Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1690/10.1TBSCR-B.L1-2
Relator: ANTÓNIO MOREIRA
Descritores: RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
DIREITO DE RETENÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/04/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: É titular do direito de retenção todo o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição do imóvel a que se refere o contrato prometido, desde que o tenha destinado a seu uso próprio e não para revenda, e não só aquela pessoa singular que detenha a qualidade de promitente‑comprador de prédio urbano ou sua fracção autónoma, destinado a uso próprio (v.g. habitacional) e não integrado no exercício da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:
Por apenso à acção executiva movida por “Banif – Banco Internacional do Funchal, S.A.” contra “C., Ld.ª”, veio I. reclamar um crédito no valor de € 216.000,000.
Para tanto alegou que celebrou com a executada um contrato‑promessa de compra e venda das fracções autónomas BK e BK do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial do Machico sob o n.º 3728, que com a tradição passou a utilizar as fracções para o exercício da sua actividade comercial e que já foi liquidada a quantia global de € 108.000,00. Mais sustentou que tem sobre as referidas fracções autónomas um direito de retenção para garantia do seu crédito, que ascende ao dobro da quantia já paga.
A exequente veio impugnar a reclamação, concluindo pela improcedência da mesma.
Após resposta do reclamante I., onde defendeu a admissão da reclamação apresentada, com dispensa de audiência preliminar foi proferido despacho saneador, fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
Seguidamente foi realizada a audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferido despacho com a matéria de facto provada e não provada, seguido de sentença que julgou improcedente a reclamação de créditos.
O reclamante I. recorre desta sentença, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
1) A decisão proferida viola os artigos 755º/1-f) e 1.251, ambos do Código Civil.
2) Da Fundamentação de Direito resulta que o reclamante entregou à sociedade executada a quantia de 63.000,00 euros e que esta incumpriu definitivamente o contrato-promessa celebrado, já que as fracções autónomas prometidas vender se encontram penhoradas à ordem destes autos, concluindo que é devida a restituição do sinal em dobro e que o reclamante possui sobre a sociedade executada um crédito no valor de 126.000,00 euros.” (negrito e itálico nossos).
3) Do mesmo modo, o despacho saneador de 14/12/2015 (Ref.ª: 41081008) também declara que, “no caso concreto, notificado da reclamação o executado/devedor, ou promitente vendedor, este não impugnou o crédito em causa, pelo que deverá reconhecer-se a existência desse crédito e formado o título executivo e reclamado o crédito nos termos do requerimento do credor, de acordo com o disposto no artigo 792º, n.º3, do N.C.P.C.”. (negrito e itálico nossos).
4) Como resulta dos autos sobre as fracções objecto da promessa de venda foram penhoradas a 15/02/2011, o contrato promessa foi outorgada a 06/10/2009, sendo que o Reclamante entrou na posse das mesmas em 15/10/2009 e começou a pagar prestações a 01/11/2009, tendo já sido paga a quantia global de 63.000,0 € até Maio de 2013.
5) A doutrina a jurisprudência vão no sentido de admitir claramente a dedução reclamação de créditos por parte do promitente comprador com traditio -neste sentido Calvão da Silva e Menezes Cordeiro, ACÓRDÃO RP DE 1993/04/27 IN CJ ANOXVIII TIII PAG225, ACÓRDÃO STJ DE 1998/02/17 IN CJSTJ ANOIV TI PAG70, ACÓRDÃO RE DE 1996/12/12 IN CJ ANOXXI TV PAG283, ACÓRDÃO STJ DE 1996/11/19 IN CJSTJ ANOIV TIII PAG109, ACÓRDÃO RL DE 1991/11/21 IN CJ ANOXVI TV PAG135STJ de 27/4/93, CJSTJ e ACÓRDÃO STJ DE 1999/01/20, in BMJ nº 483, pág. 195.
