Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5003/14.5T2SNT.L1–2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: RECONHECIMENTO PRESENCIAL DA ASSINATURA POR ADVOGADO
VENDA
COMPROPRIETÁRIO
REPRESENTAÇÃO SEM PODERES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/29/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I. Se o documento foi assinado por outrem que não a autora e o reconhecimento da assinatura diz que foi assinado, na presença do advogado autenticador, pela autora, temos a prova quer da falsidade do reconhecimento quer de que o documento particular não é genuíno, isto é, não é da autoria da autora. Está assim afastada a força probatória quer da autenticação, quer do documento particular (arts. 371, 372, 346, 376 e 377, todos do CC). E com isto fica afastada a outorga dos poderes representativos invocados na escritura notarial da venda do imóvel dos autos.

II. Para pôr em causa o reconhecimento presencial de uma assinatura constante de um documento particular autenticado ou, mais latamente, para pôr em causa um documento autêntico, não é necessário intentar uma acção também contra o autenticador, seja ele funcionário público ou não (isto é, não há litisconsórcio necessário passivo).

III. Tendo a autora pedido a declaração de nulidade de uma venda, entendendo o juiz que o que se verifica é uma ineficácia em relação à autora, deve declarar a ineficácia, tal como permite o art. 5/3 do CPC, desde que não incorra numa decisão-surpresa (art. 3/3 do CPC), como não incorreu, no caso, dado que as partes puderam discutir o efeito prático-jurídico que a autora pretendia obter com a acção, qual seja, o de que os actos que punham em causa o seu direito não produzissem efeitos contra si.

IV. No caso de alguém vender uma coisa de não é o único titular, em seu nome e do outro titular, sem ter poderes representativos deste para o efeito, aplica-se apenas o regime da falta de poderes do representante, isto é, do art. 268 do CC, e não o regime da venda de bens alheios, do art. 892 do CC, sendo a venda ineficaz ao relação ao outro titular.

V. O cônjuge sobrevivo e os herdeiros não são comproprietários dos bens que fazem parte do património comum que era do casal, mas antes titulares de direitos sobre este património ainda não partilhado, no seu todo, com características idênticas a uma comunhão hereditária, não tendo direito a qualquer bem determinado do conjunto.

VI. O art. 291 do CC não protege o terceiro adquirente que beneficia dos requisitos do seu n.º 1, caso não tenha sido o verdadeiro proprietário a iniciar a cadeia de negócios nulos, como parte do primeiro negócio inválido, excluindo-se da sua aplicação o caso em que um sujeito obtém um registo falso e aliena o bem a um terceiro.

VII. O registo prévio não é condição suficiente para fazer funcionar a protecção concedida pelo art. 17/2 do CRP, pois, se o registo é falso ou foi obtido com títulos falsos, sem que tenha tido por base um negócio jurídico celebrado pelo verdadeiro titular, tal representa uma expropriação, não justificada, do verdadeiro proprietário, e contrária à protecção constitucional do direito de propriedade.

VIII. O art. 2076 do CC é um preceito especial que prevalece sobre a disposição genérica do art. 291 de aplicação subsidiária. Mas também ele não protege um subadquirente que esteja no fim de uma cadeia de contratos que não teve origem num herdeiro actuando em nome próprio, mas antes na actuação de um dos titulares do património comum que actuou também em nome do outro com uma procuração falsa.

IX. A venda de um imóvel que faz parte de um património comum indiviso, feita por um dos titulares, actuando por si e em nome do outro com base numa procuração falsa, não pode ser reduzida ou convertida sem mais na alienação de uma quota daquele património.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

A veio propor contra B, C-Lda, e D a presente acção pedindo que se declare nula e de nenhum efeito a procuração a que se reportam os autos, com as legais consequências, nomeadamente, declarar-se também nula a escritura de compra e venda outorgada pelo portador da referida procuração, ordenando-se o cancelamento dos registos de transmissão de propriedade do imóvel a que se reportam os autos e os actos subsequentes ao registo da propriedade do imóvel a favor da autora.

Para o efeito alega que foi casada no regime de comunhão geral de bens; foi registada a seu favor e de seu marido a aquisição de um prédio urbano; tomou agora conhecimento que o prédio havia sido vendido, pelo seu filho, 1º réu, por si e como procurador da autora, à 2ª ré; a procuração é falsa; a propriedade do prédio mostra-se actualmente inscrita a favor da 3ª ré, por compra.

O réu B veio dizer que era verdade o alegado pela autora (mas diz que a procuração lhe foi apresentada – não diz por quem - tal como está; também diz não ter recebido o preço apesar de ter declarado o contrário na escritura) e que a acção deve ser julgada procedente.

A ré C excepcionou a ilegitimidade activa da autora (segundo ela, a autora deveria estar na acção como cabeça-de-casal da herança e não por si), pretendendo, em consequência, ser absolvida da instância; e, impugnando, de direito, disse que: o 1º réu interveio na escritura de compra e venda em causa nos autos, por si e em representação da autora, sendo que quanto à actuação deste réu em nome próprio a mesma não é posta em causa, consequentemente a análise da nulidade do negócio jurídico só poderá incidir sobre a quota-parte indivisa da autora, continuando [esta] em compropriedade primeiro com a ré C e agora com a 3ª ré; impugnando de facto, diz estar convencida que as assinaturas apostas na procuração e reconhecimento são efectivamente da autora e feitas pelo seu punho, a não ser assim, ocorreu uma falsificação feita pelo próprio filho da autora; e estranha que a autora só tivesse tido conhecimento em 2013 do negócio em causa; e excepciona a sua boa fé: por não se lhe poder atribuir qualquer responsabilidade no negócio, tendo agido sem culpa, acreditando legitimamente que era verdadeira a procuração de que se fazia acompanhar o filho da vendedora que também outorgou em nome próprio, nada mais lhe sendo exigido quanto à diligência de uma pessoa normal; e para invocar o regime do art. 17 do Código do Registo Predial, enquanto adquirente onerosa de boa-fé com registo anterior ao registo da acção, não lhe sendo por isso oponível a invalidade do negócio jurídico. Conclui nesta parte no sentido da improcedência da acção.

A ré D contestou, alegando que a invocação de falsidade da procuração feita pela autora não parece credível, sendo o escopo desta acção a ilegítima reapropriação de um imóvel que a autora vendeu em estado deplorável e que agora se encontra recuperado e pronto a habitar; adquiriu o imóvel à 2ª ré para sua habitação própria e permanente, tendo tal aquisição decorrido num processo totalmente lícito, transparente, com a verificação de todos os requisitos e formalidades legais, registrais e notariais e com respeito por todos os princípios de confiança e boa-fé; pelo que é alheia e deverá ser legalmente protegida, contra os desadequados interesses da autora, designadamente os que possam decorrer de uma simples falta de prestação de contas entre mandatário e mandante, como hipoteticamente pode ter acontecido nos autos entre a autora e o seu filho, o 1º réu; sem prescindir e caso seja declarada a nulidade do primeiro contrato de compra e venda, o subsequente contrato celebrado entre si e a 2ª ré consubstanciará um contrato de venda de bens alheios, com os efeitos legais aplicáveis; conclui apenas no sentido da improcedência da acção.

No saneador, o tribunal julgou improcedente a excepção dilatória da ilegitimidade activa da autora.

Depois de realizado o julgamento foi proferida sentença, julgando procedente a acção, declarando falsa a procuração junta a fls. 123 a 124 dos autos e ineficaz em relação à autora o contrato de compra e venda titulado pela escritura de 29/06/2011 pelo Cartório Notarial de Lisboa, e ordenando o cancelamento dos registos de transmissão de propriedade do imóvel acima identificado, subsequentes ao registo de propriedade a favor da autora.

A ré D recorre desta sentença, arguindo a sua nulidade por decisão-surpresa e por omissão de pronúncia; impugnando a decisão da matéria de facto relativamente ao ponto provado sob 8 e a três outras afirmações de facto dadas como não provadas; e dizendo que: verifica-se uma preterição de litisconsórcio necessário passivo; o regime jurídico aplicável não devia ter sido o da ineficácia (por força do art. 268 do CC) mas o da venda de bens alheios (arts. 892 e segs do CC); ela, ré, devia beneficiar da protecção do art. 17/2 do CRP; a venda do imóvel, em vez de ser declarada ineficaz, devia ser reduzida ou convertida na venda de uma quota-parte desse imóvel.

A ré C também recorre da sentença arguindo a sua nulidade por decisão-surpresa e por se ter pronunciado sobre questões que não eram objecto da acção; e dizendo que: o regime não é o da ineficácia mas o da venda de bens alheios; ela, ré, devia beneficiar da protecção do art. 291 do CC; a venda, em vez de ser declarada ineficaz, devia ser reduzida ou convertida.

A autora limitou-se a dizer que as recorrentes não têm razão, porquanto a decisão recorrida não merece qualquer censura.

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Questões a decidir: as nulidades da sentença; se o facto sob 8 deve ser eliminado e se devem ser acrescentados aos factos provados três outros factos; se não devia ter sido declarada a falsidade da procuração e a ineficá-cia da venda, nem devia ter sido ordenado o cancelamento dos registos.

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Foram os seguintes os factos dados com provados (este acórdão alterou a ordem e a numeração dos factos):

1. A autora foi casada com J, no regime da comunhão geral de bens.

2. Pela apresentação xx de 16/06/1978, foi registada a aquisição, a favor da autora e de seu marido, do prédio urbano, edifício de um piso para habitação, com a área total de 1564m2, sito em limites do S, freguesia e concelho de Y, descrito na Conservatória do Registo Predial de Y sob o nº xxxx/20110609 e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo xxxx.

3. Aquando da aquisição o imóvel tinha a natureza de rústico, encontrando-se inscrito na matriz respectiva sob o artigo 150, secção J (parte).

4. Aquele casamento foi dissolvido por óbito do marido em 10/11/2007.

5. O marido deixou como seus únicos herdeiros a sua mulher, a autora, e o seu filho, o réu, que não outorgaram qualquer acto de partilha por sua morte, relativamente ao imóvel.

6. Consta da escritura de compra e venda, lavrada no dia 29/06/2011 num cartório notarial de Lisboa, que o réu B, outorgando por si e como procurador e em representação da autora, no uso de poderes conferidos por procuração [toda ela escrita à máquina] datada de 28/06/2011, vendeu o imóvel à ré C, pelo preço de 46.000€ [tendo esta declarado que aceitava a venda e que o imóvel se destina a revenda] (a escritura consta a fls. 10 a 12 dos autos e a procuração consta de fl. 123 e ambas foram dadas por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais, tal como o foi o documento de fl. 124 que é uma autenticação de documento particular feita por um advogado, que diz: “verifiquei a identidade da signatária do documento anexo, que é uma procuração, cuja assinatura foi feita na minha presença, por exibição do bilhete de identidade. Foi-lhe [à interessada signatária] explicado o seu conteúdo […] disse ficar ciente e que a mesma corresponde à verdade” – esta transcrição foi feita por este acórdão que também introduziu as partes em parenteses rectos que constam do documento dado por reproduzido).

7. As assinaturas apostas na procuração e no termo de autenticação da procuração, atribuídas à autora, não foram apostas nesses documentos pelo punho da autora.

8. A autora não constituiu seu procurador o 1.º réu nem lhe conferiu os poderes constantes na procuração.

9. Após a realização daquela escritura a ré C recebeu as chaves e tomou a efectiva posse do imóvel, à vista de toda a gente e de boa-fé.

10. No dia 19/09/2013, por escritura exarada a folhas 80 e seguintes do livro n.º 1xx, num cartório notarial de O, a ré C vendeu o imóvel à ré D, pelo preço de 49.000€, pago integralmente pela compradora, no acto da escritura.

11. Este contrato teve a intervenção de N – Sociedade Mediação Imobiliária, Lda, titular da licença número xxxx-AMI, emitida pelo INCI.

12. Pela apresentação xxx de 13/09/2013 foi inscrita a aquisição por compra do imóvel a favor da ré C e através da apresentação xxx de 20/09/2013 foi inscrita a aquisição por compra a favor da ré D.

13. A ré D adquiriu o imóvel para sua habitação própria permanente e promoveu a execução de obras no mesmo.

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Da impugnação da decisão da matéria de facto

Na decisão da matéria de facto considerou-se como provado, sob 8, que “a autora não constituiu seu procurador o 1.º réu, nem lhe conferiu os poderes constantes na procuração.”

A fundamentação desta decisão foi a seguinte:

Relativamente à […] falsidade da assinatura aposta na procuração e no termo de autenticação junto aos autos, decorrente da mesma não ter sido aí aposta pelo punho da autora, julgou o tribunal tal facto como provado em face do teor da prova pericial produzida.

Com efeito da perícia feita às assinaturas apostas na procuração e termo de autenticação juntas aos autos e que foram apresentadas no cartório notarial […] com vista à celebração da escritura […] de 29/06/2011, resulta a admissão pelos Srs. peritos “como muitíssimo provável que as escritas suspeitas das assinaturas não sejam da autoria de A”. No anexo informativo junto pelos Srs. peritos pode ler-se que a conclusão de “muitíssimo provável não” é uma conclusão que se “aproxima da certeza e indicam o mais alto grau de dissemelhança que pode ser estabelecido entre duas escritas comparadas”.

