Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
15024/19.6T8LSB.L1-6
Relator: GABRIELA DE FÁTIMA MARQUES
Descritores: DIREITOS DE PERSONALIDADE
RESPONSABILIDADE POR FACTO ILÍCITO
DANOS MORAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. A imputação de um valor em dívida injustificadamente poderá determinar uma actuação ilícita consubstanciada na violação dos direitos de personalidade, nomeadamente a honra e o bom nome (art.º 70º do Código Civil), porém, no caso dos autos além de o recorrente ser efectivamente devedor da entidade que actua como gestora ou cessionária da credora, o valor final cuja cobrança se pediu em tais cartas é inferior ao valor em que o Autor foi condenado, por sentença transitada em julgado, ainda que pudesse ser considerado em erro.

II. Sob pena de afronta ao valor da justiça e atento o princípio-regra de tutela geral da personalidade previsto no art.º 70.º do Código Civil, não podem os interesses imateriais permanecer desprovidos de qualquer tutela ressarcitória, mas os prejuízos têm de assumir “gravidade”, a qual se mede por um padrão objectivo, não podendo estes consistir em meros incómodos ou contrariedades.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
J… intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra “W…, S.A.” pedindo a condenação da R. “no pagamento ao Autor de uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de €5.500,00.”.
Alega em abono da sua pretensão, em síntese, que tem 69 anos e sofre de síndrome coronário agudo há cerca de 20 anos, sendo seguido a nível médico e medicamentoso, motivo pelo qual o stress e a ansiedade podem trazer ao Autor consequências mais gravosas. Alega que a ré, em 24/11/2017, dirigiu a ao A. uma carta alegando que o A. tinha uma dívida de €42.363,55, propondo ao A. a sua regularização através do pagamento de €6.354,53. Invoca que não sendo devedor desse valor contactou a ré, sendo eu esta lhe transmitiu que tal carta podia ter sido fruto de erro, pelo que, caso não fosse devedor da quantia nela mencionada, deveria ignorá-la. Porém a ré voltou, em 20/06/2018, a endereçar ao Autor missiva propondo-lhe novamente a redução do valor alegadamente em dívida de €42.363,55 para €6.354,53, pelo que o A. solicitou junto da ré esclarecimentos, invocando quer o desconhecimento da dívida, quer ainda a sua situação como doente cardíaco e que tal agravaria gravemente a sua saúde. Face à ausência de resposta, voltou a requerer resposta e solicitou a marcação de uma reunião, informando ainda que já havia comunicado ao BdP, DIAP e Inspecção-Geral de Finanças e tentou ainda obter informação junto das instalações da ré. A queixa crime foi arquivada, por se ter entendido que os factos imputados à Ré não eram susceptíveis de constituir a prática de qualquer crime, mas antes eventualmente passíveis de responsabilização civil. Alega que passou a viver em permanente angústia, antevendo a possibilidade de, a qualquer momento, ver-se alvo de acções judiciais ou penhoras para cobrança de quantia que nunca deveu a ninguém e cuja origem desconhece, o que lhe provocou constante ansiedade, desânimo e auto-isolamento, temendo pela afectação da sua reputação. Por fim, alega que a ré lhe comunicou que o crédito que dele vinha reclamando tinha origem no contrato que este havia celebrado com outra sociedade o qual foi cedido à ré, o que já teria determinado a instauração de uma acção executiva. Invoca o A. que a quantia exequenda não correspondia a tal valor, tendo a ré remetido de novo carta de idêntico teor, sem obter qualquer resposta da ré. Conclui que é devido o valor peticionado dado o «estado de constante angústia, ansiedade e frustração e as perturbações no sono, no apetite e a irritabilidade causados ao Autor pela persistência e reiteração com que a Ré lhe imputa uma dívida num valor que nunca contraiu e que esta não esclarece, constituem danos não patrimoniais susceptíveis de indemnização».
