arrendada, carecendo da ajuda de terceiros para custear as despesas mensais, vivendo “apenas dos rendimentos de uma loja que detém, que se encontra arrendada, sendo essa a sua única fonte de rendimento, apelando desde já, face a isso, que o bem não seja apreendido para a massa”, tendo acumulado um passivo que ascende ao montante de 175.069,53 €, identificando na lista de credores Scalabis, S.A. como única credora. Concluiu pedindo que seja declarada a insolvência, com exoneração do passivo restante. 2. Em 10-12-2024 foi proferida sentença que declarou a insolvência da requerente, nomeou Administrador da Insolvência e decretou a imediata apreensão de todos os bens da insolvente, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos. A sentença transitou em julgado em 02-01-2025. 3. Em 17-01-2025 o Sr. Administrador da Insolvência apresentou o relatório a que alude o art. 155º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), no qual refere, entre outras considerações, que à insolvente não são conhecidos rendimentos registados, sendo, até à declaração de insolvência, o único rendimento constante das declarações o respeitante à renda do imóvel apreendido como verba n.º2. A insolvente vive em casa arrendada, pagando 1.020,00 € de renda mensal. Conclui propondo que se proceda à liquidação dos bens integrados na massa, conforme o plano de liquidação que anexa. Anexa o inventário a que alude o art. 153º, com identificação das seguintes verbas: “Verba nº1. Fração autónoma designada pela letra B do prédio em propriedade horizontal descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de sob o nº (freguesia) e na matriz art. da freguesia. CAVE DIREITA - com loja e duas arrecadações, sita na rua. Avaliação provisória 70.000,00€ Verba nº2. Valores das rendas, resultantes do contrato de arrendamento estabelecido pela insolvente e C X, NIF, celebrado em 1/06/2012, com objeto a fração autónoma identificada na verba nº1. Renda mensal bruta 1.500,00€” Anexa ainda plano de liquidação que identifica a verba n.º1 como bem a liquidar, através de venda em leilão eletrónico. 4. Em 22-01-2025 (ref.ª 41691480) a insolvente apresentou requerimento, no qual alega que o único rendimento de que dispõe é o valor que aufere das rendas da loja que o Senhor Administrador sugere que seja apreendida para a massa e que tal apreensão colocará a insolvente em situação pior do que a que se encontra, requerendo “desde já que os bens em crise sejam desanexados do processo”, comprometendo-se a entregar à massa o valor que lhe seja fixado pelo tribunal e que terá origem nas rendas que aufere do imóvel que se encontra arrendado, único rendimento de que dispõe. Conclui requerendo “que a sua situação seja analisada tendo por base o já mencionado, atendendo, sobretudo, à idade da insolvente, aos seus problemas de saúde e ao facto de toda a situação já a ter colocado num estádio frágil de vida”. 5. Em 22-01-2025 (ref.ª 41692134) a credora Scalabis – STC, S.A. veio tomar posição em relação ao requerimento aludido em I.4, referindo que a insolvente, ao pretender que os bens apreendidos e que consubstanciam o ativo sejam “desanexados do processo” olvida a finalidade de satisfação dos interesses dos credores que preside ao processo de insolvência, não podendo a insolvente querer o melhor de dois mundos, a apresentação à insolvência e a conservação na sua esfera jurídica do imóvel e das rendas decorrentes do arrendamento do aludido imóvel. Conclui opondo-se à proposta apresentada pela insolvente “votando desde já a favor da liquidação do activo que integra o imóvel apreendido e igualmente da apreensão das rendas enquanto o contrato de arrendamento não for resolvido”. 6. Na sequência de notificação que lhe foi dirigida para esclarecer a pretensão formulada (despacho de 21-02-2025), veio a insolvente, por requerimento de 28-02-2025, clarificar o requerimento mencionado em I.4, nos termos seguintes: “1. A insolvente vive apenas com os rendimentos provenientes do contrato de arrendamento, cujo locado é o imóvel em crise. Cfr. Declarações de IRS que ora se juntam. 2. Conforme expõe e, aliás, decorre do próprio relatório em crise, o único rendimento de que dispõe é o valor que aufere das rendas da loja. 3. A insolvente não se opõe a ceder o valor definido à massa insolvente. 4. Contudo, não poderá ceder qualquer valor se o imóvel sair da sua esfera jurídica. 5. Como aliás, não poderá subsistir condignamente, visto ficar sem qualquer rendimento. 6. O objectivo do processo de insolvência é o fresh start do insolvente, sendo certo que durante os 3 anos subjacentes à cessão de rendimentos, o insolvente entrega aos credores o que lhe for definido, tendo sempre respeito pela sua sobrevivência e subsistência. 7. A insolvente não pretende defraudar a lei e conhece as consequências do processo ao qual se apresentou. 8. Contudo, também sabe que no limite, deverá sempre ser respeitada a dignidade da pessoa humana, assim como da subsistência condigna, o que aliás, nunca vislumbrou que pudesse ser colocado em causa, face à situação já de si difícil que apresenta. 9. Havendo apreensão de rendimentos, estes sê-lo-ão, sempre com respeito ao principio da impenhorabilidade, que decorre do 737.º e seguintes do CPC, por respeito à sobrevivência do sujeito em causa. 10. Ver a Insolvente privada do bem em causa, fere os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e de subsistência condigna, que, aliás, são tutelados pelo próprio CIRE. 11. Relembre-se que, caso um insolvente detenha despesas extraordinárias enquanto se encontra no período de cessão, poderá sempre apresentar o pedido de dispensa de cessão de valores, por forma a fazer face a essas mesmas despesas. 12. Da mesma forma, a situação em crise carece de tutela, de forma a que a insolvente não se veja privada de sobreviver. 13. Conforme atesta o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, cujo número é o 7688/16.9T8SNT-J.L1-1, datado de 09.02.21, as rendas não se encontram na previsão do artigo 738.