Assim em face da certeza dada por este meio de prova pericial e atentos os especiais conhecimentos dos Srs. peritos o tribunal julgou provado que as assinaturas apostas na procuração e autenticação não foram aí apostas pelo punho da autora, não tendo sito produzida qualquer prova que de algum modo colocasse em causa a prova científica realizada.

Acresce que ainda de forma indirecta a prova testemunhal produzida, veio criar no tribunal a convicção que efectivamente a alegação da autora correspondia à verdade. A testemunha SV, que depôs de forma isenta e imparcial, trouxe ao conhecimento do tribunal factos que ainda que acessórios, contribuíram para a formação da convicção quanto ao facto essencial. Esta testemunha, que intermediou a compra e venda realizada entre a 2ª e 3ª rés, referiu aos costumes conhecer a autora e o 1º réu, por morar nas proximidades destes e apesar de afirmar nada saber relativamente ao contrato celebrado entre o 1º réu e a 2ª ré, disse que foi ao imóvel uma vez com o 1º réu, para conhecer o terreno que este supostamente queria vender; mais disse que a venda do imóvel não foi publicitada pela imobiliária “N” porque não havia contrato de mediação, apesar de ser conhecida a intenção por parte do 1º réu de vender o imóvel. No que à pessoa da autora respeita disse ser do seu conhecimento que desde o falecimento do marido da autora esta tinha deixado e ir ao imóvel dos autos, porque não gostava muito de lá ir após essa data. Também sabia que a autora estava na disposição de vender o imóvel, precisamente por ter deixado de gostar de lá ir, sem que porém alguma vez o tivesse abordado para lhe perguntar algo pela venda do mesmo. O depoimento desta testemunha foi ao encontro dos depoimentos de parte prestados pelo 1º réu e pelo legal representante da 1ª ré no que ao desconhecimento por parte da autora do contrato de compra e venda do imóvel respeita. Embora as versões de cada um destes réus não tivessem sido coincidentes, nem se possa dizer que contribuíram para a descoberta de toda a verdade material, das mesmas extraiu o tribunal, no que à questão controvertida respeita que a autora foi alheia ao contrato entre ambos celebrado. Não tendo sido produzida qualquer prova em contrário deste facto.

Conjugada a prova testemunhal, com o conteúdo dos depoimentos de parte na parte sujeita à livre convicção do tribunal e com o teor da prova pericial, criou a convicção que as assinaturas apostas na procuração e autenticação não são da autoria da autora […].”

A ré D vem impugnar esta decisão, entendendo que os factos sob 8 devem ser dados como não provados, com base na seguinte argumentação:

“[…P]ese embora o relatório pericial tenha concluído como “muitíssimo provável que as escritas suspeitas não fossem da autoria” da autora, tal relatório apenas deveria ser aceite como prova dos factos provados sob 7.

Facto distinto e que não se pode considerar provado por tal prova é o que consta de 8 e que consiste em saber se a autora constituiu ou não seu procurador o 1º réu e se lhe conferiu ou não os poderes que constam da procuração.

Ora, não obstante o resultado da aludida perícia, certo é que estamos perante um documento autêntico, com os efeitos daí decorrentes e suportados pelo art. 38 do DL n.º 76-A/2006, de 29/03, estabelecendo o n.º 2 deste artigo que: “Os reconhecimentos, as autenticações e as certificações efectuados pelas entidades previstas nos números anteriores conferem ao documento a mesma força probatória que teria se tais actos tivessem sido realizados com intervenção notarial.”

Assim, tratando-se de documento autêntico, o mesmo faz prova plena dos factos que refere, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 371 do Código Civil.

Ora, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 342 do CC, era à autora que caberia provar que não havia constituído o seu filho e 1º réu seu procurador, nem lhe haveria conferido os poderes constantes na aludida procuração, prova essa que não foi minimamente efectuada.

Desde logo na procuração constam diversos elementos identificadores da autora e que revelam que a procuração foi elaborada com acesso directo aos documentos de identificação da autora.

O advogado que procedeu ao reconhecimento presencial da assinatura atesta neste documento que a procuração destinava-se a “conferir poderes a seu filho B, para conjuntamente com os demais interessados, vender pelo preço e condições que entender convenientes (…)” tendo sido o respectivo conteúdo explicado à autora.

Ora, do resultado da perícia não se pode concluir que a autenticidade do documento seja posta em causa.

Assim, e a título de exemplo, a autora poderia ter comparecido perante o advogado e estando impedida de assinar ter solicitado que alguém efectuasse a assinatura dando ela no local expressa autorização para o efeito.

Ou seja, embora pouco correcto, em tal caso, substancialmente nenhum vício afectaria a procuração em causa e a autenticação do documento expressava a vontade das partes.

O que se pretende concluir é que ainda que se admita que a assinatura no aludido documento possa não ser da autoria da autora tal não se traduz necessariamente na conclusão da falsidade do documento.

É que trata-se de um documento autêntico, com os poderes que a lei lhe confere e a confiança que os mesmos transmitem aos cidadãos e ao comércio jurídico.

Salvaguardando melhor entendimento, nenhuma prova foi feita para ilidir a autenticidade deste documento.

A esse propósito não deixará de se estranhar que a própria autora que invoca não ter assinado nem passado a procuração em causa não tenha demandado os presentes autos também contra o advogado que autentica a aludida procuração.

Mais, nem tão pouco o arrola como testemunha!

Cremos pois que não poderia o tribunal a quo ter considerado como provado que a autora não havia constituído o 1º réu seu procurador, nem lhe haveria conferido os poderes constantes na aludida procuração porquanto tal prova não foi efectuada e não decorre necessária e exclusivamente da circunstância e conclusões periciais quanto à assinatura.

Também não se aceite que tal prova tenha decorrido de forma indirecta da prova testemunhal produzida, sendo que a motivação é nesta parte algo confusa porquanto o próprio tribunal concluí que a testemunha SV referiu que “sabia que a autora estava na disposição de vender o imóvel”.

Ora, esta testemunha referiu nada saber quanto ao contrato celebrado entre o 1º réu e a 2ª ré, negócio este onde foi utilizada a aludida procuração, apenas sabendo que a autora pretendia vender o imóvel.

Pelo exposto, deste depoimento nenhuma conclusão se poderia ter retirado quanto à autenticidade da procuração.

Mais, no limite o depoimento desta testemunha mais sustentava a convicção que o filho da autora (réu B) diligenciava sozinho pela venda do imóvel e em representação da sua mãe (autora), que teria deixado de gostar de lá ir.

No que concerne aos depoimentos de parte, em nada esclareceram esta questão, isto dito sem prejuízo de se tratarem de depoimentos e não declarações de parte.

Conforme decorre da lei (art. 454/1 do CPC), o depoimento de parte só pode recair sobre factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento, por só assim se justificar a especial eficácia probatória que a lei lhe atribui.

Sucede que, neste aspecto os depoimentos de parte nenhuma informação trouxeram aos autos:

O réu B, em depoimento gravado em 13/09/2016, 10:41, declarou o seguinte sobre esta matéria:

(Minuto 12:40 a 13:03)
Juiz: “E nesse dia em que foi feita a escritura do terreno quem é que foi à escritura do terreno?”
B: “Eu”
Juiz: “E a senhora sua mãe?”
B: “Não.”
Juiz: “Mas não foi porque então como é que foi feita a escritura?”
B: “Porque o Sr. DJ e o Sr. SN conseguiram uma procuração”

(minutos 14:20 a 15:08)
Juiz: “Esteve presente nesta data (escritura) e declarou vender à C?”
B: “Na base do negócio que tínhamos combinado”
Juiz: “Sim, na qualidade de comproprietário e na qualidade de procurador da sua mãe. Portanto isto o senhor fez?”
B: “Foi, sim senhora”
Juiz: “Também existia uma procuração que foi na altura arquivada. Foi exibida uma procuração’”
B: “Foi, foi exibida uma procuração nessa data.”

E o legal representante da ré C, SN, em depoimento gravado em 13/09/2016, 11:24, declarou o seguinte sobre esta matéria

(minutos 05:17 a 06:14)
Juiz: “No acto da escritura tendo o Sr. B outorgado na qualidade de legal… de procurador da mãe – peço desculpa – de procurador da mãe, da Dona A, quem é que apresentou esta procuração, quem é que estava munido com a procuração para que o negócio se pudesse concretizar?”
SN: “O Sr. B, aliás, neste caso nem era o Sr. B, era o notário, já estava no notário”
(…)
Juiz: “E já lá estava (a procuração)?”
SN: “Sim, já lá estava.”
Juiz: “Estava arquivada?”
SN: “Sim, não, já lá estava. Havia documentos que era para levar, porque havia situações para tratar, nós mandámos os nossos e depois o Sr. B tratou das coisas dele e mandou para lá directamente. E isso foi tudo validado, foi no notário, não foi nada connosco.”
Juiz: Portanto o que eu lhe pergunto é, uma vez mais, quem é que levou a procuração, foi o Sr. B?”
SN: “Sim, foi o Sr. B”

Ora, dos aludidos depoimentos resulta desde logo uma evidente contradição, a qual não se viu esclarecida, desconhecendo-se, por conseguinte, quem faltou à verdade.

E atenta toda a ambiguidade e discrepância nos factos nos presentes autos apresentados nos aludidos depoimentos, sobejam dúvidas sobre quem e quando falou com verdade, sendo certo que B – com evidente interesse na causa - pretendeu convencer que falava a verdade pese embora dizendo que não o havia feito em sede de escritura pública.

Pelo exposto, tais depoimentos não foram aptos a fazer prova sobre qualquer circunstancialismo, nem, nomeadamente, sobre o facto considerado provado sob 8.

Acresce que a testemunha SV também não esclareceu tais factos sendo que logo no início do seu depoimento referiu (13.09.2016, 11:49) declarou o seguinte sobre esta matéria:

(minutos 02:47 a 03:20)
Mandatária: “Relativamente então aqui a esta compra que foi feita pela C directamente ao Sr. B tem conhecimento de alguma coisa?”
SV: “Rigorosamente nada.”
Mandatária: “Então a partir de quando é que o senhor tem conhecimento deste negócio?”
SV: “Tenho conhecimento deste negócio quando a C, portanto, coloca na imobiliária N, portanto, o imóvel para venda.”

Ou seja, a testemunha nada conhecia quanto a este negócio nem a procuração em causa.

Aliás, e conforme consta da sentença, o que a testemunha conhecia era a intenção de a autora vender o imóvel e que era o seu filho que tratava destas coisas.

Pelo que, o aludido depoimento em nada contribui para a prova do facto sob 8.

Acresce que, da prova testemunhal e depoimentos de parte o que resultou foi que, de facto, o réu B já promovia diligências com vista à venda do imóvel em nome próprio e em representação da sua mãe (autora), independentemente de tais poderes lhe terem sido ou não conferidos por escrito ou pela procuração em causa nos presentes autos.

Reiteramos pois, conforme supra, que não poderia o tribunal ter considerado como provado este facto, uma vez que tal ónus cabia à autora e esta não logrou demonstrá-lo, em momento algo tendo sido feita prova sobre se a autora constitui ou não o seu filho procurador e se conferiu os poderes constantes na procuração em causa.

Não se compreende nem tal resulta da prova apresentada a convicção formada pelo tribunal que a autora não tomou conhecimento da celebração do contrato, pese embora admita a sentença que também não tenha podido concluir quando e em que circunstâncias teria a autora tomado conhecimento do contrato (?).

Não se poderá ainda deixar de estranhar todo o circunstancialismo inerente aos presentes autos, nomeadamente que a autora e o 1º réu, que habitam (e já habitavam em 2011) na mesma morada, são mãe e filho, tendo este conhecimento da aludida procuração datada de Junho de 2011, com a qual representou a sua mãe e interveio na escritura da venda celebrada entre o próprio e a 2ª ré datada de 29/06/2011, nada tenham promovido, tendo os presentes autos apenas dado entrada em 11/03/2014 (após a venda à ré D em Setembro de 2013)!

Tal estranheza mais se realça quando foi demonstrado que o imóvel em causa, após a venda à ré C e antes da venda à ré D, esteve publicitado para venda durante vários meses, com placa no local (depoimento SV minutos 04:25 a 04:50).

Por tudo o exposto, entende a ré D que nos presentes autos recaía sobre a autora o ónus de demonstrar que efectivamente não havia atribuído os poderes de representação constantes da aludida procuração, ónus esse que não foi cumprido.

Efectivamente a prova para o efeito produzida não foi esclarecedora suscitando inúmeras dúvidas que deveriam ter promovido convicção diversa ou no limite, resolver-se contra a parte a quem aproveitavam (art. 414 do CPC).

Sendo certo que tal como supra referido, não se poderia desvalorizar a procuração enquanto documento autêntico, nomeadamente sem se demandar ou ouvir a autoridade que promoveu a autenticação deste documento.”

