Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6569/2006-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: CASO JULGADO
EXPROPRIAÇÃO
DECLARAÇÃO DE UTILIDADE PÚBLICA
CADUCIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/19/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE
Sumário: I – Se a Relação anular a sentença a fim de o tribunal da primeira instância proceder à ampliação da matéria de facto, julgada necessária pela Relação face ao regime jurídico que entende ser aplicável ao caso sub judicio, a primeira instância não está vinculada, na nova sentença a proferir, à interpretação do direito manifestada pela Relação no acórdão anulatório.
II – O art.º 52º nº 1 do Código das Expropriações de 1991, que dispõe que o expropriado pode reclamar, no prazo de sete dias a contar do seu conhecimento, contra qualquer irregularidade cometida na convocação ou na realização da vistoria ad perpetuam rei memoriam ou na constituição e funcionamento da arbitragem, designadamente por falta de cumprimento dos prazos fixados na lei, não se aplica à arguição da caducidade da declaração da utilidade pública da expropriação.
III – A caducidade da declaração da utilidade pública da expropriação é invocável pelo expropriado a todo o tempo, até à decisão final a proferir na fase judicial da expropriação.
IV – O expropriado pode arguir a caducidade da declaração da utilidade pública da expropriação após a entidade expropriante ter respondido ao recurso interposto pelo expropriado contra o acórdão arbitral que fixou a indemnização devida pela expropriação, independentemente da data em que o expropriado tomou conhecimento do decurso do prazo da caducidade.
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO

Em 13.11.2003, nos Juízos Cíveis de Lisboa, o Município de Lisboa veio requerer em processo de expropriação litigiosa a adjudicação da parcela n° 302.u, a que corresponde o prédio descrito na 7a Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o n° 7.053, do Livro B-25, e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Santo Condestável, sob o art° 1797, com a área de 128 m2, situado no …., .., da dita freguesia, pertencente à expropriada B., inserida no plano de reconversão urbanística do Casal Ventoso, em Lisboa, em conformidade com a Declaração de Área Crítica de Recuperação e Reconversão Urbanística do Casal Ventoso, operada nos termos do artigo 41° e seguintes do Decreto-Lei n° 794/76, de 5/11 e Decreto Regulamentar n° 21/95, de 25/7.
A expropriação da referida parcela foi declarada de utilidade pública, com carácter de urgência, nos termos do referido Decreto Regulamentar, publicado no Diário da República n° 170, daquela data.
Foi efectuada a vistoria Ad Perpetuam Rei Memoriam, tendo a expropriante tomado posse administrativa da parcela e depositado o valor da indemnização.
Foi proferida sentença de adjudicação e notificadas as partes do resultado da arbitragem.
Inconformada com a decisão da mencionada arbitragem, a expropriada dele interpôs recurso, o qual foi admitido, tendo apresentado as suas alegações.
Na sequência da resposta da expropriante, veio a expropriada arguir a caducidade da declaração de utilidade pública, a que aquela respondeu pedindo a sua improcedência.
Foi proferida sentença que julgando procedente a excepção de caducidade da declaração de utilidade pública, julgou a mesma verificada e extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide.
O expropriante apelou dessa decisão, tendo a Relação de Lisboa, por acórdão datado de 02.6.2005, anulado a sentença recorrida e ordenado a ampliação da matéria de facto, destinada a produzir prova sobre a data do conhecimento pela Apelada dos factos conducentes à caducidade da declaração de utilidade pública.
Produzida a prova subsequentemente ordenada, o tribunal a quo proferiu decisão sobre a matéria de facto, a qual não foi alvo de reclamação.
Oportunamente foi proferida sentença que declarou a caducidade invocada pela expropriada e consequentemente julgou extinta, por impossibilidade superveniente, a instância.
O expropriante apelou dessa decisão, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
1a Como se viu, na sequência do recurso interposto pela Recorrente da Sentença, 03.12.2004 (fls. 522 e ss. dos autos), foi proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa o douto Acórdão de 02.06.2005, que decidiu anular essa Sentença, ordenando-se a ampliação da matéria de facto, destinada a produzir prova sobre a data do conhecimento da Expropriada dos factos conducentes à caducidade da declaração de utilidade pública, no sentido de verificar a tempestividade da arguição pela Expropriada dessa caducidade no âmbito do art. 52°, n° 1, do Código das Expropriações de 1991.