6) Na verdade, cita-se o estudo do sobredito Menezes Cordeiro, “Da retenção do promitente na venda executiva”, ROA, ano 57, 1997, volume II, pág. 547 e seguintes, onde se defende que o direito de retenção do promitente-adquirente que beneficiou da traditio visa, também, assegurar o gozo da coisa, sobrevivendo à venda executiva, se o direito de retenção for anterior à penhora) e também, na jurisprudência, para além do supra citado acórdão do STJ de 20.01.1999, o acórdão da Relação do Porto, de 15/04/2008, processo n.º 0820536, in www.dgsi.pt), em que o direito de retenção reconhecido ao promitente‑adquirente nos termos da alínea f) do art.º 755.º, n.º 1 do Código Civil, se destina a garantir os créditos que para ele emergem do incumprimento definitivo do contrato-promessa pela contraparte, ou seja, nos termos do art.º 442.º do Código Civil, o dobro do sinal prestado ou o valor da coisa traditada, calculado nos termos aí previstos (neste sentido, v.g., Remédio Marques, “Curso de processo executivo comum à face do Código revisto”, Almedina, 2000, pág. 331, nota 934; Luís Miguel de Andrade Mesquita, “Apreensão de bens em processo executivo e oposição de terceiro”, Almedina, 2.ª edição, 2001, páginas 170 e 171; João Calvão da Silva, “Sinal e contrato-promessa”, Almedina, 12.ª edição, 2007, páginas 178 e 182; L. Miguel Pestana de Vasconcelos, “Direito de retenção, contrato-promessa e insolvência”, in Cadernos de Direito Privado, n.º 33, Janeiro/Março de 2011, página 4; José Lebre de Freitas, “A Acção Executiva Depois da reforma da reforma”, Coimbra Editora, 5.ª edição, 2009, pág. 283, nota 24; na jurisprudência, v.g., STJ, de 04.12.2007, processo 07A4070; STJ, 08.10.2013, processo 10262/06.4TBMTS.P1.S1; STJ, 04.02.2014, processo 360/09.8TCGMER.G1.S1; STJ, 30.4.2015, processo 1187/08.0TBTMR-A.C1.S1).
7) Ora quanto à natureza da traditio há quem considere tratar-se de uma verdadeira posse em nome próprio, titulada e causal -traditio- (art. 1263º, al. b) Código Civil) que é exercida no pressuposto de que o contrato será cumprido, antecipando-se o comprador a possuir a coisa como actual titular do direito à celebração do contrato prometido e como futuro proprietário (a escritura é uma mera formalidade), sendo que, após a entrega, verifica-se a demissão da posse pelo promitente-vendedor -neste sentido a doutrina por Calvão da Silva, pag. 112 e Menezes Cordeiro, e jurisprudência pelos Acs. RL, de 19/3/87, C.J. 2, 142; S.T.J. de 16/5/89, B.M.J. 387, 579; RP de 9/3/92, CJ 2 18-7.
8) Do art. 755º/ f) (antigo 442º/3) “gozam ainda do direito de retenção o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442º.
9) Ora, este artigo deve entender-se como aplicável a todos os contratos‑promessa e não somente aos do art. 410º, nº3 do Código Civil, sendo que, a noção do direito de retenção resulta do artigo 754º do Código Civil decorrendo directamente da lei que não tem que ser judicialmente declarado (RI. de 22/3/90, CJ 2, 141), não está sujeito a registo e prevalece sobre a hipoteca (759º/2 do Código Civil).
10) Contudo, entende a recorrente que, no caso concreto, até já foi judicialmente declarado o incumprimento definitivo por parte da promitente vendedora/executada e que existe um direito de crédito do Reclamante/Recorrente sobre aquela, o que só por si lhe confere o direito de retenção.
11) O direito de retenção é um direito real de garantia e não de gozo mas a alínea f) do aludido 755º do Código Civil refere o direito de retenção sobre essa coisa, o que sugere que o retentor pode recusar a sua entrega até ao recebimento do crédito indemnizatório.
12) O direito de retenção nos contrato promessa é concedido para garantia do crédito do contraente, mas o seu crédito abrange quer a prestação que não foi cumprida e que ele pode exigir através da execução específica quer a indemnização monetária que ele pode preferir e que funciona como o sucedâneo daquele outra (neste sentido ACÓRDÃO STJ DE 1999/01/20).
13) XII) Assim, é admissível e defensável que o retentor não possa impedir a penhora e venda da coisa retida, devendo entrar na graduação de créditos que sobre ela se faça, quando está em jogo tão-só um crédito monetário e/ou indemnizatório (neste sentido ACÓRDÃO STJ DE 1999/01/20).
14) Actualmente, perante a absoluta inércia da promitente-vendedora, aqui executada, e o facto de as fracções haverem sido penhoradas são reveladoras de uma vontade tácita de recusa de cumprir o contrato prometido por parte daquela, o que equivale ao incumprimento definitivo do contrato promessa por parte da Executada, conferindo ao recorrente o correspondeste direito de retenção.
15) Conferindo o direito de retenção, que não está sujeito a registo, ao seu titular, o direito de preferência que se sobrepõe, até, ao credor hipotecário, a penhora, tal como até apreensão de bens em processo falimentar, não afecta tal garantia, assegurando-se ao credor/retentor o direito de reclamar o seu crédito, em sede executiva ou falimentar, para o poder receber pelo produto da venda -cfr. -Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça Secções Cíveis -Número 182 – Junho de 2013 3. (sublinhado nosso).