Mais abaixo, a propósito da discussão sobre se está ou não provada a não apresentação de queixa crime pela autora, a ré, que entende que está provada a não apresentação de queixa, diz que:

tal facto, quando aliado à circunstância de não ter sido demandado ou arrolado o advogado que procedeu à autenticação da procuração mais reforça o entendimento supra defendido que tais circunstâncias suscitam dúvidas que têm que funcionar contra a autora, atento o ónus de prova, levando a concluir pela ausência de prova do facto sob 8.

Decidindo:

Os factos sob 8, como resulta da própria argumentação da ré D, devem ser lidos como reportados à procuração em causa nos autos e não de modo genérico, como se dissessem que a autora nunca constituiu o filho como procurador.

Lidos deste modo restrito, o correcto, os factos sob 8 são apenas uma conclusão lógica [a sentença recorrida, ver-se-á mais à frente, fala expressamente em ilação] dos factos dados como provados sob 7: não sendo as assinaturas, que constam da procuração e do termo de autenticação da procuração, da autora, não pode deixar de se concluir que a autora não constituiu, através da procuração em causa nos autos, o réu B como seu procurador, nem lhe atribuiu os poderes que ai são referidos, pois era esse documento que, no caso, atribuía os poderes invocados na escritura de compra e venda do imóvel à ré C.

A ré D está certa ao invocar o art. 38/2 do DL 76-A/2006 que dá aos advogados, entre outros, o poder de reconhecer autenticidade a um documento particular, como se tais actos tivessem sido realizados com intervenção notarial.

A autenticação em causa, feita por um advogado, trata-se de um reconhecimento presencial apenas da assinatura e ela, a autenticação, trata-se de um documento autêntico que goza da força probatória destes documentos (Lebre de Freitas, A falsidade no direito probatório, Almedina, 1984, págs. 54 e 64), isto é, faz prova plena dos factos que refere como praticados pelo advogado, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções desse advogado (art. 371 do CC): ou seja, que ele verificou a identidade da autora e que explicou o conteúdo da procuração, bem como que a autora fez a assinatura na presença do advogado, com exibição do bilhete de identidade e que disse ficar ciente e que a mesma corresponde à verdade.

A sequência da argumentação da ré também está, no essencial correcta, embora as normas a invocar sejam ainda outras, isto é, sejam as do art. 375 do CC: “1. Se estiverem reconhecidas presencialmente, nos termos das leis notariais, a letra e a assinatura do documento, ou só a assinatura, têm-se por verdadeiras. 2. Se a parte contra quem o documento é apresentado arguir a falsidade do reconhecimento presencial da letra e da assinatura, ou só da assinatura, a ela incumbe a prova dessa falsidade.”

Ou seja, perante este reconhecimento presencial da assinatura, constante da autenticação, à autora incumbia provar a falsidade do mesmo, mostrando não ser verdadeiro o reconhecimento (arts. 347 e 372, ambos do CC).

Ora, a autora fez essa prova, como resulta dos factos provados sob 7: se a assinatura não é dela, o reconhecimento não pode ser verdadeiro. A ré, não pondo em causa os factos provados sob 7, não pode deixar de aceitar esta conclusão (contida em 8).

Quanto à hipótese posta pela ré D do reconhecimento não ser falso, apesar de a assinatura não ser da autora, é uma construção que não afastaria a falsidade do reconhecimento que não diria nada do que de facto se tinha passado. E aos autos não interessa o que poderia ter acontecido, o que interessa é o que aconteceu realmente.

Se o documento foi assinado por outrem que não a autora e o reconhecimento diz que foi assinado, na presença do advogado autenticador, pela autora, temos a prova quer da falsidade do reconhecimento quer de que o documento particular não é genuíno, isto é, não é da autoria da autora. Está assim afastada a força probatória quer da autenticação, quer do documento particular (arts. 371, 372, 346, 376 e 377, todos do CC). Sendo que a procuração tinha de ser celebrada por escritura pública ou por documento particular autenticado, necessariamente assinado (arts. 262/2 e 875, ambos do CC).

Neste sentido, veja-se a construção feita no ac. do STJ de 04/06/2013, proc. 4117/06.0TVLSB.L1, numa situação factual parecida com a dos autos a nível da assinatura da procuração: a procuração não pode ser havida como idónea a operar a vinculação da autora porque, sendo certo que foi outorgada através de escritura pública, a qual, à partida e em princípio, deveria gozar da força probatória plena que lhe é conferida, nos termos conjugados do preceituado nos arts. 363/2 e 371/1 do CC, no entanto, emergia de tal escritura pública que a identidade do signatário tinha sido verificada mediante conhecimento pessoal do notário que presidiu ao acto, o que não podia ter acontecido porque, dos factos provados, resultava que a assinatura afinal não tinha sido aposta pelo seu punho… Ou seja, tal assinatura foi aposta por terceira pessoa, sendo, pois, falsificada (art. 372/2, 1ª parte, do CC), uma vez que quem, com base no invocado conhecimento pessoal, era suposto estar (e foi dado como estando) presente e ter directa intervenção no acto, afinal estava ausente; assim ilidida a força probatória da questionada escritura (art. 372/1 do CC), claramente se evidencia que aquele signatário não teve qualquer intervenção na outorga da mesma.

Quanto ao facto de a autora não ter intentado a acção também contra o advogado autenticador, a verdade é que não o tinha de fazer, como se verá mais à frente, e tal não retira o valor da prova pericial que levou à prova dos factos sob 7 que a ré não pôs em causa.

Quanto ao facto de a autora não ter arrolado o referido advogado como testemunha, a ré não pode estar à espera que fosse a autora a produzir prova contra si própria; a autora fez a prova que tinha que ser feita, e tanto basta, isto é, da falsidade do reconhecimento presencial e da assinatura. Se a ré queria contrariar a prova pericial produzida a pedido da autora, ela é que não devia ter prescindido da prova testemunhal do advogado autenticador arrolado por si como testemunha (conforme decorre do declarado na acta de fl. 197 do processo em papel).

Visto que, como se disse, o facto 8 decorre da prova dos factos 7, não postos em causa pela ré, não interessa analisar o resto da fundamentação dada pela decisão recorrida, com apelo à prova pessoal e, portanto, a crítica que lhe faz a ré a este propósito. Nem as dúvidas que ela diz ter sobre o circunstancialismo inerente aos presentes autos.

Assim, conclui-se que nada há a alterar quanto a este ponto da matéria de facto.

*

Na decisão da matéria de facto considerou-se que nada se provou quanto ao concreto estado de conservação do edifício construído no imóvel nem quanto às quantias despendidas pela 3ª ré na execução de obras no imóvel.

A fundamentação desta decisão foi a seguinte: o tribunal decidiu nesse sentido dado que nenhuma prova, documental ou testemunhal, foi feita relativamente a tal matéria.

Contra isto a ré D diz o seguinte:

“Primeiramente, importa notar que a produção de prova estava limitada pelo objecto do litígio e temas de prova, tal como definidos pelo tribunal a quo.

Sem prejuízo, a 3ª ré remeteu com a contestação fotografias do imóvel que são bastante elucidativas das obras no mesmo executadas, sendo que tais documentos não foram impugnados e consequentemente aceites pelas partes.

Acresce que a ré D tinha à data 23 anos e conforme demonstrado foi o primeiro imóvel que comprou, de inteira boa fé (facto que jamais foi questionado e é pacificamente aceite), com toda a ingenuidade própria da idade, para aí começar a construir família com o seu namorado.

Testemunha AB, em depoimento gravado em 13.09.2016, 14:34, declarou o seguinte sobre esta matéria:

[…]

Da prova documental e testemunhal parece resultar evidente que bem andou o tribunal a considerar como facto provado que a ré D promoveu a execução de obras no imóvel.

Todavia, cremos que devia igualmente ter considerado provado que o edifício encontrava-se em estado de abandono, o terreno com mato alto e a casa com sinais de arrombamento e vandalização.

Acresce que quanto às obras efectuadas, de acordo com o depoimento da testemunha AB, embora não se tivesse apurado um valor concreto apurou-se que o mesmo foi superior a 20.000€. Ora, tais factos deveriam ter sido reflectidos na factualidade considerada como provada, até porque, conforme supra exposto, a prova encontrava-se bastante limitada pelo objecto do litígio e temas da prova, pelo que mal andou o tribunal a quo, nesta parte da decisão.

Mais, provada que estava a execução de obras e sendo facto notório que tal implica encargos económicos, sempre haveria lugar à promoção, pelo tribunal a quo, das diligências de prova necessárias atento o princípio do inquisitório ínsito no art. 411 do CPC.

Decidindo:

Visto que a ré não deduziu qualquer pedido reconvencional, os factos em causa não têm nenhum interesse para as questões a decidir, pelo que esta matéria não será apreciada.

*

Na decisão da matéria de facto considerou-se que nada se provou quanto à falta de iniciativa da autora na apresentação de queixas-crime, com fundamento em que nenhuma prova, documental ou testemunhal, foi feita relativamente a tal matéria.

A ré D entende que tal devia ter sido considerado provado, uma vez que o mesmo resulta a contrario. Ou seja, não se pode provar o que não existe, sendo que a autora jamais logrou alegar ou sequer demonstrar que havia apresentado qualquer queixa-crime, de onde necessariamente se deveria concluir que pela mesma não foi apresentado qualquer procedimento criminal, devendo tal facto ter sido considerado provado.

Decidindo:

Trata-se de um facto instrumental que nenhum interesse tem para a discussão das questões a decidir, pelo que não interessa estar a discutir se a afirmação está ou não provada.

*

Do recurso sobre matéria de direito

A fundamentação da sentença recorrida é a seguinte (numa síntese feita por este acórdão):

A sentença, face ao disposto nos arts. 375, n.ºs 1 e 2, 342, n.ºs 1 e 3, 372 e 377 do CC, considera que era à autora que incumbia provar que as assinaturas apostas na procuração e termo de autenticação junto aos autos não eram da sua autoria; que a autora logrou cumprir esse ónus; e que, não tendo sido as assinaturas feitas pelo punho da autora, não pode a entidade a quem é atribuída a autenticação ter verificado que elas foram feitas na sua presença, o que é o bastante para implicar um juízo de falsidade sobre a totalidade do documento. E, assim sendo, e ainda que por ilação, julgou provado que a autora não constitui seu procurador o réu B, nem lhe conferiu os poderes constantes na procuração em causa nos autos, que serviu para a celebração do contrato de compra e venda do imóvel que se presume integrava a meação da autora e a herança aberta por óbito do seu marido.

Não tendo o réu B – continua a sentença - poderes representativos da autora, porque a procuração era falsa, ele não pode ter outorgado a escritura de compra e venda em representação da autora. E assim sendo, face ao disposto no art. 268/1 do CC (= o negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado), a compra e venda em causa é ineficaz em relação à autora, proprietária do imóvel em causa.

Depois, a sentença recorrida, cita os ensinamentos de Inocêncio Galvão Telles (Manual dos Contratos em Geral, refundido e actualizado, 4ª ed, Coimbra Editora, pag. 378) e de Luís A. Carvalho Fernandes (Teoria Geral do Direito Civil II, fontes, conteúdo e garantia da relação jurídica 3ª ed., revista e actualizada – Universidade Católica Editora, pags. 216, 217 e 458), sobre a ineficácia jurídica, concluindo que, ao contrato celebrado pelo réu B, sendo insusceptível de produzir na esfera jurídica da autora os efeitos jurídicos típicos do contrato de compra e venda, nomeadamente, a transmissão do direito de propriedade do imóvel, ou de qualquer direito ideal que a autora tivesse sobre o mesmo, não lhe pode ser aplicado, contra o que as rés pretendem, o regime jurídico decorrente da redução do negócio e da nulidade da venda de bens alheios e tão pouco a inoponibilidade aos terceiros de boa-fé adquirentes de imóveis.

Em apoio do que antecede, a sentença recorrida invoca o ac. do STJ de 03/10/2013 [proc. 6690/07.6TBALM.L1.S1] que diz:

I. As normas relativas à venda de bens alheios – arts. 892 e segs. do CC – “apenas se aplicam à venda de coisa alheia como própria”, como expressamente determina o art. 904 do CC, o que significa que a venda de coisa alheia de que trata esta secção só abrange a hipótese de o vendedor alienar em nome próprio um direito de que outro é titular, sempre que aquele careça de legitimidade para realizar a venda.

II. Tendo-se provado que o vendedor procedeu à venda em nome alheio, ainda que sem poderes para o efeito, por virtude da falsidade de procuração, está afastada a hipótese de, por aplicação do regime previsto no art. 892, ser declarada a nulidade do negócio ajuizado e ordenada a restituição do alegadamente prestado, nos termos do art. 289/1 do CC.

III. Nos termos do art. 268/1 do CC, é ineficaz relativamente à autora a venda dum imóvel que lhe pertence realizada em seu nome pelo réu com base numa procuração falsa.”

E lembrando que o tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – art. 5/3 do CPC – julga a acção procedente, embora declarando a falsidade da procuração em vez da sua nulidade e a ineficácia da escritura em vez da sua nulidade.