2ª Com efeito, este Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 02.06.2005, fundamentou o seu julgamento em duas considerações essenciais:
a. "Nos termos do art. 52°, n° 1, do CE, o expropriado pode reclamar no prazo de sete dias a contar do seu conhecimento (destaque nosso), contra qualquer irregularidade cometida na convocação ou na realização da vistoria a que se refere o artigo 19°, ou na constituição e funcionamento da arbitragem, designadamente por falta do cumprimento dos prazos fixados na lei, oferecendo logo as provas que tiver por conveniente e que não constem já do processo. Actualmente esta situação encontra-se prevista no artigo 54° do Código das Expropriações, aprovado pela Lei n° 168/99, de 18/9, onde o prazo foi alargado para dez dias. O facto de aqueles preceitos legais se referirem à parte administrativa do processo não significa que a caducidade não possa ser arguida na fase litigiosa da expropriação, vendo-se nomeadamente a este propósito, entre outros, o Acórdão do S. T.A., de 20/10/88, in BMJ 380, pág. 311";
b. "O que releva na fase em que os autos agora se encontram, é o conhecimento pela Apelada dos factos que lhe permitiram concluir pela existência de caducidade, nomeadamente o facto articulado em 7°, da resposta desta de fls. 261 a 264 e que a Apelante impugnou na sua resposta de fls. 267 a 274. Neste circunstancialismo, deveria ter-se produzido prova no sentido de se averiguar em que data é que a Apelada teve conhecimento dos factos relativos à dita caducidade, o que, todavia, não sucedeu".
Assim, para este Acórdão, a arguição da caducidade da declaração de utilidade pública deve ser efectuada pelos Expropriados no prazo estabelecido no art. 52°, n° 1, do Código das Expropriações de 1991, a contar do conhecimento dos factos que determinam essa caducidade, independentemente da fase, amigável ou litigiosa, em que o processo de expropriação se encontre.
3ª Tendo os autos voltado à 1a Instância para a determinada ampliação da matéria de facto, o Tribunal recorrido deu como provado que a Expropriada tomou conhecimento da declaração de utilidade pública desta expropriação antes da remessa do processo administrativo para o Tribunal.
4ª Deste modo, considerando o regime jurídico definido pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02.06.2005 e o facto referido na conclusão anterior que deu como provado, a Sentença recorrida teria que ter decidido pela extemporaneidade da arguição da caducidade da declaração de utilidade pública pela Expropriada, nos termos do referido art. 52°, n° 1, do Código das Expropriações de 1991.
5ª A Sentença recorrida persistiu em declarar a caducidade da declaração de utilidade pública que determinou esta expropriação desrespeitando o regime definido pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02.06.2005 que já havia transitado em julgado (arts. 671° e ss. do CPC), pelo que deverá ser revogada.
6ª Na verdade, a própria Sentença recorrida reconhece que decidiu de uma forma diferente da que havia sido decidida no referido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa quando, no 4° parágrafo, da fl. 700 dos autos, afirma o seguinte: "Por outro lado, com o devido respeito pela posição que parece ter sido adoptada no acórdão proferido no Tribunal da Relação de Lisboa no âmbito dos presentes autos, não cremos que a declaração de caducidade aqui em discussão só possa ser arguida no prazo aludido no art. 52°/1 do CE" (destaque nosso).
Deste modo, podemos seguramente concluir que a determinação do regime jurídico aplicável à tempestividade de arguição de caducidade de declaração de utilidade pública feita no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02.06.2005 é um antecedente lógico necessário à decisão aí tomada de anular a Sentença de 03.12.2004 e mandar ampliar a matéria de facto.
7ª Quanto a esta questão, veja-se, a título de exemplo, a seguinte doutrina e jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores:
a. Nas palavras do Prof. Miguel Teixeira de Sousa (Estudos sobre o novo processo civil, págs 578 e 579):
"Como toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto e de direito), o respectivo caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos. Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão".
b. Também Vaz Serra não deixou de aderir à posição adoptada pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 29.06.1976: "Sem tornar extensiva a eficácia do caso julgado a todos os motivos objectivos da Sentença, deve reconhecer-se essa autoridade à decisão das questões preliminares que forem antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado, desde que se verifiquem os outros requisitos do caso julgado material". A posição concordante de Vaz Serra foi manifestada em anotação a este Acórdão (cfr. RLJ, n° 3600, pág. 239).
