Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1564/07-5
Relator: RIBEIRO CARDOSO
Descritores: SUBSTITUIÇÃO DE PENA DE PRISÃO
FALTA DE PAGAMENTO DA MULTA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/15/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1. O n.º 2 do art. 49.º do Código Penal não é aplicável no caso de não pagamento de multa que resultou da substituição de pena de prisão de curta duração.
2. No caso de não pagamento atempado da multa de substituição, apenas pode vir a ser aplicado o disposto no art. 49º nº 3 do Código Penal. A remissão efectuada pelo art. 44.º n.º2 do Código Penal não é feita para nenhum dos outros números do artigo remetido, nomeadamente para o n.º2, e cremos que essa falta de remissão é intencional, pois o legislador, perante as acérrimas críticas ao regime primitivo, que no n.º3 do art. 43.º mandava aplicar à multa de substituição o regime dos art. 46.º e 47.º, que correspondiam grosso modo, aos actuais art. 47.º e 49.º, quis modificar as coisas, determinando expressamente que lhe é correspondentemente aplicável o art. 47.º e o disposto no n.º3 do art. 49.º.
3. A partir do momento em que o tribunal - reconhecendo o incumprimento culposo do arguido, quando este não paga no prazo de que dispunha, nem apresenta qualquer justificação, quando notificado para o efeito - ordena a execução da prisão directamente imposta, a multa de substituição desaparece, pura e simplesmente. Deixa aquela multa de existir. Não há em simultâneo duas penas - prisão e multa - que o arguido possa cumprir, em alternativa, segundo a sua livre opção.
(sumariado e confidencializado pelo relator)
Decisão Texto Integral: Acordam, precedendo conferência, na 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I

1. Nos autos de processo sumário n.º 18/05.7TBNRD do Tribunal Judicial da comarca do Nordeste, o arguido J., melhor identificado nos autos, foi condenado, por sentença proferida em 10 de Fevereiro de 2005 e pela prática de um crime de injúria agravada, p. e p. pelos art. 181.º n.º1 e 184.º do Código Penal, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de €4,00, no total de €360,00, com 60 dias de prisão subsidiária, e pela prática de um crime de resistência e coacção, p. e p. pelo art. 347.º do Código Penal, na pena de 4 meses de prisão, substituída por 120 dias de multa, à razão diária de €4,00, num total de €480,00.

1.1 - Não tendo o arguido efectuado o pagamento das multas em causa ou requerido a substituição por prestação de trabalho, o senhor juiz, por despacho de 18 de Outubro de 2005, determinou que o arguido cumprisse as penas de 4 meses de prisão e de 60 (sessenta) dias de prisão subsidiária.

1.2 - Após a detenção do arguido, veio este, em 27 de Janeiro de 2006, interpor recurso para esta Relação pugnando pela revogação do despacho que converteu a pena de multa em prisão subsidiária e revogou a pena de substituição de multa, determinando o cumprimento da pena de prisão, tendo, então, efectuado o depósito da quantia correspondente às penas de multa. Requereu, em separado, na mesma data, a sua imediata libertação e “extinção do procedimento criminal”, face ao pagamento das multas (v.fls.99 a 107).

1.3 - O senhor juiz admitiu o recurso interposto pelo arguido e determinou a imediata restituição deste à liberdade (v.fls.111). E, pronunciando-se sobre o requerimento do arguido, julgou extinta a pena de 90 dias de multa em que o arguido foi condenado pela prática do crime de injúria agravada, relegando a apreciação da questão da extinção da pena relativa ao crime de resistência e coacção sobre funcionário para momento posterior ao conhecimento do recurso interposto pelo arguido.

1.4 - O recurso interposto pelo arguido veio a ser rejeitado, por acórdão desta Relação de 20 de Junho de 2006, por se ter entendido que o recurso era inadmissível por o despacho recorrido ser de mero expediente.