º CPC por não revestirem carácter alimentício. 14. Então, a contrario, detendo caracter alimentício, que é o caso, deverão ter-se por impenhoráveis, pelo menos na parte que permita a insolvente sobreviver. 15. O que se requer, tal seja, da apreensão de parte do valor das rendas, ao invés da apreensão do imóvel para a massa. 16. Deverá o mesmo ser desanexado da massa, de forma a que a insolvente consiga, além de sobreviver, cumprir com a entrega dos valores mensalmente. 17. O artigo 239.º CIRE é também ele claro no que respeita aos bens a ceder. (…) 19. O imóvel em causa tem de ser tido como equivalente a um impenhorável, na medida em que é o objecto de trabalho e único meio de subsistência da insolvente. 20. A Insolvente requer desde já que os bens em crise sejam desanexados do processo; 21. Compromete-se a entregar à massa o valor que lhe seja fixado pelo tribunal; 22. Valor esse que terá origem nas rendas que aufere do imóvel que se encontra arrendado e não de outro lado, visto não ter qualquer outro rendimento. 23. Destarte, apela ao Tribunal para que a sua situação seja analisada tendo por base o já mencionado, atendendo, sobretudo, à idade da insolvente, aos seus problemas de saúde e ao facto de toda a situação já a ter colocado num estádio frágil de vida” 7. Notificada, veio a credora Scalabis, em 24-03-2025, renovar a posição exposta em I.5, concluindo por pedir que seja indeferida a pretensão da insolvente e seja apreendido o imóvel a favor da massa insolvente mantendo-se as rendas apreendidas, conforme o destino a dar a contrato de arrendamento decisão que caberá ao Exmo. Sr. Administrador de Insolvência. 8. Em 04-06.2025 foi proferido o seguinte despacho: “Requerimento de 28 de Fevereiro de 2025: Pugna a insolvente pela separação da massa insolvente do imóvel apreendido para a massa insolvente, já que se encontra arrendado e a respetiva renda corresponde ao seu único rendimento. Notificados os credores, a credora Scalabis STC, S.A. pugnou pela improcedência de tal pretensão. Cumpre apreciar e decidir. O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem por finalidade a satisfação dos credores pela liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (art.1º, n.º1,CIRE). Em conformidade, por legalmente inadmissível, improcede a pretensão formulada pela insolvente. Notifique”. O despacho foi notificado em 20-06-2025. 9. Na sequência de requerimento da insolvente de 22-05-2025, apresentado após conhecimento de que a inquilina do imóvel havia sido notificada para entregar as rendas diretamente para a conta indicada pelo Sr. Administrador da Insolvência, após pronúncia da credora e do Administrador da Insolvência, foi proferido despacho em 05-07-2025, que, no que respeita à apreensão da renda para a massa insolvente e tendo em conta que a devedora não tem outro rendimento, consignou que a mesma “deve respeitar os limites que resultam do disposto no artigo 738º, n.º1 e 3, do Código de Processo Civil, ex vi art.17º, n.º1, do CIRE, sem prejuízo da liquidação do imóvel em causa”. 10. Por requerimento de 03-07-2025 veio a insolvente interpor o presente recurso de apelação, pedindo a anulação/revogação do despacho aludido em I.8 (despacho de 04-06-2025, conforme esclarece a apelante no requerimento de 10-09-2025). Apresenta alegações que sintetiza nas seguintes conclusões: a) O presente recurso vem interposto do despacho proferido no processo à margem referenciado, da decisão que, desprovido de fundamentação, indeferiu o pedido de desanexação do único bem imóvel da massa insolvente cujo lucro consubstancia o único rendimento da recorrente; b) A temática em apreciação, respeita à reanálise do pedido da Insolvente que foi destinatária de um despacho nulo, salvo melhor entendimento, por total falta de fundamentação e por omissão de pronúncia, que coloca em causa a própria subsistência daquela; c) A procedência do presente recurso é manifesta, uma vez que, salvo devido respeito, que é muito, a decisão recorrida não fez a correcta análise do caso em apreço, acabando por culminar numa manifesta injustiça e total desconsideração por preceitos constitucionais basilares, como dignidade da pessoa humana e a subsistência condigna; d) Da fundamentação, importa que, a recorrente vive sem qualquer fonte de rendimento, além das rendas que extrai do arrendamento que onera o predicto imóvel, como aliás, já explicado em sede de petição inicial e outros requerimentos; e) Esse valor é o que a ajuda a fazer face a todas as suas despesas básicas e essenciais, ainda que com alguns sacrifícios e ajuda de familiares, face à própria idade da Recorrente, que também detém algumas patologias com as quais despende quantias avultadas; f) A Recorrente vive sozinha em casa arrendada; g) O imóvel é o único bem da Insolvente, e encontra-se arrendado, auferindo daqui €975,00; h) O valor não cobre todas as suas despesas; i) Como bem atesta o Senhor Administrador de Insolvência no relatório respeitante ao 155.º CIRE; j) Ainda assim, o douto tribunal condena a Insolvente a viver desprovida de qualquer bem ou rendimento; k) A Insolvente sabe das suas obrigações, como sabe que o processo de insolvência é de execução universal de bens. l) Contudo, também não ignora dos direitos que enquanto ser humano, cidadã, numa situação frágil, que se lhe poderão valer; m) Apresenta-se à insolvência, porque sabe que detém essa obrigação, face a todas as características da sua actual situação. n) Contudo, não pode ser atirada, às mãos da lei e da justiça, a uma situação que coloca em causa a sua sobrevivência. o) O despacho apenas invoca o carácter universal da execução, passando por cima de todos os princípios constitucionais basilares, como seja os previstos nos artigos 1.º, 18.º, 63.º e 65.