c. Tribunal da Relação do Porto, Acórdão de 17.12.1996 (www.dgsi.pt),
"A excepção do caso julgado abrange não só a decisão propriamente dita, mas também as questões preliminares que forem antecedentes lógicos indispensáveis da emissão da parte dispositiva da sentença".
d. Tribunal da Relação do Porto, Acórdão de 16.11.1995 (www.dgsi.pt),
"A eficácia do caso julgado material estende-se às questões prejudiciais que sejam antecedente lógico necessário da parte dispositiva da decisão..."
e. Supremo Tribunal de Justiça, Acórdão de 13.04.2000 (www.dgsi.pt),
"Os fundamentos da sentença podem ser abrangidos pelo caso julgado quando constituam questões preliminares, antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva da sentença".
f. Supremo Tribunal de Justiça, Acórdão de 01.10.1996 (www.dgsi.pt),
"A eficácia do caso julgado não só cobre a decisão final como também os motivos dela, desde que eles se apresentem como antecedentes lógicos, necessários e indispensáveis à prolação da decisão final".
g. Supremo Tribunal de Justiça, Acórdão de 14.01.1997 (www.dgsi.pt),
“III. A eficácia do caso julgado cobre a parte decisória e os motivos lógicos necessário e indispensáveis dela"
h. Supremo Tribunal de Justiça, Acórdão de 22.01.1997 (www.dgsi.pt),
"A eficácia do caso julgado estende-se aos motivos objectivos da decisão que sejam, seus antecedentes lógicos, necessários e indispensáveis".
8ª O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02.06.2005 só determinou a anulação da Sentença recorrida e ordenou a ampliação da matéria de facto, destinada a produzir prova sobre a data do conhecimento pela Expropriada dos factos conducentes à caducidade da declaração de utilidade pública, por considerar que o regime jurídico aplicável é o do art. 52°, n° 1, do Código das Expropriações de 1991.
9ª Deste modo, foi esse regime que fundamentou a decisão aí proferida, sendo, naturalmente, um antecedente lógico necessário da mesma e, portanto, abrangido pelo caso julgado formal.
O apelante termina pedindo que a sentença recorrida seja revogada e considerada extemporânea a arguição por parte da Expropriada da caducidade da declaração de utilidade pública que determinou esta expropriação, devendo o processo seguir os seus normais termos no sentido de ser calculada a justa indemnização que lhe é devida.
A apelada contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Foram colhidos os vistos legais.

FUNDAMENTAÇÃO
As questões essenciais a apreciar neste recurso são as seguintes: se a decisão recorrida violou caso julgado; no caso de resposta negativa a essa questão, se a arguição de caducidade da declaração de utilidade pública da expropriação foi tempestiva.
Foi dada como provada e há a considerar como assente e relevante a seguinte
Matéria de Facto
1. A declaração de utilidade pública – DUP – do imóvel descrito na 7.a Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o n.° 7053, do Livro B-25 da freguesia de Santa Isabel, e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Santo Condestável, Lisboa, sob o artigo 1797°, com a área de 128 metros quadrados, situado no …, .., freguesia de Santo Condestável, em Lisboa foi decretada pelo decreto regulamentar n.° 21/95 de 25/7, publicado do Diário da República, I Série B, de 25/07/1995.
2. No dia 06/04/2000 foi realizada a vistoria Ad Perpetuam Rei Memoriam.
3. A Câmara Municipal de Lisboa tomou posse administrativa do imóvel em 7 de Abril de 2000.
4. No dia 03/04/2002 procedeu-se à constituição da arbitragem.
5. Por acórdão datado de 23 de Setembro de 2003, foi deliberado, por unanimidade dos peritos que realizaram a arbitragem, fixar em vinte e três mil e quatrocentos euros o valor da indemnização a pagar pela Expropriante à Expropriada.
6. O processo administrativo foi remetido para o Tribunal no dia 13/11/2003.
7. A Expropriada recebeu as comunicações escritas que constam de fls. 637/638 e 640/649 e que se dão por reproduzidas.
8. A Expropriada remeteu à Expropriante a comunicação escrita que consta de fls. 639 e 641.
9. A Expropriada tomou conhecimento da DUP referenciada no ponto 1.° quando foi contactada pela primeira vez pela Expropriante, antes da remessa do processo administrativo para o Tribunal.