Por fim, a sentença recorrida acrescenta que ainda que entendesse ser aplicável aos negócios dos autos o regime jurídico da nulidade, sempre a posição das rés não estaria protegida pelo regime decorrente do art. 291 do CC, dado que a cadeia de transmissões se iniciou por um negócio falso, sendo por isso irrelevante a data em que ocorreu o registo da acção.

E invoca neste sentido o ac. do STJ de 19/04/2016 [proc. 5800/12.6TBOER.L1-A.S1]:

I. A aplicação da norma contida no art. 291 do CC pressupõe a verificação dos seguintes requisitos: (i) declaração de nulidade ou anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis ou a bens móveis sujeitos a registo; (ii) aquisição onerosa; (iii) por um terceiro de boa fé; (iv) registo da aquisição a favor do terceiro; e (v) anterioridade do registo de aquisição em relação ao registo da acção de nulidade ou de anulação.

[…]

III. Inserto num sistema de registo meramente declarativo, o art. 291 do CC não protege o terceiro adquirente que beneficia dos requisitos do n.º 1, caso não tenha sido o verdadeiro proprietário a iniciar a cadeia de negócios nulos, como parte do primeiro negócio inválido, excluindo-se da sua aplicação o caso em que um sujeito obtém um registo falso e aliena o bem a um terceiro.

IV. Tendo a autora alegado que a cadeia de negócios inválidos foi iniciada por um negócio celebrado por um falso procurador, este elemento factual e jurídico é decisivo para se saber se funciona ou não a protecção do terceiro adquirente de boa fé, impondo-se a ampliação da matéria de facto, com inclusão deste, em ordem a constituir base suficiente para a matéria da decisão de direito.”

*

Diga-se desde já que, no essencial, se concorda com a solução da sentença recorrida.

Na discussão da impugnação da decisão da matéria de facto já se acompanhou, no que importa, a sentença recorrida quanto à falsidade da procuração; no mesmo sentido, quanto ao vício decorrente da procuração, pode ver-se o já referido ac. do STJ de 04/06/2013, proc. 4117/06.0TVLSB.L1, embora o trate antes como uma inexistência com base numa falsidade: depois de concluir que aquele que foi dado como signatário da procuração não teve qualquer intervenção na outorga da procuração, diz: ora essa intervenção era obrigatória; confrontamo-nos, assim, com a invocação/utilização duma “procuração” que tem de ser havida por inexistente, uma vez que nem chegou a ser praticado, por parte da autora, o acto jurídico unilateral e consubstanciador duma declaração recipienda ou receptícia em que aquela se analisa; e, inexistindo procuração outorgada pela autora a favor do falsus procurator, actuou aquele desprovido de poderes representativos desta, quando, na invocada qualidade de respectivo procurador, interveio na celebração da escritura pública que formalizou o negócio [registe-se desde já, com interesse para o que se dirá abaixo, que neste caso se considerou que o negócio celebrado com base na procuração inexistente, era ineficaz perante a autora por força do art. 268/1 do CC, sendo nulo por força do art. 892 do CC; também aqui não se pôs a questão necessidade de litisconsórcio passivo dos réus com o autenticador].

Passa-se a apreciar os argumentos em contrário das rés.

*


Da necessidade do litisconsórcio passivo

Contra a sentença recorrida começa a ré D por dizer:

24. Considerando que estamos perante um documento autêntico, com os efeitos daí decorrentes, a conclusão pela falsidade da procuração nos termos efectuados na presente sentença viola o quanto dispõem os arts 38 do DL 76-A/2006, e 342 e 371 do CC.

25. Desde logo a presente acção deveria ter sido movida contra a autoridade que promoveu a autenticação das assinaturas da procuração, o que não sucedeu, nem tendo, de resto, sido a autoridade ouvida.

26. Neste contexto, acompanhamos ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 10/05/2005, que asseverou que “(…) afigura-se-nos que para se pôr em causa a fé pública de um documento autêntico com base na sua falsidade imputável a autoridade pública tem de, a acção, ser proposta (também) contra a autoridade pública que presidiu ao acto (no caso o notário), já que o documento autêntico constitui prova plena das declarações prestadas pelos outorgantes perante a entidade documentadora, sendo impensável que uma acção deste tipo pudesse ser julgada sem que essa autoridade pública […] tivesse a possibilidade de defender-se.”

Depois, nas conclusões 27 a 31 a ré D volta a insistir nos argumentos relativos à falta de prova da inexistência/falsidade da procuração.

Decidindo

Para pôr em causa o reconhecimento presencial de uma assinatura constante de um documento particular autenticado, ou mais latamente, para pôr em causa um documento autêntico, não é necessário intentar uma acção também contra o autenticador, seja ele funcionário público ou não.

Como se verá mais abaixo, a primeira venda só podia ter sido celebrada tendo, do lado vendedor, o réu B em conjunto com a autora mãe. Assim sendo, o facto de o réu filho ter vendido, sozinho, um bem de um património comum, torna o contrato completamente ineficaz em relação ao património comum.

Ora, nesta situação, a autora podia ter pedido apenas a declaração da ineficácia das vendas do prédio efectuadas sem a sua participação, sem fazer qualquer referência ao título que teria sido invocado pelo vendedor, que, aliás, nem sequer era obrigada a saber qual era.

Seriam os réus, ou melhor, o filho e a ré C, a contraparte no contrato celebrado com o filho, a terem, no caso de quererem salvar essas vendas, de vir invocar a procuração com a qual o filho tinha feito a primeira.

Perante essa invocação a autora viria então arguir a falsidade da autenticação da assinatura da procuração ou só a falsidade da assinatura que provada implicaria a falsidade da autenticação.

Ora, nesta situação a lei não exige, nem faria muito sentido que exigisse (embora até 1995/96 o regime fosse esse – arts. 361/3 e 369/3 do CPC na versão anterior àquela reforma, e Lebre de Freitas, A falsidade, citado, págs. 212 e 213), que a arguição da falsidade da autenticação da procuração tivesse de ser oposta ao funcionário público, no caso ao advogado, que não era, nem tinha de ser parte na acção, e aos réus. Tal resulta inequívoco da eliminação daquelas regras processuais, provavelmente face às críticas que Lebre de Freitas lhes dirigia.

Porque é que a situação seria diferente só porque a autora resolveu, num estratégia de defesa antecipada, invocar desde logo a falsidade da procuração?

O acórdão do TRP (com o nº. 0522204) que a ré invoca está a tratar de um caso em que a autora decidiu dirigir a acção contra o autenticador do documento particular. Percebe-se que, se a autora quer dirigir, em litisconsórcio voluntário, a acção também contra o autenticador, tal lhe seja possível. Mas isso é diferente de exigir a necessidade do litisconsórcio. É certo que o ac. do TRP fala em litisconsórcio necessário, mas nessa parte não convence, pelo que se disse acima acerca do regime actual da arguição da falsidade: se a lei não exige que o incidente de arguição da falsidade seja dirigido contra o funcionário público, ou, no caso, contra o advogado, porque é que o exigiria numa acção?

Neste sentido, ver-se-ão, ao longo do texto que segue, vários outros casos jurisprudenciais em que não se exigiu este litisconsórcio (um já foi visto acima).

O resto da argumentação da ré é apenas a repetição do por ela já dito anteriormente com base na ideia de que não ficou provado o que consta do facto 8 que já foi afastada no lugar próprio.

*


Da alteração, de surpresa, da qualificação jurídica

Diz a ré D:

32. A autora na sua petição inicial requereu que a procuração fosse declarada nula bem como fosse declarada nula a escritura da venda efectuada à ré C, tendo sido com base nesse pedido que as rés se defenderam.

33. Embora seja uma forma da ineficácia, a nulidade tem um enquadramento jurídico e efeitos diferentes da ineficácia, pelo que, ao enquadrar e determinar a ineficácia dos contratos de compra e venda o tribunal a quo condenou em objecto diverso do pedido, o que implica a nulidade da sentença, nos termos e para efeitos do art. 615/1-e do CPC.

34. Assim, e como até exposto na sentença, são distintos os efeitos decorrentes da nulidade ou da simples ineficácia do negócio jurídico, pelo que, no limiar, sempre deveria ter sido concedido às partes a possibilidade de se pronunciarem, nos termos e para efeitos do disposto no art. 3/3 do CPC, o que não sucedeu.

E diz a 2ª ré C:

60. O pedido da autora é para que se declare nula a escritura de compra e venda a que se reportam os autos e não para que seja declarada ineficaz.

61. Poderá uma sentença enquadrar, fundamentar e condenar de forma diversa do peticionado pelas partes? Defendemos que não. Cumpre esclarecer [sic].

[…]

65. A acção é julgada procedente por provada com outros fundamentos jurídicos nos termos do art. 5/3 do CPC, mas o juiz a quo extravasou o alcance da sua aplicação ao decidir como decidiu.

Decidindo:

O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5/3 do CPC).

Assim, não importa a qualificação jurídica que as partes fazem dos factos e do pedido, o que importa é a qualificação jurídica que os factos e o pedido realmente merecem.

Pelo que, apesar de as partes falarem de ineficácia, se os factos impuserem a nulidade, o juiz pode reconfigurar juridicamente a acção, declarando a nulidade em vez da ineficácia, ou vice-versa.

Neste sentido, Antunes Varela, numa anotação ao acórdão do STJ de 13/12/1984, publicada na RLJ de Dezembro de 1989, nº 3785, págs. 243 a 256 (numa situação com algumas semelhanças com a dos autos; no entanto, note-se que no caso deste acórdão do STJ, não se punham problemas de representação, a cônjuge autora era meeira mas não herdeira, e os bens já tinham sido partilhados, ficando ela com o usufruto de metade do bem em causa, sendo o vendedor comproprietário dele, o que permitiu considerar a questão da redução do negócio), considerou que a alienação era nula (uma nulidade mista) nas relações entre vendedor e comprador, mas ineficaz em relação à autora e que se podia declarar ineficácia apesar de ter sido pedido a declaração de nulidade.

De resto, hoje esta solução está consagrada para um caso paralelo, por um acórdão de uniformização de jurisprudência, que utiliza os argumentos referidos por Antunes Varela; ou seja, o AUJ 3/2001 de 23/01/2001 [98B994]: "tendo o autor, em acção de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou anulação do acto jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (art. 616/1 do CC), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, tal como permite o art. 664 do CPC.”

E se se tratar só disso, isto é, de entender que aquilo que se impõe no caso é uma ineficácia e não uma nulidade, o juiz pode declarar aquela desde que as partes tenham tido a oportunidade de discutir aquilo que realmente estava em causa (para evitar as decisões-surpresa: art. 3/3 do CPC), como no caso realmente puderam fazer, pois que o que resulta da petição inicial é a vontade da autora em que os actos que tiveram por objecto (imediato ou mediato) o imóvel não tenham efeitos quanto a ela.

Não há nisto qualquer nulidade da sentença por decisão-surpresa, como aliás o afirmaram também vários outros acórdãos que vão ser citados.

*

Venda de bens alheios (art. 892 do CC)

Diz a ré D:

40. Conforme defendido em sede de contestação, a entender-se pela invalidade do contrato de compra e venda do imóvel à ré C e posteriormente por esta vendido à ré D, tal consubstanciaria, necessariamente, um contrato de compra e venda de bens alheios subsumível nos termos e para os efeitos do disposto no art. 892 do CC, pelo que mal andou a sentença ao não enquadrar enquanto tal.

41. Ora ao concluir, como na sentença, que a autora desconhecia e era alheia ao negócio de venda (à C) então necessariamente se deve concluir que o seu filho, réu B, sabendo que não tinha legitimidade para realizar a venda em representação da sua mãe (mas tão só em nome próprio enquanto comproprietário), ainda assim procedeu a essa venda, pelo que ao fazê-lo estava, na realidade, a proceder a uma venda de bens alheios.

42. A não se entender assim então seria a ré C quem procedia à venda de bens alheios.

43. A nulidade prevista para a venda de coisa alheia é uma nulidade atípica ou mista, pois não pode ser oposta pelo vendedor a comprador de boa-fé e entendendo-se que o proprietário legítimo tem direito a reaver como sua a coisa indevidamente vendida, confere o legislador direito ao comprador de boa-fé uma indemnização calculada nos termos gerais (vd. arts 898 e 564/1 do CC), onde serão englobados os prejuízos causados (danos emergentes) e os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (lucros cessantes) e tem igualmente direito a ser indemnizado das benfeitorias necessárias que haja feito, bem como ao valor das benfeitorias úteis realizadas, desde que não as possa levantar sem detrimento da coisa (art. 1273, n.ºs 1 e 2 do CC).

44. Sendo o vendedor garante solidário do pagamento das benfeitorias que devam ser reembolsadas pelo proprietário da coisa ao comprador de boa-fé (art. 901 do CC), ficando este sub-rogado em todos os direitos do comprador relativamente ao proprietário (vide art. 592/1 do CC) e impondo ao devedor, sempre que o comprador esteja de boa-fé, a obrigação de adquirir a propriedade da coisa ou o direito vendido para sanar a nulidade da venda (art. 897/11); o que consubstancia um verdadeiro dever legal a cargo do vendedor.