Citada a ré veio a mesma contestar impugnando os factos, mais dizendo que efectivamente o A. tinha uma dívida da qual a ré actuou na qualidade de gestora do crédito detido pela A…, crédito esse reconhecido por sentença, da qual o A. recorreu, recurso que foi indeferido, pelo que foi intentada execução, tendo o A. na mesma deduzido oposição à penhora, ainda sem decisão. Impugna ainda o facto de não ter recebido o A. e no que ao valor da dívida se refere, a Ré reviu toda a documentação disponível e apercebeu-se, de um lapso na informação inserida no sistema, no que ao valor das despesas a contabilizar se refere. Alude que por motivos que a Ré não consegue precisar, mas que poder estar relacionados com a inserção automática da informação dos dados do crédito no sistema, o valor de despesas computava-se em €27.642,94, quando se deveria computar em 1.599,05€. Argumenta assim, que procedeu à correção do lapso da informação inserida no sistema, cifrando-se a dívida a esta data em €20.435,85, valor esse aliás muito inferior ao valor proposto a título de pagamento pelas cartas que apelida de “campanha”, as quais são automaticamente preenchidas pelas informação constante do sistema, pelo que o valor foi impactado pelo lapso de informação inserida no sistema referente ao valor de despesas. Conclui quer pela inexistência dos pressupostos da responsabilidade civil, quer ainda pela inexistência de danos indemnizáveis e, logo, pela absolvição do pedido.
No prosseguimento dos autos e realizada audiência final foi proferida sentença que julgou improcedente a acção e, consequentemente, foi a ré absolvida do pedido formulado pelo Autor.
Foi inconformado com esta decisão que determinou a interposição do presente recurso pelo Autor, formulando as seguintes conclusões:
«A. Ficou provado e reconhecido no ponto 1) que o Autor sofre de doença coronária aguda.
B. Ao dar como provado o ponto 1) não podia ter sido dado como não provado o ponto 21) uma vez que, ao sofrer de tal patologia, o autor sofreria de ansiedade, angustia, privação de sono e falta de apetite.
C. Mesmo não sofrendo de tal patologia, qualquer homem médio ficaria completamente desgastado e a sofrer de ansiedade e angústia.
D. A ré é uma Sociedade conhecida e experiente no sector em que se move, a finança.
E. Os lapsos ou erros reiterados não podem ser entendidos como se fossem um simples lapso de escrita.
F. Tem obrigação e responsabilidade de fazer melhor.
G. Tem obrigação de não cometer, pelo menos, o mesmo erro várias vezes.
H. Um lapso ou um engano podem ser entendidos como tal se ocorrerem uma vez, o que não foi o caso.
I. Os danos não patrimoniais sofridos pelo autor impunham que o tribunal ad quo fixasse um valor indemnizatório.
J. A privação da sua vida normal, com o pânico de vir a ter que pagar uma divida daquela monta, tem que ser considerado um dano autónomo suscetível de avaliação patrimonial, de acordo com o disposto no artigo 483.º e 566.º ambos do C.C.
K. O tribunal ad quo deveria ter recorrido à quantificação de danos recorrendo a juízos de equidade.
L. O instituto jurídico previsto no artigo 563º e 564º/2 do C.C. afere que basta a simples probabilidade da existência desses danos são suscetíveis de indemnização.
M. Ao decidir como decidiu o tribunal ad quo violou o disposto nos artigos 483º n.º 1, 496.º n.º 1, 562.º, 563.º e 566.º do C.C.
Nestes termos e nos melhores de direito do douto suprimento requer a V.ª Ex, ª digne admitir o requerido, julgar o presente recurso procedente por provado e em consequência, condenar a sociedade recorrida no pagamento de uma indemnização no valor de €5.500,00 (cinco mil e quinhentos euros).».
A ré contra alegou pugnando pela improcedência e concluindo que:
«I. Esteve bem o Tribunal a quo em decidir como decidiu, não assistindo razão ao Recorrente devendo o Tribunal ad quem manter a Douta decisão ora em crise.
II. Tribunal a quo ao considerou, e bem, como não provado o facto 21, pois o Recorrente quando recebeu as cartas, já havia sido condenado judicialmente e estava a ser executado, pese embora tenha informado a testemunha D… que “não devia nada do carro”, e que “não tinha dívidas”.