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), ignorando tudo o que exposto e requerido anteriormente. p) Duvidas não podem haver quanto à nulidade do despacho em crise; q) Os tribunais, têm reconhecido que a apreensão de bens para a massa insolvente não pode implicar a violação de direitos fundamentais da pessoa insolvente, nomeadamente o direito à dignidade da pessoa humana e à existência condigna. r) Apelando ao artigo 738.º n.ºs 1 a 3 do CPC, ex vi, art. 46º do CIRE que versa sobre a impenhorabilidade, deve ser visto e interpretado à luz dos princípios basilares constitucionais. s) A Recorrente sabe que os interesses dos credores também devem ser acolhidos, mas respeitando critérios de proporcionalidade, o que não aconteceu. t) De notar que o credor em crise, que se pronunciou sempre pela apreensão de todos os bens para a massa, em sede de execução, ignorou por completo nesses autos, quer a existência do imóvel, quer das rendas, visto não terem sido ali penhorados. u) Analisando o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 02.03.2023, cujo processo é o 23/17.0T8MTR-L.G1: “Sumário (elaborado pelo relator – art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil), este faz, bem, a explicação da cláusula da impenhorabilidade, invocando, de igual modo, que, ao abrigo de preceitos constitucionais como a subsistência condigna, todos os processos devem ser analisados casuisticamente. v) Assim, deverá o presente proceder, verificando-se a nulidade da decisão proferida, devendo, tendo em conta o caso concreto, ser proferida decisão de teor diferente. w) A decisão recorrida não realiza qualquer juízo de ponderação entre os interesses da massa insolvente e os direitos fundamentais da Insolvente, limitando-se a uma afirmação formal e insuficiente para justificar a apreensão. x) O Meritíssimo Juiz a quo não fez a correcta interpretação dos factos nem da aplicação da Lei ao caso concreto, mostrando-se violadas, nomeadamente, as normas constantes dos artigos 615.º, 617.º n.º 1, 738.º n.ºs 1 a 3 do CPC, ex vi, art. 46º do CIRE, 1.º, 18.º, 63.º e 65.º da Constituição da República Portuguesa. 11. Em 11-07-2025 a credora Scalabis apresentou contra-alegações ao recurso apresentado pela insolvente/apelante, pedindo a improcedência deste, formulando, a final, as seguintes conclusões: A) As presentes Contra-Alegações advêm do Despacho proferido pelo Tribunal a quo o qual julgou improcedente, por legalmente inadmissível, o pedido formulado pela Insolvente, aqui Recorrente – separação/desanexação do imóvel e das rendas referentes ao imóvel apreendido nos presentes autos. B) Entende a Recorrente que o douto Despacho proferido pelo Tribunal a quo, está ferido de nulidade, por alegada falta de fundamentação e por não ter feito a correcta análise do caso apreço, o que culminou, no entender da Recorrente, numa manifesta injustiça e desconsideração dos preceitos constitucionais basilares, em particular, os consignados nos art. 1º, 18º, 63º e 65º da Constituição da República Portuguesa. C) Sucede que tais preceitos de natureza constitucional, não têm aplicação no caso em apreço, na medida em que não estão a ser violados quaisquer princípios constitucionais. D) E ainda, que por mera hipótese académica, se admitisse estarem em causa preceitos dessa natureza, sempre estaria vedado à Recorrente lançar mão dos mesmos, porquanto tais preceitos já deveriam ter sido invocados previamente, nomeadamente, aquando da resposta da Insolvente ao Relatório a que alude o art. 155º CIRE, requerimento de 22.01.2025, a que foi atribuída a refª.: 51098764, o que não veio a suceder. E) Compulsados os presentes autos, constatamos que todos os articulados que vêm sendo apresentados pela Insolvente, ora Recorrente, desde a sentença declaratória de Insolvência até ao momento, incluindo as Alegações de Recurso, evidenciam uma profunda incongruência e um desconhecimento, não desculpável, dos normativos e princípios jurídicos que norteiam o processo de Insolvência. F) A Insolvência dos presentes autos não foi requerida, tendo antes decorrido da apresentação da própria devedora à Insolvência. G) A aqui Recorrente, ao apresentar-se à insolvência, bem sabia e não poderia ignorar, que o activo de que era proprietária, após a declaração de insolvência, por decorrência da sua declaração de insolvência, sempre seria apreendido a favor da massa e consequentemente liquidado, repartindo-se o produto da venda pelos credores, conforme Sentença de Verificação e Graduação de Créditos, a proferir. H) A Insolvente, aqui Recorrente, também sabia e não poderia ignorar, que a declaração de insolvência, naturalmente teria implicações na sua esfera patrimonial e que após a respectiva sentença declaratória de insolvência, deixaria de estar disponível na sua esfera jurídica o imóvel de que era proprietária, assim como, deixaria de auferir as rendas decorrentes do arrendamento do aludido imóvel. I) Assim é justamente pelo facto de tais bens integrarem a massa insolvente em conformidade com o disposto no nº 1 do art. 46º CIRE ‘’A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo’’. J) Não pode a insolvente querer o melhor de dois mundos: a apresentação à insolvência e a conservação na sua esfera jurídica do imóvel e das rendas decorrentes do arrendamento do aludido imóvel. K) Caso a Insolvente venha a deparar-se com sérias dificuldades de sobrevivência, como a própria vem sindicando, deverá, no momento oportuno e, em sede própria, recorrer à Segurança Social, fazendo prova desse facto, a fim de lhe ser atribuído um subsídio para o feito, caso tal lhe seja aplicável, ou, no limite, uma alternativa habitacional. L) O que não pode, em caso algum, suceder é a devedora ser declarada insolvente e continuar com o mesmo activo/património que existiria à data da declaração de insolvência, recebendo os rendimentos desse património (rendas), à custa dos credores, usando, fruindo e dispondo de bens que integram agora a massa insolvente, decorrência da sua insolvência. M) Uma vez que à data da declaração de insolvência o imóvel é propriedade da Insolvente, sempre deveria tal imóvel ser apreendido a favor da massa