45. Crê-se pois que se impunha o enquadramento jurídico enquanto venda de bens alheios, nos termos do art. 892 do CC, e entendendo-se como um negócio nulo, bem como nulas as subsequentes transmissões do imóvel retratado nestes autos, e tal como requerido em sede de contestação, deveria ter sido determinada: a) a restituição de tudo quanto a ré D pagou pela aquisição do imóvel; b) tudo quanto a ré D suportou a título de benfeitorias; c) uma indemnização pela inconvenientes, transtornos, esforço, tempo despendido.

E diz a ré C:

26. O réu B, co-herdeiro, dispôs da sua parte tendo outorgado escritura de compra e venda do imóvel em causa.

27. Este contrato de compra e venda celebrado entre o réu B e a ré C é, quanto à sua quota-parte, válido.

28. Já quanto à quota-parte pertença da autora, a entender-se que o réu não tinha legitimidade para a representar, apenas quanto à sua parte se colocaria a falta de poderes para o acto.

29. Entendeu o tribunal a quo ser o regime de ineficácia o regime a aplicar considerando o negócio celebrado como ineficaz.

30. Discordamos em absoluto, dado que se uma das partes que outorgou a escritura tinha poderes de disposição para tal, sendo o negócio numa parte válido, parece-nos que poderia o tribunal a quo ter optado pela aplicação do regime da nulidade ou da anulabilidade, que são ambos regime menos gravosos.

Decidindo:

A sentença recorrida, seguindo o ac. do STJ de 2013, entende que o regime aplicável é o da representação sem poderes (art. 268 do CC), com exclusão do regime da venda de bens alheios (arts. 892 e segs do CC).

O ac. do STJ de 2013 diz respeito a um caso parecido com o dos autos, embora com uma diferença importante, que é o facto de se estar, do lado do vendedor, com uma única pessoa, agindo em alegada representação de outra, enquanto que, nos autos, o réu B está na venda por si e em representação da mãe.

O ac. do STJ conclui realmente que a falsidade da procuração (em relação à qual nem sequer se colocou a questão de ter que ser arguida contra o notário autenticador) tornava o negócio ineficaz (por força do art. 268/1 do CC) em relação à autora (e não nulo, por força do art. 892/1 do CC, como aí também era pedido).

Ou seja, sendo uma venda efectuada por um falso procurador do vendedor, ela é ineficaz em relação a este, por força do art. 268/1 do CC, e não nula por força do art. 892 do CC.

Neste sentido, o ac. do STJ de 2013, cita os seguintes autores (as citações são concretizadas agora, por este ac. do TRL):

Raul Ventura, Contrato de Compra e Venda no Código Civil, ROA, 1980, vol. II, pág. 311, que diz: “O Código recorta ainda a figura da venda de bens alheiros em dois outros preceitos: […] o art. 904, segundo o qual as normas dessa acção apenas se aplicam à venda de coisa alheia como própria. A venda de coisa alheia como alheia ou resulta de […] ou resulta da falta de atribuição dum poder de disposição, ou resulta de […] A venda feita, em nome do vendedor, por pessoa desprovida de poderes de representação ou com abuso de tais poderes cai sob os arts. 268 e 269 [do CC…].”

Manuel Carneiro da Frada, Compra e Venda, Direito das Obrigações, AAFDL (1991), 3º vol., pág. 51, logo a seguir a versar sobre a situação do art. 904, diz, na pág. 52: “O regime da venda de bens alheios não se aplica, afora as situações acabadas de referir, sempre que […].”

B Meneses Leitão, Direito das Obrigações, 3ª ed., vol. III, pág. 94: “de acordo com o disposto no art. 904, o regime da venda de bens alheios também não se aplica se o vendedor não procede à venda da coisa como própria mas a vende como alheia, mesmo que não tenha legitimi­dade para o fazer. Assim, se alguém vende um prédio em nome de outrem, sem poderes para o fazer (art. 268), ou abusa dos seus poderes de repre­sentação, no caso em que a outra parte conhecia ou devia conhecer o abuso (art. 269), o contrato é ineficaz em relação ao verdadeiro proprietário se este não o ratificar, e nunca produz efeitos em relação ao representante, por este não ser parte no negócio. Assim, o regime da venda de bens alheios, instituído nos arts. 892 e ss, apenas se poderá aplicar se for vendida como própria uma coisa alheia específica e presente, fora do âmbito das relações comerciais. Em todos os outros casos, não poderá ser aplicado o regime da venda de bens alheios.”

E mais à frente (pág. 95), a propósito da “ausência de legitimidade para a venda” acrescenta: “O segundo pressuposto da venda de bens alheios é que o vendedor careça de legitimidade para efectuar essa alienação. Em princípio, essa Legitimidade apenas é atribuída ao proprietário […]. Sendo a venda celebrada por um representante do proprietário, nos limites dos poderes que lhe compe­tem, é o proprietário considerado como o verdadeiro sujeito do negócio (art. 258), pelo que naturalmente a questão da aplicação do regime da venda de bens alheios não se colocará. Também se se vender uma coisa alheia no âmbito de uma representação sem poderes (art. 268), […], não haverá aplicação do regime da venda de bens alheios, cabendo ao com­prador a possibilidade de revogar ou rejeitar o negócio, enquanto o proprietário o não ratificar, salvo se no momento da celebração conhecia a falta de poderes do representante (art. 268/4) (neste sentido, Paulo Olavo Cunha, obra e local citados. Em sentido con­trário, Pedro Romano Martinez, Obrigações, pp. 110-111, nota (3) sustenta que o art. 268/4, estabelece um direito de exercício transitório, valendo, após a recusa de rati­ficação, o regime da venda de coisa alheia. Esta posição implica, porém, fazer interpreta­ção ab-rogante do art. 904, uma vez que o representante sem poderes não vende a coisa alheia como própria.”).

E Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, IV, pág. 93: Em anotação ao art. 904 este autor escreve: “A venda de coisa alheia, de que trata esta secção, só abrange a hipótese de o vendedor alienar em nome próprio um direito de que outro é titular.” Na pág. 85, em anotação ao art. 892 o autor tinha escrito: “o relevo dado a esta expressão [em nome próprio] serve para assinalar a distinção relativamente aos casos em que o bem é vendido em nome do titular, por parte de quem exerce, ou declara exercer, um poder de representação.

No mesmo sentido, para além destes autores, vejam-se ainda:

Paulo Olavo Cunha, Venda de bens alheios, ROA 1987/II/425: “Não será venda de bens alheios […] a venda de coisa alheia como alheia, em que o vendedor declare ao comprador não ser o proprietário da coisa, casos da representação legal ou voluntária (venda autorizada por conta e em nome do proprietário) […].” E mais à frente, em nota 73 da pág. 451: “À coisa alheia vendida como alheia não se aplica o regime constante dos arts. 892 e segs. (vd. art. 904) […]”

Diogo Bártolo, Venda de bens alheios, Estudos em Homenagem Ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, Vol. 4, Almedina, 2003, págs. 385/386:

“Segundo o artigo 904 do Código Civil, o regime da venda de bens alheios apenas se aplica à venda de coisa alheia corno própria, o que pressupõe que a alienação seja feita em nome do vendedor, visto que ninguém pode, logicamente, vender em nome alheio um bem cuja titularidade se arroga.

Com efeito, vender um bem em nome alheio equivale a reconhecer implicitamente que o bem não é próprio e que pertence à pessoa em nome de quem se celebra o negócio (mas já é possível, como veremos, vender em nome próprio um bem como alheio).

Também os artigos 258 e 268 do Código Civil apontam no sentido de que o regime da venda de bens alheios não se aplica àqueles casos em que o vendedor age em nome do proprietário da coisa, arrogando-se a qualidade de seu representante.

Com efeito, das duas uma:

a) Se o vendedor tiver efectivamente poderes de representação, tal venda será válida e eficaz, produzindo directamente os seus efeitos na esfera jurídica do representado, sendo este considerado como o verdadeiro sujeito do negócio (artigo 258 do Código Civil);

b) Se o vendedor não tiver poderes de representação, aplicar-se-á o disposto no artigo 268 do Código Civil sobre a representação sem poderes, sendo a venda ineficaz enquanto o proprietário não a ratificar, podendo o comprador revogar ou rejeitar o negócio enquanto ele não for ratificado, salvo se, no momento da conclusão, conhecia a falta de poderes do representante".

Concluímos, pois, que o regime da venda de bens alheios só se aplica às vendas celebradas em nome próprio [neste sentido, vide Paulo Cunha e Menezes Leitão, obras citadas], tal como se dizia expressamente, aliás, no artigo 30 do Projecto sobre Contratos Civis elabora por Galvão Telle (vide BMJ n.º 83,1959, p. 195) e tal como implicitamente resulta do disposto no art. 904.° do Código Civil.”

Em sentido contrário, este autor lembra a posição de Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações (Parte Especial). Contratos, 2.ª edição, 2001, pp. 110 e 111, nota 3, “que alega que depois de negada a ratificação vale o regime da venda de bens alheios porque a faculdade de revogação ou de rejeição é um direito de exercício transitório, não lhe parecendo aceitável que o comprador do bem fique em situação diversa consoante tenha negociado com quem indevidamente se arroga a titularidade do direito real sobre a coisa alienada ou com o falso representante do legítimo titular.”

E diz: “Pela nossa parte, não concordamos com esta posição porque contraria frontalmente o artigo 904 do CC e ­não tem qualquer apoio no artigo 268 do CC, preceito este que nos seus n.ºs vários números, quis criar um regime especial e diferenciado para a falta de legitimidade na representação.”

E mais à frente, a propósito da legitimidade, diz Diogo Bártolo, na nota 28 da pág. 398: “Se o vendedor vender em nome alheio, mas sem poderes de representação, já vimos que não se aplica o regime do art. 892, mas sim o do art 268.”

Yara Miranda, Venda de coisa alheia, Thémis, 11, 2005, pág. 117, diz: “Neste sentido, não há venda de coisa alheia, ou melhor, o regime desta não é aplicável, à venda feita pelo mandatário em nome e por conta do mandante (mandato com representação) […] visto que ele actua não em nome próprio, mas em nome do proprietário […]”

Invocando o ac. do STJ de 2013, veja-se também o ac. de 10/07/2014 do Tribunal de Segunda Instância da RAE de Macau, proc. nº 739/2010: “A declaração da falsidade da procuração não implica a nulidade dos negócios celebrados, mas sim a sua ineficácia em relação ao suposto representado”; o ac. tem uma declaração de voto (que não é um voto de vencido) de um dos juízes no sentido de que “a venda, para além de ser ineficaz, enferma da nulidade por se tratar materialmente da venda das coisas alheias, portanto nada impede que seja atendido o pedido formulado pelos autores ao abrigo do artigo [do CC de Macau que trata] da declaração da nulidade dessa venda que nunca foi ratificada por eles)” [http://www.court.gov.mo/sentence/pt-5440f6b36e31e.pdf]

Ainda no mesmo sentido do ac. do STJ, veja-se a grelha de correcção de um exame efectuado no CEJ em 25/02/2017, com a diferença de que se fala em inexistência da procuração e não em falsidade [http://www.cej.mj.pt/cej/forma-ingresso/fich.pdf/33_curso_docs/provas/33_Grelha_Civil_Prof_1cham.pdf]

Também sem passar pelo art. 892 do CC, segue o ac. do TRL de 29/01/2015, proc. 761/1998.L1.-2, num caso de falsidade do acto autenticador: concluiu pela nulidade das procurações, nos termos dos arts. 280 e 289 do CC e, por isso, pela falta de poderes representativos numa escritura de compra e venda de um imóvel, o que, por força do art. 268 do CC, se considerou ser causa de ineficácia desse negócio em relação à autora [o que podia ser declarado apesar de ter sido pedida a declaração de nulidade do contrato de compra e venda por efeito da nulidade das procurações, pois que a declaração daquele efeito constitui uma mera questão de direito, de que o tribunal conhece oficiosamente, sem estar sujeito à alegação as partes, como resultava do art. 664 do CPC na redacção anterior à reforma de 2013, e continua a resultar do art. 5/3 do CPC na redacção em vigor].

E o ac. do STJ de 22/03/2011, revista n.º 7158/03.5TBLRA.C1.S1, apenas com sumário publicado no sítio do STJ: considerou-se que “a sanção pela venda de bens em que o dono não intervém, nem nela consente, nem confirma o negócio, não é da nulidade, por não se tratar de venda de bens alheios – art. 892 do CC – mas a ineficácia em relação ao dono” [e que “o facto do demandante ter pedido a nulidade por considerar ter havido venda de coisa alheia, não impede o tribunal de qualificação jurídica diversa, considerando que o vício que afecta o negócio é a ineficácia, já que é livre no que respeita à qualificação jurídica – art. 664 do CPC – pelo que nenhuma nulidade vicia o acórdão – arts. 661/1 e 668/1-d do CPC].

Contra, existe a posição de Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações, parte especial, contratos, Almedina, 2000, que diz:

“II. Considera-se que há venda de bens alheios sempre que, na qualidade de vendedor, alguém celebra um contrato de compra e venda sem legitimidade, por não ser titular do direito a que se reporta a alienação ou por agir sem representação. É, no fundo, o negócio mediante o qual alguém «aliena, como próprio, um direito de outrem».