10. Por despacho de 01.3.2004 o tribunal a quo adjudicou a propriedade da parcela expropriada à Câmara Municipal de Lisboa, despacho esse que não foi alvo de impugnação.
11. Em 26.3.2004 a expropriada interpôs recurso do acórdão arbitral que fixou a indemnização devida pela expropriação, nos termos constantes a fls 78 a 102, pugnando pela revogação da decisão arbitral e pela condenação do expropriante recorrido a pagar à expropriada, a título de indemnização pela expropriação, quantia não inferior a € 214 750,00.
12. Em 07.6.2004 o expropriante respondeu ao recurso, nos termos constantes a fls 209 a 222, pugnando pela improcedência do recurso e pela consequente manutenção do valor indemnizatório fixado no acórdão arbitral recorrido.
13. Em 21.6.2004 a expropriada veio aos autos, nos termos constantes a fls 261 a 264, alegar que só pela resposta ao recurso tinha tido conhecimento de que apenas houvera a declaração de utilidade pública datada de 25.7.1995, que ainda suportava a presente expropriação, pelo que, invocando o disposto nos artigos 10º nºs 3 e 4 e 17º nº 3 do Código das Expropriações de 1991 arguiu a caducidade da declaração de utilidade pública, da vistoria ad perpetuam rei memorium e do acórdão arbitral, requerendo que o processo seja declarado nulo e ordenada a efectuação de nova declaração de utilidade pública.
14. Em 03.12.2004 o tribunal a quo proferiu a decisão constante a fls 522 a 524, na qual concluiu que face ao disposto no art.º 10º nº 3 do Código das Expropriações de 1991, a declaração de utilidade pública caducara, por o processo de expropriação não ter sido remetido a tribunal no prazo de dois anos contados da data de publicação da declaração e a entidade expropriante não promovera a constituição da arbitragem no prazo de um ano, contado a partir da mesma data da publicação.
15. Na sequência de apelação interposta pelo expropriante da decisão referida em 14, em 02.6.2005 a Relação de Lisboa proferiu o acórdão constante a fls 610 a 614, no qual anulou a sentença recorrida e ordenou a ampliação da matéria de facto, destinada a produzir prova sobre a data do conhecimento pela Apelada dos factos conducentes à caducidade da declaração de utilidade pública.
O Direito
Primeira questão (se a decisão recorrida violou caso julgado)
Antes de mais, aceita-se que, conforme se defende na doutrina e na jurisprudência citadas pelo apelante, a força do caso julgado atinge determinadas questões que o tribunal teve necessariamente de apreciar e julgar a fim de compor o litígio: assim, por exemplo, tendo-se julgado improcedente uma acção de despejo por se ter considerado como inexistente uma relação locatícia – contrato de arrendamento – essa inexistência pode e deve ser oposta às mesmas partes em subsequente acção de reivindicação estruturada pelos autores a partir daquela inexistência, estando vedado ao réu defender-se com a existência de um contrato de arrendamento (cfr. ac. do STJ, de 03.5.1990, BMJ 397, pág. 407). Noutro exemplo, a condenação no pagamento de um crédito supõe necessariamente o julgamento da pertença desse crédito ao demandante, razão porque o caso julgado se estende à questão da existência do respectivo direito de crédito (Rel. do Porto, 17.12.1996, internet, dgsi, processo 961101).
Trata-se de situações a que se aplicam as preocupações subjacentes à força do caso julgado, quais sejam a segurança e paz jurídicas e o prestígio dos tribunais.
No entanto, uma coisa é o carácter vinculativo da decisão proferida sobre questão que surge como necessário antecedente lógico da decisão final, o juízo proferido na apreciação dessa questão, outra é a fundamentação jurídica dessa decisão. A fundamentação jurídica da decisão não se inclui, em princípio, no valor de caso julgado da decisão, pelo que os juízos sobre a validade, interpretação e aplicação do direito não se integram no caso julgado (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo processo civil, Lex, Março/Julho de 1996, pág. 344). Assim, se num processo emergente de acidente de trabalho o juiz procede à actualização de uma pensão com base num determinado diploma legal, nada obsta a que, perante requerimento de nova e posterior actualização, modifique a sua opinião quanto ao diploma aplicável e opte por fazer reger a nova actualização por um outro instrumento legal, que entende ser afinal o aplicável ao processo: o caso julgado apenas cobrirá o valor anteriormente fixado à pensão na sequência da primitiva actualização (neste sentido, acórdão da Relação de Évora, de 22.2.1983, in CJ ano VIII, tomo 1, pág. 321, citado por Miguel Teixeira de Sousa na obra e local supra citados).