1.5 - O senhor juiz veio então a proferir o despacho constante de fls.161 e 162, com o seguinte teor:

[ “J. M., arguido nos presentes autos, foi condenado, por sentença proferida em 10/02/2005, pela prática de um crime de injúria agravada, p. e p. pelos arts. 181°, n.° l, 184°, do CP, e de uma crime de resistência e coacção, p. e p. pelo art. 347° do CP, nas penas, respectivamente, de 90 dias de multa, à razão diária de € 4,00, perfazendo a quantia total de € 360,00, e de 4 meses de prisão, substituída por 120 dias de multa, à razão diária de € 4,00, perfazendo a quantia total de € 480,00.

Em 17/10/2005, na sequência de não pagamento do arguido, foi a pena principal de multa convertida em 60 dias de prisão subsidiária e foi a pena de substituição de multa na pena de 4 meses de prisão.

Em 20/01/2006, o arguido foi detido para cumprimento das penas, tendo sido libertado em 28/01/2006, na sequência de recurso por si interposto do despacho que ordenou a emissão de mandados de detenção.

Em 27/01/2006, efectuou o arguido o depósito autónomo das quantias de € 840,00 e de € 178,00.

Em 30/01/2006, apresentou o requerimento de fls. 117 e ss., pugnando, em síntese, pela extinção do procedimento criminal em virtude daqueles pagamentos e alegando que isso não foi feito antes devido ao facto de residir nos EUA e de não ter tido conhecimento das respectivas guias.

A fls. 151 recaiu decisão sobre tal requerimento nos termos da qual foi declarada extinta a pena de 90 dias de multa, pelo cumprimento, e relegado para momento posterior à decisão do recurso interposto pelo arguido o conhecimento da questão do cumprimento da pena de 4 meses de prisão substituída por multa e convertida por não pagamento desta.

Em 20/06/2006, o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu acórdão rejeitando o recurso interposto pelo arguido, por inadmissibilidade do mesmo.

O Ministério Público promoveu a emissão de mandados de detenção do arguido para cumprimento da pena de prisão.

Importa apreciar, estando em causa a questão de saber qual o efeito do pagamento do arguido relativamente à pena de 4 meses de prisão substituída por 120 dias de multa, à razão diária de € 4,00, perfazendo a quantia total de € 480,00, entretanto convertida naquela por não pagamento.

Nos termos do disposto do art. 44°, n.° 2, do CP, se a multa de substituição da pena curta de prisão não for paga, o condenado cumpre a pena de prisão aplicada na sentença.

A segunda parte do preceito manda aplicar correspondentemente o disposto no n.°3 do art. 49°, o qual permite ao condenado provar que a razão do não pagamento lhe não é imputável, podendo, nesse caso, a execução da prisão subsidiária ser suspensa mediante o cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro.

Não remete, todavia, para o disposto no n.°2 do mesmo artigo, que permite ao condenado evitar a todo o tempo, total ou parcialmente, a execução da prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa em que foi condenado.

No caso do art. 44°, a pena de multa é principal e a de prisão subsidiária, e, no caso do art. 49°, da pena de prisão é principal e a de multa de substituição.

Contudo, para além disso, não vislumbro especiais razões para distinguir as duas multas criminais, sendo certo que, se a lei permite ao condenado não pagar quando prove que a falta lhe não é imputável, não fica muito claro porque é que lhe não permitiria evitar a execução da pena de prisão principal pagando a multa de substituição.

A redacção do art. 44°, n.°2, 2.ª parte, aparenta assim estar aquém do pretendido pelo legislador, o que dá lugar à sua interpretação extensiva, ao abrigo do disposto no art. 9°, n.º1 do CC, de forma a considerar-se aplicável ao presente caso o disposto no art. 49°, n.° 2, do CP.

Assim, determino que os € 480,00 que se encontram depositados à ordem dos presentes autos sejam usados para o pagamento da multa criminal em apreço. Aguarde transito.

Após cumprimento do presente despacho, apresente os autos, com termo de conclusão, para efeitos de prolação de decisão de extinção de pena”].

1.6 - Inconformado com o assim decidido, veio desta feita o Ministério Público dela interpor recurso, nos termos constantes de fls.167 a 174, pugnando para que seja revogado tal despacho e a sua substituição por outro que ordene o cumprimento pelo arguido da pena de 4 meses de prisão.