III. Mais ainda as testemunhas D… e J…, amigos do Recorrente referiram-se à perturbação e ansiedade do A. (“uma perseguição que estão-me a fazer”) pelo valor avultado da dívida, mas desconheciam o valor da dívida.
IV. O Tribunal a quo analisou correctamente a conduta da ora Recorrida tendo concluído do depoimento da testemunha S… e dos documentos juntos aos autos que cartas emitidas apesar de as cartas emitidas pela Recorrida enfermarem de um erro, na verdade propunham o pagamento inferior ao valor à quantia que o Recorrente tinha sido condenado a pagar por decisão condenatória, beneficiando-o.
V. A ora Recorrida não violou qualquer direito do Recorrente nem praticou qualquer ilícito suscetível de lhe causar quaisquer danos não patrimoniais
VI. Neste sentido não resultaram provados os elementos constitutivos da responsabilidade civil (cfr. artigo 483.º n.º 1, do C.C) por factos ilícitos, designadamente o facto ilícito e o dano, pelo que o não há lugar ao pagamento de qualquer indemnização
VII. Conclui-se assim que o pedido do Autor, ora Recorrente tem que soçobrar, mantendo-se a sentença proferida pelo Tribunal a quo.»
Admitido o recurso neste tribunal e colhidos os vistos, cumpre decidir.
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Questão a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Importa assim, saber se, no caso concreto:
- É de alterar a decisão que absolveu a ré, considerando que é devido o valor indemnizatório pedido pelo Autor por verificação na sua esfera jurídica de danos não patrimoniais indemnizáveis.
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II. Fundamentação:
No Tribunal recorrido foram considerados provados os seguintes Factos:
1 - O A. nasceu em 31-X-49 e sofre de síndrome coronário agudo, e é seguido em consulta de cardiologia.
2 - Em 6-VII-95 “C…., S.A.” e A. assinaram o “CONTRATO FINANCIAMENTO PARA AQUISIÇAO A CRÉDITO Nº…” junto a fls.. 24v-25 – que o ora A. não cumpriu.
3 - Em 20-XII-07 “Banco… S.A.” e “F…, S.a.r.l.” assinaram o “CONTRATO DE CESSÃO DE CRÉDITOS” junto a fls. 28.
4 - Em 11-I-08 a “Banco … S.A.” enviou ao A. a carta junta a fls. 24 (cujo teor se dá aqui por reproduzido).
5 - Em 10-VII-14 “A… Limited” apresentou contra o ora A. a petição inicial junta a fls. 39 a 83 e 141 a 186 (cujo teor se dá aqui por reproduzido).
6 - Em 30-I-17 foi proferida sentença no processo 836/14.5YXLSB (J12 - Lisboa) – condenando o ora A. a pagar à “A… Limited” (cessionária da ‘F… S.A.R.L.’ desde 17-I-11, por sua vez cessionária da “Banco… S.A.” - anteriormente denominada “I…S.A.”, que resultara da fusão de várias sociedades entre as quais a “C… S.F.A.C., S.A.”) “a quantia global de €13.993,16, à qual acrescem juros vencidos e vincendos, desde 11.07.2014 e até integral e efectivo pagamento” (fls. 29 a 31, e 84 a 86).
7 - Em 24-VII-17 “A… limited” instaurou execução para pagamento de quantia certa contra o ora A., titulada pela sentença supra, e pela quantia exequenda de 16.041,67€ (fls. 89 a 91).
8 - Em 24-XI-17 a R. enviou ao A. a carta junta a fls. 17v (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – onde se lê: “(…) Caso liquide a sua dívida, até 31 de Dezembro de 2017, poderá beneficiar de uma redução de 42 363,55€ para 6 354,53€. (…)”
9 - Em 20-VI-18 a R. enviou ao A. a carta junta a fls. 18 (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – onde se lê: “(…) Caso liquide a sua dívida, até 31 de Agosto de 2018, poderá beneficiar de uma redução de 42.363,55€ para 6.354,53€. (…)”
10 - Em 30-VIII-18 o ora A. deduziu oposição à penhora realizada na execução supra (fls. 92 a 100) – tendo a exequente apresentado contestação (fls. 101a 104).
