Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5397/19.6T8LRS.L1-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: TRANSPORTE RODOVIÁRIO DE MERCADORIAS
INDEMNIZAÇÃO
DOLO OU CULPA GRAVE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIAL PROVIMENTO
Sumário: I - Não pode a Ré-Apelante, com base no disposto na alínea a) do n.º 2 do art.º 18.º Decreto-Lei n.º 239/2003, de 04-10 (que regula o contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias), eximir-se da sua responsabilidade como transportadora, numa situação em que a carga - um motor acondicionado numa estrutura metálica (com 4 pés e duas barras de ferro/longarinas) normalmente usada para o transporte desse tipo de motores, com “filme” à volta, que assegurava a estabilidade do motor no transporte - foi, nas instalações da Ré, retirada do interior do camião desta (que a tinha ido buscar ao local de carregamento) com um empilhador manobrado por um trabalhador da Ré e levantada com as patolas desse empilhador, após o que, o empilhador fez marcha atrás e recuou cerca de uns 4 metros, tendo então travado de repente para evitar embater noutro empilhador e a carga caído das suas patolas para o chão.
II - Efetivamente, além de não ter ficado provado o que a Ré, de forma conclusiva, alegou, isto é, que a queda do motor foi devida ao “irregular acondicionamento do motor”, não resulta dos factos provados que o motor em apreço estivesse sujeito a qualquer perda ou avaria se não estivesse embalado, mas sim que o problema ocorrido se deveu à forma como se processou a descarga do motor e a operação de carga do mesmo para outra viatura (que o levaria ao local previsto para a entrega), considerando que as longarinas inferiores da referida estrutura metálica não se encontravam revestidas com tela de borracha e que o atrito entre tal estrutura metálica e as patolas do empilhador era praticamente nulo por se tratarem de superfícies em chapa metálica, facilitando o deslizamento daquela.
III - A limitação do valor da indemnização devida pelo transportador nos termos previstos no art.º 20.º, n.º 1, do referido diploma legal, é inaplicável nas situações previstas no art.º 21.º, ou seja, quando “a perda, avaria ou demora resultem de actuação dolosa do transportador”, sendo de considerar aqui pressuposta a equiparação da culpa grave ao dolo, incumbindo ao lesado que pretenda ser ressarcido com uma “indemnização sem limites” o ónus de provar o dolo ou culpa grave do transportador.
IV - No caso dos autos, não se pode considerar demonstrada uma atuação dolosa ou com culpa grave da Ré, por nada indicar que algum dos trabalhadores da Ré intervenientes no caso, em particular os dois operadores de empilhadores, tivesse sequer representado o risco de deslizamento da carga em apreço, não se podendo dizer que agiram com zelo ou diligência manifestamente inferior à que seria exigível. Assim, tendo existido, na atividade de transporte realizada, em particular na operação de carga/descarga realizada nas instalações da Ré, uma falta de diligência média, sem atingir o patamar de gravidade que justifique a equiparação ao dolo, impõe-se reduzir o valor da indemnização devida pela Ré, nos termos previstos no art.º 21.º, n.º 1, ou seja, fixando-a, ante o peso da carga de 1.200 Kg, na quantia de 12.000€.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO

SANTOS & VALE SUL – DISTRIBUIÇÃO, LDA., Ré na ação declarativa que, sob a forma de processo comum, foi intentada por NOATUM LOGISTICS PORTUGAL UNIPESSOAL, LDA., interpôs o presente recurso de apelação da sentença que julgou a ação parcialmente procedente.
Na Petição Inicial, a Autora pediu a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de 23.689,69€, acrescida dos respetivos juros desde a citação até efetivo e integral pagamento, alegando, para tanto e em síntese, que:
- A Autora é uma sociedade que se dedica à prestação de serviços de transitário, tendo no exercício da sua atividade subcontratado a Ré, que se dedica ao transporte nacional e internacional de mercadorias, para efetuar o transporte de um motor que se destinava a ser entregue nas minas da Somincor – Sociedade Mineira de Neves - Corvo, S.A., sitas em Castro Verde, transporte esse que lhe havia sido solicitado pela sua cliente Powerserv, Lda.;
- A carga não chegou ao destinatário, porque, conforme a própria Ré informou a Autora, no manuseamento em armazém, o motor caiu e ficou danificado, tendo a Ré questionado se podia devolver o motor à Powerserv para análise dos danos e possível reparação dos mesmos;
- A Autora anuiu informando a Ré de que os custos incorridos na recolha e entrega do motor, bem como os respetivos danos, seriam imputados à mesma, após o que informou a Ré de que a Powerserv havia identificado danos no exterior do motor e que era necessário desmontá-lo para identificar possíveis danos no seu interior, questionando a Ré se pretendia enviar o seu perito para observar a carga antes de a mesma ser desmontada, tendo esta respondido que a sua seguradora pretendia fazer a peritagem antes de se iniciar a possível reparação;
- Em 23-11-2018, após a vistoria ao motor, o perito nomeado pela seguradora da Ré referiu por email enviado à Powerserv que haviam sido verificados vários danos provocados por impacto e que não se opunha a que a Powerserv desmontasse o motor a fim de se verificarem eventuais danos internos, na sequência do que a Powerserv, em 28-11-2018, informou o mencionado perito de que o motor se encontrava desmontado e que aguardava a sua visita o mais rápido possível;
- O perito solicitou à Powerserv o orçamento de reparação, que a mesma lhe enviou no próprio dia, tendo a vistoria ficado então agendada para dia 29-11-2018, e, após ter vistoriado o motor, o perito anuiu a que a Powerserv iniciasse a reparação do motor;
- Nessa sequência, a Powerserv remeteu à Autora, por mail de 14-12-2018, com conhecimento ao perito, a fatura com o detalhe da reparação no valor de 23.318,51€, do que a Autora, por seu turno, informou a Ré por mail do mesmo dia, solicitando o respetivo pagamento;
- Depois de muitas insistências, a Ré respondeu à Autora, em 17-01-2019, que a sua seguradora havia declinado a responsabilidade sobre o sinistro;
- A Autora emitiu e remeteu à Ré fatura no valor de 23.318,51€, que suportou perante a sua cliente Powerserv para reparação do motor, com vencimento em 2 de março de 2019, fatura que a Ré, porém, devolveu por carta registada de 11-03-2019, alegando não ser devido o seu valor;
- Sobre a quantia de 23.318,51€ já se venceram juros, que ascendem a 371,18€.
Citada, a Ré apresentou Contestação, em que se defendeu por impugnação e por exceção, recusando ser responsável pelo pagamento da quantia peticionada, alegando, em síntese, que:
- O motor caiu no armazém da Ré quando um funcionário seu retirou o motor do camião onde havia sido transportado desde as instalações da Powerserv, a fim de fazer a transferência do mesmo para o veículo que faria a entrega na empresa destinatária;
- Foi utilizado um empilhador para retirar do camião o motor, o qual estava acondicionado sobre uma faixa metálica, ao invés de estar corretamente acondicionado numa palete de madeira, coberto por uma embalagem fechada, resistente, adequada ao conteúdo e às exigências do transporte, conforme exigido nas condições gerais constantes da proposta e tarifa comercial e condições gerais de prestação de serviços do contrato celebrado com a Autora;
- A estrutura de ferro não oferece as mesmas condições de atrito, fixação ao solo e de anti derrapagem, nem de área de contacto com as forquilhas que uma palete de madeira oferece, pelo que, em face de tal e de o motor não caber ainda quadrangularmente no suporte em que estava montado, aquele deslocou-se com a trepidação inerente ao andamento normal do empilhador, acabando por embater no chão;
- A Ré não assumiu a responsabilidade pelo pagamento da reparação da máquina transportada, não atuando o perito que fez a vistoria como seu representante, nem da seguradora Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A., com a qual a Ré celebrara contrato de seguro de responsabilidade civil decorrente da atividade de transporte rodoviário de mercadorias;
- Em qualquer caso, é aplicável a limitação da responsabilidade ao valor de 10,00€ por Kg da mercadoria transportada, nos termos do art.º 20.º do DL n.º 293/2003 de 04-10, o que corresponde a 12.200,00€ em face do peso de 1.220 Kg declarado pela Autora.
Na Contestação, a Ré deduziu incidente de intervenção provocada da mencionada seguradora. Por despacho de 09-03-2020 foi admitida a intervenção principal provocada passiva da Fidelidade - Companhia de Seguros, S.A.
Citada, a Interveniente apresentou Contestação, em que se defendeu por impugnação e por exceção, alegando, em síntese, que:
- Foi estipulada no contrato de seguro uma franquia de 500,00€ por sinistro;
- Verifica-se, quanto à sua demanda, a prescrição do direito da Autora nos termos do art.º 24.º do DL n.º 239/2003, por ter decorrido mais de um ano, à data da sua citação, desde a data do sinistro;
- O motor em causa era usado, pelo que estava expressamente excluído da cobertura do seguro, nos termos do art.º 4.º, n.º 3, al. j), das condições gerais do contrato de seguro celebrado com a Ré;
- A peritagem efetuada a mando da Interveniente foi condicional e porque desconhecia tratar-se de mercadoria usada, dado nada lhe ter sido comunicado nesse sentido;
- É aplicável ao caso a limitação da responsabilidade a que alude o art.º 20.º do DL n.º 293/2003 de 04-10;
- De acordo com as condições do contrato celebrado entre a Autora e a Ré, incumbia àquela o acondicionamento em embalagem fechada, resistente e adequada ao conteúdo e exigências da mercadoria a transportar, para além de que o volume a transportar não podia exceder 1.000 kg, sendo que, no caso, o motor pesava 1.200 Kg;
- O acondicionamento do motor foi efetuado de modo deficiente pela Autora, porquanto foi colocado no berço metálico sem qualquer material que evitasse um eventual deslizamento, não estando as longarinas inferiores do berço revestidas por tela de borracha para impedir deslocações e deslizamentos do motor, tendo sido por causa disso que se deu a queda, a uma pequena altura do chão, quando o motor estava já colocado no empilhador que acabara de o retirar do camião;
- A Seguradora não informou ou anuiu no sentido de a Autora ou a Powerserv iniciarem a reparação do motor, limitando-se o perito a libertar o motor para que o seu proprietário fizesse o que entendesse com o mesmo.
Notificada a Autora nos termos e para os efeitos do art.º 3.º, n.º 3, do CPC, pugnou pela improcedência das exceções alegando, em síntese, que:
- O motor foi devidamente embalado e acondicionado, sendo irrelevante a estrutura em que assentava não ser uma palete de madeira, pois os danos na mercadoria foram devidos a incúria da Ré no manuseamento da mercadoria nas suas instalações;
- É inaplicável a limitação da responsabilidade a que alude o art.º 20.º do DL n.º 239/2003 por o incidente ter ocorrido previamente ao início do contrato de transporte das instalações da Ré para o seu destino final;
- O art.º 24.º do DL n.º 239/2003 apenas aproveita ao transportador e não à seguradora, aplicando-se a esta o prazo de prescrição de 5 anos a que alude o art.º 121.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro aprovado pelo DL n.º 72/2008 de 16-04;
- Da guia de serviços junta aos autos pela Ré consta que todos os serviços da mesma estariam abrangidos por um seguro gratuito incluído no preço de envio, não sendo excecionados os serviços respeitantes a mercadoria usada.
Foi proferido despacho saneador em que se relegou para final a apreciação da exceção de prescrição e se decidiu, invocando “a simplicidade da causa” “não proceder à identificação do objeto do litígio e da seleção dos temas da prova, por manifesta desnecessidade”.
Realizou-se a audiência de julgamento, com produção de prova testemunhal, nas sessões de 18-01-2022 e 11-03-2022.
Após, foi proferido despacho, em 29-06-2022, determinando a notificação da Ré para juntar aos autos relatório elaborado pela testemunha JT e para indicar a morada de LR, cujo depoimento se considerou que seria determinante para a boa decisão da causa.
A Ré veio juntar o referido “relatório” mediante requerimento apresentado em 14-07-2023.
Foi reaberta a audiência de julgamento, tendo sido ouvida a testemunha LR (sessão de 20-01-2023).
Em 24-05-2023 foi proferida a sentença recorrida, cujo segmento decisório tem o seguinte teor:
“Termos em que, face ao exposto, e ao abrigo das disposições legais acima referidas, decido:
A) Julgar a presente ação parcialmente procedente e, em consequência, condenar a R. a pagar à A. a quantia de € 23.318,51 (vinte e três mil trezentos e dezoito euros e cinquenta e um cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa supletiva legal para os juros civis, desde a citação até integral pagamento;
B) Julgar a presente ação parcialmente improcedente e, em consequência:
- absolver a R. do demais peticionado;
- absolver a interveniente Fidelidade de todo o peticionado.
Custas a cargo da A. e da R. na proporção dos respetivos decaimentos – art.º 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.
Registe e notifique.”
É com esta decisão que a Ré não se conforma, tendo interposto o presente recurso de apelação, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões (sublinhado nosso):
A. A aqui Apelante não aceita, nem se conforma, com o sentido da Douta decisão proferida pelo Tribunal a quo, sendo sua firme convicção que merecem censura, quer a matéria de facto, quer a matéria de Direito consideradas pela Douta Sentença de que ora se recorre.
B. Entende a Recorrente que, considerando os elementos de que a Mmª Juiz do Tribunal “a quo” dispunha aquando da prolação da Douta Sentença, designadamente a prova documental e testemunhal produzidas, lhe era possível e exigível um sentido de decisão do que foi seguido, o qual se impunha em ordem à conformidade do aresto com a legislação em vigor e, em ordem ao incremento da confiança geral no poder judicial.
C. No entendimento da Recorrente, ressalvando o devido respeito por opinião diversa, o Tribunal a quo apreciou de forma incorrecta a prova produzida, impondo-se uma alteração da matéria de facto dada como provada e não provada.
D. É ainda firme convicção da aqui Apelante que se verificou um erro de julgamento, tendo ocorrido uma incorrecta subsunção dos factos ao Direito, sendo que, ainda que sem conceder, caso não assistisse qualquer razão à Apelante no que respeita à alteração da matéria de facto que perfilha, sempre se imporia que o sentido da decisão fosse diverso daquele que foi seguido.
E. O que antecede advém, no entendimento da ora Apelante, de uma incorrecta interpretação do estatuído no n.º 1, do artigo 20.º do D.L. 239/2003, de 04 de Outubro.
F. De facto, compulsada a matéria de facto considerada provada e não provada pela Mm. ª Juiz do Tribunal a quo, entende a ora Apelante que a mesma não faz jus à prova produzida, muito concretamente, no que respeita aos factos provados 11. e 15.
G. O entendimento que antecede assenta na análise da documentação carreada para os autos, bem como, na prova testemunhal produzida, concretamente, no depoimento do Sr. AD, o qual ficou gravado em acta no dia 18-01-2022, das 11:33:21 às 11:53:14, do Sr. LS, cujo depoimento ficou gravado em acta no dia 18-01-2022, das 14:12:25 às 14:49:06, do Sr. JT, cujo depoimento ficou gravado em acta no dia 18-01-2022, das 14:59:07 às 15:31:06, da Sra. CP, cujo depoimento ficou gravado em acta no dia 18-01-2022, das 15:32:21 às 15:47:08 e ainda do Sr. PR, o qual ficou gravado em acta no dia 18-01-2022, das 15:47:56 às 15:52:58.
H. Analisada a fundamentação atinente ao sentido de decisão da Mm. ª Juiz no que respeita ao facto provado 11., facilmente se conclui que a mesma assente na alegada falta de credibilidade que o depoimento do SR. JT lhe mereceu.
I. De facto, aparentemente, a Mm. ª Juiz terá fundado a sua convicção, de forma praticamente exclusiva, no relatório de averiguação, desacompanhado de qualquer declaração subscrita por quem efectivamente presenciou, o que, salvo melhor opinião, jamais se poderia ter verificado.
J. Cumpre notar que os autos se encontram munidos de documento sobejamente apto a infirmar a versão daquele relatório de averiguação, tendo o mesmo sido junto mediante Requerimento da Apelante, datado de 14-07-2022, com a referência 42875069.
K. Contrariamente ao relatório de averiguação, este último documento encontra-se devidamente assinado pelos únicos intervenientes que presenciaram o sucedido, a saber, Sr. JT e Sr. ER, correspondendo à descrição das concretas circunstâncias do incidente, a qual foi elaborada e subscrita a 15-11-2018, ou seja, no próprio dia da ocorrência.
L. Primeiramente, afigura-se incontornável concluir que o Sr. JT efectivamente presenciou o incidente, o que se extrai, quer do referido documento, [ref.ª 42875069], quer do depoimento do próprio, [entre o minuto 01:50 e o minuto 02:09], quer do depoimento da Sra. CP, [entre o minuto 04:18 e o minuto 04:56].
M. No que à concreta dinâmica do acidente concerne, o depoimento do Sr. JT afigurou-se absolutamente congruente, escorreito e verosímil, tendo informado o Tribunal que não se verificou qualquer tipo de ocorrência que tivesse ditado a queda do motor, mais informando que o mesmo caiu para a parte da frente do empilhador, passados 2/ 3 metros de o mesmo ter iniciado a manobra de marcha atrás, factos que se retiram do depoimento do próprio, [entre o minuto 02:34 e o minuto 05:44, entre o minuto 07:19 e o minuto 08:57, entre o minuto 23:42 e o minuto 24:18, entre o minuto 25:45 e o minuto 26:09 e entre o minuto 29:53 e o minuto 31:44].
N. Com efeito, o depoimento do Sr. JT acabaria por ser confirmado pela testemunha Sr. PR, que apesar de não ter presenciado o sinistro, confirmou o facto de o motor ter ficado tombado a cerca de 4 metros do local de saída do camião, resultando isso mesmo do seu depoimento, [entre o minuto 01:57 e o minuto 02:13].
O. Destarte, no entendimento da ora Recorrente o facto 11. jamais poderia ter sido dado como provado como o foi, antes se impondo a sua alteração por este Douto Tribunal Superior, passando constar do mesmo a seguinte reacção: 11. Após, o empilhador anteriormente referido fez marcha atrás e recuou cerca de três, ou quatro metros, momento em que, devido ao irregular acondicionamento do motor, o mesmo caiu para o chão, para a frente do empilhador.
P. Já no que concerne ao facto julgado provado n.º 15, não alcança a Recorrente dos motivos que imperaram a que assim fosse, não apenas pela prova testemunhal produzida, contrária a tal sentido de decisão, mais ainda atendendo à flagrante incompatibilidade entre tal facto e os factos provados n.º 13. e n.º 14.
Q. De facto, importa notar que foi o próprio Sr. Perito Averiguador, Sr. AD quem esclareceu o Tribunal acerca da desconformidade da estrutura que suportava o motor, dando conta de que o atrito entre o berço do motor e as patolas era praticamente nulo, evidenciando que as longarinas inferiores do berço deveriam estar revestidas de tela de borracha, tendo igualmente esclarecido que, no transporte com empilhador, é conveniente que se verifique o revestimento com tela de borracha, caso contrário, o manuseamento da mercadoria fica sujeito à verificação de situações como a dos autos, atendendo à falta de atrito, considerando que quer as patolas do empilhador, quer o berço, são de ferro, tendo tais declarações resultado registadas no seu depoimento, [entre o minuto 04:13 e o minuto 06:45]
R. Tal resultaria corroborado pelos depoimentos das testemunhas LS, [entre o minuto 11:35 e o minuto 12:32], do Sr. JT, [entre o minuto 16:51 e o minuto 17:57], do Sr. PR, [entre o minuto 03:30 e o minuto 03:43], as quais, a par disso mesmo, deram conta que não era habitual o transporte daquele tipo de mercadoria com a estrutura em questão.
S. Assim, resulta para a aqui Recorrente indiscutível a inadmissibilidade da manutenção do facto 15. da fundamentação de facto da Douta Sentença na matéria tida por provada, antes se impondo que este Douto Tribunal de Recurso se substitua ao Tribunal a quo, julgando essa mesma factualidade por não provada.
T. Ante a alteração da matéria de facto nos termos supra preconizados, torna-se incontornável a revogação do sentido final da decisão, através da qual o Tribunal a quo viria a imputar responsabilidades à Santos & Vale, na qualidade de transportadora, julgando a ação parcialmente procedente.