Extraiu da correspondente motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

“ 1.ª -Por despacho de 17 de Outubro de 2006 (fls.161 e 162), o Meritíssimo Juiz do Tribunal "a quo" decidiu que o pagamento, efectuado por J.M., arguido nos presentes autos, da multa no valor de €480,00 em substituição de pena de prisão, entretanto convertida naquela pelo seu não pagamento tempestivo, era admissível e válido.

2.ª - Tal pagamento foi efectuado após decisão judicial transitada, em que foi determinado, o cumprimento da prisão efectiva de 4 meses.

3.ª - Tornada definitiva pelo trânsito em julgado, uma decisão judicial que não padece de erro, nulidade ou inexactidão material e que foi proferida no estrito cumprimento do disposto no art. 44°, n.º2 do C.P, ficou esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto àquela decisão.

4.ª - Em obediência ao caso julgado, formado quanto ao cumprimento da pena de prisão efectiva (substituta), não podia o Meritíssimo Juiz declarar tempestivo, admissível e válido o pagamento da multa (substituída).

5.ª - Ao fazê-lo violou o disposto no art. 666° do C.P.C, aplicável "ex vi" art. 4° do C.P.P.
6.ª - De acordo com o disposto no art. 44°, n.º1 do C.P, a pena de prisão aplicada em medida não superior a 6 meses é, em princípio, substituída por pena de multa.

7.ª - Por motivo não imputável ao condenado, à multa respeitante à pena substituída de prisão, aplica-se, única e exclusivamente, o regime do n° 3 do art. 49° do C.P. de acordo com o disposto no n° 2, do art. 44°, ambos do C.P.

8.ª - Ao aplicar, única e exclusivamente, à pena de substituição, o regime do art. 49°, n.ª3 do C.P., quis o legislador assinalar a diferença entre a condenação em pena de multa principal e a condenação em pena de prisão substituída por multa.
9.ª - Quis, ainda, realçar o regime diferente de incumprimento, num caso e noutro, assinalando a sua diferente espécie, assim as distinguindo.

10.ª - Onde legislador distinguiu as diferentes espécies de penas, não pode o Meritíssimo Juiz através de interpretação extensiva, ao abrigo do disposto no art.9°, n.º1 do CC, fazer equiparação entre uma pena principal de multa e uma pena de prisão substituída, de forma a considerar-se aplicável o disposto no art. 49°, n.°2 do CP.

11.ª - Ao fazê-lo, como fez, violou o disposto nos art°s 44°, n.°2 e 49°, n.°3, ambos do C.P.”

1.7 - O recurso foi admitido por despacho proferido em 30 de Novembro de 2006 (v.fls.175).

1.8 - O arguido não apresentou qualquer resposta.

1.9 - Nesta Relação, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer sobre o mérito do recurso:

O Ministério Público recorre do despacho de fls. 161 e 162 que julgou extinta, por pagamento da multa, a pena de substituição que fora imposta ao arguido, fazendo a aplicação do disposto no art. 49.° n.° 2 do C. Penal numa interpretação extensiva.

O recurso foi admitido pelo despacho de fls. 175, não tendo obtido resposta por parte do arguido.

Resultam como questões a apreciar a da aplicação da norma acima indicada, na interpretação efectuada, bem como se a decisão recorrida podia revogar decisão judicial anterior.

Vai-se acrescentar o seguinte:

O arguido só após ter sido detido veio a proceder ao pagamento da multa.

Interpôs então recurso do despacho que tinha determinado a prisão, o qual foi rejeitado por ter sido entendido que aquele despacho era de mero expediente, conforme consta em apenso.

Veio a requerer então também a extinção do procedimento criminal, demonstrando ter pago entretanto a multa, e invocando, entre outras razões, que não tinha procedido ao pagamento da multa por não ter recebido as respectivas guias por ter tido necessidade de se ausentar em trabalho para os E.U.A. e que era primário.