insolvente, e consequentemente, vendido, repartindo-se o produto da venda pelos credores reclamantes, liquidação, essa, que inclusivamente já se encontra a ser promovida. N) Por sua vez, também as rendas do aludido imóvel deverão ser apreendidas a favor da massa insolvente até resolução do contrato de arrendamento, sendo o valor das mesmas repartido pelos credores em conformidade com o que vier a ser proferido em sede de Sentença de Verificação e Graduação de Créditos. O) Tal decorre da lei e é transversal a qualquer parte. P) Resulta do processo de Insolvência e das Alegações de Recurso apresentadas que a insolvente reside, sozinha, em imóvel arrendado; Q) Resulta também do processo de Insolvência e das Alegações de Recurso que o imóvel apreendido a favor da massa encontra-se arrendado a terceiro, recebendo a insolvente o valor de €975 atinente às rendas do locado. R) Alega a Insolvente, ora Recorrente, que além do valor obtido com as rendas do imóvel apreendido, não dispõe de outra fonte de rendimento, sendo com esse valor que se sustenta, valor esse que, ainda assim, no entender da insolvente não cobra todas as suas despesas. S) Alega a insolvente, ora Recorrente, que o Sr. Administrador de Insolvência no âmbito do relatório a que alude o art. 155 CIRE considera por adequado fixar à insolvente o valor de 1,25 SMN. T) Contrariamente ao alegado pela Recorrente não foi fixado à Insolvente qualquer rendimento indisponível, muito menos lhe foi fixado o de 1,25 vezes o SMN ou seja 1.086 U) E não foi, justamente porquanto não foi ainda proferido Despacho Inicial de Exoneração do Passivo restante, pelo que, por esse motivo, não foi ainda fixado à Insolvente qualquer rendimento disponível. V) E ainda que possa vir a sê-lo, com o devido respeito que é muito, 1,25 vezes o smn parece-nos manifestamente excessivo. W) O rendimento indisponível deverá corresponder ao salário mínimo nacional, pelo que tudo o que exceda o aludido montante deverá ser apreendido a favor da massa insolvente. X) Inexiste qualquer fundamento que legitime a fixação de um rendimento indisponível no valor de 1.086€ correspondente a 1,25 vezes o salário mínimo nacional, à aqui Recorrente. Y) Inexiste qualquer fundamento para se desanexar da massa insolvente as rendas obtidas no âmbito do contrato de arrendamento em vigor referente ao imóvel apreendido. Z) Não resulta do nº 1 do art. 738º CPC que as rendas de um locado possam traduzir-se em rendimentos impenhoráveis. AA) A impenhorabilidade a que o aludido preceito se refere diz respeito a salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia. BB) Por outro lado, a Recorrida não sabe, nem tem obrigação de saber se as rendas são a única fonte de rendimento da Insolvente, ora Recorrente, nem se a Insolvente recebe ajuda de terceiros para fazer face às suas despesas. CC) Em todo o caso, sempre se diga que no limite, caso se pugne pela aplicabilidade de o art 738º CPC, o que não se concebe, sempre se diga que ter-se-ia de chamar à colação o disposto no nº 6 do referido artigo, pelo que sempre caberia em última instância, ao douto tribunal mediante a prova carreada para o processo e ponderados o montante e a natureza do crédito exequendo (em particular dos créditos reclamados), bem como as necessidades da Insolvente e do seu agregado familiar, determinar ou não a redução por período que considere razoável, a parte penhorável de tais rendimentos. DD) O que a Insolvente pretende com as suas Alegações de Recurso, é criar uma nova ordem jurídica, ordem essa adaptada às suas necessidades e ao arrepio do consignado no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) EE) A insolvente pretende, uma reforma ao CIRE, uma alteração, ao Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa quanto a esta matéria, porém olvida a Recorrente que tal reforma não pode em caso algum ser suscitada nem perante um tribunal à quo como veio sucedendo até então, nem perante um tribunal superior, seja o Venerando Tribunal da Relação, seja o Digníssimo Supremo Tribunal de Justiça, seja até o Tribunal Constitucional. FF) O que a Insolvente pretende, com o devido respeito, não existe no nosso ordenamento jurídico, pelo menos no presente e como tal não poderá ser procedente. GG) Bem andou o tribunal a quo ao proferir o Despacho do qual a Insolvente recorre. HH) Qualquer outra decisão proferida em sentido oposto ao do douto despacho proferido, sempre seria uma decisão surpresa, uma decisão, com base numa ordem jurídica que não existe, o que não poderia em caso algum suceder. II) Se a Insolvente não tem condições de subsistência, o que registe-se! não resulta devidamente provado nos presentes autos, sempre deverá procurar entidades que a ajudem a prover a tal subsistência, devendo, para tal ser oficiada a segurança social para que disponibilize um imóvel à Insolvente ou para que lhe atribua um subsídio. JJ) Deverá também a Insolvente procurar, por si, uma fonte de rendimento, que não poderá passar certamente por conservar na sua esfera jurídica o imóvel apreendido, nem as rendas decorrentes do contrato de arrendamento celebrado. KK) Contrariamente ao que a Insolvente alega, foi a própria que se colocou nesta situação. LL) É irrelevante o que foi requerido ou deixou de ser requerido no processo de execução, uma vez que estamos na presença de um processo de insolvência requerido pela própria. MM) A Insolvente conformou-se com os efeitos que para si adviriam de um pedido de exoneração do passivo restante, conforme veio a ser por esta peticionado no seu requerimento inicial. NN) A Insolvente ora Recorrente, não poderia ignorar que a sua declaração de insolvência implicaria, ao abrigo do disposto no art. 1º , nº 1 CIRE, a apreensão dos bens de que é proprietária, a saber: fração autónoma designada pela letra ‘’B’’ do prédio em propriedade horizontal descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de sob o nº (freguesia ) e na matriz art. da freguesia correspondente a Cave Direita - com loja e duas arrecadações, sita na rua, a favor da massa insolvente, OO) Como também a apreensão das rendas decorrentes do contrato de arrendamento celebrado entre si e terceiros, rendas essas que alegadamente ascendem a €975. PP) Contrariamente ao que alega a Insolvente não se mostra violado qualquer critério ou princípio da proporcionalidade. QQ) Desproporcional e contra legem, seria justamente o que a Recorrente, pretende que lhe seja aplicada, ser declarada insolvente, e manter-se proprietária de um imóvel e das rendas provenientes de um contrato de arrendamento celebrado com terceiros, ainda em vigor. RR) O que a Recorrente pretende é justamente criar uma nova legislação em matéria de Insolvência, ignorando todos os normativos legais aplicáveis a esta matéria. SS) Conforme resulta do art. 1º, nº 1 CIRE ‘’O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores’’. TT) Por conseguinte, deverá o Recurso interposto pela Insolvente ser julgado totalmente improcedente por não provado e, nessa medida, manter-se integralmente a Sentença proferida nos exactos termos em que a mesma foi proferida. 12. Por despacho de 11-10.2025 foi o recurso interposto admitido como apelação, com subida imediata em separado e efeito devolutivo, após o que foi o presente apenso remetido a este Tribunal da Relação. Foram colhidos os vistos legais. Cumpre apreciar. II. Dado que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, sem prejuízo das questões passíveis de conhecimento oficioso (artigos 608º, n.º 2, parte final, ex vi do art.º 663º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil), importa apreciar: i. se o despacho recorrido se encontra ferido de nulidade: a. por falta de fundamentação; b. por omissão de pronúncia; ii. em caso negativo, se existe fundamento para excluir da apreensão efetuada em benefício da massa insolvente, bem como do âmbito da subsequente liquidação, o único imóvel apreendido, por deste provirem rendas que correspondem ao único rendimento da insolvente, designadamente se essa apreensão/liquidação ofende princípios de ordem constitucional. III. Os factos relevantes para apreciação do objeto do recurso correspondem aos descritos no relatório (I.), a que acrescem os seguintes, extraídos dos autos principais e apensos após consulta eletrónica (art. 662º, n.º1 do Código de Processo Civil): a. No âmbito do apenso de apreensão de bens (apenso A) foi junto em 17-01-2025 auto de apreensão, que identifica como duas únicas verbas apreendidas a fração autónoma designada pela letra B do prédio em propriedade horizontal descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de sob o nº (freguesia) e na matriz art. da freguesia. CAVE DIREITA - com loja e duas arrecadações, sita na rua, avaliada provisoriamente em 70.000,00 € (verba n.º1) e os valores das rendas, resultantes do contrato de arrendamento estabelecido pela insolvente e C X, NIF, celebrado em 1/06/2012, com objeto a fração autónoma identificada na verba nº1, correspondente a uma renda mensal bruta 1.500,00€ (verba n.º2) – ref.ª citius 41643640 do apenso A) b. No âmbito do apenso de reclamação de créditos (apenso B), em 30-05-2025, foi proferida sentença, já transitada em julgado, que homologou a lista de credores reconhecidos pelo Administrador da Insolvência – crédito do ISS, IP, no valor de 344,46 € e crédito da Scalabis STC, S.A. no valor de 194.668,16 € -, julgando-os verificados e, enquanto créditos comuns, graduados para serem pagos rateadamente pelo produto da liquidação dos bens apreendidos para a massa insolvente e pelo produto anual da cessão do rendimento disponível, caso venha a ser liminarmente admitido o pedido de exoneração do passivo restante (ref.ª Citius 445907699, do apenso B). c. Em 07-07-2025 foi iniciado o apenso de liquidação (apenso C) para venda da fração apreendida e identificada em a., tendo sido iniciado e encerrado leilão eletrónico, com a proposta mais elevada de 156.090,60 €, apresentando-se a inquilina a exercer direito de preferência (ref.ª citius 44042880, apenso C). IV. i. Nulidade do despacho recorrido. Alega a recorrente que o despacho recorrido se encontra ferido de nulidade por “total falta de fundamentação e por omissão de pronúncia”, já que “apenas invoca carácter universal da execução, passando por cima de todos os princípios constitucionais basilares, como seja os previstos nos artigos 1.º, 18.º, 63.º e 65.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), ignorando tudo o que exposto e requerido anteriormente”. Dado que a invocação da nulidade, ainda que assente em dois distintos fundamentos, é feita em bloco, será igualmente una a sua apreciação. Preceitua o art.º 615º, n.º 1, alíneas b) e d) do Código de Processo Civil – aplicável aos despachos por força do disposto no art.º 613º, n.º 3 do mesmo diploma -, que é nula a sentença (despacho), respetivamente, quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão ou quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar. No que respeita à primeira das mencionadas previsões, constitui um entendimento pacífico e consolidado que só a absoluta falta de fundamentação pode gerar a nulidade da decisão, não bastando uma fundamentação insuficiente ou deficiente. Citando Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora [Manuel de Processo Civil, 2ª edição, p. 687], “(…) Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”. Quando em causa está a nulidade assente na omissão dos fundamentos (de facto e de direito) que justificam a decisão e resultando do art.º 613º, n.º3 do Código de Processo Civil que tal causa de nulidade é aplicável aos despachos, não se poderá olvidar que tal sucede “com as necessárias adaptações”. Ou seja, se ao juiz se impõe, quando profere um despacho, que nele sejam apreciadas as questões colocadas pelas partes, a maior ou menor exigência de fundamentação das razões pelas quais a pretensão será ou não atendida terá que ser proporcional à relevância, pertinência e enquadramento da questão face as especificidades do processo ou à luz da particular fase da tramitação processual em que a questão é suscitada. Por seu turno, no que respeita à nulidade por omissão de pronúncia, ao considerar o art. 615º, n.