U. De facto, o que prescreve o artigo 17.º do D.L. 239/2003, de 04 de Outubro, aplicável ao contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias, é que o transportador torna-se responsável pela perda total ou parcial das mercadorias ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento e o da entrega, assim como pela demora na entrega, donde, sem qualquer margem para dúvidas, resulta para o transportador uma presunção de responsabilidade, designadamente, caso venham a ser impostos danos à mercadoria por ocasião do transporte.
V. Presunção essa que, nos termos do artigo 350.º, n.º 2 do Código Civil, pode ser ilidida mediante prova em contrário, sendo certo que, in casu, a Lei mais do que não proibir que a presunção de responsabilidade seja ilidida, expressa e taxativamente consagra os casos em que tal se verifica, os quais vêm elencados nos n.ºs 1 e 2, do artigo 18.º do D.L. 239/2003, de 04 de Outubro.
W. Tendo presente o referido preceito legal, importa atentar na factualidade tida por provada, com as alterações supra preconizadas, donde resulta a exclusão da responsabilidade da transportadora Santos & Vale, aqui Apelante.
X. Desde logo porque, conforme resulta inequivocamente provado, por ocasião da encomenda do transporte do motor, a Autora/ Recorrida, sociedade comercial Noatum logistics Portugal Unipessoal, Lda., fez expressa alusão ao transporte de uma palete, nos termos, condições e tarifas previamente estabelecidas entre a mesma e a aqui Recorrente, não tendo, por isso mesmo, sido enviada qualquer tarifa diferente, nem sugerido qualquer serviço especial.
Y. Resulta, por isso, inequívoca a desconformidade entre a encomenda levada a cabo pela Autora/ Recorrida e o concreto bem a transportar, já que o mesmo consistia num berço metálico, em nada condizente com as referidas paletes, independentemente das suas dimensões.
Z. Mais resulta evidente que, ainda que não se verificasse a sobredita desconformidade, ou seja, ainda que a Autora/ Recorrida houvesse sido precisa na informação prestada com a encomenda do transporte, designadamente, dando conta de que a mercadoria consistia num motor usado, acondicionado num berço metálico, facto é que esse mesmo motor foi acondicionado de forma manifestamente deficiente pelo expedidor, já que o motor foi carregado no camião pelo expedidor.
AA. O quanto antecede serve por dizer que, sempre ressalvando o devido respeito por opinião diversa, resulta inquestionável a verificação do facto liberatório contido na alínea a), do n.º 1, do artigo 18.º do D.L. 239/2003, 04 de Outubro, conquanto, tratando-se de um motor com o peso e dimensões do caso sub judice, era imperioso munir a estrutura que o suporta das mínimas condições que permitissem o seu manuseamento em segurança.
BB. E, tratando-se de um motor com 1220 kgs, em caso de projecção do mesmo sobre o solo, como se veio a verificar, o filme em que o mesmo vem enrolado não é minimamente apto a evitar a verificação de danos na mercadoria, facto que adensa a necessidade de evitar essa mesma queda, através de conveniente acondicionamento do motor, o que, in casu, se não verificou, não cabendo uma tal tarefa à aqui Recorrente, ante a sua qualidade de transportadora, que nem sequer ficou responsável por carregar a mercadoria no camião.
CC. Razão pela qual, tendo-se por verificado o sobredito facto liberatório, ter-se-á de dar por excluída toda e qualquer responsabilidade da Recorrente, impondo-se a revogação da Douta Sentença proferida, decidindo-se pela verificação da sobredita exclusão, com todas as devidas e legais consequências daí resultantes, mormente, a absolvição da Ré/ Recorrente do pedido.
DD. Quando assim não se entendesse, o que, sem conceder, ora se admite por elevada cautela de patrocínio, sempre se refira que, mesmo que se viesse a considerar que inexiste qualquer deficiente acondicionamento e embalamento da mercadoria que, pela sua natureza, estava sujeita a perda ou au avaria, como foi o caso, importa, desde já, notar que, no entendimento da ora Apelante, o Tribunal a quo esteve mal ao equiparar a mera culpa ao dolo, condenando a Recorrente a indemnizar a Recorrida na totalidade do valor peticionado a este respeito. 
EE. Com efeito, entende a Santos & Vale que a Mm. ª Juiz do Tribunal a quo, extravasou todo o conteúdo legislativo subjacente ao contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias, consagrado no Decreto-Lei n.º 239/2003, de 04 de Outubro, cuja consequência direta é, no caso concreto, a imputação, ao transportador, de uma responsabilidade que o próprio legislador pretendeu afastar.
FF. Com efeito, admitindo-se que existiria alguma responsabilidade por parte do transportador no contrato de transporte aqui em causa – o que não aconteceu, como se viu - prescreve o art.º 20.º, n.º 1 do DL n.º 239/2003 que “(…) o valor da indemnização devida por perda ou avaria não pode ultrapassar € 10 por quilograma de peso bruto de mercadoria em falta”.
GG. Do referido preceito legal extrai-se a consagração de uma limitação expressa da responsabilidade do transportador, o qual apenas responderá por um valor de €10 por Kg da respetiva mercadoria, responsabilidade essa que só é excecionada se se alegar, e resultar provado, que o transportador actuou com dolo na sua prestação, conforme se extrai do estatuído no artigo 21.º do supra referido diploma legal.
HH. Ora, no caso concreto, a Recorrida não identificou corretamente a mercadoria a transportar junto da Recorrente, fazendo crer junto desta que se tratava de um mero transporte de uma palete, não tendo igualmente o expedidor cuidado de acondicionar essa mesma mercadoria.
II. Mais resulta da factualidade efectivamente ocorrida que nenhuma responsabilidade pode ser assacada à Recorrente, que não agiu sequer com negligência, muito menos com dolo.
JJ. Com o devido respeito, a Recorrida não só não alegou quaisquer factos atinentes ao eventual dolo por parte da Recorrente no contrato de transporte aqui em causa, como não demonstrou fazer qualquer prova a esse respeito.
KK. Mais, a própria Recorrida aceitou, em sede de alegações orais aquando da Audiência de Discussão e Julgamento, que se impunha a limitação da responsabilidade de acordo com a previsão constante do artigo 20.º, n.º 1 do DL n.º 239/2003, razão pela qual não se entende como pôde o Tribunal a quo ter um entendimento diferente, e sem qualquer acolhimento legal.
LL. Para tanto, o Tribunal a quo recorreu e às normas previstas na CMR, que, convenhamos, não é aplicável ao contrato de transporte aqui em causa.
MM. De facto, in casu, nem sequer se pode falar em culpa grave, logo, jamais se poderá falar em dolo.
NN. Entende, assim, a Recorrente que jamais poderia o Tribunal a quo estender ou equiparar a “negligência” ao “dolo” previsto na exceção do art.º 21.º do DL n.º 239/2003, pois que não só não é a mesma coisa, como o Legislador, ao definir e concretizar o dolo neste normativo legal, pretendeu precisamente afastar desta excepção as formas de culpa menos gravosas.
OO. A assim não ser, bastar-lhe-ia ter feito expressa referência a “negligência” ou “mera culpa” e sempre se conduziria ao dolo para efeitos desta excepção – o que não foi, evidentemente, o caso.
PP. Assim, e em jeito de conclusão quanto a este conspecto, salienta-se que esteve mal o Tribunal a quo na interpretação do dolo para efeitos do art.º 21.º do DL n.º 239/2003, o que conduz, inevitavelmente, à violação deste preceito legal, bem como à violação do art.º 20.º, que lhe precede, pois que tomou uma decisão que não só é contrária ao direito, como é injusta e incorrecta (de facto e direito).
QQ. Impõe-se, por isso, que o Tribunal ad quem, aprecie devidamente as questões suscitadas, modificando e revogando a douta decisão em conformidade com o Direito e Justiça.
Terminou a Ré-Apelante requerendo que seja dado provimento ao recurso e “por essa via:
a) Deve o douto Tribunal Superior substituir-se ao Tribunal Recorrido, alterando a matéria de facto nos termos supra preconizados;
b) Deve ser revogado a Douta Decisão do Tribunal a quo, substituindo-se este Douto Tribunal Superior àquele, julgando a acção improcedente, absolvendo a Ré/ Recorrente do pedido, com todas as devidas e legais consequências; ou, caso venha a resultar diverso o entendimento deste Douto Tribunal Superior, subsidiariamente;
c) Deve ser revogada a Douta Sentença recorrida, ante a aplicabilidade da limitação da responsabilidade da Recorrida nos termos supra preconizados, sendo a acção julgada parcialmente procedente, com todas as legais consequências”.
Foi apresentada alegação de resposta, em que a Autora-Apelada defende que se mantenha a decisão constante da douta Sentença quer quanto à matéria de facto quer quanto à matéria de direito, concluindo nos seguintes termos:
I - Entende a ora APELANTE que o que deveria ter ficado provado quanto ao facto 11 deveria ser o seguinte:
11. Após o empilhador anteriormente referido fez marcha a trás e recuou cerca de três metros, ou quatro metros, momento em que, devido ao irregular acondicionamento do motor, o mesmo caiu para o chão, para a frente do empilhador.
II - Salvo o devido respeito não tem a Apelante qualquer razão.
III - Em primeiro lugar porque do documento, elaborado e subscrito no dia 15 de Novembro de 2018 e assinado pelo Senhor JT e Senhor ER não se pode retirar que o mesmo corresponde à descrição das concretas circunstâncias do acidente como pretende a ora APELANTE.
IV - Daquele documento, apenas se retira que quando andava para trás a carga tombou das patolas do empilhador.
V - Nada referindo as causas que originaram a queda do motor.
VI - O douto Tribunal “a quo” considerou, e bem, que o depoimento do Senhor JT não se afigurou credível na totalidade, desde logo pela sua clara falta de espontaneidade quando relatou a manobra em causa, denotando-se ter preparado o seu depoimento nessa parte.
VII - É o que, na verdade, se infere do depoimento da referida testemunha supra transcrito.
VIII - O acondicionamento do motor era o apropriado.
IX - Em primeiro lugar porque, conforme foi referido pela testemunha senhor JB a instâncias do mandatário da A. ora APELADA ao minuto 00:02:28 sobre aforma como costumam embalar este género de motores, aquela testemunha responde ao minuto 00:02:54: “Este tipo de motor, vem sempre embalado em berço metálico, é rececionado em berço metálico e com um resguardo de plástico. Neste caso, este motor, após a sua reparação, foi colocado no mesmo berço que o cliente nos forneceu...”
X - Por outro lado, a testemunha senhor AD, perito da Companhia de Seguros e que elaborou o relatório de peritagem, também, ao minuto 00:05:10, a instâncias do mandatário da A. ora APELADA sobre se a forma como o motor estava embalado, em berço, era normalmente adequado a este tipo de transporte, o mesmo respondeu, ao minuto 00:05:16: “Sim”
XI - A decisão sobre a matéria provada constante do facto 11 que a ora APELANTE pretende seja alterada, enquadra-se, apenas e só, no princípio da livre apreciação da prova pelo douto Tribunal a quo.
XII - Apreciação essa feita, no entender da A. ora APELADA em face dos depoimentos supra referidos e dos documentos juntos aos autos, baseada numa valoração racional, de acordo com as regras da lógia, da razão e das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos.
XIII - Deve, por isso, ser mantido o facto provado com a redacção constante da sentença ora em crise:
11. Após, o empilhador anteriormente referido fez marcha atrás e recuou uns metros, tendo então travado de repente para evitar embater noutro empilhador e a carga em causa caído das suas patolas para o chão.
XIV - Pretende a R. ora APELANTE que o facto provado número 15 seja dado como não provado.
XV - Salvo o devido respeito sem qualquer razão.
XVI - O Certificado de Vistoria elaborado e assinado pela testemunha AD expressamente refere, no ponto “PARTICULARES DE EMBALAGEM” que: “À data da nossa intervenção o motor estava acondicionado em berço metálico que normalmente é utilizado para o transporte” como, também, este facto foi confirmado não só esta testemunha, como decorre do depoimento da mesma supra transcrito como, também, pela testemunha JB.
XVII - Deste modo, dever-se-á manter como provado o facto constante do ponto 15 da matéria provada.
XVIII - Bem andou, por isso, o douto Tribunal “a quo” quando na sentença expressa a seguinte motivação: “O depoimento do perito indicado pela seguradora, AD, e o respetivo relatório de vistoria de fls. 90 e ss. foram ainda determinantes para a matéria provada em 13) a 15), tomando-se ainda em consideração o depoimento da testemunha JB quanto à matéria dos pontos 13) e 15). Tal relatório foi igualmente determinante para a matéria provada em 24), juntamente com a fatura junta como documento nº 4 da petição inicial.
XIX - Resulta manifestamente provado que a R. ora APELANTE sabia, perfeitamente, de que mercadoria se tratava e que a mesma estava bem acondicionada berço metálico, não tendo havido quaisquer reservas por parte do transportador aquando da recolha do mesmo nas instalações do cliente da A. ora APELADA.
XX - não faz qualquer sentido, como pretende a R. ora APELANTE, que a A. ora APELADA não tenha identificado concretamente, durante a contratação do transporte, a mercadoria a transportar, fazendo crer junto daquela que se tratava de um mero transporte de uma palete. Não nos podemos esquecer o peso e o volume que a A. ora APELADA comunicou àquela R. ora APELANTE, conforme resulta da matéria provada constante do facto 3.
XXI - o que a A. ora APELADA contratou com a R. ora APELANTE foi um transporte desde as instalações da Powerserv, Lda., sua cliente, no Cacém, até às instalações da EPDM-Empresa de Perfuração e Desenvolvimento Mineiro, S.A., sitas no Lugar de Algares, em Aljustrel.
XXII - Nada tendo sido acordado quanto a qualquer descarga intercalar nas instalações daquela APELANTE em Bucelas.
XXIII - Como muito bem se refere na douta Sentença ora em crise: “Tal foi assim unilateralmente decidido e efetuado pela R., a qual assumiu o risco inerente à descarga do motor em causa nas suas instalações, descarga essa que foi efetuada por um seu trabalhador.
Não foram, por conseguinte, dadas ou omitidas pela A., ou mesmo pela Powerserv, quaisquer instruções ou ordens atinentes a uma eventual descarga intercalar da mercadoria por parte da R. transportadora, não resultando tão pouco que tal fosse do conhecimento de qualquer uma delas e que as mesmas pudessem e devessem, nessa medida, ter acautelado quaisquer riscos daí advenientes mediante diligências/precauções adicionais.”
XXIV - Concluiu o douto Tribunal “a quo”: Por todo o exposto não se pode concluir que o sucedido se tenha devido à natureza ou vício próprio da mercadoria ou mesmo da sua embalagem, à culpa do expedidor ou do destinatário, ou a caso fortuito ou de força maior, não havendo assim exclusão da responsabilidade da R. nos termos do art.º 18º, nº 1 do D.L. nº 239/2003. Desse modo, cabe à R. responder pelo sinistro ocorrido, em conformidade com o disposto no art.º 17º, nº 1, do D.L. nº 239/2003.
XXV - E, como muito bem entende o douto Tribunal “a quo” a R. ora APELANTE não pode, no caso “sub judice” aproveitar-se da limitação de responsabilidade prevista o artigo 21º do citado Diploma Legal.
XXVI - O incidente não ocorreu durante o transporte, mas sim, numa descarga intercalar, não contratada entre a R. ora APELANTE e a A. ora APELADA, nas instalações daquela e por sua conta e risco.
XXVII - Nada tendo a ver o caso “sub judice” com o do acórdão invocado pela a R. ora APELANTE que trata de um extravio de mercadoria.
XXVIII - A conduta daquela R. ora APELANTE a forma de negligência já que a mesma não procedeu com o cuidado que lhe era exigível, de acordo com a diligência exigível ao homem médio nas circunstâncias do caso concreto (cfr. art.º 487º, nº 2, ex vi art.º 799º, nº 2, do Código Civil).
XXIX - Entendeu o douto Tribunal “a quo” perfilhar, e bem, a Jurisprudência constante do no Ac. S.T.J. de 12.10.2017, Relator Olindo Geraldes, processo 4858/12.2TBMAI.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt, que conclui: Face ao regime jurídico português, que equipara o dolo e a mera culpa, para efeitos de responsabilidade civil contratual, o transportador, com um comportamento meramente negligente, não beneficia da exclusão ou limitação da sua responsabilidade civil prevista na CMR, estando obrigado a reparar integralmente os danos sofridos pelo expedidor.”
XXX - Pelo que, e tal como concluiu o douto Tribunal “a quo” a R. ora APELANTE está “obrigada a indemnizar a A. de acordo com o preceituado nos artigos 562º e 566º do Código Civil, ou seja, e desde logo, o valor da reparação do motor que foi efetuada pela Powerserv e que foi por esta cobrado à A. mediante a emissão da respetiva fatura em nome da mesma, com detalhe da reparação efetuada, a qual contemplava a substituição dos componentes do motor com danos, no valor total de €23.318,512”
XXXI- No entender da A. ora APELADA a sentença proferida pelo douto Tribunal “a quo” não é passível de qualquer censura, devendo manter-se na íntegra.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