O vendedor não tem a titularidade do direito que pretende alienar se, por exemplo, não é o proprietário dos bens vendidos e, por conseguin­te, falta-lhe legitimidade para celebrar um contrato mediante o qual pre­tenda vender o direito de propriedade sobre tais bens. Também não tem legitimidade quem carece de poderes de representação; se alguém age em representação de outrem, mas sem lhe terem sido conferidos poderes de representação, estar-se-á perante uma situação de falta de legitimidade, abrangida na venda de bens alheios (com respeito à representação, cabe aludir ao facto de que esta pode ser sem poderes. nos termos dos arts. 268 e 471 CC. Em caso de representação sem poderes é conferido ao comprador, que desconhecia a falta de poderes do vendedor, a faculdade de rejeitar ou revogar o negócio (art. 268, n° 4 CC); regime este que não pode conduzir a solução diversa da estabelecida em sede de compra e venda de coisa alheia (contra Paulo Olavo Cunha, Venda de bens alheios, cit., p. 425). De facto, em termos indemni­zatórios, não parece aceitável que o comprador de um bem deva ficar em situação diversa em caso de ter negociado com quem indevidamente se arroga como titular do direito real sobre a coisa alienada ou com o falso representante do legítimo titular. Assim, quando no art. 268, n° 4 CC se fala na possibilidade de revogação ou rejeição do negócio, trata-se de um direito de exercício transitório, “Enquanto o negócio não for ratificado (...)”; depois de negada a ratificação vale o regime da compra e venda de coisa alheia.”

Do que antecede decorre que a maioria das pronúncias sobre o assunto vai no sentido da aplicação, no caso de alguém agir em nome de outrem sem poderes para o efeito, apenas do regime da falta de poderes do representante, isto é, do art. 268 do CC (sobre este, por exemplo, veja-se Pedro Pais de Vasconcelos, na Teoria geral de direito civil, vol. II, Almedina, 2002, págs. 214 a 220) e uma minoria (para além da posição de Romano Martinez, viu-se também o ac. do STJ de Junho de 2016 e a declaração de voto de um dos juízes do tribunal de 2ª instância da RAEM) pronuncia-se no sentido de se aplicarem os dois regimes (note-se, com efeito, que é nesse sentido, ao que se crê, a posição de Romano Martinez, como se vê quer da referência que já fazia ao art. 268 do CC, quer do que escreve a seguir na pág. 106: “[..U]m dos interessados [englobado na expressão qualquer interessado do art. 286 do CC] será o verdadeiro titular dos bens alineados que, evidentemente, pode e tem interesse em invocar a nulidade do negócio jurídico. Este interessado não é obrigado a arguir a nulidade, na medida em que, tendo a titularidade do direito real, através de uma acção de reivindicação ou, eventualmente, por via de uma acção restitutória da posse, poderia igualmente, fazer valer os seus direitos. Mas para além das acções de reivindicação e de restituição, pode ainda o titular do direito real invocar a nulidade do contrato.”)

Julga-se preferível seguir a posição maioritária, que tem de ser adaptada ao caso, já que, como referido acima, no caso dos autos o réu B não agiu só em representação de outrem, mas também por si próprio. Considera-se, assim, que o que sobreleva no caso – em que, como se verá, ele nada podia fazer sozinho – é o facto de o réu B ter, para poder proceder à venda, utilizado, de forma consciente ou inconsciente, não interessa à acção nem à autora, uma procuração falsa para poder agir também em nome de outrem. Ou seja, o que sobreleva é a representação sem poderes e por isso o regime do art. 268 do CC e não o regime da venda de bens alheios (e da sua respectiva nulidade, se fosse civil; mas já agora note-se que o primeiro contrato foi uma compra e venda comercial, pois que esta compra ocorreu para posterior revenda – art. 463/4 do Código Comercial – que seria um contrato válido – art. 467 do CCom – se não se pusessem de novo os problemas decorrentes da falsidade da procuração e da inerente falta dos poderes representativos que foram invocados).

Mas, posto isto, o que interessa aos autos, em que a autora é um titulares de um direito posto em causa pelos contratos – o que se fundamentará a seguir -, é que em relação a ela ninguém discute a ineficácia do contrato (mesmo que se veja a ineficácia como uma consequência ou uma forma da nulidade), que é um contrato entre terceiros, uma res inter alios acta.

Assim, estando em causa uma ineficácia, a autora como uma verdadeira titular de um dos direitos, podendo intentar uma acção declarativa de ineficácia, não tinha que se pronunciar sobre os contratos celebrados entre as partes (embora se tenha realmente pronunciado quanto a um deles, pedindo – conclui-se acima que mal – formalmente a declaração da sua nulidade), nem deduzir, contra alguns dos réus, pretensões decorrentes dos mesmos, a favor de outros réus. Não era à autora, nesta acção, que cabia pedir que a favor da ré D fosse condenada a ré C a restituir o valor por aquela pago na 2ª compra. Também não era, naturalmente, à autora que cabia fazer um pedido de condenação (dela própria, do réu B ou da ré C?), a favor da ré D, pelo valor pago por esta com eventuais benfeitorias que tivesse feito no imóvel. Isto teria de ter sido pedido pela ré, não podendo o tribunal pronunciar-se quanto a tal questão sem pedido (art. 608/2 do CPC). Ora, a ré não fez nenhum pedido, limitando-se apenas a, no interior do seu articulado de contestação, tecer considerações abstractas sobre as consequências dos negócios nulos, sem mesmo dizer, como e por quem é que elas teriam de ser suportadas.

No sentido da possibilidade de uma acção declarativa da ineficácia – e foi esta que a autora intentou (embora lhe chamasse nulidade), já que a autora não pediu a restituição do imóvel, não sendo por isso uma acção de reivindicação – veja-se uma outra anotação de Antunes Varela, a um acórdão do STJ, este de 16/06/1981, publicada na RLJ de Maio de 1983, n.º 3706, págs. 14 a 18, em que dá conta de que algumas acções que tendencialmente poderiam ser de reivindicação às vezes não o são, por não conterem o pedido de restituição da coisa, que é o que neste caso também acontece, em que a autora não formula tal pedido; tal não implica, no entanto, a inadmissibilidade da acção (até se pode dar o caso, que os factos dados como provados nesta acção não afastam, de a ré D não estar na posse do imóvel), o que se poderia congeminar, por falta de interesse em agir. No mesmo sentido da admissibilidade de uma acção declarativa de ineficácia, em vez de uma acção de reivindicação, veja-se Raul Ventura, ROA, ano 40, vol. II, págs. 307/308 (e também Nuno Manuel Pinto Oliveira, Contrato de compra e venda, Almedina, 2007, págs. 155/156).

*


Da suposta compropriedade

Diz a ré C:

16. O imóvel em causa, era pertença da autora e do réu B, por herança, sendo ambos co-herdeiros do falecido marido da primeira.

17. Pelo que, sendo ambos dos co-herdeiros qualquer um deles podia dispor livremente do bem na sua quota-parte.

18. Não carecendo o réu B de qualquer intervenção ou autorização da autora para a venda da sua quota-parte.

19. Bem como, não foi realizado qualquer acto de partilha entre estes.

20. Sendo portanto ambos comproprietários, do imóvel em causa.

21. Dispõe o art. 1305 do CC, o seguinte: “ O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostos.

22. Dispõem, os arts. 1403 e 1404 do CC, quanto à compropriedade e quanto à aplicação das regras da compropriedade a outras formas de comunhão de direitos.

23. Em concreto, dispõe o n.º 2 do art. 1403 do CC o seguinte: “Os direitos dos consortes ou comproprietários sobre a coisa comum são qualitativamente iguais, (…).

24. Pelo que, conforme as disposições legais aplicáveis, qualquer um dos comproprietários pode dispor livremente da coisa.

Decidindo:

De vários titulares de um sobre um património comum

A solução da ineficácia dos contratos celebrados em relação à autora tem o pressuposto de que a participação da autora no contrato em causa era necessário, como era de facto, para ser válido. Contra isto vem a ré C dizer que não é assim porque a autora e o réu seriam comproprietários.

Mas não é assim.

Veja-se:

Um casal que tenha bens comuns tem aquilo a que se chama um património comum, que é composto por um activo e por um passivo. Nenhum dos cônjuges é proprietário ou comproprietário de qualquer bem em concreto; são titulares de um único direito, direito uno, sem divisão de quotas, sobre um património (que inclui passivo). Não tem, pois, cada um deles, algum direito de que possa dispor (neste sentido, apenas por exemplo, dizem Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de direito da família, vol. I, 5ª edição, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, págs. 595 a 601, referindo-se ao texto do art. 1730 do CC: “não se trata de cada cônjuge ter um direito a metade de cada bem concreto do património comum. O direito a metade é direito ao valor de metade.” E isto porque: “os bens comuns constituem uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afectação, a lei concede certo grau de autonomia, e que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco, podendo dizer-se que os cônjuges são, os dois, titulares de único direito sobre ela” (agora na pág. 506); ou como dizem Antunes Varela e Pires de Lima, CC anotado, Vol. IV, 2.ª ed., Coimbra Editora, 1992: “[…] na compropriedade, embora haja um único direito de propriedade, há várias quotas ideais desse direito (do direito, não da coisa) na titularidade dos comproprietários, enquanto na propriedade colectiva (correspondente à chamada propriedade de mão comum do direito germânico), havendo também um único direito sobre o património, não há sequer uma divisão de quotas (ideais desse direito) entre os cônjuges, titulares do património. Não há quotas pertencentes a cada um dos cônjuges, porque o património comum pertence em bloco a ambos eles. É, hoc sensu, uma propriedade comum do casal, uma propriedade colectiva. Os cônjuges são titulares de um único direito e de um direito uno.”

Quando um dos cônjuges falece esse património comum não desaparece, antes permanece até à partilha dos bens comuns. E até lá não passa a ser uma compropriedade. Tem uma natureza e regime distintos da comunhão conjugal, mas semelhante a uma comunhão hereditária. Ou seja, embora, por exemplo, os seus titulares passem a ser o cônjuge sobrevivo e os herdeiros do de cuius e possam dispor da sua meação, continuam, tal como na comunhão hereditária, a não pode dispor de metade de cada um dos bens em concreto, pois que antes da partilha não se sabe com que bens será preenchida a meação do cônjuge sobrevivo e a meação/herança do cônjuge falecido (parafraseou-se Cristiana M. Araújo Dias, Do regime da responsabilidade por dívidas dos cônjuges…, Coimbra Editora, 2009, págs. 919 a 924).

É que, também na herança existe um património autónomo “em que o que existe no património de cada herdeiro é um direito que se refere a um conjunto patrimonial no seu todo [o qual, de resto, compreende elementos activos e passivos] e não a qualquer direito, mesmo a título de quota, sobre bens determinados do conjunto.” (Luís A. Carvalho Fernandes, Lições, págs. 307 a 311, este autor considera que a herança tem apenas afinidades com a propriedade colectiva ou elementos que a aproximam desta; o parenteses recto é de Carvalho Fernandes; considerando-a uma propriedade colectiva ou de mão comum, veja-se por exemplo o artigo de J. Martins da Fonseca, Herança indivisa, Sua natureza jurídica, Responsabilidade dos herdeiros pelas dívidas da herança, publicado na ROA 1986/II, págs. 567 a 587).

Assim sendo, com o falecimento de um dos cônjuges o património comum terá de ser dividido por dois (arts. 1730, 1688 e 1689, todos do CC) de modo a que uma das metades constitua a meação/herança do falecido e a outra metade a meação do sobrevivo. Depois, a herança do falecido tem de ser partilhada entre os seus herdeiros. Quer isto dizer que à morte de um dos cônjuges, o outro cônjuge e os herdeiros do falecido (entre os quais estão incluído o cônjuge) passam a ser titulares, cada um deles, de um direito sobre um património comum, composto de uma meação e de uma herança (daí que o art. 2087/1 do CC diga, quanto aos bens sujeitos à administração do cabeça-de-casal, que este administra os bens próprios do falecido e, tendo este sido casado em regime de comunhão, os bens comuns do casal). O que é o mesmo que dizer que nenhum deles (meeiro e herdeiros) tem qualquer parte dos bens em concreto que fazem parte daquele património. Assim, só todos em conjunto é que podem alienar um bem concreto que faça parte daquele património comum (art. 2091/1 do CC embora só se refira à herança). Se um dos herdeiros, sozinho, vender um bem daquele património essa venda é ineficaz em relação a esse património e em relação aos outros herdeiros e ao meeiro (mais à frente falar-se-á da excepção prevista no art. 2076 do CC; mas repare-se desde já, que, no caso, nem sequer se pode falar na venda de um bem da herança, porque o património comum não foi ainda partilhado e portanto não se sabe, sequer, que bens é que irão compor a herança, que até pode ficar sem nenhuns bens, sendo preenchida apenas com direito ao valor pecuniário correspondente à metade do património comum).