º1, al. d) como estando ferida de nulidade a sentença (despacho) que deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, tal previsão tem por pressuposto o cumprimento do disposto no art. 608º, n.º2 do Código de Processo Civil, que estabelece que o juiz “deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”. Salientava já o Prof. Alberto dos Reis [Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, pg. 143] que “ (…) Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”. Em síntese, apreciar todas as questões não coincide com escalpelizar todos os argumentos que as partes invocam em apoio da concreta questão que se impõe apreciar. Vejamos, face ao sobredito enquadramento, se o despacho recorrido padece de algum dos vícios que lhe são imputados pela insolvente/apelante. Perante um requerimento que, após notificação para esclarecimento, a insolvente concretizou no sentido de pretender que o único imóvel apreendido fosse desanexado da massa insolvente, aduzindo para tanto os fundamentos transcritos em I.6 do relatório, que respeitam tanto à apreensão do imóvel como das rendas auferidas pela insolvente, pagas por terceiro em cumprimento de contrato de arrendamento celebrado, haverá que concluir que a questão colocada é só uma: se, qualquer que seja a situação pessoal da insolvente, a não apreensão do único imóvel de que a mesma é proprietária e que corresponde ao único ativo da massa insolvente, no âmbito de um processo iniciado a impulso da própria, configura uma solução tutelada pela lei e pela constituição (note-se que, no âmbito deste recurso, não estão sob apreciação as rendas, que foram tratadas em decisão autónoma). Ao citar o artigo do CIRE que, pelo seu teor, contraria a finalidade que a insolvente defendeu ser aquela que preside ao processo de insolvência [segundo a insolvente “O objectivo do processo de insolvência é o fresh start do insolvente”] e, com base nessa mesma finalidade, negar a pretensão da insolvente, o tribunal fundamentou a sua decisão, ainda que essa fundamentação seja, na perspetiva da requerente, parca ou pouco extensa. Não existe, como se disse, uma absoluta falta de fundamentação, mas apenas uma fundamentação breve, que o tribunal considerou adequada à pertinência da questão e que, com respeito à previsão do art. 615º, n.º1, al. b), será suficiente para que a nulidade invocada não se tenha por verificada. Por outro lado, ao relembrar qual a natureza e propósito do processo de insolvência [processo de execução universal que tem por finalidade a satisfação dos credores pela liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (art.1º, n.º1,CIRE)] e concluir que, “por legalmente inadmissível, improcede a pretensão formulada pela insolvente”, que pugna pela separação do bem imóvel da massa insolvente, o despacho recorrido apreciou a única questão colocada, negando provimento à mesma. Quaisquer que sejam os argumentos aduzidos pela insolvente em suporte da sua pretensão, esta não corresponde senão àquela que foi efetivamente apreciada e autonomizada como questão a decidir, pelo que nenhuma omissão de pronúncia se poderá ter por verificada. Conclui-se, deste modo, que não se verifica qualquer das nulidades arguidas. ii. Existência de fundamento para excluir o imóvel de que é proprietária a insolvente da apreensão efetuada em benefício da massa. Como nota inicial, importa relembrar que o objeto do recurso tem no seu âmbito exclusivo o despacho que indeferiu a pretensão da insolvente de “desanexar” da massa insolvente o imóvel apreendido, por este constituir a sua única fonte de rendimento, não respeitando a apreciação à específica questão das rendas auferidas pela insolvente, que foi apreciada em despacho autónomo, tendo a Mmª Juíza a quo solicitado esclarecimento quanto ao despacho objeto de recurso em fase prévia à sua admissão. Nesta perspetiva importará, em primeiro lugar e tal como se sintetiza no despacho recorrido, relembrar a finalidade do processo de insolvência, que foi iniciado sob impulso da devedora/apelante. Tal como define o art. 1º, n.º1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores. Como refere Catarina Serra [Lições de Direito da Insolvência, 2ª edição, p. 42], a sentença de declaração de insolvência constitui “o devedor num novo status iuridicus – o status iuridicus ou estado civil de insolvente. Por força dela, o devedor fica privado dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente (…)”. A sentença cria as condições de que depende a aplicação de normas legais que dão origem a um conjunto de providências, particularizando que «os chamados “efeitos executivos”, representados pela apreensão dos bens do devedor, são simplesmente as consequências resultantes “ope legis” do novo satus iuridicus em que a sentença coloca o devedor» [op. cit., p. 127/128]. Na regulamentação do processo especial em que se traduz o processo de insolvência, prevê o art. 81º, n.º1 do CIRE que a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência, cabendo ao administrador da insolvência a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessam à insolvência (n.º4). A messa insolvente, cujo conceito se encontra definido no art. 46º do CIRE, destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência (n.º1), esclarecendo o n.º2 que os bens isentos de penhora só são integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e a impenhorabilidade não for absoluta. As regras da impenhorabilidade relativa encontram-se previstas no art. 738º do Código de Processo Civil, cujo n.