***

II - FUNDAMENTAÇÃO

Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).
Identificamos as seguintes questões a decidir:
1.ª) Se deve ser modificada a decisão da matéria de facto no tocante aos pontos 11 e 15;
2.ª) Se a Ré não está obrigada a indemnizar a Autora;
3.ª) Se, a existir obrigação de indemnizar, o valor da indemnização deve ser reduzido.

Dos Factos

Na sentença foram considerados provados os seguintes factos (assinalámos com asterisco os pontos impugnados):
1. A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à prestação de serviços de transitário.
2. A Ré é uma sociedade comercial que se dedica, entre outras atividades, ao transporte nacional e internacional de mercadorias.
3. Em 13-11-2018 a Autora solicitou à Ré, por mail, o transporte e subsequente entrega de uma palete de 150x150x100 com 1.220 kg, desde as instalações da Powerserv, Lda., sua cliente, no Cacém, até às instalações da EPDM - Empresa de Perfuração e Desenvolvimento Mineiro, S.A., sitas no Lugar de Algares, em Aljustrel.
4. Nessa data vigoravam entre as partes as condições e tarifas previamente fixadas na proposta comercial apresentada pela Ré com o teor constante de fls. 54v e ss. que se dá por reproduzido.
5. A mercadoria referida em 3) consistia num motor usado da EPDM que havia sido reparado pela Powerserv a seu pedido.
6. No dia 14-11-2018 o motor anteriormente referido foi carregado no camião da Ré nas instalações da Powerserv a fim de ser transportado com destino às instalações da EPDM referidas em 3).
7. O motor referido em 5) foi acondicionado e carregado pelo pessoal da Powerserv e entregue colocado num berço/estrutura metálica que assentava com 4 pés e tinha 2 barras de ferro/longarinas à volta, estando enrolado com filme, apresentando a carga o peso de 1.200 Kg.
8. O motorista da Ré não apôs na guia de transporte emitida relativa ao transporte em causa qualquer comentário ou reserva quanto ao estado desse motor ou da sua embalagem.
9. Tal carga foi amarrada pelo motorista no interior do camião da Ré e foi transportada até às instalações da Ré em Bucelas para transferência para outro veículo que seguiria até às instalações da EPDM.
10. Nas instalações da Ré em Bucelas a referida carga foi retirada nesse mesmo dia do interior do camião com um empilhador manobrado por um trabalhador da Ré, tendo a mesma sido levantada com as patolas desse empilhador.
* 11. Após o empilhador anteriormente referido fez marcha atrás e recuou uns metros, tendo então travado de repente para evitar embater noutro empilhador e a carga em causa caído das suas patolas para o chão.
12. Em consequência de tal o motor referido em 5) e 7) sofreu danos.
13. As longarinas inferiores do berço metálico/estrutura metálica referidas em 7) não se encontravam revestidas com tela de borracha.
14. O atrito entre tal estrutura metálica e as patolas do empilhador era praticamente nulo por se tratarem de superfícies em chapa metálica, facilitando o deslizamento daquela.
* 15. O berço/estrutura metálica referido em 7) era normalmente usado para o transporte de motores como o referido em 5), com o filme à volta, e assegurava a estabilidade do motor no transporte.
16. A Ré celebrou com a interveniente Fidelidade um contrato de seguro, titulado pela apólice n.º …/…, vigente a partir de 30-09-2017 e na data referida em 6), mediante o qual transferiu para a última a responsabilidade civil por transporte rodoviário nacional de mercadorias, tendo um limite máximo por veículo de transporte de 250.000,00€ e estando sujeito a uma franquia de 500,00€ por sinistro.
17. Nas condições particulares do contrato anteriormente referido foi estipulado ficarem excluídas da sua cobertura as mercadorias descritas no art.º 4.º, n.º 3, das condições gerais desse contrato, nos termos do qual “Salvo convenção expressa em contrário constante das Condições Particulares, ficam ainda excluídas das garantias deste contrato as indemnizações decorrentes do transporte de (...) j) mercadorias usadas de toda e qualquer espécie, bem como as que sejam objeto de devolução.”
18. Por mail de 15 de novembro de 2018 a Ré informou a Autora que a carga referida em 7) não havia sido colocada em distribuição porque no manuseamento em armazém o motor havia caído e haviam-se danificado vários componentes, questionando ainda se deveria devolver o motor à Powerserv para análise de danos e possível reparação dos mesmos.
19. A Autora respondeu por mails da mesma data informando que o motor seria para devolver à Powerserv no dia seguinte e que não iria pagar essa recolha/entrega, bem como que quaisquer danos que existissem seriam imputados à Ré.
20. Por mail de 19-11-2018 a Autora informou a Ré de que a Powerserv havia identificado imensos danos no exterior da mercadoria e que necessitaria de desmontar o motor para verificar o seu interior, questionando a Ré se pretendia enviar o seu perito para ver a mercadoria antes de ser desmontada.
21. Em 20 de novembro de 2018 a Ré participou o sinistro à Interveniente Fidelidade e por mail dessa data comunicou à Autora que aquela seguradora pretendia fazer a peritagem antes de se iniciar a possível reparação.
22. Em 23 de novembro de 2018 o perito indicado pela Interveniente seguradora fez a vistoria ao motor referido em 5) e 7), tendo verificado vários danos no mesmo provocados pelo impacto e, por mail daquela data, informou a Powerserv nada ter a opor a que a mesma procedesse ao desarme do motor a fim de verificar eventuais danos internos.
23. Foi efetuada a desmontagem do motor pela Powerserv e, após vistoria em 29 de novembro de 2018 pelo perito da seguradora, foi por este enviado um mail da mesma data à Powerserv informando que, após tal vistoria e verificação das peças reclamadas no orçamento de reparação apresentado pela Powerserv, “o motor está livre de vistoria e que nada temos a opor a que iniciem a sua reparação”.
24. O motor foi reparado pela Powerserv que emitiu em nome da Autora, em 14-12-2018, a fatura  …/…, com detalhe da reparação, a qual contemplava a substituição dos componentes do motor com danos, no valor total de 23.318,51€ (18.958,14€ + I.V.A.), tido por aceitável pelo perito da seguradora.
25. A Powerserv enviou tal fatura à Autora em 14-12-2018, solicitando o seu pagamento.
26. Nessa data e posteriormente a Autora insistiu junto da Ré pelo pagamento do valor anteriormente referido, tendo a última sucessivamente respondido estar a aguardar pelos desenvolvimentos da seguradora.
27. Após insistência feita pela Autora à Ré por mail de 17-01-2019, a última respondeu por mail de 19-01-2019 invocando que a seguradora havia informado que o motor era usado do ano de 2012 e que em momento algum o perito havia dado instruções de arranjo do motor, bem como que aquela iria declinar a responsabilidade sobre o sinistro.
28. Por mail de 21-01-2019 a Autora respondeu que o perito havia autorizado a reparação do motor.
29. A Autora emitiu em 31-01-2019, em nome da Ré, e enviou à mesma, a fatura n.º …/…, no valor de 23.318,51€ atinente à reparação do motor referida em 24), com vencimento em 02-03-2019.

Na sentença foram considerados não provados os seguintes factos:
a) Nas circunstâncias referidas em 2) e 3) da factualidade provada as condições gerais dos serviços prestados pela Ré constassem da guia de serviços junta a fls. 33 e ss. entregue à Autora;
b) Na proposta referida em 3) da factualidade provada constasse ser obrigação da Autora acondicionar os bens transportados em paletes ou embalagem apropriada ao transporte da mercadoria;
c) Nessa proposta constasse que o peso por volume transportado não poderia exceder os 1.000 Kg por volume;
d) O motor referido em 5) da factualidade provada não coubesse quadrangularmente no suporte metálico em que estava montado referido em 7) da factualidade provada, provocando por isso a trepidação do empilhador que o manobrava o efeito de pêndulo do motor;
e) A Autora tivesse pago à Powerserv o valor de 23.318,51€ da fatura referida em 24) da factualidade provada.

Da modificação da decisão da matéria de facto

Ponto 11

A Ré-Apelante pretende que seja alterada a redação do ponto 11), de modo a que, em vez de constar que “Após, o empilhador anteriormente referido fez marcha atrás e recuou uns metros, tendo então travado de repente para evitar embater noutro empilhador e a carga em causa caído das suas patolas para o chão”, passe a constar que “Após, o empilhador anteriormente referido fez marcha atrás e recuou cerca de três, ou quatro metros, momento em que, devido ao irregular acondicionamento do motor, o mesmo caiu para o chão, para a frente do empilhador.”
A motivação que da sentença consta a este respeito é a seguinte (retificámos os lapsos de escrita):
“Relativamente à factualidade provada em 10) a 12), o Tribunal ponderou em primeiro lugar o teor do documento junto a fls. 188 pela R. (em 14.07.2022) e o depoimento da testemunha JT que o subscreveu juntamente com o manobrador do empilhador que já não trabalhará para a R.
Por aquela testemunha foi dito ter visto como o motor caiu e confirmado que o empilhador já havia recuado uns metros quando o mesmo caiu das suas patolas, sendo tal queda compatível com os danos de impacto apresentados no motor conforme relatório de vistoria de fls. 90 e ss. do perito indicado pela seguradora. No entanto, o depoimento de JT não se afigurou credível na totalidade, desde logo pela sua clara falta de espontaneidade quando relatou a manobra em causa, denotando-se ter preparado o seu depoimento nessa parte. Por outro lado, também se estranhou o facto do empilhador ter chegado a recuar dois ou três metros com a carga, como afirmado por tal testemunha, e que depois, sem mais, ou seja, sem qualquer ação/evento exterior, a carga tivesse caído das suas patolas. Nessa medida, não pôde o Tribunal descurar o que terá sido dito ao perito da seguradora, conforme consta no relatório de vistoria por este elaborado constante de fls. 90 e ss., no sentido de que a queda do motor se deu após o empilhador em que estava carregado ter feito uma travagem brusca para evitar bater noutro empilhador que lhe havia passado à frente. Apesar de tal ter sido negado pela testemunha JT e ainda pela testemunha LR que, segundo consta do referido relatório de vistoria, terá sido quem informou o perito do referido, afigurou-se claro que esta última testemunha só poderá ter faltado à verdade, não dando tão pouco qualquer explicação quanto ao facto de constar no relatório o assim relatado, limitando-se a negar tudo, inclusivamente ter falado com o perito, claramente influenciado pelo facto de ser trabalhador da R. e não pretender prestar depoimento desfavorável à mesma.
É certo que a referida testemunha LR referiu não ter visto o sucedido, mas gerou-se a convicção, face ao constante do relatório de vistoria, de que terá sabido do sucedido maxime pelo manobrador do empilhador, ER, o qual já não se encontra ao serviço da R. e que, apesar de ter sido arrolado como testemunha, não se logrou notificar, desconhecendo-se o seu paradeiro.”
A Ré-Apelante argumenta que o documento junto mediante Requerimento da Apelante, datado de 14-07-2022, assinado por JT e ER a 15-11-2018, corresponde à descrição das concretas circunstâncias do incidente, infirmando a versão do relatório de averiguação. Mais invoca a relevância do depoimento da testemunha JT, por ter presenciado o incidente, como se extrai do referido documento, bem como do seu depoimento e do depoimento da testemunha CP, tendo também sido confirmado pelo depoimento da testemunha Sr. PR.
A Autora-Apelada defende que não se verifica o invocado erro de julgamento.
Apreciando.
Antes de mais, importa dar conta que este Tribunal da Relação atentou nos documentos acima indicados, designadamente no relatório elaborado por “perito” da Siniscarga (a solicitação da seguradora Interveniente principal), na “participação” junta com o requerimento de 14-07-2022 e nas fotografias juntas aos autos, em particular a fotografia a cores junta com o requerimento de 21-05-2021. Foi também ouvida na íntegra neste Tribunal da Relação a gravação de todos os depoimentos prestados na audiência de julgamento.
De referir, em primeiro lugar, que se nos afigura constituir matéria conclusiva e vaga a atinente ao “irregular acondicionamento do motor”, importando sim apreciar a forma concreta como o acondicionamento do motor foi efetuado e ponderar as caraterísticas da carga e do transporte, de modo a concluir se aquele não estava devidamente embalado.
Prosseguindo a nossa análise, é manifesto que não assiste razão à Apelante quando defende que a denominada “Participação de Acidente/Incidente” elaborada em 15-11-2018 e subscrita por ER e JT se mostra suficiente para contrariar o relatório da Siniscarga. Na verdade, aquela participação corresponde a uma página com um desenho tosco e uma descrição muito singela do acidente, feita por ER (ao que parece na qualidade de operador), referindo que Quando andava para trás a carga tombou das patolas da empilhadora; mais consta dessa participação o que parece ser uma menção feita por JT, referindo que a incidência foi comunicada ao gestor e, de forma completamente conclusiva, que o “operador zelou pelo correcto manuseamento da carga Pedidas mais informações”.
Já o relatório da Siniscarga - Sociedade Reguladora de Sinistros, Lda. - elaborado pela testemunha AD - que, sublinhe-se, o confirmou em audiência de julgamento -, com um total de 6 páginas (relatório junto aos autos com a Contestação da Interveniente, em 03-04-2020), contém informação mais completa, bem como fotografias, explicitando quanto aos “particulares da embalagem” que “o motor estava acondicionado em berço metálico que normalmente é utilizado para o transporte” e, quanto à análise da ocorrência, ter sido efetuada deslocação, em 21-12-2018, às instalações da Santos & Vale em Bucelas, onde o Senhor LR, na qualidade de responsável de armazém, acompanhou o “perito” ao cais n.º 5, local onde o motor tombou e se constatou que existiam marcas do impacto no solo, tendo referido que o manobrador ER já não trabalhava para a Santos & Vale e confirmado que “o sinistro ocorreu junto ao cais nº 5 ao final do dia 14.11.2018 e quando o manobrador o estava a carregar no veículo com destino ao Alentejo, altura em que foi obrigado a travar para evitar embater num outro empilhador que lhe passou à frente; mais consta desse relatório, como “Parecer sobre o sinistro”, que “Em nossa opinião o sinistro ocorreu conforme relatado, ou seja, o motor foi projetado ao solo nas instalações da Santos & Vale em Bucelas quando estava a ser movimentado por empilhador. Cumpre-nos referir que o atrito entre o berço do motor e as patolas é praticamente nulo e por se tratar de superfícies em chapa metálica.
Na nossa opinião as longarinas inferiores do berço deveriam estar revestidas por tela de borracha.
Cumpre-nos referir que a altura de um metro, a força de impacto era de 11Tons.”
Note-se que, na audiência de julgamento, a testemunha AD não afirmou que tivesse sido devido ao irregular acondicionamento do motor que o mesmo caiu, tendo apenas afirmado, tal como, aliás, também fez constar no relatório que elaborou, que poderiam ter sido adotadas outras medidas, com as longarinas inferiores do berço a serem revestidas por tela de borracha.
Da maior relevância foi o depoimento da testemunha JB, funcionário da empresa Powerserv, em cuja oficina o motor foi reparado e, depois de embalado, recolhido pela Ré, o qual foi categórico a afirmar que o transporte dos motores é habitualmente efetuado da forma descrita, ou seja, em berço metálico e embalado em plástico/filme, de modo a ficar fixo no berço metálico.
Quanto ao depoimento da testemunha JT, contrariamente ao que a Ré-Apelante sustenta, não se tratou de um depoimento escorreito e inteiramente credível, resultando, é certo, do teor do mesmo que a testemunha se encontrava presente no armazém na altura em que se procedia à descarga do motor, mas já não que tenha assistido à queda ou se, porventura assistiu, não soube ou não quis descrever a forma concreta como aconteceu. Na verdade, a testemunha, referindo-se ao empilhador que carregava o motor e a estrutura, afirmou que o motorista  encostou ao cais, meteu os garfos do empilhador, saiu de marcha atrás, andou 3, 4 metros para trás - tudo factos que facilmente são inferidos do mero visionamento do motor já caído no chão -, mas não deu nenhuma explicação para a queda em si, antes usou expressões que mais correspondem a conjeturas suas, afirmando que “deve ter travado”, “deve ter escorregado aquilo”; também disse que considerava que a estrutura metálica não era, a seu ver, adequada para o tipo de transporte que foi feito, afirmando que devia ter sido feito o que designou como “serviço direto” (isto é, do expedidor para o cliente final, sem operação intercalar de carga e descarga), mas não soube explicar qual seria a forma de acondicionamento mais adequada ao serviço de transporte realizado.
A testemunha PR, cujo depoimento nos mereceu credibilidade, também não presenciou a queda, tendo, todavia, afirmado que viu o motor no chão, próximo do cais, a cerca de 4, 5 metros à saída do camião, opinando que não considerava muito apropriado (seguro) fazer a descarga de motor suportado por estrutura metálica com um empilhador pois os garfos deste são metálicos, podendo assim a carga escorregar.
Tudo ponderado, da prova produzida, apenas resulta, a nosso ver, complementarmente ao que foi dado como provado no ponto 11), que o empilhador tenha recuado cerca de 4 metros. Porém, já não ficámos convictos quanto ao mais que a Ré-Apelante alega em sentido diverso do vertido em 11), tanto mais que, dado o peso do motor em questão e a circunstância de a estrutura metálica estar envolvida (pelo menos em parte) com um filme de plástico, nem nos parece provável que a queda do motor acontecesse sem nenhuma travagem inopinada, apenas devido ao “irregular acondicionamento” do mesmo (matéria que, repete-se, até se nos apresenta como sendo conclusiva), tão pouco que a queda tenha sido para a frente do empilhador (pois, ainda que logicamente não se conceba que tenha caído para trás, não podemos enjeitar a possibilidade de ter descaído para um dos lados, por o peso da carga não estar devidamente equilibrado).
Assim, altera-se a redação do ponto 11, passando a ter o seguinte teor:
“Após, o empilhador anteriormente referido fez marcha atrás, recuando cerca de uns 4 metros, tendo então travado de repente para evitar embater noutro empilhador e a carga em causa caído das suas patolas para o chão”.