Para tudo isto, apenas por exemplo, veja-se Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de direito das sucessões, vol. II, 2ª edição, Coimbra Editora, 1990, págs. 125 a 128 e nota 767: “[…A] herança pode revestir certas particularidades que […] determinem a necessidade ulterior de partilhar as universalidades jurídicas de bens em causa, para efeitos de fixação dos bens que em concreto preencherão a respectiva quota hereditária ou meação. Acontece assim […também] nos casos em que o de cuius tiver sido casado no regime de comunhão […] e existirem bens comuns do casal, uma vez que a cessação das relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges (art. 1688 do CC) determina a partilha da comunhão de bens do casal (art. 1689 do CC), sendo os interesses do cônjuge falecido, no seu diálogo com os do outro cônjuge, assumidos pelos seus herdeiros […] ([…] na dissolução por morte do casamento com comunhão de bens, a lei integra dos dois institutos de partilha (cf. art. 2087/1 do CC) […]).

E mais à frente (págs. 154 a 157: “[…S]e o de cuius, no momento da abertura da sucessão, estiver casado no regime de comunhão […] há necessidade então de entrar no cálculo do activo da herança do de cuius, para além do valor dos seus ex-bens próprios, com o valor do seu ex-direito à meação (arts. 1730 e 1734 do CC) nos bens comuns do casal; bem como importa para cálculo do passivo de tal herança tomar em linha de conta os encargos próprios do de cuius e a sua metade (cfr. igualmente arts. 1730 e 1734 do CC) proporcional no valor dos encargos comuns. Para tanto, haverá que qualificar cada um dos bens dos cônjuges como próprios ou comuns, verificar as dívidas da responsabilidade de cada um dos cônjuges no do casal e apurar de eventuais compensações ou créditos entre os cônjuges. Apurar-se-á, então, para efeitos hereditários, uma massa activa, que abrange os bens próprios do de cuius e o direito à sua meação nos bens comuns, e uma massa passiva, composta por dívidas da sua exclusiva responsabilidade e pela metade proporcional nas dívidas da responsabilidade comum de ambos os cônjuges […]”

E ainda mais à frente (págs. 169/172): “Na partilha judicial […] quando haja cônjuge meeiro, o mapa (da partilha) consta de dois montes; e determinado que seja o do inventariado, organiza-se segundo mapa para a divisão dele pelos seus herdeiros. Ou seja, num primeiro mapa separam-se as meações entre os ex-cônjuges, preenchendo-se inclusivamente cada meação […] Na prossecução da partilha, e uma vez calculado o valor da massa hereditária com a separação das eventuais meações, há que determinar na universalidade da herança quais as fracções a que cada herdeiro tem direito e em que está onerado e há que fixar, consequentemente, o montante de cada quota hereditária em valor abstracto.”

Em suma, de novo: a autora, meeira e herdeira e o filho, herdeiro, não são comproprietários de bens em concreto, são sim titulares de direitos sobre um património comum, que tem um activo e um passivo, e de onde sairá a herança do pai do réu B. Esta não está ainda concretizada em quaisquer bens móveis ou imóveis concretos e poderá não vir a ser preenchida com um qualquer bem móvel ou imóvel. Quer isto dizer que não há ainda um qualquer bem determinado da herança, nem por isso direitos sobre ele. A alienação de um bem do património comum teria de ser feita por ambos (autora e réu) como titulares, cada um deles, de um direito sobre esse património. A alienação apenas por um deles é ineficaz em relação ao património autónomo.


*

Do regime do art. 291 do CC


Diz a ré C:

33. Aliás, se atendermos ao pedido da autora o regime a ter sido aplicado é o da nulidade.

34. Aplicando-se o regime da nulidade porque o mais ajustado e adequado ao caso em apreço nos autos, defendemos que a ré C deveria beneficiar do regime previsto no art. 291/2 do CC.

35. Porque adquiriu o imóvel de boa-fé e desconhecia que a procuração era falsa, por um lado, e por outro porque relativamente ao outorgante B o negócio é válido.

36. O tribunal a quo não aplica este regime, por entender que a cadeia de transmissões se iniciou por um negócio falso; discordamos porque a cadeia negocial não se iniciou com um negócio falso, pelo menos, na sua totalidade.

50 [faltam os números 37 a 49 inclusive]. Razão pela qual, deveria a mesma beneficiar deste regime porquanto se encontram preenchidos todos os seus requisitos de aplicação.

51. Dispõe o art. 291 do CC, o seguinte: “1. A declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis, ou a bens sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa-fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio. 2, Os direitos de terceiro não são, todavia, reconhecidos, se a acção for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio].

52. Conforme pugnamos, sendo o regime da nulidade o aplicável e sendo o negócio declarado nulo, respeitante a bem imóvel sujeito a registo, a título oneroso, e estando a ré C de boa-fé, o que se provou (facto 9).

53. O registo de aquisição da ré C, ocorreu em 13/09/2013.

54. É anterior à acção de nulidade que foi proposta pela autora em 11/03/2014.

55. O registo da acção ocorreu fora dos três anos posteriores à conclusão do negócio – data da escritura -, tendo sido concluído o negócio em 29/06/2011 e a acção apenas foi registada em 26/05/2015.

[…]

57. Pelo que, se deve concluir pela inoponibilidade da nulidade invocada pela autora à ré C.

58. Entendendo-se que o regime aplicável ao negócio que foi celebrado é o da nulidade, estando preenchidos os requisitos de aplicação do art. 291/2 do CC, deverão manter-se os registos de transmissão de propriedade do imóvel dos autos.

[…]

62 e 66. Em sede de audiência prévia, foi alegado pela ré Ca inoponibilidade dos eventuais efeitos decorrentes da nulidade em face de terceiros de boa-fé por falta do registo da acção dentro dos 3 anos subsequentes ao negócio - Escritura publica de compra e venda -.

63 e 66. Que mereceu despacho da Srª juíza a quo a remeter a sua decisão para mais tarde – entenda-se sentença -. O que não aconteceu porque na sentença o tribunal a quo entendeu que era irrelevante a sua apreciação. Existe omissão de pronúncia que não se deve negligenciar.

*

Do regime decorrente do art. 17/2 do Código do Registo Predial

Diz a ré D:

35. O art. 17/2 do CRP estabelece que: “A declaração de nulidade do registo não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé, se o registo dos correspondentes factos for anterior ao registo da acção de nulidade.”

36. Nos presentes autos, a venda à ré C foi efectuada por escritura pública datada de 29/06/2011; a compra pela ré D foi efectuada por escritura de 19/09/2013 e registada a 20/09/2013; a presente acção deu entrada em Março de 2014 mas apenas foi registada após o despacho de 08/01/2015.

37. A sentença ignora o citado art. 17/2, que visa salvaguardar os direitos de terceiro de boa fé por referência ao momento do registo, e assegurar confiança ao comércio jurídico, sob pena de os cidadãos verem gorada a confiança nas instituições bem como em constante perigo o direito (constitucional) à propriedade privada.

38. A ré confiou na aparência e nas presunções do registo predial e com base nas mesmas procedeu à compra do imóvel em questão, em plena boa fé, e convicta da normalidade e regularidade da propriedade do vendedor (ré C), fê-lo como o teria feito qualquer homem médio colocado na sua posição (em particular considerando que a ré tinha à data 23 anos e era a primeira vez que comprava um imóvel) e sem que houvesse qualquer motivo de suspeita sobre a titularidade da propriedade da ré C.

39. Considerando os fins subjacentes à norma citada, a entender-se que o negócio em causa (venda à ré C) padecia de algum vício e como tal deveria ser revogado, sempre se impunha a salvaguarda dos direitos da ré, enquanto terceira de boa fé que procedeu à compra e registo do imóvel previamente ao registo dos presentes autos, merecendo assim a protecção a que alude o 17/2 do CRP, o qual com a presente decisão é violado.

Decidindo:

Da inaplicabilidade dos arts. 291 e 2076 do CC e 17/2 do CRP

Tratando-se de um acto que tinha de ser praticado pelos dois titulares dos direitos sobre o património comum, o acto que um deles pratique, em nome dele próprio e do outro, com procuração falsa, é um acto ineficaz em relação ao património comum.

Assim, não lhe podem ser aplicados o regime dos arts. 291 do CC, 17 do CRP, e 2076 do CC [este, apesar de não ter sido invocado por nenhuma das rés é agora considerado ‘oficiosamente’]:

Em relação à hipótese do art. 291 do CC já o ac. do STJ de 2016, 5800/12.6TBOER.L1, citado pela sentença recorrida, o demonstrou: “[…E]sta protecção [a do art. 291] opera apenas quando o verdadeiro titular do direito dá origem à cadeia de negócios que vai culminar com a aquisição onerosa de terceiro adquirente de boa fé. A aquisição a non domino prevista no art. 291/1 do Código Civil não permite que, através da intervenção de um terceiro que obtenha um registo falso ou baseado em títulos falsos, fique sanada a nulidade negocial derivada da cadeia transmissiva assim gerada, pois tal solução seria equivalente a admitir a expropriação do verdadeiro titular que não terá meios para se aperceber da fraude por não ter praticado qualquer negócio jurídico que desse origem à cadeia de negócios inválidos” (Maria Clara Sottomayor, Invalidade e registo…ob. cit., p. 481 [ver também págs. 685 a 689, distinguindo este dos casos em que já houve uma procuração que foi declarada nula ou que se extinguiu ou em que o procurador excede os poderes]).

No mesmo sentido, já seguiu o ac. do TRC de 05/07/2011, 1600/09.9T2AVR-B.C1, embora para um caso paralelo: “a regra do art. 435/1 do CC, tal como as dos arts. 289/2 e 291 do CC, pressupõe que na origem da cadeia de negócios esteja um verdadeiro proprietário (neste sentido, para o caso do art. 291 do CC, veja-se Maria Clara Sottomayor, Invalidade e Registo, A Protecção do Terceiro Adquirente de Boa Fé, Almedina, Teses de Doutoramento, Junho de 2010, por exemplo nas págs. 481, na nota 1333, págs. 329 e 330, págs. 881 a 884 e conclusões 30, 37 a 39, pág. 923).

E também, por último, o ac. do TRL de 18/05/2017, proc. 1374/13.9TVLSB.L1-2: À venda de um [bem], ineficaz em relação ao seu proprietário […], não tem aplicação o disposto nos artigos 291/1 do CC e 17 do CRP. Sendo, como é, o sistema de registo […] meramente declarativo, o artigo 291 do CC não protege o adquirente, sempre que, não obstante este beneficie dos requisitos constantes do nº 1 do citado normativo, não haja sido o verdadeiro proprietário a iniciar a cadeia de negócios nulos, como é o caso de ter sido um sujeito que obtém um registo falso e aliena o bem a um terceiro.

Pelo que, tal como decidido pela sentença recorrida, a questão do registo da acção nos três anos não tem interesse para a decisão (e, sendo assim, a sentença pronunciou-se sobre a questão, não havendo omissão de pronúncia sobre ela, ao contrário do que pretende a ré C).

Isto é aplicável também à hipótese do art. 17/2 do CPR, porque “o registo predial […], não supre os vícios do título, ou seja, não supre outros vícios para além da falta de legitimidade do alienante, resultante de uma alienação ou oneração anterior não registada. Neste sentido, o registo não garante ao adquirente que o prédio pertence ao transmitente e não a outrem nem assegura a bondade dos títulos inscritos ou do ato de inscrição. A ser de outro modo, qualquer pessoa, mesmo que tivesse registado o respectivo facto constitutivo, poderia vir a ser expropriada dos seus bens, se alguém conseguisse registar um título falso e posteriormente alienasse o “pseudodireito” a terceiro de boa fé que registasse a aquisição, o que representaria uma insegurança demasiado grande nas posições jurídicas estáticas (cf. Maria Clara Sottomayor, Invalidade e registo, obra citada, p. 332)”. Ou como diz o referido acórdão do STJ de 2016: “[…A] prioridade da inscrição registal não protege o terceiro adquirente, se este adquirir de um sujeito que nunca foi proprietário do bem […]” E na pág. 734 da obra citada: “[...O] registo prévio não é condição suficiente para fazer funcionar a protecção concedida pelo art. 17/2 do CRP, pois, se o registo é falso ou foi obtido com títulos falsos, sem que tenha tido por base um negócio jurídico celebrado pelo verdadeiro titular, tal representa uma expropriação, não justificada, do verdadeiro proprietário, e contrária à protecção constitucional do direito de propriedade.”

Dito de outro modo: aquele que é titular de um direito sobre um património comum, não pode ver o seu direito posto em causa por factos de terceiro que dispõe de um bem daquele património actuando em nome daquele titular com base numa procuração falsa.

Quanto à hipótese do art. 2076 do CC:

Este último é a concretização daquele para uma situação especial, traduzindo-se num regime especial mais favorável ao terceiro adquirente (e por isso mais adequado ao caso dos autos do que o art. 291 do CC ou o art. 17/2 do CRP). “[É] um preceito especial que prevalece sobre a disposição genérica do art. 291 de aplicação subsidiária” Maria Clara Sottomayor, obra citada, págs. 309/310). Também aqui, embora o preceito não fale delas, seriam de aplicar as regras do registo, mas já não o prazo de 3 anos. Mas, sendo um caso especial do art. 291 do CC, ele também não protege um subadquirente que esteja no fim de uma cadeia de contratos que não teve origem num herdeiro actuando em nome próprio, mas antes na actuação de um dos titulares do património comum que actuou também em nome do outro mas com uma procuração falsa. Ou seja, sem qualquer intervenção do outro titular, sendo, em relação ao património comum de que o bem faz parte, um contrato ineficaz, uma res inter alios acta.