O conhecimento desse pedido com base na aplicação do disposto no art. 49.° n.° 2 do C.Penal, foi relegado para fase posterior ao conhecimento do recurso referido anteriormente, sendo na sequência que foi proferida a decisão recorrida.

A letra da lei do art. 44.° n.° 2 invocado no recurso interposto, faz supor que a razão esteja com o recorrente: "se a multa não for paga, o condenado cumpre a pena de prisão aplicada na sentença".

Contudo consta ainda de tal dispositivo: "É correspondentemente aplicável o disposto no n.° 3 do art. 49.°", no qual se prevê "se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da prisão subsidiária ser suspensa (...)".

Ora, crê-se que foi o que o recorrente fez, ou o que pelo menos invocou.

Tal a posição adoptada no acórdão da Relação do Porto de 3/4/02, proferido no recurso n° 448/02, no qual foi decidido que «o condenado pode, a todo o tempo, provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável e, assim, requerer que se suspenda a execução da prisão principal» - cfr. www.dgsi.pt.

De notar que a tal parece não impedir o trânsito em julgado do despacho que ordenou o cumprimento da pena de prisão, conforme se referiu no dito acórdão em que o arguido se encontrava já também no cumprimento da pena de prisão, o que é de entender ainda com base na remissão efectuada pelo disposto na parte final do dito art. 44.° n.°2 para o disposto no art. 49°, n.°3, do C. Penal.

Não parece ser ainda de concordar é com o fundamento do decidido quanto a não se vislumbrarem diferenças de regime entre a multa de substituição de pena curta de prisão e a mera pena de multa que, não paga, pode conduzir a prisão subsidiária, quando no primeiro caso a pena principal é ainda a de prisão, quando nesta a pena principal é já a de multa.

Concluindo, o recurso parece ser de proceder, embora seja de decidir, antes de mais, da questão da invocada impossibilidade de pagamento em tempo, pois que a multa está até já paga, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 47.° n.° 3 do C. Penal "correspondentemente aplicável", aplicável por força do previsto na parte final do art. 44.° n.°2 do C. Penal.”

1.10 – Cumprido o disposto no art. 417.º n.º2 do CPP, não foi apresentada qualquer resposta por parte do arguido.

1.11 – Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre decidir:

II
2. Como é amplamente sabido, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões e por elas limitado - veja-se o Ac. do S.T.J. de 19/4/94, C.J., Ano II, Tomo II, pg. 189 e ainda, entre muitos outros, os Ac. do S.T.J. de 29/2/96, proc. n.º 46740, de 21/4/97, proc. n.º 220/97, de 2/10/97, proc. n.º 686/97 e de 27/5/98, proc. n.º 423/98, no C.P.P. Anotado de Simas Santos e Leal Henriques. 2ª Ed., pag. 808, 795 e 797, respectivamente - isto sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

O recorrente (MP) aporta, na minuta recursória, em sede de conclusões a inadmissibilidade legal do despacho a declarar válido, tempestivo e admissível o pagamento da multa (substituída) após se ter determinado o cumprimento da pena de prisão, por violação de caso julgado.



3. Estamos perante um caso em que o arguido foi condenado numa curta pena de prisão que foi substituída por multa nos termos do art. 44 n.º 1 do Código Penal.

Como refere Maia Gonçalves, in Código Penal Português, Anotado e Comentado, 16.ª Edição, pág. 184, a pena de multa que substitui a pena de prisão nos termos daquele artigo é uma pena de substituição, por contraposição à pena principal de multa, de que tratam os artigos 47º a 49º.

Estas duas sanções constituem duas modalidades da pena de multa quer sob o ponto de vista político-criminal quer sob o ponto de vista dogmático, diferença donde resultam consequências político-jurídicas não totalmente coincidentes, nomeadamente no tocante à sua medida e incumprimento (cf. Figueiredo Dias, na RLJ, ano 125, págs. 163 a 165).

Quanto ao incumprimento verifica-se que a pena de substituição se não for paga o condenado terá que cumprir toda a pena de prisão em que ficou condenado, como se não tivesse havido substituição (art. 44.º nº 2 do CP), enquanto na pena principal de multa o condenado apenas cumprirá a pena de prisão subsidiária reduzida a dois terços (art. 49.º n.º 1 do CP).