Ponto 15

Na sentença foi dado como provado que o berço/estrutura metálica referido em 7) era normalmente usado para o transporte de motores como o referido em 5), com o filme à volta, e assegurava a estabilidade do motor no transporte.
A motivação que da sentença consta a este respeito é a seguinte:
“O depoimento do perito indicado pela seguradora, AD, e o respetivo relatório de vistoria de fls. 90 e ss. foram ainda determinantes para a matéria provada em 13) a 15), tomando-se ainda em consideração o depoimento da testemunha JB quanto à matéria dos pontos 13) e 15). Tal relatório foi igualmente determinante para a matéria provada em 24), juntamente com a fatura junta como documento nº 4 da petição inicial.”
A Ré-Apelante defende que o facto vertido no ponto 15) deve ser considerado não provado, argumentando, em síntese, que: o mesmo é incompatível com os factos constantes dos pontos 13) e 14); e ter sido produzida prova testemunhal em contrário, designadamente o depoimento de AD (perito averiguador) e das testemunhas LS, JT e PR, as quais, a par disso mesmo, deram conta que não era habitual o transporte daquele tipo de mercadoria com a estrutura em questão.
A Autora-Apelada defende que não se verifica o invocado erro de julgamento.
Apreciando.
Em primeiro lugar, não se nos afigura que o facto vertido em 15) seja incompatível com os constantes dos pontos 13) e 14), ou seja, com o facto de as longarinas inferiores do berço metálico/estrutura metálica referidas em 7) não se encontrarem revestidas com tela de borracha, e de o atrito entre tal estrutura metálica e as patolas do empilhador ser praticamente nulo por se tratarem de superfícies em chapa metálica, facilitando o deslizamento daquela.
Efetivamente, não se pode confundir o motor propriamente dito com o conjunto da carga, que era composta, além do dito motor, pelo berço/estrutura metálica referido em 7), com o filme à volta, tão pouco se podendo confundir o transporte propriamente dito (do conjunto da carga) com as operações de “carga e descarga”. Conforme consta dos pontos 7) e 9), foi o conjunto desses elementos - motor e estrutura metálica, envolvidos pelo “filme” (filme plástico, bem entendido) - que foi carregado e amarrado pelo motorista no interior do camião da Ré e foi transportado até às instalações da Ré em Bucelas, não se vendo motivo para pensar, antes pelo contrário, que, em virtude dos factos referidos em 13) e 14), a estabilidade do motor propriamente dito, no transporte, não pudesse ser assegurada.
Na verdade, conforme acima referimos, do relatório da Siniscarga consta que “o motor estava acondicionado em berço metálico que normalmente é utilizado para o transporte”.
Também o depoimento da testemunha JB, funcionário da empresa Powerserv, em cuja oficina o motor foi reparado e, depois de embalado, recolhido pela Ré, foi categórico a afirmar que o transporte dos motores é habitualmente efetuado da forma descrita, ou seja, em berço metálico e embalado em plástico/filme, de modo a ficar fixo no berço metálico.
É verdade que a testemunha AD, tal como, aliás, também fez constar no relatório que elaborou, afirmou que poderiam ter sido adotadas outras medidas (complementares), com as longarinas inferiores do berço a serem revestidas por tela de borracha, mas essa circunstância e tudo o mais referido nos depoimentos das outras testemunhas, não invalida que o transporte do motor pudesse ser feito, como era habitual, da forma descrita, sendo a estabilidade do motor no transporte assegurada também pelo facto, referido em 9), de a carga ficar, no interior do camião, devidamente amarrada pelo motorista.
Assim, mantem-se inalterada, neste particular, a decisão da matéria de facto.