Como excepção a este princípio aponta-se o regime previsto nos artigos 729º nº 3 e 730º nº 1 do Código de Processo Civil: quando o Supremo Tribunal de Justiça entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, define o direito aplicável e manda julgar novamente a causa, em harmonia com a decisão de direito, pelos juízes que intervieram no primeiro julgamento, sempre que possível. Definido pelo STJ o direito aplicável, nos termos referidos, o poder de cognição do tribunal de instância está limitado a averiguar os factos que se lhe apontem e a decidir de harmonia com o enquadramento jurídico que lhe foi indicado, tudo em cumprimento do dever de obediência previsto no nº 1 do art.º 156º do Código de Processo Civil (STJ, 25.6.1992, BMJ 418, pág. 726 e seguintes).
Já não é assim no caso previsto no art. 712º nº 4 do Código de Processo Civil. Não constando do processo todos os elementos probatórios que, nos termos da alínea a) do nº 1 do mesmo artigo, permitam a reapreciação da matéria de facto, pode a Relação anular a decisão proferida na primeira instância quando considere necessária a ampliação desta. Conforme alega a apelada, anulada a sentença, o processo retorna à fase anterior à sua prolação, tudo se passando como se a sentença anulada nunca tivesse sido proferida. E, produzida a prova e ampliada a matéria de facto, o tribunal recorrido deve proferir nova decisão, decisão essa que, se não for ela própria objecto de recurso, transitará em julgado e decidirá definitivamente o litígio (neste sentido, acórdão da Relação de Lisboa de 11.4.2002, internet, dgsi, processo 0021708, citado pela apelada). Consequentemente, ao proferir a sentença subsequente à ampliação da matéria de facto, o juiz da 1ª instância não está vinculado à interpretação jurídica do tribunal da Relação que ordenou a ampliação da matéria de facto, tal como o não estava aquando da prolação da decisão anulada – tudo se passa como se esta nunca tivesse sido proferida (com a ressalva de que a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada). Não se verifica, pois, a formação do invocado caso julgado. Só assim se compreende que a decisão proferida a coberto do art.º 712º nº 4 do Código de Processo Civil não seja sequer sindicável por via de recurso – nº 6 do art.º 712º do Código de Processo Civil.
Conclui-se, pois, citando o conselheiro Amâncio Ferreira (Manual dos recursos em processo civil, 6ª edição, Almedina, pág. 225) que “diversamente do STJ, a quem exclusivamente se aplica o disposto no nº 1 do art.º 730º, por ser um tribunal de revista, exorbita a Relação dos poderes que lhe são conferidos pelo nº 4 do art.º 712º quando, ao determinar a repetição do julgamento em ordem à indagação da matéria de facto considerada indispensável, declara qual o regime jurídico aplicável ao caso concreto e como devem ser interpretadas e aplicadas as respectivas normas legais” (neste sentido, acórdão do STJ de 18.01.1995, in Acórdãos Doutrinais do Supr. Trib. Adm., nº 401, pág. 621 e seguintes).
No acórdão da Relação proferido nestes autos, a decisão de anular a sentença e ordenar a ampliação da matéria de facto sustentou-se no entendimento de que ao caso é aplicável o disposto no art.º 52º nº1 do Código das Expropriações de 1991 e que dessa norma resulta que o expropriado pode arguir a caducidade da declaração de utilidade pública no prazo de sete dias a contar do conhecimento dessa caducidade, independentemente da fase em que a expropriação se encontre. Porém, conforme resulta da leitura do acórdão, na sua decisão a Relação não impôs à primeira instância o regime jurídico que esta deveria aplicar, nem o sentido a dar à interpretação das respectivas normas. Sobre isso não se formou caso julgado, sendo o tribunal de primeira instância, ampliada a matéria de facto de acordo com a determinação da Relação, livre na tarefa de aplicar o direito.
Conclui-se, pois, que nesta parte a apelação improcede.