11 - Em 21-IX-18 o A. enviou à R. a carta junta a fls. 18v (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – e, em 3-X-18, a ‘mensagem’ junta a fls. 19 (cujo teor se dá aqui por reproduzido).
12 - Em 7-I-19 o Ministério Público arquivou o inquérito iniciado em queixa apresentada pelo ora A. contra a ora R. (fls. 20).
13 - Em 15-I-19 a R. enviou ao A. a carta junta a fls. 23 (cujo teor se dá aqui por reproduzido).
14 - Por despacho de 12-III-19 foi recusado o recurso de revisão da sentença supra (fls. 87-88).
15 - Em 24-V-19 a R. enviou ao A. a carta junta a fls. 23v (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – onde se lê: “(…) Dívida actual: 42 363,55€ Ao pagar antecipadamente, a W… evita custos futuros com a gestão do seu processo, o que permite uma redução para 6 354,53€ correspondente a um desconto de 85% face ao valor em dívida. (…)”
16 - Em 27-VI-19 o A. enviou à R. a ‘mensagem’ junta a fls. 32 (cujo teor se dá aqui por reproduzido).
17 - Em 28-IV-20 a R. enviou ao A. a carta junta a fls. 110 (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – onde se lê: “(…) Dívida actual: 21.079,54€ Ao pagar antecipadamente, a W… evita custos futuros com a gestão do seu processo. Assim propomos um desconto de 80% mediante o pagamento, numa só entrega, no valor de 4.215,91€ até dia 27/06/2020. (…)”
18 - Em 31-III-20 “A… Limited” e “H… STC, SA” assinaram o “Contrato de Cessão de Créditos Adicionais” junto a fls. 112v a 130.
19 - Em 30-IV-20 (fls. 111) a “H… – S.T.C., SA” havia comunicado à “Central de Responsabilidades de Crédito” uma dívida do A. no valor total de 21.177,49€ (referente a “crédito automóvel”, em incumprimento desde 1996-09-23).
20 – O A. nunca contraiu qualquer dívida junto da “Banco… S.A.”, nem é devedor da quantia de 42.363,55€.
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Foram considerados como Factos não provados:
21 - Após as cartas da R. o A. passou a viver em permanente angústia, antevendo a possibilidade de, a qualquer momento, ver-se alvo de acções judiciais ou penhoras para cobrança de quantia que nunca deveu a ninguém e cuja origem desconhece – e sofreu perturbações no sono e apetite.
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Da impugnação da decisão de matéria de facto:
No nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido, tendo porém presente o princípio a observar em casos de dúvida, consagrado no artigo 414º do C.P.C., de que a «dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita». Conforme é realçado por Ana Luísa Geraldes («Impugnação», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I. Coimbra, 2013, pág. 609 e 610), em «caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte». E mais à frente remata: «O que o controlo de facto em sede de recurso não pode fazer é, sem mais, e infundadamente, aniquilar a livre apreciação da prova do julgador construída dialecticamente na base dos referidos princípios da imediação e da oralidade.»
Assim, apesar de se garantir um duplo grau de jurisdição, tal deve ser enquadrado com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no art.º 607 nº 5 do C. P. Civil, sendo certo que decorrendo a produção de prova perante o juiz de 1ª instância, este beneficia dos princípios da oralidade e da mediação, a que o tribunal de recurso não pode já recorrer.
De acordo com Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 347, “Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final (…) estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal (…) Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência”.
Assim, para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes.
Porém, e apesar da apreciação em primeira instância construída com recurso à imediação e oralidade, tal não impede a «Relação de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das provas, tal como a 1ª instância, sem estar de modo algum limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida(…) Dito de outra forma, impõe-se à Relação que analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, de modo a apreciar a sua convicção autónoma, que deve ser devidamente fundamentada» (Luís Filipe Sousa, Prova Testemunhal, Alm. 2013, pág. 389).