Da obrigação de indemnização

Na fundamentação de direito da sentença teceram-se, no que ora importa, as seguintes considerações de direito (retificámos os lapsos de escrita; acrescentámos o sublinhado):
«O contrato de transporte constitui, na terminologia adotada pelo Código Comercial, um contrato especial de comércio, encontrando-se regulado nos art.ºs 366º e ss. do mencionado diploma legal, e carateriza-se pela convenção através da qual alguém se obriga perante outrem a obter a mudança, por esta pretendida, de pessoa e/ou mercadorias de uma para outra localidade. O mencionado contrato abarca, por definição, todas as operações necessárias, todos os atos materiais conducentes à transferência de uma coisa material de um local para o outro, não se esgotando na simples prática dos atos materiais de receção, embarque, deslocação e entrega da coisa transportada. Trata-se, por isso, de um contrato de resultado (Acs. R.P. de 23.01.84, C.J., 1984, Tomo IV, pág. 232, e de 25.02.88, C.J., 1988, Tomo I, pág. 213).
O art.º 1º do D.L. nº 239/2003, de 04.10. – na redação anterior à que lhe foi conferida pelo D.L. nº 57/2021, de 13.07., vigente à data dos factos e, por isso, aplicável ao caso por força do disposto no art.º 12º, nº 1 do Código Civil – estatui a aplicabilidade do regime instituído por tal diploma ao contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias, dispondo o seu art.º 2º que tal contrato é aquele em que o transportador se obriga, perante o expedidor, a deslocar mercadorias entre locais situados no território português e a entregá-las ao destinatário, por meio de veículos rodoviários.
Está em causa, como se disse, uma obrigação de resultado, ocorrendo o cumprimento da prestação do transportador com a entrega da mercadoria ao destinatário – cfr. art.º 12º do D.L. nº 239/2003.
A mercadoria deve ainda ser entregue no estado em que o transportador a recebeu e atempadamente, já que dispõe o art.º 17º, nº 1 do D.L. nº 239/2003 que o transportador é responsável pela perda total ou parcial das mercadorias ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento e o da entrega, assim como pela demora na entrega.
Assim, verificado um dano ocorrido entre o momento da receção da mercadoria até à entrega ao destinatário, decorrente da referida perda, avaria ou atraso na entrega, surge uma presunção de responsabilidade do transportador – cfr. “A Responsabilidade do Transportador Rodoviário de Mercadorias”, Adriano Marteleto Godinho, em “Temas de Direito dos Transportes”, coordenação de Manuel Januário Costa Gomes, Vol. I, Almedina, 2010, págs. 92-94 – o qual responde ainda, nos termos do nº 2 do mencionado art.º 17º, como se fossem cometidos por ele próprio, pelos atos e omissões dos seus empregados, agentes, representantes ou outras pessoas a quem recorra para a execução do contrato.
No caso, resulta claro da factualidade provada em 1) a 6) que entre a A. e a R., no exercício das respetivas atividades, foi celebrado um contrato de transporte, por camião, de um motor usado que havia sido reparado pela Powerserv, cliente da R., desde as instalações daquela, sitas no Cacém, até às instalações da EPDM – Empresa de Perfuração e Desenvolvimento Mineiro, S.A., sitas no Lugar de Algares, em Aljustrel.
Estamos, por conseguinte, perante um contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias celebrado entre a A. e a R., sendo assim aplicável o regime do sobredito D.L. nº 239/2003, de 04.10.
Provou-se ainda que o motor foi acondicionado e carregado pelo pessoal da Powerserv e entregue colocado num berço/estrutura metálica que assentava com 4 pés e tinha 2 barras de ferro/longarinas à volta, estando enrolado com filme, apresentando a carga o peso de 1.200 Kgs.
O motorista da R. não apôs na guia de transporte emitida relativa ao transporte em causa qualquer comentário ou reserva quanto ao estado desse motor ou da sua embalagem – cfr. pontos 7) e 8) da factualidade provada.
A este respeito importa notar que, nos termos do art.º 9º, nº 1 do D.L. nº 239/2003, o transportador pode formular reservas se, no momento da receção da mercadoria, constatar que esta ou a embalagem apresentam defeito aparente, bem como quando não tiver meios razoáveis de verificar a exatidão das indicações constantes da guia de transporte. Na falta de reservas, presume-se que a mercadoria e ou a embalagem estavam em bom estado aparente no momento em que o transportador as recebeu e que as indicações da guia de transporte eram exatas – cfr. nº 3 do mencionado art.º 9º.
No caso, essa presunção quanto ao estado aparente da mercadoria e da sua embalagem não foi ilidida, nos termos do art.º 350º, nº 2 do Código Civil, não se tendo provado, designadamente, que o motor não coubesse quadrangularmente no suporte metálico em que estava montado acima referido e que provocasse, por isso, a trepidação do empilhador que o manobrava o efeito de pêndulo do motor (cfr. alínea d) da factualidade não provada).
Pelo contrário, provou-se que o berço/estrutura metálica era normalmente usado para o transporte de motores como o transportado no caso pela R., com o filme à volta, e que assegurava a estabilidade do motor no transporte – cfr. ponto 14) da factualidade provada.
Isto posto, resultou apurado que a carga em causa foi amarrada pelo motorista no interior do camião da R. e foi transportada até às instalações da R. em Bucelas para transferência para outro veículo que seguiria até às instalações da EPDM.
Nas instalações da R. em Bucelas a referida carga foi retirada nesse mesmo dia do interior do camião com um empilhador manobrado por um trabalhador da R., tendo a mesma sido levantada com as patolas desse empilhador.
Após o empilhador anteriormente referido fez marcha atrás e recuou uns metros, tendo então travado de repente para evitar embater noutro empilhador e a carga em causa caído das suas patolas para o chão.
Mais se provou que em consequência de tal o motor em causa sofreu danos, bem como que as longarinas inferiores do berço metálico/estrutura metálica acima referidas não se encontravam revestidas com tela de borracha, e que o atrito entre tal estrutura metálica e as patolas do empilhador era praticamente nulo por se tratarem de superfícies em chapa metálica, facilitando o deslizamento daquela – cfr. pontos 9) a 14) da factualidade provada.
Presumindo-se a responsabilidade da R. por os danos assim provocados no motor objeto do transporte, a mesma poderá eximir-se da sua responsabilidade nos termos do art.º 18º do D.L. nº 239/2003.
Com efeito, dispõe esse preceito, com a epígrafe “Causas de exclusão da responsabilidade do transportador”, que:
“1 - A responsabilidade do transportador fica excluída se a perda, avaria ou demora se dever à natureza ou vício próprio da mercadoria, a culpa do expedidor ou do destinatário, a caso fortuito ou de força maior.
2 - A responsabilidade do transportador fica ainda excluída quando a perda ou avaria resultar dos riscos inerentes a qualquer dos seguintes factos:
a) Falta ou defeito da embalagem relativamente às mercadorias que, pela sua natureza, estão sujeitas a perdas ou avarias quando não estão devidamente embaladas;
b) Manutenção, carga, arrumação ou descarga da mercadoria pelo expedidor ou pelo destinatário ou por pessoas que actuem por conta destes;
c) Insuficiência ou imperfeição das marcas ou dos símbolos dos volumes. (...)”.
Nessa medida, a R. poderá reverter a presunção da sua responsabilidade se provar as denominadas causas liberatórias previstas no nº 1 do mencionado art.º 18º, ou os denominados factos liberatórios previstos no nº 2 desse preceito, impendendo assim sobre a mesma o respetivo ónus da prova da verificação de qualquer dessas situações, nos termos inclusivamente do art.º 342º, nº 2 do Código Civil.
Quanto às causas liberatórias, o transportador apenas se eximirá da sua responsabilidade se provar exatamente sob quais circunstâncias ocorreu o evento danoso e que há um nexo de causalidade concreto entre o dano e qualquer dessas causas, ou seja, que a perda, demora ou avaria teve origem exclusivamente nas causas liberatórias que invoca – cfr. Adriano Godinho, obra cit. supra, págs. 100-101, e Nuno Manuel Castello-Branco, em “Direito dos Transportes”, Almedina, pág. 95.
No caso dos factos liberatórios “o transportador contará com um regime probatório mais favorável (...). Uma vez provada a ocorrência de tais factos e a simples relação abstrata de causalidade que os ligue aos danos verificados, ónus este que recai sobre o transportador, surge uma presunção de causalidade, que gera, em última análise, uma presunção de irresponsabilidade do transportador. Nesse particular, a lei contenta-se com a plausibilidade de a origem dos danos estar no fato liberatório provado pelo transportador. Este pode se exonerar da sua responsabilidade se o fato liberatório suscitado puder ter sido a causa (total ou parcial) da ocorrência dos danos. Assim ao contrário do que se verifica em relação às causas liberatórias, em que o transportador deve fazer a dupla prova da existência do fator de exoneração e do nexo de causalidade em relação ao dano, no âmbito dos fatos liberatórios a simples prova de qualquer deles e de um nexo de causalidade plausível é suficiente para dar origem a uma presunção de irresponsabilidade do transportador.
Essa presunção de irresponsabilidade, contudo, é também relativa, podendo o interessado provar que, apesar da existência de um dos factos liberatórios, que habitualmente são capazes de gerar danos, não há qualquer relação de causalidade entre o facto invocado e a ocorrência dos danos. (...)” – cfr. Adriano Godinho, obra cit. supra, págs. 112 e 113.
No caso, como se disse, o embalamento e acondicionamento do motor em causa era adequado a assegurar a sua estabilidade durante o transporte, pelo que encontrava-se o mesmo devidamente embalado e acondicionado.
Também a operação de descarga em causa, na sequência do que o motor veio a sofrer danos, foi efetuada pela R.
Deste modo, não se verificam os factos liberatórios a que alude o art.º 18º, nº 2, als. a) e b) do D.L. nº 239/2003, sendo que também não se verifica a contemplada na alínea c) desse preceito.
Resta-nos então apurar se a responsabilidade da R. é suscetível de ser excluída nos termos do art.º 18º, nº 1 do D.L. nº 239/2003.
Neste âmbito coloca-se a questão das longarinas do berço metálico em que o motor se encontrava não se encontrarem revestidas com tela de borracha de modo a provocarem mais atrito e obviarem ao seu fácil deslizamento nas patolas do empilhador que procedia à descarga nas instalações da R.
Todavia, afigura-se que mesmo que se entendesse tal consubstanciar um vício inerente à embalagem do motor, ou seja, do referido berço metálico, o mesmo não era capaz, por si só, sem intervenção exterior, nomeadamente por parte do transportador - cfr. Adriano Godinho, obra cit. supra, pág. 105 - de ter estado na origem da queda em causa, tanto que para a mesma concorreu o facto da carga ter sido manuseada pelo empilhador e de este ter travado.
Por outro lado, há que ter em conta que a A. contratou a R. para transportar a carga em causa para as instalações da EPDM, nada tendo sido convencionado entre ambas quanto à descarga intercalar do motor nas instalações da R. em Bucelas com vista à sua transferência para outro veículo.
Tal foi assim unilateralmente decidido e efetuado pela R., a qual assumiu o risco inerente à descarga do motor em causa nas suas instalações, descarga essa que foi efetuada por um seu trabalhador.
Não foram, por conseguinte, dadas ou omitidas pela A., ou mesmo pela Powerserv, quaisquer instruções ou ordens atinentes a uma eventual descarga intercalar da mercadoria por parte da R. transportadora, não resultando tão pouco que tal fosse do conhecimento de qualquer uma delas e que as mesmas pudessem e devessem, nessa medida, ter acautelado quaisquer riscos daí advenientes mediante diligências/precauções adicionais.
Por outro lado, também não se provou que constassem das condições contratuais vigentes entre a A. e a R. que fosse obrigação daquela acondicionar os bens transportados em paletes (cfr. alínea b) da factualidade não provada), designadamente tendo em conta uma eventual maior capacidade de atrito destas nas operações de carga/descarga.
Por fim, também se não pode falar em caso fortuito ou de força maior, os quais assentam, respetivamente, na ideia de imprevisibilidade e de inevitabilidade (cfr. Adriano Godinho, obra cit. supra, pág. 108), dado que o sucedido seria previsível ou pelo menos uma possibilidade/um risco e, a ser previsto, seria passível de ser evitado mediante a adoção de precauções adicionais, como por exemplo, o recurso a outro tipo de manuseamento da carga ou ao manobramento do empilhador em espaço desimpedido e livre de modo a evitar travagens.
Por todo o exposto não se pode concluir que o sucedido se tenha devido à natureza ou vício próprio da mercadoria ou mesmo da sua embalagem, à culpa do expedidor ou do destinatário, ou a caso fortuito ou de força maior, não havendo assim exclusão da responsabilidade da R. nos termos do art.º 18º, nº 1 do D.L. nº 239/2003.
Desse modo, cabe à R. responder pelo sinistro ocorrido, em conformidade com o disposto no art.º 17º, nº 1, do D.L. nº 239/2003.»
A Ré-Apelante, estribando-se na decisão da matéria de facto com as modificações que requereu, veio defender, em síntese, que não incorreu na obrigação de indemnizar, por se verificar o facto liberatório contido na alínea a) do n.º 1 do art.º 18.º do DL n.º 239/2003, de 4 de outubro, porquanto, dado o peso e as dimensões do motor em apreço, era imperioso munir a estrutura que o suporta das condições mínimas que permitissem o seu manuseamento em segurança, o que não sucedeu.
A Autora-Apelada discorda, defendendo o acerto da decisão recorrida.
Vejamos.
É indubitável que entre as partes foi celebrado um contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias regulado pelo Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4 de outubro (na redação em vigor à data dos factos).
A demanda da Ré assenta fundamentalmente no disposto no art.º 17.º desse diploma legal, que, sob a epígrafe “Responsabilidade do transportador”, tem o seguinte teor:
“1 - O transportador é responsável pela perda total ou parcial das mercadorias ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento e o da entrega, assim como pela demora na entrega.
2 - O transportador responde, como se fossem cometidos por ele próprio, pelos actos e omissões dos seus empregados, agentes, representantes ou outras pessoas a quem recorra para a execução do contrato.”
Ora, tendo ficado danificado o motor transportado, a Ré, à partida, será responsável pelo sucedido.
A Ré pretende, todavia, prevalecer-se do disposto na alínea a) do n.º 2 do art.º 18.º, que contém um elenco de causas de exclusão da responsabilidade do transportador. Atentemos no que dispõem os n.ºs 1 e 2 deste artigo:
“1 - A responsabilidade do transportador fica excluída se a perda, avaria ou demora se dever à natureza ou vício próprio da mercadoria, a culpa do expedidor ou do destinatário, a caso fortuito ou de força maior.
2 - A responsabilidade do transportador fica ainda excluída quando a perda ou avaria resultar dos riscos inerentes a qualquer dos seguintes factos:
a) Falta ou defeito da embalagem relativamente às mercadorias que, pela sua natureza, estão sujeitas a perdas ou avarias quando não estão devidamente embaladas;
b) Manutenção, carga, arrumação ou descarga da mercadoria pelo expedidor ou pelo destinatário ou por pessoas que actuem por conta destes;
c) Insuficiência ou imperfeição das marcas ou dos símbolos dos volumes.”
Dos factos provados, que no essencial, coincidem com os considerados na sentença recorrida, não resulta, em nosso entender, que esteja verificada a causa de exclusão atinente à falta ou defeito da embalagem.
Efetivamente, não nos parece que o motor em apreço estivesse sujeito a qualquer perda ou avaria se não estivesse embalado, até se nos afigurando que o motor poderia ter sido transportado no compartimento de carga do camião mesmo sem estar “embalado”, contanto estivesse devidamente amarrado, o que é algo muito diferente. Aliás, a Ré-Apelante não diz, nem resulta dos factos provados qual seria porventura um outro tipo de embalagem mais adequado ao transporte do motor em apreço.
Os factos provados apontam para que o problema ocorrido não se deveu à embalagem propriamente dita, mas antes à forma como se processou a descarga do motor e a operação de carga do mesmo para outra viatura. Tanto assim que não existiu nenhum problema quando a mercadoria foi carregada no camião nas instalações da Powerserv. Só quando foi usado um empilhador, operado por um trabalhador da Ré, para retirar o motor do camião e o deslocar (para ulterior colocação numa outra viatura, de modo a ser transportado até ao destinatário final – não tendo a Ré determinado que fosse feito um transporte direto do expedidor ao destinatário), é que se deu a queda, a qual acontece em ato contínuo a uma travagem que o operador do empilhador teve de fazer.
Tudo indica que aquele trabalhador da Ré não teve em devida consideração a circunstância de não estar a mover uma vulgar palete, mas antes uma estrutura metálica, que servia de berço a um motor que pesava mais de uma tonelada, tudo revestido de filme plástico. Efetivamente, como os garfos do empilhador são metálicos e nem estes, nem o dito berço do motor, estavam revestidos de tela de borracha, sendo reduzido o atrito entre superfícies metálicas, teria sido apropriada a adoção de medidas complementares de segurança no decurso da operação de descarga/carga que estava a ser levada a cabo, se necessário com a colaboração de outro(s) trabalhador(es) da Ré, designadamente o recurso a um dispositivo de elevação com gancho, a aplicação de borrachas nas extremidades dos garfos do empilhador ou a colocação de cintas de amarração a tais garfos, ou, pelo menos, parece-nos, uma forma de condução mais prudente, assegurando-se que existia entre o camião que estava a ser descarregado e o local para onde o motor estava a ser levado um caminho o mais curto possível e desimpedido de quaisquer obstáculos. A Ré, ao aceitar fazer o transporte nos termos em que o fez, não podia descurar a adoção das medidas de segurança adicionais que eram aconselháveis na operação intercalar de descarga, pois a mercadoria em causa, pelas suas caraterísticas, não devia ser descarregada através de simples empilhador, como se de uma vulgar palete de madeira se tratasse.
Tudo ponderado, não nos merece censura o entendimento do Tribunal recorrido quando concluiu não haver exclusão da responsabilidade da Ré nos termos do art.º 18.º, n.º 1, do citado diploma legal. Em nosso entender, a Ré não logrou provar, como lhe incumbia, a verificação de uma situação excludente da sua responsabilidade, improcedendo, neste particular, as conclusões da alegação de recurso, até porque assentavam essencialmente numa pretensão de modificação da decisão da matéria de facto que não foi atendida.