No caso da pena principal de multa o condenado pode, a todo o tempo, evitar a execução da prisão subsidiária pagando a multa, nos termos do art. 49.º nº 2 do Código Penal, estatuindo até o art. 100.º n.º3 do CCJ que para efeitos do pagamento da multa à autoridade policial, quando o arguido assim o deseje e não possa, sem grave inconveniente, efectuar o pagamento no tribunal, os mandados de detenção deviam conter a indicação do montante da multa.

Será o art. 49.º n.º2 do CPP também aplicável no caso de pena de multa de substituição?

No Acórdão da Relação de Coimbra, de 29/9/98, in CJ, A XXIII, Tomo IV, pág. 58, entendeu-se que não. Só seria possível permitir o pagamento da multa para além do prazo legal se o condenado, dentro desse prazo, requeresse o seu alargamento.

Neste Aresto considerou-se «Não se prevendo em parte alguma do texto do art. 44.º, a possibilidade de o condenado poder proceder ao pagamento da multa fora de prazo, com isso evitando a execução da prisão executada em sentença, é evidente que se terá de concluir que o legislador pretendeu afastar tal possibilidade, tanto mais que ali previu, tão só, a possibilidade de aplicação do disposto no nº 3 do art. 49º, qual seja a possibilidade de suspensão da execução da prisão».

No caso em apreço, o condenado efectuou o pagamento das multas já depois de decorrido o prazo para o seu pagamento voluntário e de ter sido proferido despacho a ordenar o cumprimento das penas de prisão (principal e subsidiária) aplicadas na sentença e deste ter transitado em julgado.

No requerimento, apresentado depois de ter sido detido para efeitos de cumprimento das penas de prisão, principal e subsidiária, o arguido veio requerer a sua libertação e, certamente por lapso, “a extinção do procedimento criminal”, alegando, para o efeito, factos que, em seu entender, justificavam o não pagamento atempado da multa, a sua ausência nos EUA onde é emigrante há mais de 20 anos, o facto de as guias de pagamento das multas, assim como o despacho que lhe ordenou que informasse o tribunal da razão do seu não pagamento, terem sido enviadas para os EUA e devolvidas, por razões alheias à vontade do arguido, o facto deste ter grandes falhas ao nível do entendimento médio do homem comum, o facto de desconhecer o despacho que converteu a pena de multa em prisão subsidiária juntamente com a revogação da pena de substituição, acrescentando ainda que caso tenha que cumprir a pena de 4 meses de prisão perderá o emprego e a casa nos Estados Unidos da América e toda a sua vida será destruída irremediavelmente.


O senhor juiz do tribunal “a quo”, determinou a extinção da pena de multa decretada a título principal em virtude do pagamento efectuado. E, no despacho sob recurso, entendeu ser aplicável ao caso em apreço, por interpretação extensiva, o disposto no art. 49°, n.° 2, do Código Penal, tendo determinado que os € 480,00 que se encontram depositados à ordem dos autos fossem usados para o pagamento da multa criminal em apreço (multa de substituição). Relegou para momento posterior a declaração de extinção da pena de multa de substituição.

Tal decisão traz implícita a admissibilidade do pagamento da multa de substituição mesmo após a revogação dessa mesma pena de substituição.

Será de perfilhar o entendimento adoptado?

A substituição obrigatória (salvo se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de novos crimes) da pena de prisão inferior a 6 meses por multa (art. 44.º nº 1 do CP) tem como finalidade evitar os malefícios das curtas penas de prisão. Para atingir essa finalidade, tendo-se concluído na sentença pela não necessidade de prisão efectiva, justifica-se alguma “facilidade” no pagamento da multa.

Julgamos ser este o entendimento de Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português - As Consequências do crime”, pág. 570, onde escreve «....o propósito político-criminal de tornar em extrema ratio o cumprimento da prisão pode justificar atenuações de pura lógica: assim como....o incumprimento de condições da suspensão de execução da prisão não deve conduzir sem mais, à execução daquela, também aqui se podem invocar razões para que entre o incumprimento da multa de substituição e a execução da prisão se interponham vias de “diversão” análogas às cominadas para o incumprimento da pena pecuniária principal».