Quando seja impugnada a matéria de facto estabelece o art.º 640.º do C.P.C.: «(…), deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. E nos termos do nº 2 no caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
Refere Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª Ed., Almedina, 2017, pp. 158-159: «A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em algumas das seguintes situações: a) Falta de conclusão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (art.ºs 635.º, n.º 4, e 641.º, n.º 2, al. b)); b)   Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art.º 640.º, n.º 1, al. a)); c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.); d) Falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda; e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação».
Abrantes Geraldes (in ob. Cit.), salienta que o S.T.J. «tem vindo a sedimentar como predominante o entendimento de que as conclusões não têm que reproduzir (obviamente) todos os elementos do corpo das alegações e, mais concretamente, que a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações e mesmo as respostas pretendidas não têm de constar das conclusões, diversamente do que sucede, por razões de objetividade e de certeza, com os concretos de facto sobre que incide a impugnação.» (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 771; cfr. ainda os Acs. do S.T.J. citados pelos Autores).
No caso dos autos o recorrente limita-se a afirmar que o Tribunal recorrido ao dar como provado o ponto 1) não podia ter dado como não provado o ponto 21) uma vez que, ao sofrer de tal patologia, o autor sofreria de ansiedade, angustia, privação de sono e falta de apetite. Defende ainda que mesmo não sofrendo de tal patologia, qualquer homem médio ficaria completamente desgastado e a sofrer de ansiedade e angústia.
Manifestamente se conclui face ao aludido que o recorrente não cumpriu o seu ónus de impugnação da factualidade provada e não provada, pois não especificou, relativamente a cada um dos pontos em causa, (o)s concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, como determina o citado artigo 640º do Código de Processo Civil.
O facto que foi considerado negativo reza assim: «Após as cartas da R. o A. passou a viver em permanente angústia, antevendo a possibilidade de, a qualquer momento, ver-se alvo de acções judiciais ou penhoras para cobrança de quantia que nunca deveu a ninguém e cuja origem desconhece – e sofreu perturbações no sono e apetite.»
Com efeito, o teor do facto negativo constante do ponto 21, cuja resposta pretende o recorrente que se considere positiva, não pode ser inferido apenas pela doença de que o Autor padece, nem sequer pelas normas da experiência comum invocadas na apelação.
Na verdade, o ponto 21) não se limita a considerar que o A. sofre de angustia, falta de apetite e perda de sono, pois o que releva será determinar se tais condições anímicas ocorrem na sequência de uma determinada atitude assacada à ré (sendo a premissa primeira- “Após as cartas da ré”), e apenas nesta, ainda que pudéssemos aferir se foram agravadas face à doença de que o A. padece.
Acresce que sofrer de síndrome coronário agudo não determina por si só as consequências que o A. pretende que se considerem provadas. Quanto às máximas da experiência convocadas pelo recorrente para se poder concluir pela angustia sofrida, importa ter presente que na definição de Friedrich Stein (referido por Luís Filipe Sousa in “Prova testemunhal” pág. 330) estas “são definições ou juízos hipotéticos de conteúdo geral, desligados dos factos concretos que se julgam no processo, procedentes da experiência, mas independentes dos casos particulares de cuja observação forma induzidos e que, além destes casos, pretendem ter validade para outros novos”. Logo, as máximas da experiência são marcadas pela sua relatividade, mas devem pertencer ao património comum, incidindo sobre fenómenos que possam ser observados por todos. Castro Mendes a propósito de tal noção refere que a mesma além dos juízos descritivos também deve incluir os juízos valorativos (in “Do conceito de prova em processo civil”, pág. 666). Mas a máxima actua como premissa maior de uma ilação judicial, ou seja, será a racionalização do senso comum sobre os factos. Ora, importa ter presente que o Autor era efectivamente devedor de determinada quantia, crédito esse afirmado por sentença e do qual pendia uma execução, logo, o teor do art.º 21º não se limitava a afirmar uma eventual angustia pelo recebimento de tais cartas (com um valor em dívida superior), mas sim a possibilidade de execução, sendo que esta já existia.