Do valor da indemnização

Na fundamentação de direito da sentença teceram-se ainda, no que ora releva, as seguintes considerações (com sublinhado nosso e retificação de lapsos de escrita):
«Nos termos do art.º 20º, nº 1 do D.L. nº 239/2003, sem prejuízo do disposto nos seus artigos 6.º a 8.º, o valor da indemnização devida por perda ou avaria não pode ultrapassar (euro) 10 por quilograma de peso bruto de mercadoria em falta.
Todavia, preceitua o art.º 21º do D.L. nº 239/2003 que sempre que a perda, avaria ou demora resultem de atuação dolosa do transportador, este não pode prevalecer-se das disposições que excluem ou limitam a sua responsabilidade.
Comparativamente, o art.º 29º da CMR - Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR), nos termos do seu art.º 1º, nº 1, assinada em Genebra em 19/05/1956, aprovada em Portugal pelo Decreto – Lei n.º 46235, de 18/03/1965, o qual entrou em vigor em 21/12/1969 e foi objeto de alteração através do Protocolo de Emenda, aprovado pelo Decreto n.º 28/88, de 6 de Setembro - aplicável aos transportes internacionais de mercadoria por estrada, e da qual o mencionado D.L. nº 239/2003 foi decalcado, dispõe que o transportador não tem direito a aproveitar-se das disposições que excluem ou limitem a sua responsabilidade ou que transferem o encargo da prova se o dano provier de dolo ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja equivalente ao dolo.
Tal remete-nos para a noção de culpa, um dos pressupostos da responsabilidade civil.
Conforme refere Adriano Godinho, ob. cit. supra, páginas 142-143, a respeito do mencionado art.º 21º do D.L. nº 239/2003, “Deixou este dispositivo de consignar expressamente que também nas hipóteses em que o transportador adota uma conduta equiparável ao dolo se torna impossível que este veja alterada a sua responsabilidade. A omissão exposta, contudo, não pode ser interpretada como uma tomada de posição diversa daquela consagrada na CMR. Cabe entender que não é necessária uma referência expressa à possibilidade de serem validamente suscitadas as condutas culposas equivalentes ao dolo, por ser este o entendimento prevalecente em relação à generalidade das questões que envolvem o instituto da responsabilidade civil em Portugal, apesar das dissensões já assinaladas. Ademais, o próprio preâmbulo do Decreto-Lei n. 239/2003 justifica as eventuais divergências em relação ao texto da CMR, que têm por base precipuamente a diferente dimensão do espaço geográfico a que o texto interno se destina. Em princípio, deve-se aproximar o regime interno do seu modelo sempre que as aparentes diversidades em seu conteúdo não guardem qualquer relação com a distinta dimensão geográfica, como é o caso da invocação do dolo e das condutas dolosas a ele equiparadas.”
Como se expendeu no Ac. S.T.J. de 12.10.2017, Relator Olindo Geraldes, processo 4858/12.2TBMAI.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt, “No nosso ordenamento jurídico, o conceito de culpa, exprimindo um juízo de reprovação pessoal da conduta do agente, baseado nomeadamente no nexo existente entre o facto e a vontade do agente, pode apresentar-se sob duas formas diferenciadas, como sejam o dolo e a negligência ou mera culpa.
A distinção destas figuras, no âmbito da responsabilidade civil, tem interesse ainda que não tanto como no direito criminal, em virtude da responsabilidade civil privilegiar a função reparatória em detrimento da função punitiva (ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, I, 10.ª edição, 2004, pág. 567).
De qualquer modo, o art.º 494.º do CC não deixa de prever a limitação da indemnização no caso de mera culpa, desde que se verifiquem circunstâncias especiais que a justifiquem.
No entanto, o disposto nesta norma não é aplicável à responsabilidade civil contratual (ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, II, 4.ª edição, 1990, pág. 95, e ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 3.ª edição, 1979, págs. 363 e 531).
Do enunciado decorre que, no âmbito da responsabilidade civil contratual, não há limitação à indemnização por efeito da mera culpa, por não ser compatível, no geral, com as legítimas expetativas do contraente lesado. Assim, tanto o dolo como a mera culpa podem consubstanciar a culpa para efeitos de responsabilidade civil contratual, sendo indiferente a modalidade assumida pela culpa do devedor.
Face ao regime jurídico português, que equipara o dolo e a mera culpa, para efeitos de responsabilidade civil contratual, o transportador, com um comportamento meramente negligente, não beneficia da exclusão ou limitação da sua responsabilidade civil prevista na CMR, estando obrigado a reparar integralmente os danos sofridos pelo expedidor.”
Perfilha-se assim o entendimento de que, desde que os danos nos bens transportados tenham sido causados por uma conduta negligente do transportador, a sua responsabilidade não se encontra sujeita ao limite do art.º 20º do D.L. nº 239/2003 – cfr. neste sentido Ac. R.P. de 07.12.2018, proc. nº 4012/17.7T8MTS.P1, Relatora Maria de Jesus Pereira, acessível em www.dgsi.pt.
No caso em apreço, a conduta da R. assume a forma de negligência já que a mesma não procedeu com o cuidado que lhe era exigível, de acordo com a diligência exigível ao homem médio nas circunstâncias do caso concreto (cfr. art.º 487º, nº 2, ex vi art.º 799º, nº 2, do Código Civil), pois que na descarga nas suas instalações poderia ter manuseado a carga em causa de outra forma e/ou com precauções adicionais, tendo em conta designadamente o facto da mercadoria se encontrar acondicionada num berço metálico.
Deste modo, está a R. obrigada a indemnizar a A. de acordo com o preceituado nos artigos 562º e 566º do Código Civil, ou seja, e desde logo, o valor da reparação do motor que foi efetuada pela Powerserv e que foi por esta cobrado à A. mediante a emissão da respetiva fatura em nome da mesma, com detalhe da reparação efetuada, a qual contemplava a substituição dos componentes do motor com danos, no valor total de € 23.318,51 – cfr. pontos 24) e 25) da factualidade provada.
Pese embora se não tenha provado que a A. tenha chegado a pagar tal valor à Powerserv, aquela constituiu-se devedora para com esta, sua cliente, no mencionado valor, tratando-se por isso de um dano futuro gerado na sua esfera compreendido na obrigação de indemnização nos termos do art.º 564º, nº 2 do Código Civil.»
A Ré-Apelante insurge-se contra este entendimento, defendendo que se aplica ao caso o disposto no art.º 20.º, n.º 1, do referido Decreto-Lei n.º 239/2003, sendo errado equiparar a mera culpa ao dolo e, assim, condená-la a pagar a totalidade do valor indemnizatório peticionado.
A Autora-Apelada, por sua vez, pugna pelo acerto da decisão recorrida.
Vejamos.
O art.º 20.º, n.º 1, do referido diploma legal estabelece a limitação da responsabilidade do transportador, prevendo que, sem prejuízo do disposto nos artigos 6.º a 8.º (isto é, situações atinentes a declaração pelo expedidor do valor da mercadoria ou do valor do interesse especial na entrega da mercadoria, feita na guia de transporte, ou de menção nesta da cláusula de entrega mediante reembolso), o valor da indemnização devida por perda ou avaria não pode ultrapassar (euro) 10 por quilograma de peso bruto de mercadoria em falta.
Todavia, essa limitação é inaplicável nas situações previstas no art.º 21.º, o qual estabelece, sob a epígrafe “Responsabilidade do transportador em caso de dolo”, que “Sempre que a perda, avaria ou demora resultem de actuação dolosa do transportador, este não pode prevalecer-se das disposições que excluem ou limitam a sua responsabilidade”.
Esta norma foi, como é sabido, inspirada no art.º 29.º da Convenção relativa ao contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada (CMR), celebrada em Genebra em 19-05-1956, aprovada por adesão pelo Decreto-Lei n.º 46235, de 18-03-1965 (alterada pelo Protocolo de Genebra de 05-07-1978, aprovado para adesão pelo Decreto-Lei n.º 28/88 de 06-09, e pelo Protocolo Adicional sobre a declaração de expedição eletrónica, de 20-02-2008, aprovado pelo Decreto n.º 20/2019, de 30-07). O próprio preâmbulo do Decreto-Lei n.º 239/2003 disso dá conta, referindo que:
“O Código Comercial de 1888, de Veiga Beirão, fonte exclusiva de todo o direito comercial durante um longo período, inclui no livro II o regime jurídico do contrato de transporte de mercadorias, regime este que se encontra manifestamente desactualizado pelo decurso de mais de um século de vigência e por se tratar de uma disciplina construída numa época em que não existiam veículos automóveis.
A evolução técnica, económica e social verificada nas últimas décadas alterou profundamente o panorama do transporte de mercadorias por estrada, quer ao nível dos meios utilizados, quer nas formas contratuais, tornando necessário que, no plano técnico-jurídico, se adopte uma nova concepção do contrato de transporte.
Paralelamente ao regime aplicável aos contratos de transporte rodoviário de mercadorias, quando estes se realizam em território nacional, coexiste no ordenamento jurídico português um regime específico aplicável aos contratos de transporte internacional - Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR), assinada em Genebra em 19 de Maio de 1956, aprovada, para adesão, pelo Decreto-Lei n.º 46235, de 18 de Março de 1965, e modificada pelo Protocolo de Genebra de 5 de Junho de 1978, aprovado, para adesão, pelo Decreto n.º 28/88, de 6 de Setembro.
Esta Convenção consagra um regime jurídico que, sem ferir o equilíbrio necessário das relações contratuais, assegura mecanismos de protecção do transportador e, pese embora a evolução verificada nos processos técnicos de prestação de serviços de transporte desde a sua conclusão, mantém um grau satisfatório de correspondência com as realidades deste sector.
Sendo conveniente proceder a uma actualização do normativo regulador do contrato de transporte de mercadorias, justifica-se proceder à sua harmonização com o regime da Convenção, não só por este se revelar mais adequado às modernas condições de exploração dos transportes de mercadorias como para promover a uniformização da disciplina jurídica dos contratos de transporte por estrada.
O regime jurídico que ora se consagra visa aplicar-se a todos os contratos em que a deslocação de mercadorias se efectue por estrada entre locais situados no território nacional, exceptuando-se apenas os envios postais, cuja natureza específica aconselha um enquadramento jurídico distinto.
Foi dado acolhimento a novas modalidades de formalização da vontade contratual, tendo em conta que das novas tecnologias informáticas decorrem meios que agilizam a negociação e não prejudicam a certeza e segurança das declarações negociais.
No prosseguimento do objectivo de uniformização dos regimes aplicáveis ao contrato de transporte foram adoptadas regras de limitação de responsabilidade e estabelecido um regime de prazos para efeitos de mora ou de resolução do contrato, o qual, não reproduzindo exactamente o constante da CMR, atento o espaço geográfico em que se realizam os transportes a que se aplica o presente diploma, segue, no entanto, os mesmos princípios orientadores.
Atentemos, pois, no que dispõe o referido art.º 29.º da aludida Convenção, em particular no seu n.º 1: “O transportador não tem o direito de aproveitar-se das disposições do presente capítulo que excluem ou limitam a sua responsabilidade ou que transferem o encargo da prova se o dano provier de dolo seu ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo.”
Alguma jurisprudência nacional, mormente o acórdão do STJ de 12-10-2017 citado na sentença, que, sublinhe-se, versa sobre um contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, tem afirmado que face ao regime jurídico português, que equipara o dolo e a mera culpa, para efeitos de responsabilidade civil contratual, o transportador, com comportamento meramente negligente, não beneficia da exclusão ou limitação da responsabilidade civil prevista na Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR).
Nesta linha de pensamento, já numa situação de contrato de transporte nacional de mercadorias, veja-se o acórdão da Relação do Porto de 07-12-2018, proferido no proc. n.º 4012/17.7T8MTS.P1, disponível em www.dgsi.pt, conforme se alcança do respetivo sumário, com o seguinte teor:
“I - Desde que os danos infligidos nos bens transportados tenham sido causados por uma conduta negligente do transportador, a sua responsabilidade não se encontra sujeita ao limite do artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4-10.
II - Para excluir esse limite, constitui ónus do lesado provar a culpa do transportador e dos seus agentes.”
Não é isenta de dúvida a interpretação do citado art.º 20.º, n.º 1, pois se numa interpretação puramente literal se poderá entender que apenas o dolo releva para afastar a limitação da indemnização, não falta quem considere, tendo em conta também os elementos histórico e teleológico e transpondo a jurisprudência firmada a propósito do referido art.º 29.º, n.º 1, da CMR, que haverá exclusão de limitação de responsabilidade sempre que exista negligência, uma vez que o conceito de culpa, no nosso ordenamento jurídico (excluindo o âmbito do direito penal), exprime um juízo de reprovação pessoal da conduta do agente, sem destrinçar entre o dolo e a negligência ou mera culpa.