Nos autos de recurso não está agora em discussão se aquela hipótese de “não ser imputável ao condenado o pagamento atempado da multa”, a que alude o art. 49.º n.º3 do Código Penal, se verificou ou não. O que está em causa é antes o decidir se, esgotadas que tenham sido aquelas hipóteses, apreciação essa que incumbiria à primeira instância recorrida e agora não nos cumpre apreciar, o arguido poderia pagar a todo o tempo a multa aplicada como pena de substituição.

E aqui só podemos concluir que já não podia, pois não se lhe aplica o disposto no art. 49.º nº 1 e 2 do CP.

No caso de não pagamento atempado da multa de substituição, apenas se aplica o art. 49º nº 3 do Código Penal. A remissão efectuada pelo art. 44.º n.º2 do Código Penal não é feita para nenhum dos outros números do artigo remetido, nomeadamente para o n.º2, e cremos que essa falta de remissão é intencional, pois o legislador, perante as acérrimas críticas ao regime primitivo, que no n.º3 do art. 43.º mandava aplicar à multa de substituição o regime dos art. 46.º e 47.º, que correspondiam grosso modo, aos actuais art. 47.º e 49.º, quis modificar as coisas, determinando expressamente que lhe é correspondentemente aplicável o art. 47.º e o disposto no n.º3 do art. 49.º. Nada se disse quanto ao n.º2 ou relativamente aos demais números do art. 49.º .

O actual art. 44.º nº2 do CP, após a revisão conferida pelo DL 48/95 de 15 de Março, acolheu o entendimento crítico que o Prof. Figueiredo Dias vinha tendo sobre a regulamentação contida no art.43.º nº 3 do CP de 1982.

Com efeito, como expende o ilustre Professor, in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, a pag.369“a mesma conduz a resultados inadmissíveis» e «constitui um erro legislativo que acaba por pôr em causa a efectividade político-criminal da própria multa de substituição».


Já então defendia, de jure condendo, que: «É perfeitamente aceitável, v.g., que a multa de substituição possa ser paga em prestações ou com outras facilidades ou que, uma vez não paga sem culpa, se apliquem medidas de diversão da prisão - valendo aqui a analogia com a multa principal. Mas já se torna inaceitável que, uma vez não paga culposamente a multa de substituição, se não faça executar imediatamente a pena de prisão fixada na sentença. Por aparentemente contraditória que se antolhe, é sem dúvida esta a solução mais favorável à luta contra a prisão, por ser a que oferece a consistência e a seriedade indispensáveis à efectividade de todo o sistema das penas de substituição»

E na RLJ, ano 125º, pag.163, referindo-se à pena de multa de substituição, escreveu ainda o seguinte:

“A pena de multa de substituição não é pena principal. Não o é, de um ponto de vista político-criminal, dadas a particular intencionalidade e a específica teleologia que lhe preside: se bem que uma e outra se nutram do mesmo terreno político-criminal - o da reacção geral contra as penas privativas da liberdade no seu conjunto - a multa de substituição é pensada como meio de obstar, até ao limite, à aplicação das penas curtas de prisão e constitui, assim, específico instrumento de domínio da pequena criminalidade, de sorte que esta diversidade é já por si bastante para conferir autonomia à pena de multa de substituição. Mas se as duas penas são diversas do ponto de vista político-criminal, são-no também (e em consequência) do ponto de vista dogmático: a pena de multa é uma pena principal mas a pena de multa agora em exame é uma pena de substituição no seu mais lídimo sentido. Diferença esta donde resultam (ou onde radicam) como de resto se esperaria, consequências político-jurídicas do maior relevo, maxime em termos de medida de cumprimento da pena”.