Donde, por um lado, não cumprindo o recorrente as normas que lhe permitem impugnar em sede de recurso os factos, por outro lado, não existindo a possibilidade de tais factos serem apreciados quer por presunção, quer com base nas máximas da experiência, é de julgar improcedente a apelação quanto à 1ª e 2ª conclusões, mantendo-se inalterados os factos a considerar.
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III. O Direito:
A questão essencial a decidir no âmbito da apelação é saber se se verificam os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito que determinam a obrigação da apelada em indemnizar o apelante pelos danos (morais) sofridos.
Haverá assim, que aquilatar do instituto jurídico aplicável à situação. Nos termos do preceituado no art.º 483º nº 1 do Código Civil "aquele que com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação".  
Ali se estabelece, pois, o princípio geral da responsabilidade civil, fundada em facto que seja objectivamente controlável ou dominável pelo agente, isto é uma conduta humana, que tanto pode consistir num facto positivo, uma acção, como num negativo (omissão ou abstenção), violadora do direito de outrem ou de qualquer disposição legal que vise proteger interesses alheios — comportamento ilícito. Para que desse facto irrompa a consequente responsabilidade necessário se torna, à partida, que o agente possa ser censurado pelo direito, em razão precisamente de não ter agido como podia e devia de outro modo; isto é que tenha agido com culpa. A ilicitude e a culpa são elementos distintos; aquela, virada para a conduta objectivamente considerada, enquanto negação de valores tutelados pelo direito; esta, olhando sobretudo para o lado subjectivo do facto jurídico. Dado não existir em princípio responsabilidade civil independente de culpa é também ao lesado que cabe o ónus de provar a culpa do autor da lesão.
Quanto ao comportamento assacado à ré é certo que o envio das cartas pela mesma enfermavam de erro na indicação do valor total em dívida, porém, as mesmas indicavam, para pagamento final, quantia inferior à constante da decisão judicial condenatória já objecto de execução contra o Autor. Somos assim, em concordar com a sentença recorrida quando fundamenta que «(o) “erro” não significa que tivesse sido violado qualquer direito do A., na medida em que a execução foi instaurada de acordo com o título executivo, e que as cartas, caso tivessem sido compreendidas pelo A., o beneficiavam (propondo o pagamento de valor inferior ao devido). Considera-se, assim, não existir acto ilícito susceptível de causar quaisquer danos não patrimoniais – devendo-se a irritação ou perturbação do A. a incompreensão, ou talvez recusa (injustificada) em aceitar a condenação judicial(…)».
Claramente a imputação de um valor em dívida injustificadamente poderá determinar uma actuação ilícita consubstanciada na violação dos direitos de personalidade, nomeadamente a honra e o bom nome (artº 70º do Código Civil), porém, no caso dos autos além de o recorrente ser efectivamente devedor da entidade que actua como gestora ou cessionária da credora, o valor final cuja cobrança se pediu em tais cartas é inferior ao valor em que o Autor foi condenado, por sentença transitada em julgado ( tendo o recurso de revisão intentado pelo Autor também sido julgado improcedente). Outrossim, a eventual ofensa apenas ocorre em missivas pessoais dirigidas ao Autor, sem qualquer outra exteriorização, logo, inexiste o sentimento associado à violação dos direitos de personalidade, pois estes prendem-se no essencial com a nossa interacção a nível da sociedade. Aliás, importa ter presente que dos factos provados resulta que a comunicação à “Central de Responsabilidades de Crédito” da dívida do A. foi no valor total de 21.177,49€ (referente a “crédito automóvel”, em incumprimento desde 1996-09-23 ), ou seja, sem que perante tal central de responsabilidades se tenha reproduzido as cartas que constituem, na alegação do autor, a ofensa perpetrada pela ré.
Logo, para que pudesse ser classificada a actuação da ré como objectivamente ilícita, faltaria na mesma o elemento subjectivo, quer reconduzido à ilicitude, quer à culpa quanto à actuação da ré.
Mas mesmo que assim não se entendesse manifestamente faltará quer a verificação de danos ressarcíveis na esfera jurídica do Autor e, não de somenos importância, o nexo de causalidade entre a actuação da ré e os alegados danos sofridos pelo Autor.