Segunda questão (se a arguição de caducidade da declaração de utilidade pública da expropriação foi tempestiva)-
A declaração de utilidade pública cuja caducidade se discute data de 25.7.1995. Vigorava então o Código das Expropriações (CE) aprovado pelo Dec.-Lei nº 438/91, de 09.11, diploma que regula a presente expropriação no que diz respeito aos aspectos materiais da relação jurídico-expropriativa (art.º 12º nº 1 do Código Civil; José Osvaldo Gomes, “Expropriações por utilidade pública, Texto Editora, 1997, pág. 328; STJ, 04.11.1997, internet, dgsi, processo 97A623).
Nos termos do art.º 10º nº 3 do CE 1991, “a declaração de utilidade pública caduca se a entidade expropriante não tiver promovido a constituição de arbitragem no prazo de um ano ou o processo de expropriação não for remetido ao tribunal competente no prazo de dois anos, em ambos os casos a partir da data da publicação do acto de declaração.”
Conforme se dizia no preâmbulo do Dec.-Lei nº 154/83, de 12.4, diploma que pela primeira vez introduziu no Código das Expropriações (no caso, o de 1976, aprovado pelo Dec.-Lei nº 845/76, de 18.12) a regra da caducidade da declaração de utilidade pública, “sendo a expropriação por utilidade pública uma privação forçada do direito de propriedade, torna-se aconselhável (…) estabelecer um prazo para que a entidade expropriante promova a expropriação amigável ou o início da tramitação do processo litigioso, de modo a limitar os efeitos negativos provocados ao titular dos bens expropriados pelo protelamento do início de tais actos”.
Da matéria de facto provada resulta que a constituição da arbitragem data de 03.4.2002 e o processo de expropriação foi remetido ao tribunal em 13.11.2003. Assim, dúvidas não há que o prazo de caducidade da declaração de utilidade pública decorreu, sem interrupção, até ao seu termo, ocorrido em 25.7.1996.
Conforme expende Marcelo Caetano (Manual de Direito Administrativo, vol. I, Almedina, 10ª edição, pág. 534), a declaração de caducidade do acto administrativo difere da revogação “porque a supressão dos efeitos resulta, no caso da revogação, do próprio acto de revogação, que é um acto constitutivo ou inovador; ao passo que a declaração de caducidade é um acto meramente declarativo, resultando então a supressão dos efeitos, não da declaração de caducidade, mas dos factos objectivos ocorridos, que nos termos da lei são causa de extinção do acto administrativo. É por isso que, mesmo não tendo havido declaração, o acto em relação ao qual se verifique um motivo de caducidade deve considerar-se como tendo caducado.” Também a jurisprudência, no que concerne à declaração da utilidade pública da expropriação, realça que “na caducidade o direito extingue-se ipso jure, pelo decurso do prazo legalmente previsto, sem necessidade de qualquer manifestação de vontade jurisdicional ou privada e há apenas uma constatação judicial (comprovação) (…) do facto jurídico stricto sensu – o decurso do tempo. O juiz não declara a caducidade do acto, limita-se a constatá-lo. O acto declarativo extingue-se, por decorrido o tempo previsto para a produção dos seus efeitos” (Rel. de Lisboa, 20.5.2003, internet, dgsi, processo 1558/2003-7). Tal é assim mesmo que a caducidade deva ser previamente invocada por quem de direito: “mesmo que não seja de conhecimento oficioso, a caducidade operou os seus efeitos, não com a respectiva declaração de caducidade, mas logo em consequência da verificação do aludido facto jurídico.” (Rel. de Lisboa, 12.6.1996 Col. de Jur., ano XXI, tomo III, pág. 112).
Embora haja quem defenda que a caducidade da declaração de utilidade pública da expropriação é de conhecimento oficioso (José Osvaldo Gomes, obra citada, pág. 356), propendemos para a posição que tem tido acolhimento maioritário nos tribunais, ou seja, a de que, uma vez que não estão em causa direitos indisponíveis, a caducidade, para ser conhecida pelo tribunal, necessita de ser invocada por aquele a quem aproveita (artigos 333º nº 1 e 303º do Código Civil; v.g. acórdão do STJ, de 22.10.1996, internet, dgsi, processo 96A502; Rel. de Lisboa, 09.6.1994, Col. de Jur., XIX, t. III, pág. 282; Rel. de Lisboa, 15.02.1996, internet, dgsi, processo 10162).