º1, adaptado ao caso concreto, dispõe que são impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do devedor Foi este o preceito aplicado pelo tribunal recorrido aquando da apreciação da questão da apreensão das rendas auferidas pela apelante (único a que se reporta a jurisprudência citada pela apelante nas suas alegações de recurso). Contudo, sob pena de o processo de insolvência ser convertido numa ficção destinada apenas a assegurar a pretensão última da devedora de se ver exonerada dos seus créditos pela via da exoneração do passivo restante, esta proteção não abrange o património imobiliário ou outros bens não abarcados pelas regras da impenhorabilidade. Nas disposições do CIRE que visam regular a fase de liquidação, estabelece o art. 158º, n.º1 que “Transitada em julgado a sentença declaratória da insolvência e realizada a assembleia de apreciação do relatório, o administrador da insolvência procede com prontidão à venda de todos os bens apreendidos para a massa insolvente, independentemente da verificação do passivo, na medida em que a tanto se não oponham as deliberações tomadas pelos credores na referida assembleia, apresentando nos autos, para o efeito, no prazo de 10 dias a contar da data de realização da assembleia de apreciação do relatório, um plano de liquidação de venda dos bens, contendo metas temporalmente definidas e a enunciação das diligências concretas a encetar”. Em síntese, no processo de insolvência, orientado para a satisfação do interesse dos credores, uma vez declarada aquela, são desencadeadas todas as diligências e providências destinadas à realização daquele interesse, que passam pelo elemento essencial de apreensão dos bens do devedor que, após venda, a realizar com prontidão, se destinarão – após dedução dos bens ou direitos necessários à satisfação das dívidas da massa – ao pagamento dos créditos sobre a insolvência (art. 172º, n.º1 do CIRE). O CIRE prevê a possibilidade de dispensa da liquidação da massa, no todo ou em parte – art. 171º -, a requerimento do devedor não titular de empresa, mas esta tem por pressuposto que o devedor entregue ao administrador da insolvência uma importância em dinheiro não inferior à que resultaria dessa liquidação. Numa apreciação pré-conclusiva, teremos que considerar que a pretensão da apelante evidencia que a mesma encara o processo de insolvência como um processo destinado a reconhecer a confessada impossibilidade de cumprimento das suas obrigações vencidas, após o que seria avalizada a opção da insolvente de se propor a entregar à massa o que puder (um quantitativo à medida das suas possibilidades), sem que a mesma perdesse qualquer direito sobre o seu património, que deixaria, assim, de ser a garantia geral das suas obrigações (art. 601º do Código Civil). Ou seja, mantinha todos os seus bens e, após entregar à massa a parte do seu rendimento de que considera poder dispor, ficaria, decorridos três anos, exonerada dos seus créditos. A solução propugnada pela apelante converteria, sem mais, um processo destinado à satisfação dos interesses dos credores num processo destinado a proteger o devedor das investidas dos credores sobre o seu património. Esta interpretação é clara quando, no requerimento que esteve na origem do despacho sob recurso, a insolvente refere que a finalidade/objetivo do processo de insolvência “é o fresh start do insolvente”, invocando um conjunto de regras e citando jurisprudência aplicável ao incidente de exoneração do passivo restante (ainda não admitido) e transformando esta possível fase incidental do processo no modelo amplo de definição da tramitação do processo principal. Essa inversão do sentido da lei e do objetivo do processo pela qual pugna a insolvente, como refere a apelada, corresponderia à criação de “uma nova ordem jurídica, ordem essa adaptada às suas necessidades e ao arrepio do consignado no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE)”. Na verdade, já em fase anterior ao processo de insolvência, o imóvel de que é proprietária a insolvente constituía garantia geral das suas dívidas e era passível de venda coerciva a efetuar a impulso dos credores. Analisemos os argumentos essenciais em que a apelante sustenta a sua pretensão. Por um lado, entende que a decisão recorrida, ao não atentar no facto de a insolvente ter como única fonte de rendimento a renda que obtém através do arrendamento do imóvel de que é proprietária, desconsidera “preceitos constitucionais basilares, como dignidade da pessoa humana e a subsistência condigna”. Por outro lado, refere conhecer as suas obrigações e saber que o processo de insolvência é de execução universal de bens, mas entende que “não pode ser atirada, às mãos da lei e da justiça, a uma situação que coloca em causa a sua sobrevivência”. Relembrando tudo o que ficou referido quanto à finalidade do processo de insolvência e aos efeitos que, “ope legis”, decorrem da declaração de insolvência que ocorreu a requerimento da devedora, o que defende a apelante é com suficiência salvaguardado pelo legislador, ao prever no art. 84º, n.º1 do CIRE que “Se o devedor carecer absolutamente de meios de subsistência e os não puder angariar pelo seu trabalho, pode o administrador da insolvência, com o acordo da comissão de credores, ou da assembleia de credores, se aquela não existir, arbitrar-lhe um subsídio à custa dos rendimentos da massa insolvente, a título de alimentos”. Para além da regra da não inclusão na massa insolvente de bens/direitos impenhoráveis, este último preceito constitui um mecanismo de salvaguarda estabelecido em benefício do devedor, que assegura o respeito pelos princípios constitucionais que a apelante considera violados pela decisão recorrida – a dignidade da pessoa humana e o direito a uma subsistência condigna -, sendo iniciado a impulso do titular do direito a alimentos. A consequência de efetiva ofensa aos direitos basilares do devedor insolvente que é privado de todo o seu património é acautelada pelo citado art. 84º, n.