Como se pode ver da acta n.º41, de 22.10.90, da Comissão de Revisão (Código Penal, Actas e Projecto da Comissão de Revisão, pag. 466), o texto do n.º2 do art. 44.º do Código Penal resulta do acolhimento da proposta feita pelo Prof. Figueiredo Dias, que manifestou o entendimento de que se a pena de substituição não é cumprida deve aplicar-se a pena de prisão fixada na sentença. Argumentando que “só conferindo efectividade à ameaça da prisão é que verdadeiramente se está a potenciar a aplicação da pena de substituição”.

A única conclusão lógica que se impõe, perante o elemento histórico e tendo em consideração os demais elementos interpretativos das normas jurídicas (art. 9.º do C. Civil) – o elemento sistemático, o teológico, o literal, etc. – é a de que o legislador quis manifestamente excluir a aplicação do referido n.º2 do art. 49.º.

Mas outras razões há que nos fazem pender para a mesma solução da inaplicabilidade da norma em causa.

Sendo a multa, no presente caso, uma pena de substituição, o seu incumprimento culposo conduz, como acontece em outras penas de substituição, à sua “revogação”, implicando o “renascimento” da pena de prisão directamente imposta e que aquela veio a substituir. É o que resulta expressamente do n.º 2 do art. 44.º: «se a multa não for paga, o condenado cumpre a pena de prisão aplicada na sentença».

A partir do momento em que o tribunal - reconhecendo o incumprimento culposo do arguido, quando este não paga no prazo de que dispunha, nem apresenta qualquer justificação, quando notificado para o efeito - ordena a execução da prisão directamente imposta, a multa de substituição desaparece, pura e simplesmente. Deixa aquela multa de existir. Não há em simultâneo duas penas - prisão e multa - que o arguido possa cumprir, em alternativa, segundo a sua livre opção.

Passa, então, a existir apenas uma única pena: a de prisão - cuja execução o tribunal ordena de imediato, salvo se for de optar pela suspensão da mesma, nos termos do n.º 3 do art. 49.º, pressupondo esta solução que o não pagamento não é imputável ao arguido.




Por outro lado, como já se reconheceu no acórdão desta mesma Relação proferido no âmbito destes autos, no recurso interposto pelo condenado, o despacho proferido em 18.10.2005, que consta de fls.80 e 81, que determinou o cumprimento por aquele da pena de 4 meses de prisão, transitou em julgado, pois dele não foi interposto recurso.

Assim, tendo-se formado caso julgado sobre tal questão, ela é, neste aspecto, imodificável.

Tal significa que, esgotado o prazo de pagamento da multa, as hipóteses do art. 47.º do Código Penal (diferimento temporal ou em prestações, que não foi requerido), o condenado apenas teria de provar que não pagara por razões que não lhe seriam imputáveis e requerer, em conformidade, a suspensão da execução da pena de prisão.

O acórdão da Relação do Porto de 3/4/02, proferido no recurso nº 448/02, citado pelo Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto, onde se tratava de igual pena de multa de substituição, foi decidido que «o condenado pode, a todo o tempo, provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável e, assim, requerer que se suspenda a execução da prisão principal». Mesmo após trânsito do despacho que ordenou o cumprimento da pena de prisão e o arguido se encontrar já no cumprimento da pena de prisão foi entendido que era aplicável o disposto no art. 49.º n.º 3 do Código Penal.

Porém, essa questão não faz parte do objecto do recurso interposto pelo Ministério Público e não foi apreciada na primeira instância, pelo que nos está vedado apreciá-la.

Sem embargo, impõe-se dizer que o condenado não requereu a suspensão da execução da pena de prisão, em virtude do pagamento efectuado, mas a extinção do procedimento criminal, pedido sem cabimento, por estarmos já em fase de execução da condenação.

Em face do exposto, não pode deixar de proceder o recurso interposto pelo Ministério Público porque o despacho recorrido afronta claramente o disposto no art. 44.º n.º2 do Código Penal, bem como o princípio do caso julgado.
III

4. Em conformidade, decidem os juízes desta Relação em, dando provimento ao recurso, revogar o despacho proferido em 17.10.2006 (a fls. 161 e 162), que deverá ser substituído por outro que ordene o cumprimento da pena de quatro meses de prisão.

Não são devidas custas.