Senão vejamos.
Durante muito tempo, a doutrina viu-se animada por um intenso debate sobre a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais (também designados “danos morais”), atenta a sua insusceptibilidade de avaliação em dinheiro, a inelutável subjectividade inerente à sua valoração e o risco de arbitrariedade na fixação do valor a pagar pelo lesante. Ainda assim, sob pena de afronta ao valor da justiça e atento o princípio-regra de tutela geral da personalidade previsto no art.º 70.º do Código Civil, não podiam os interesses imateriais permanecer desprovidos de qualquer tutela resssarcitória.
Actualmente é indiscutível a reparabilidade dos danos não patrimoniais, porém, nos termos do art.º 496.º do Código Civil, o arbitramento de uma compensação (e não de uma indemnização, dado tratar-se de danos insuscetíveis de eliminação por meio de reposição ou reconstituição natural ou de conversão directa numa quantia pecuniária equivalente) só se coloca em relação aos prejuízos que, pela sua gravidade, justifiquem a tutela do direito.
Sobre tal conceito ou adjectivação, ensina Antunes Varela, aquela “gravidade” deve “medir-se por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada)”, pelo que “o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado”. Por conseguinte, têm-se por “irrelevantes os pequenos incómodos ou contrariedades, assim como os sofrimentos ou desgostos que resultem de uma sensibilidade anómala” (in “Das obrigações em geral”, Vol. I, 8.ª edição, Almedina, 1994, p. 617).
O Professor Galvão Telles (in “Manual de Direito das Obrigações”, pág. 296), relativamente aos danos não patrimoniais, esclarece que se tratam de “prejuízos que não atingem em si o património, não fazendo diminuir nem frustrando o seu acréscimo. O património não é afectado: nem passa a valer menos nem deixa de valer mais”. E acrescenta, que neste caso, “há ofensa de bens de carácter imaterial - desprovidos de conteúdo económico, insusceptíveis verdadeiramente de avaliação em dinheiro”.
Também o Professor Oliveira Ascenção (in “Direito Civil – Sucessões”, Pág. 44) reflecte este aspecto quando diz “que uma situação jurídica é pessoal quando tem na sua base um preponderante interesse ético ou moral do indivíduo; se assentar em um interesse material ou económico sempre apreciável em dinheiro é patrimonial”.
No plano dos princípios afigura-se-nos ser consensual o entendimento, sintetizado no acórdão do STJ de 24/05/2007 (proc. 07A1187, in www.dgsi.pt), que: “Os danos não patrimoniais podem consistir em sofrimento ou dor, física ou moral, provocados por ofensas à integridade física ou moral duma pessoa, podendo concretizar-se, por exemplo, em dores físicas, desgostos por perda de capacidades físicas ou intelectuais, vexames, sentimentos de vergonha ou desgosto decorrentes de má imagem perante outrem, estados de angústia, etc.. E nessa linha, constitui orientação consolidada na jurisprudência, “com algum apoio na lei”, que as simples contrariedades ou incómodos apresentam “um nível de gravidade objectiva insuficiente para os efeitos do n.º 1 do art.º 496º” (ac. STJ, 11/5/98, Proc. 98A1262 ITIJ).
Logo, haverá que proceder à valoração dos factos provados, como consequências da conduta do lesante, servindo como linha de fronteira a separação entre aquelas que se situam ao nível das contrariedades e incómodos irrelevantes para efeitos indemnizatórios e as que se apresentam num patamar de gravidade superior e suficiente para reclamar compensação.
Seguidamente, como se tem entendido, dano grave não terá que ser considerado apenas aquele que é “exorbitante ou excepcional”, mas também aquele que “sai da mediania, que ultrapassa as fronteiras da banalidade.”
Logo, na concretização prática desses princípios, haverá que traçar a fronteira entre contrariedade e incómodos e o patamar de gravidade superior que integra já dano não patrimonial.
Ora, se é certo que tal distinção deve ser efectuada segundo um padrão objectivo, não é menos certo que o que se encontra na doutrina e jurisprudência são posições baseadas na casuística.