O que pensar?
O princípio geral da responsabilidade civil está consagrado no art.º 483.º do CC, nos termos do qual “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”
Ademais, o art.º 494.º do CC, sob a epígrafe “Limitação da indemnização no caso de mera culpa”, dispõe que: “Quando a responsabilidade se fundar na mera culpa, poderá a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem.”
Logo perante estes normativos, podemos dizer que não será rigoroso afirmar que o legislador nacional não distingue nunca entre dolo e mera culpa. Essa distinção existe e vem sendo explicada por doutrina e jurisprudência. Assim, é sabido que a responsabilidade civil extracontratual delitual ou por facto ilícito exige como pressuposto a culpa (art.º 487.º CC), ou seja, o juízo de imputação ético jurídico do facto ao agente, aferida segundo o padrão de conduta exigível, podendo este juízo ser de intensidade variável:
- o dolo, que pode ser dolo direto (quando há uma intenção de praticar o facto danoso), dolo necessário (quando o agente sabe que, como consequência necessária da sua atuação, ocorrerá o evento danoso) ou dolo eventual (quando o agente previu o resultado danoso como consequência possível da sua conduta e, apesar disso, atua, conformando-se com tal resultado);
- a negligência, que pode ser classificada como consciente (quando o agente previu o resultado danoso como consequência possível da sua conduta, mas atua por confiar que o mesmo não se verificará) ou inconsciente (quando o agente nem previu o resultado danoso como consequência possível da sua conduta), mas também como levíssima (correspondendo a uma atuação que apenas poderia ser evitada por um agente dotado de excecional cuidado e atenção), leve (aquela em que incorre um agente que atue com diligência inferior à que era exigível a um agente normal, medianamente diligente), ou grave, esta última correspondendo a uma negligência grosseira (uma conduta com zelo ou diligência manifestamente inferior à que seria exigível).
Em particular, a este propósito destacamos a definição avançada no acórdão do STJ (Seção Social) de 24-02-2010, no proc. n.º 747/04.2 TTCBR.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se afirma designadamente o seguinte:
“III - A negligência ou mera culpa consiste na violação de um dever objectivo de cuidado, sendo usual distinguir entre aquelas situações em que o agente prevê como possível a produção do resultado lesivo, mas crê, por leviandade ou incúria, na sua não verificação (negligência consciente) e aquelas em que o agente, podendo e devendo prever aquele resultado e cabendo-lhe evitá-lo, nem sequer concebe a possibilidade da sua verificação (negligência inconsciente).
IV - A negligência pode também assumir diferentes graus: será levíssima quando o agente tenha omitido os deveres de cuidado que uma pessoa excepcionalmente diligente teria observado; será leve quando o padrão atendível for o comportamento de uma pessoa normalmente diligente e será grave quando a omissão corresponder àquela em que só uma pessoa excepcionalmente descuidada e incauta teria também incorrido.
V - A negligência grosseira, correspondendo a uma culpa grave, pressupõe que a conduta do agente – porque gratuita e de todo infundada – se configure como altamente reprovável, à luz do mais elementar senso comum.
VI - A culpa grave deve ser apreciada em concreto – conferindo as condições do próprio acidentado – e não com referência a um padrão abstracto de conduta.”
Perante isto, parece-nos inaceitável afirmar, sem mais, que, no sistema de responsabilidade civil vigente, é feita uma plena equiparação do dolo à negligência, antes se nos afigurando mais correto que essa equivalência seja feita entre dolo e culpa grave.
Nesta linha de pensamento, veja-se o acórdão da Relação de Lisboa de 27-10-2022, proferido no proc. n.º 5366/21.6T8LSB.L1-2, disponível em www.dgsi.pt, relatado pelo ora 1.º Adjunto, e em que a ora relatora interveio como 2.ª Adjunta, conforme logo se alcança do ponto I do respetivo sumário, com o seguinte teor: “Para efeitos do artigo 29.º da CMR (afastamento da limitação da responsabilidade do transportador) a negligência grosseira/culpa grave é equivalente a dolo. Tendo em conta os últimos desenvolvimentos, o mais que se pode defender actualmente é que essa culpa tem de ser uma culpa grave consciente (uma falta indesculpável).” Na fundamentação desse acórdão, refere-se o seguinte a propósito do sistema jurídico português: «(…) mesmo desconsiderando os autores, como Galvão Telles, que diz (Dtº das Obrigações, 7.ª edição, Coimbra Editora, 1997, pág. 358), que “[a] culpa grave, sabemo-lo, é, em princípio, equiparável ao dolo. É-o no sentido de que, se a lei na sua letra só der relevância ao dolo, a sua estatuição deverá considerar-se extensiva à culpa grave, salvo se em relação a determinado preceito legal houver porventura razões ponderosas para entendimento contrário”, já no âmbito das regras gerais sobre a limitação da responsabilidade do devedor, com algumas excepções (referidas, por exemplo, em Ana Filipa Morais Antunes, que segue o mesmo caminho, no Comentário ao CC, Dtº das Obrigações, UCP/FD/UCE, Dez2018, páginas 1147 a 1157), equipara-se a culpa grave ao dolo para se concluir que só nestes casos (e não no de culpa leve) é que, por força do art.º 809 do CC, são proibidas as cláusulas, legais ou voluntárias, de limitação de responsabilidade. É a posição fundamental de António Pinto Monteiro em termos gerais (citado através daquela obra) e é a posição de João Ricardo Branco, Januário da Costa Gomes e Castello-Branco Bastos para a aplicação da CMR.
Isto não só por razões de ordem prática - como as dificuldades de provar a intenção dolosa -, mas também por força do princípio da boa fé, que veda a limitação da responsabilidade daquele que não observa as mais elementares regras de prudência. E também por razões de índole económico-social, como forma de evitar a generalização da incúria e da negligência no tráfico jurídico.
É também isto que resulta do regime das cláusulas contratuais gerais (LCCG) – aqui sem entendimentos contrários - onde o art.º 18/c-d equipara nitidamente a culpa grave ao dolo, sendo que a maior parte dos contratos de transporte são celebrados com recurso às cláusulas contratuais gerais.
O regime jurídico português do transporte nacional, do DL 293/2003, de 04/10, que apenas prevê, no art.º 21, a exclusão da limitação em caso do dolo, não impede a equiparação da culpa grave ao dolo para efeitos do art.º 29 da CMR porque esta “não manda, em nenhum momento, considerar especificamente o regime do contrato de transporte rodoviário interno de mercadorias: a remissão para a lex fori deve entender-se em termos amplos, como sendo uma remissão para os diversos sistemas jurídicos nacionais no seu conjunto” e “em matéria de Direito dos transportes […] a equiparação a culpa grave surgirá como princípio dominante no nosso regime sobre as cláusulas de limitação e de exclusão de responsabilidade.”
Para além de que, como diz Castello-Branco Bastos (obra já citada, página 115), se pode entender que a norma do art.º 21 do DL 293/2003 leva pressuposta a equiparação da culpa grave ao dolo que “em direito comum soi fazer-se.”
Dito isto, também quanto ao ónus da prova a nossa jurisprudência não tem sido unânime, disso dando conta o referido acórdão da Relação do Porto de 07-12-2018. Em nosso entender, muito embora seja de presumir a culpa do transportador (cf. 799.º, n.º 1, do CC), ante a regra geral de limitação de indemnização mencionada no art.º 20.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 239/2003, 04-10, incumbirá ao lesado que pretenda ser ressarcido com uma “indemnização sem limites” o ónus de provar o dolo ou culpa grave do transportador.
Nesta linha de pensamento, embora a propósito do transporte internacional de mercadorias, veja-se o acórdão do STJ de 29-04-2010, na Revista n.º 982/07.1TVPRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, de que citamos pelo seu interesse parte do respetivo sumário:
“III - Impende sobre o transportador, como devedor da prestação do transporte – uma obrigação de resultado [a deslocação incólume das mercadorias desde a sua recepção até à entrega ao destinatário] e, também, a adopção de deveres acessórios de conduta. 
IV - Na Convenção CMR, sobre o transportador e seus auxiliares, quando os houver, impende uma presunção de culpa que, se não for ilidida, implica em caso de demora na entrega – provando o interessado a existência de prejuízo – uma indemnização que não excede o preço do transporte; estamos perante uma indemnização forfetária. Já assim não é, se o dano emergente da demora ou da perda da mercadoria resultarem de actuação dolosa do transportador, ou de falta a si imputável que, segundo a jurisdição do país julgador, seja considerada equivalente ao dolo. 
V - Sendo a culpa um juízo de censura ético-jurídico, em função da actuação efectiva do agente, nas concretas circunstâncias em que agiu, e aquela que teria alguém razoavelmente prudente, avisado e cumpridor nesse mesmo quadro factual – o padrão do bonus pater famílias – desde logo, não pode abstrair-se das obrigações emergentes do tipo contratual, dos direitos e deveres implicados nas prestações recíprocas, das regras da boa-fé, bem como do padrão de conduta postulado por uma actuação que respeite os interesses da contraparte, visando a não frustração das expectativas do credor (princípio da confiança), para aferir se uma certa actuação culposa exprime negligência consciente ou dolo, ainda que indirecto ou eventual. 
VI - Próxima da figura do dolo, a negligência consciente consiste no facto do agente ter previsto a falta de cumprimento como efeito provável da sua conduta, mas, ainda aí, se demitir, voluntariamente, de adoptar uma actuação que evitaria o dano, ficando indiferente ou desconsiderando os efeitos dessa actuação, que representou como consequência do modo como, in concreto, agiu. 
VII - A negligência consciente coabita, paredes meias, com o dolo indirecto, razão pela qual se nos afigura de distintiva relevância convocar o tipo de contrato em causa, os deveres implicados na prestação do devedor, o padrão da sua actuação como profissional no contexto de uma actividade de maior ou menor relevância social e económica, tudo de par com a expectativa do credor na prestação e focados na maior ou menor complexidade da relação obrigacional. 
VIII - Se for de considerar que a concreta relação contratual exige uma actuação mais prudente e diligente do devedor que não cumpre, podendo cumprir, sobretudo num quadro factual que não dirime a sua culpa, ao ponto de não se poder afirmar que não previu, nem podia prever que a sua actuação iria causar danos, então deve considerar-se que a sua actuação se elevou do patamar mais benigno da negligência consciente, para considerar que agiu com dolo indirecto ou necessário. “
Transpondo estas considerações para o caso concreto, tendo presente a factualidade provada, é fora de dúvida que não existiu uma atuação dolosa da Ré, parecendo-nos também que não se pode considerar demonstrada uma atuação com culpa grave (ou mesmo com negligência consciente).
Na verdade, nada permite pensar que algum dos trabalhadores da Ré intervenientes no caso, em particular os dois operadores de empilhadores, tivesse sequer representado o risco de deslizamento da carga em apreço (cf. ponto 14), ou seja, que ao manobrarem da forma descrita poderiam ocasionar um evento como o dos autos, não se podendo dizer que agiram com zelo ou diligência manifestamente inferior à que seria exigível. Existiu seguramente, na atividade de transporte realizada, em particular na operação de carga/descarga realizada nas instalações da Ré, uma falta de diligência média, na linha do acima explanado, mas sem atingir o patamar de gravidade que justifique a equiparação ao dolo.
Assim, procedem em parte as conclusões da alegação de recurso, ao qual será concedido parcial provimento, impondo-se reduzir o valor da indemnização devida pela Ré, nos termos previstos no citado art.º 21.º, n.º 1, ou seja, fixando-a, ante o facto provado vertido no ponto 7), na quantia de 12.000€.

Ambas as partes ficam vencidas, sendo responsáveis pelo pagamento das custas processuais em ambas as instâncias, na proporção do respetivo decaimento (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC).

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III - DECISÃO

Pelo exposto, decide-se conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, revogar a sentença recorrida, na parte em que condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de 23.318,51€, que ora se substitui, condenando a Ré a pagar à Autora a quantia de 12.000€, absolvendo-a do restante valor peticionado.
Mais se decide condenar Autora-Apelada e Ré-Apelante, no pagamento das custas da ação e do recurso, na proporção do decaimento.

D.N.
Lisboa, 14-12-2023
Laurinda Gemas
Pedro Martins
Arlindo Crua