Quanto ao momento até ao qual deve ocorrer a invocação da caducidade, nada está estipulado na lei. É certo que o art.º 52º nº 1 do CE de 1991 dispõe que o expropriado pode reclamar, no prazo de sete dias a contar do seu conhecimento, contra qualquer irregularidade cometida na convocação ou na realização da vistoria a que se refere o art.º 19º [vistoria ad perpetuam rei memoriam] ou na constituição e funcionamento da arbitragem, designadamente por falta de cumprimento dos prazos fixados na lei, oferecendo logo as provas que tiver conhecimento e que não constem já do processo. Porém, na previsão desse preceito não cabe a questão da caducidade da declaração de utilidade pública da expropriação. O que se pretende com esse normativo “não é pôr cobro à expropriação, mas antes dinamizar a sua tramitação através de uma ritologia desprovida de irregularidades. No sistema do CE 1991 não se vinculam as partes, na fase administrativa do processo de expropriação, a prazos rígidos, limitativos da liberdade de acção com vista à prossecução de eventual expropriação amigável, mas não se deixa, abusivamente, eternizar tal procedimento, esgrimindo-se, a contrapeso, com a sanção da caducidade “ (STJ, 26.3.1996, internet, dgsi, processo 088376; cfr., no mesmo sentido, acórdão da Relação de Évora, 22.2.1997, Col. de Jur., XXII, tomo I, pág. 296; relativamente ao artigo 54º do CE de 1999, aprovado pela Lei nº 168/99, de 18.9, que corresponde ao art.º 52º do CE de 1991, cfr., em sentido idêntico, o acórdão da Relação do Porto, de 20.6.2006, internet, dgsi, processo 062868). Daí que a sanção prevista pelo Código no caso de deferimento da reclamação prevista no art.º 52º seja que as funções da entidade expropriante passam a caber ao juiz de direito da comarca do local da situação do bem (alínea a) do nº 2 do art.º 42º do CE de 1991).
Impondo as exigências do Estado de Direito e, concretamente, o princípio da protecção dos direitos fundamentais, nomeadamente do direito de propriedade privada consagrado no art.º 62º nº 1 da Constituição da República Portuguesa, que a declaração de utilidade pública da expropriação caduque decorrido certo prazo (José Osvaldo Gomes, obra citada, pág.358), e ocorrendo a caducidade ipso jure, seria incompreensível que se impusesse ao expropriado o curtíssimo prazo previsto no art.º 52º nº 1 do CE 1991 para fazer operar a caducidade, com a cominação de não mais dela se poder prevalecer.
A nosso ver, e sem prejuízo do devido respeito por quem defenda opinião contrária, a caducidade da declaração de utilidade pública da expropriação é invocável a todo o tempo (mesmo após a adjudicação do imóvel - cfr. José Osvaldo Gomes, obra citada, pág. 343; acórdãos da Relação do Porto, 06.7.2000, internet, dgsi, processo 0020859 e de 21.6.2000, internet, dgsi, processo 0030807) até à decisão final a proferir na fase judicial.
Arguida a caducidade da declaração de utilidade pública da expropriação, pela expropriada, perante o tribunal competente para conhecer do recurso da decisão arbitral (conforme estipula o art.º 13º nº 4 do CE de 1999, Código que estava em vigor à data da remessa dos autos ao tribunal, e que por isso é aplicável à fase judicial do processo de expropriação, no que diz respeito às regras processuais – STJ, 04.11.1997, internet, dgsi, processo 97A623; José Osvaldo Gomes, obra citada, pág. 329), e nada obstando no plano processual (quer à luz do CE de 1991, quer do CE de 1999) e no plano substantivo (por exemplo, não se vislumbra a ocorrência de abuso de direito por parte da expropriada, na invocação da caducidade – art.º 334º do Código Civil), cabia ao tribunal a quo declarar verificada a caducidade, como fez.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente e consequentemente confirma-se a decisão recorrida.
Sem custas, por o apelante estar delas isento (art.º 2º nº 1 alínea e) do Código das Custas Judiciais, na redacção anterior à introduzida pelo Dec.-Lei nº 324/2003, de 27.12).

Lisboa, 19.10.2006

Jorge Leal
Américo Marcelino
Francisco Magueijo