Seguindo de perto o decidido neste Tribunal, Acórdão proferido a 15/04/2008 (proc. nº 8470/2007-1, in jurisprudência.pt): «(P)ara encontrar o limite distintivo do dano moral deve partir-se dos valores estruturantes da vida em sociedade vigentes em cada momento, do modo de vida colectivo padrão.
Esse padrão varia ao longo da história; é uma evidência que o padrão de década de 60 do século XX (que foi o pensado pelo legislador do CCiv) não é o actual.
Nessa altura a sociedade portuguesa era uma sociedade de cariz rural, fechada, incutida de valores de ordem moral – como a honestidade, a honra, a verdade, a solidariedade vicinal, o respeito pelos outros e pelos dos compromissos assumidos – em que as pessoas se definiam mais pelo ser do que pelo ter, e que tinha incutida, mormente por via do regime político vigente, uma ideia de resignação (paciência ou conformação com que se sofrem os males).
Neste tipo de sociedade fazia sentido considerar-se como dano patrimonial considerável o “que, no seu mínimo espelha a intensidade duma dor, duma angústia, dum desgosto, dum sofrimento moral que, segundo as regras da experiência e do bom senso, se torna inexigível em termos de resignação” – ac. RC de 5/6/79, CJ IV-3-892.
Mas não nos parece que tal afirmação seja sustentável na actualidade em que o padrão de modo de vida se alterou substancialmente, não sendo, seguramente, a resignação um dos seus atributos.
Com efeito a sociedade contemporânea é uma sociedade urbana, cosmopolita, aberta, globalizada, complexa, em que relevam sobremaneira os aspectos formais da aparência, em que os valores de solidariedade interpessoal e de probidade se esbatem, em detrimento de valores materiais, centrada no sucesso e na comodidade pessoal.
Nessa consideração haverá situações que, há três dezenas de anos atrás, seriam consideradas meros incómodos (importunas, enfadonhas, molestas, nocivas) ou contrariedades (dificuldades, contratempos), mas que hoje são socialmente assumidas como importantes interferências na esfera das comodidades e direitos dos indivíduos.».
Acresce que também tem sido entendido que os transtornos, incomodidades e eventuais despesas ligadas ao próprio litígio e à actividade extraprocessual em que se concretiza a sua constituição, desenvolvimento e resolução não estão em relação de causalidade adequada com o ilícito contratual que está na sua origem. Defendendo-se que há que distinguir dois planos: o plano das consequências do próprio ilícito; e o plano das incidências do litígio que se gera, por iniciativa do lesado, para obter a reparação dessas consequências danosas. O nexo de causalidade juridicamente relevante (enquanto pressuposto da obrigação de indemnizar, nos termos do artigo 563.º do Código Civil) opera no primeiro plano, mas não no segundo.
Ora, a lei não enumera quais os direitos não patrimoniais merecedores de tutela, pelo que essa responsabilidade é atribuída ao tribunal, devendo ser apreciado, no quadro das várias situações concretas, socorrendo-se de factores objectivos, se o dano se mostra digno de proteção jurídica.
No caso concreto manifestamente o Autor não logrou provar o dano concreto que pudesse integrar o conceito em causa, nem sequer o nexo de causalidade entre a actuação da ré e o eventual dano sofrido.
Donde, evidentemente não é de concluir pela verificação dos pressupostos da responsabilidade civil que permitam sequer aferir da eventual aplicação de critérios de equidade, como defende o recorrente. Pois tais critérios são subsequentes à verificação do dano e destinam-se a fixar o quantum indemnizatório. In casu, é a ausência de prova do dano, bem como a prova do seu nexo causal que falha. Assim, é de declarar improcedente a apelação, mantendo-se a absolvição da ré do pedido formulado pelo Autor.
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IV. Decisão:
Por todo o exposto, Acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo Autor e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pelo apelante.
Registe e notifique.

Lisboa, 24 de Novembro de 2022
Gabriela de Fátima Marques
Adeodato Brotas
Vera Antunes