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Da não afectação da venda do réu B – eficácia parcial do contrato, por nulidade parcial, redução ou conversão

Diz a ré D:

47. Noutra perspectiva, conforme resulta da matéria provada e jamais esteve em litígio entre as partes, o imóvel em questão previamente às vendas em causa, tinha a sua propriedade compartilhada entre a autora e o réu B, tendo este outorgado a escritura de compra e venda de 28/06/2011 na qualidade de representante da sua mãe, autora, mas também em nome próprio (facto provado sob 6) e acordo com a aludida escritura terá recebido nesse acto a quantia de 46.000€ como contrapartida da venda do imóvel.

48. Ora, considerando a legitimidade das partes, a posição processual e os pedidos, necessariamente se deverá concluir que quanto à venda que o réu efectuou em nome próprio e referente à sua quota parte na compropriedade do imóvel, nenhum vício foi apontado, pelo que a considerar-se que a venda em nome da autora seria ineficaz tal jamais poderia ser extensível à venda efectuada pelo réu B.

49. De resto, a sentença apenas declara a ineficácia em relação à autora, pelo que a entender-se como tal apenas deveria ser determinado o cancelamento dos registos apenas em relação à autora e já não na sua totalidade e abrangendo também a quota parte propriedade do réu e por este devidamente vendida.

50. Admite-se que se trate de lapso, até porque uma decisão distinta ofende os mais basilares princípios de justiça, pelo que relativamente a este réu nenhum motivo deverá subsistir para que beneficie da aludida ineficácia da venda relativamente à autora.

51. De resto, a autora nenhum pedido faz neste sentido, nem suscita qualquer questão (nomeadamente de preferência que, de todo o modo, estaria prescrito por força do art. 1410 do Código Civil), relativamente à venda efectuada pelo réu em nome próprio, pelo que, ao ordenar o cancelamento dos registos e ao não salvaguardar a regularidade da venda efectuada pelo réu o tribunal a quo ou não fundamentou ou conheceu de questão que não deveria ter conhecido e não integrava o objecto do litígio.

52. Acresce que, conforme consta da aludida escritura de 2011, aquando da venda este réu recebeu, pela mesma, a quantia de 46.000€, sendo que nos presentes autos litiga com apoio judiciário, pelo que, caso se entendesse o cancelamento dos registos de propriedade na sua integralidade, este réu beneficiaria de um enriquecimento ilegítimo que dificilmente ressarciria.

53. Para além de que tal decisão violaria os princípios de eficácia e validade contratual, pondo em causa o tráfico jurídico e o princípio da boa fé contratual, violando nomeadamente o quanto dispõe os arts 405, 406 e 1403 do CC, tendo o réu vendido a sua parte, querendo vender e recebendo o preço que acordou receber.

54. Noutra perspectiva, caso assim não se entendesse, sempre se enquadraria tal situação no âmbito da conversão do negócio jurídico, aproveitando-se a parte do negócio que não foi afectada, salvaguardando-se o interesse geral na segurança das transacções efectivamente celebradas.

55. Nesse sentido subscrevemos ainda o ac. do TRP de 10/11/2005 [proc. 0534856, concretização feita por este acórdão do TRL], e a sua aplicação analógica aos presentes autos: “Dispõe o art. 293 que “O negócio nulo ou anulado pode converter-se num negócio de tipo ou conteúdo diferente, do qual contenha os requisitos essenciais de substância e de forma, quando o fim prosseguido pelas partes permita supor que elas o teriam querido, se tivessem previsto a invalidade”. A conversão dos negócios jurídicos não é privativa dos negócios nulos ou anulados, sendo aplicável também aos negócios ineficazes, pois que a razão de ser é a mesma. Assim, por aplicação do disposto no citado art. 293, a venda de coisa comum, feita por um dos comproprietários, ineficaz em relação aos outros, pode converter-se na venda da quota do vendedor, quando contiver os requisitos de substância e de forma desta venda e o fim prosseguido pelas partes permitir supor que elas a teriam querido, se tivessem previsto a ineficácia. Aqui não se faz apenas uma conversão, mas também uma redução do negócio jurídico, nos termos do art. 292, o qual determina que “A nulidade ou anulação parcial não determina a invalidade de todo o negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada.” Ou seja, primeiro converte-se a venda da coisa comum na venda da quota-parte ideal do vendedor nessa coisa; depois, reduz-se o contrato à venda dessa quota-parte, venda resultante da conversão. Como se tem entendido, a conversão e redução do negócio jurídico não são incompatíveis.”

56. Pelo que, no limite, caso se mantenha a decisão quanto à ineficácia das transmissões de propriedade relativamente à autora jamais tal poderá ser extensível ao réu B, devendo então a ré figurar como comproprietária (na quota parte deste réu).

E diz a ré C:

31. Em alternativa, poderia ter-se recorrido aos institutos da redução ou da conversão de negócios jurídicos, aproveitando-se assim a parte validamente celebrada.

32. Tendo em consideração que um dos outorgantes da escritura de compra e venda tinha e tem poderes de disposição sobre a herança tem uma eficácia parcial do negócio [sic]

Decidindo:

Esta argumentação das rés, já se viu, confunde a existência de vários titulares de direitos relativamente a um património com a compropriedade de bens.

O réu B e a autora sua mãe não eram comproprietários – e muito menos na proporção de ½ para cada um – do imóvel vendido, eram sim titulares de direitos sobre um património comum do qual fazia parte esse imóvel. Imóvel que pode nem sequer vir a fazer parte da herança do pai do réu B, mas sim vir a ser adjudicado à meação da autora. O réu B não podia, por isso, vender fosse o que fosse de tal imóvel, nem mesmo ¼ do mesmo.

Desta perspectiva as coisas já foram vistas acima.

Passam agora a considerar-se sobre a perspectiva da redução e conversão do negócio.

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Da inaplicabilidade dos arts. 292 e 293 do CC

O réu B fez, por si e como falso representante da autora, a venda de um prédio que faz parte de um património comum, que pode ter um activo e um passivo, de que ele e a sua mãe são os titulares.

Este acto não é nulo, como já se viu, mas ineficaz em relação à autora.

A acção tem por base um pedido dirigido pela autora, titular de um direito em relação ao qual as vendas efectuadas são ineficazes, contra os réus.

Não é uma acção que tenha por objecto a discussão dos contratos em causa, celebrados entre si pelos réus. A autora não podia dirigir nenhuma pretensão de restituição das prestações nos contratos a que é alheia e que não sabe em que é que de facto se traduziram.

Assim, não está em causa nesta acção a declaração de nulidade dos contratos, pelo que a questão da redução do negócio não se pode pôr: art. 292 do CC.

Para além disso, não se trata de algo que afecte só parte do contrato (como já se disse acima e resultará ainda do que se segue), mas o contrato no seu todo, de forma indivisível, o que seria outra razão para impedir o funcionamento do art. 292 do CC (a influência da divisibilidade é tratada, por exemplo, no ponto II da anotação ao art. 292 do CC, pág. 727, no Comentário ao CC, parte geral, da UCP/FD, 2014).

Vale o mesmo quanto à conversão, prevista no art. 293 do CC.

E, para além disso, pelo que já foi dito, o caso não diz respeito a uma venda que o réu B tenha feito de um bem de que fosse comproprietário, mas de uma venda, feita por si e em falsa representação da sua mãe, de um bem que pertencia a um património comum ainda não partilhado. Para se converter em algo, teria de ser naquilo que o réu B podia vender sozinho, isto é, na venda não de uma parte daquele bem, mas de uma quota-parte sobre um património que o bem integrava e que pode incluir outros bens e um passivo. Ora, não há nada nos factos provados que leve sequer a pensar que algum dos réus alguma vez teria querido comprar, em vez do imóvel, uma parte abstracta a um património comum indiviso, que pode ter bens e dívidas desconhecidas, não se sabe porque preço. Ou seja, não está – nem poderia estar, nesta acção – minimamente demonstrado (e era aos réus que, querendo a conversão, caberia a prova da convertibilidade do negócio, pois que a mesma não é de conhecimento oficioso: neste sentido, apenas por exemplo, veja-se Luís A. Carvalho Fernandes, pág. 732, em anotação ao art. 293 do Comentário ao CC citado) que os contratos celebrados teriam os requisitos essenciais de substância e de forma daqueles em que se converteriam.

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Da nulidade da sentença por falta de pronúncia sobre questão que deveria conhecer – art. 615/1-d do CPC

Diz a ré D:

57. Por último a sentença determina a ineficácia do contrato de compra e venda lavrado no dia 29/06/2011 e ordena o cancelamento dos registos de transmissão do imóvel em causa sem se pronunciar sobre os demais efeitos entre as partes.

58. Ora conforme consta daquela primeira escritura, o réu B terá recebido por conta dessa venda 46.000€, tendo a ré D pago à ré C 49.000€, conforme escritura de 19/09/2013.

59. Impunha-se que a sentença, ao determinar a ineficácia do primeiro contrato e o cancelamento dos registos de transmissão, determinasse igualmente a devolução das quantias recebidas por cada parte no âmbito dos contratos de compra e venda; ao não fazê-lo, não só a sentença é nula por falta de pronúncia sobre questão que deveria conhecer (art. 615/1-d do CPC) como se perpetua um enriquecimento ilegítimo de todos os intervenientes a expensas da ré D.

60. Não se podendo desprezar a ré D, terceira de boa fé que é surpreendida com os presentes autos e com a declaração de ineficácia de um contrato que nunca conheceu nem nunca do mesmo fez parte, que fica evidentemente prejudicada, tendo procedido ao pagamento de 49.000€ por um imóvel que agora vê ser retirado da sua propriedade, bem como por todos os demais prejuízos do investimento económico (obras) e emocional que para si resultaram, para além dos demais encargos com registos prediais, impostos sobre o imóvel, entre muitos outros.

[…]

62. Ainda neste âmbito, igualmente foi omissa a sentença ao nada decidir quanto às obras realizadas no imóvel pela ré.

63. Acresce que para além de todos os demais intervenientes, a própria autora se vê, com a presente decisão, beneficiada com as benfeitorias realizadas no imóvel, sem que com as mesmas tenha sofrido o respectivo encargo, a expensas da ré.

64. Pelo que almejando-se a aproximação da verdade judicial à verdade material, impunha-se que fosse decidida tal questão, e determinada a devolução das quantias pagas pela ré D e ainda os encargos pela mesma suportados que implicam benfeitorias no imóvel, podendo o tribunal a quo: ao abrigo do princípio da verdade material e nos termos do disposto nos arts 5, 6, 411 e 607º do CPC, determinar a realização de diligências que entendesse necessárias ao esclarecimento dos factos; relegar o apuramento desses valores concretos para liquidação de sentença, tal como dispõe o art. 609/2 do CPC.

65. Pelo que, ao não o fazer, é a própria decisão geradora de uma situação de enriquecimento sem justa causa, tal como previsto no art. 473, impondo-se a obrigação de restituir tal como previsto no art. 480, ambos do CC.

Decidindo:

Esta argumentação já foi sendo objecto de apreciação, a propósito de outros argumentos.

Diga-se, por isso, agora, apenas, que o objecto da acção era, bem entendido, a falsidade da procuração e a ineficácia das vendas em relação à autora, sendo os contratos, em relação a esta, uma res inter alios acta, uma coisa entre terceiros. Pelo que o tribunal nunca poderia, perante o objecto da acção definido pela petição inicial, tratar das consequências da nulidade dos contratos celebrados entre os réus.

Estas terão que ser discutidas pelos réus entre si, eventualmente numa outra acção judicial, se não chegarem a acordo entre eles. Não faria sentido que, numa acção posta pela autora, alheia aos contratos e sem saber o que é que de facto foi ou não prestado, esta tivesse que estar a dirigir pretensões de restituição decorrentes da nulidade dos contratos para alguns dos réus contra outros dos réus.

Já quanto às benfeitorias realizadas pela ré D, ela poderia [processualmente – não se está a falar de um ponto de vista substantivo, porque esta já não é uma questão destes autos e o tribunal não se pode pronunciar sobre ela; repete-se que os direitos que a ré D tenha terão que ser investigados por ela e eventualmente discutidos numa outra acção judicial; é notório, no entanto, e por isso concorda-se com a ré nesse ponto, que ela ficará a ser, para já, aparentemente (o tribunal não sabe o que é que de facto ocorreu entre os vários réus) a única prejudicada com todos estes negócios e acção] ter dirigido contra a autora um pedido reconvencional, mas, como já referido, não o fez, pelo que o tribunal não se pode pronunciar sobre matéria que não passou a constituir um objecto do processo.

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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.

Custas dos recursos pelas respectivas recorrentes.

Lisboa, 29/06/2017

Pedro Martins

Lúcia Sousa

Magda Geraldes