º1, tornando o regime da insolvência coerente com as regras gerais de impenhorabilidade previstas no Código de Processo Civil e conforme com os princípios constitucionais que a apelante alega terem sido violados. Como refere Maria do Rosário Epifânio [Manuel de Direito da Insolvência, 8ª edição, págs. 142/143], a atribuição deste direito “depende, desde logo, e em primeiro lugar, da carência absoluta de meios de subsistência: isto é, no caso do insolvente, exige-se que os bens excluídos do âmbito do processo de insolvência (por serem impenhoráveis) não sejam suficientes para assegurar a subsistência do insolvente e da sua família e, por outro lado, que o insolvente e os trabalhadores não os possam obter através de outras pessoas que, perante eles, a tal possam estar obrigadas. Depois, e em segundo lugar, depende da impossibilidade de angariação dos mesmos pelo trabalho, mais precisamente do grau de responsabilidade do insolvente ou dos trabalhadores sobre a impossibilidade de angariação de meios de subsistência através do trabalho. Em terceiro lugar, e uma vez que a atribuição de alimentos é feita à custa dos rendimentos da massa insolvente, a concessão do subsídio depende de uma ponderação, pelo administrador da insolvência, de dois interesses conflituantes: a subsistência do devedor à custa dos bens da massa insolvente, por um lado, e, por outro lado, a finalidade primária do processo insolvencial que consiste no pagamento aos credores, à custa desses mesmos bens (…). Conclui a citada autora, mais adiante [p. 146] que a atribuição dos alimentos se insere “na tendência do moderno direito insolvencial de proteção do insolvente e dos trabalhadores, em determinadas circunstâncias, por forma a conferir um caráter mais humanitário à declaração de insolvência (impedindo-se, em consequência, que os mesmos sejam deixados na miséria). Assim, para além de consagrar a impenhorabilidade de certos bens indispensáveis à sobrevivência do insolvente (arts. 736º a 738º do CPC), o legislador reconhece igualmente (sem equivalente nas regras de processo executivo individual) ao insolvente e aos trabalhadores do insolvente (que sejam titulares de créditos sobre a massa insolvente) o direito a um subsídio alimentar, mediante o correspondente sacrifício da finalidade primária do processo insolvencial (que assenta na satisfação dos créditos insolvenciais e na consequente adstrição dos bens integrantes da massa insolvente ao pagamento dos credores)”. A citação exposta, a cujos termos aderimos, permite evidenciar que as restrições admitidas pelo processo de insolvência àquelas que são as suas finalidades essenciais correspondem ao mecanismo de proteção dos direitos constitucionais dos devedores a uma existência condigna. Já a pretensão da apelante corresponderia a erigir a tutela do interesse da devedora em diretriz fundamental do processo de insolvência, sugerindo que, perante os mencionados interesses conflituantes, a subsistência do devedor à custa dos bens da massa insolvente obnubilasse a “finalidade primária do processo insolvencial que consiste no pagamento aos credores, à custa desses mesmos bens”, permitindo ao insolvente atravessar um processo de insolvência e manter o seu património incólume, com absoluto sacrifício deste último interesse o que, naturalmente, não é consentâneo com as regras básicas do processo especial que a própria devedora, ora apelante, decidiu iniciar. A noção de respeito por critérios de proporcionalidade que defende a apelante - conclusão s. – corresponde, na realidade, à defesa de uma total desproporção entre a proteção do interesse do devedor e a tutela daquele que é o interesse primordial do processo de insolvência, o dos credores, em claro prejuízo deste último (como refere a apelada na sua conclusão QQ). Ao defender a inconstitucionalidade do despacho que manteve a apreensão do seu único bem, fonte do seu rendimento, ocorrida em consequência da declaração de insolvência, defende a apelante, indiretamente, que o processo de insolvência, nos seus elementos essenciais e nucleares - finalidade de satisfação do interesse dos credores, imediata apreensão de bens, liquidação e distribuição do produto da venda pelos credores -, ofende a Constituição, não tendo o despacho recorrido afirmado nada mais do que o efeito essencial da insolvência, isto é, que os bens são apreendidos para a massa e esta é constituída pelo património do devedor e destinada à liquidação, para subsequente pagamento aos credores. O despacho recorrido, naquele que é o seu efeito direto, não ofende qualquer direito de natureza constitucional a cuja restrição não se haja proposto a devedora por ocasião da sua apresentação à insolvência. O que coloca a insolvente numa posição de ser incapaz de prover à sua subsistência é a acumulação de passivo que suplanta a sua capacidade de angariação de rendimentos, não podendo os credores – ou o tribunal – ser responsabilizados pelo resultado final, previsível, da opção da devedora de se apresentar à insolvência, propondo-se, como consequência direta da pretendida declaração de insolvência, a ser privada da administração do seu património, que é, imperativamente, apreendido para subsequente liquidação com vista a assegurar a satisfação do interesse dos credores, não passando a proteção do interesse da devedora pelo recurso à pretensão concretamente deduzida, que carece, em absoluto, de fundamento. Conclui-se, assim, que é correta a decisão recorrida de considerar totalmente infundada a pretensão da apelante, razão pela qual se impõe declarar improcedente o recurso. * V. Nos termos e fundamentos expostos, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação de Lisboa em declarar improcedente o recurso de apelação e, em consequência, em manter o despacho recorrido. Custas a cargo da apelante (art. 527º, n.º1 do Código de Processo Civil), sem prejuízo do disposto no art. 248º, n.º1 do CIRE, bem como da eventual concessão do benefício de apoio judiciário, requerido pela devedora (doc. 16 anexo ao requerimento inicial dos autos principais). ********** Lisboa, 28-10-2025, Ana Rute Costa Pereira Isabel Maria Brás Fonseca Manuela Espadaneira Lopes |