16) O que está em causa na presente reclamação é confronto de dois direito reais de garantia, o de retenção (resultante do crédito judicialmente reconhecido) e o de hipoteca, sendo que o confronto entre os direitos reais de garantia em causa nestes autos é expressamente resolvido pelo artigo 759º/2 do Código Civil.
17) Assim, o direito de retenção existirá para garantir o crédito gerado pelo incumprimento definitivo do contrato-promessa, como é o caso dos autos, e não para garantir o crédito à prestação de facto ou seja, o uso ou fruição da coisa.
18) Aliás, tal ficou claramente expresso no art.º 839.º n.º 1 alínea c) do CPC de 1961, na redação que lhe foi introduzida pelo Dec.-Lei n.º 38/2003, de 08.3, o qual, regulando a constituição de depositário dos imóveis penhorados, passou a estipular que, se o bem for objeto de direito de retenção, “em consequência de incumprimento contratual judicialmente verificado”, o retentor será constituído depositário do bem.
19) Por conseguinte, a penhora mantém-se, e a nomeação do retentor como depositário (até à venda executiva do imóvel) só sucederá se o direito de retenção for reconhecido com base em incumprimento contratual judicialmente verificado (no mesmo sentido, no atual CPC, art.º 756.º n.º 1 alínea c), o que sucedeu no caso dos autos conforme referido supra em a.2) e a.3).
20) O direito de retenção do imóvel é um direito real de garantia, que confere ao seu titular o direito de executar a coisa nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário e de ser pago com preferência aos demais credores do devedor (n.º 1 do art.º 759.º do Código Civil), ou de invocar o seu direito em execução instaurada contra o devedor por terceiro, no âmbito do concurso de credores, meio através do qual é assegurada a sua posição jurídica (artigos 864.º e seguintes do CPC de 1961; artigos 786.º e seguintes do actual CPC).
Não foi apresentada qualquer alegação de resposta.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, a questão submetida a recurso, delimitada pelas aludidas conclusões, prende‑se unicamente com o reconhecimento do direito real de garantia invocado pelo reclamante I. e, na sequência desse reconhecimento, com a graduação do crédito respectivo em concurso com os demais créditos já verificados e graduados.
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A sentença recorrida considerou como provada a seguinte matéria de facto:
I. Por escrito particular, intitulado “Contrato Promessa De Compra e Venda”, datado de 6/10/2009, José M. e Maria M. (na qualidade de representantes legais da sociedade C., Ld.ª) declararam prometer vender a I., que por seu turno declarou prometer comprar, as fracções autónomas, designadas pelas letras BL e BK, do prédio urbano, constituído em regime de propriedade horizontal, localizado na Rua da (…), freguesia e Concelho de Machico (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Machico sob o n.º (…).
II. As partes declararam acordar no estabelecimento de um preço global para o negócio referido em 1. de € 402.000,00 (€ 302.013,15 relativamente à fracção BK e € 99.986,85 relativamente à fracção BL), a ser pago em 133 prestações mensais e sucessivas, sendo a primeira no montante de € 6.000,00 e as seguintes no montante de € 3.000,00, vencendo-se a primeira no dia 1/11/2009 e as seguintes no dia um de cada mês (com a última a vencer-se no dia 1/11/2020), pagáveis até ao dia 8 do mês a que respeite, por transferência bancária ou por depósito para a conta do Banif, titulada pela C., Ld.ª, com o n.º (…).
III. Os outorgantes declararam ainda, conjuntamente, que, com a assinatura do referido escrito particular, a C., Ld.ª autorizava expressamente I. a tomar posse do imóvel a partir do dia 15/10/2009, ficando este responsável pelo pagamento de todos os custos inerentes ao uso do mesmo, designadamente água, luz e condomínio.
IV. Os outorgantes declaram igualmente que, em caso de incumprimento por qualquer das partes, é havido como sinal o somatório da quantia recebida até à data do incumprimento.
V. Desde a data da assinatura do escrito particular referido em 1. até à data da interposição do incidente de reclamação de créditos (9/5/2013), o reclamante pagou à sociedade executada a quantia global de € 63.000,00.
VI. Logo que as referidas fracções foram entregues ao reclamante, este passou a pagar as quantias relativas aos seus custos, tais como água e luz, passando a utilizar o local para lojas de comércio.
VII. Pela apresentação 3392, de 15/2/2015, foram penhoradas (ao abrigo deste processo executivo) as fracções autónomas referidas em 1.
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Após caracterizar como contrato promessa de compra e venda o negócio celebrado entre o reclamante I. e a executada, caracterizando igualmente as entregas pecuniárias feitas pelo primeiro à segunda como sinal, e fazendo apelo ao disposto no art.º 442º do Código Civil, na sentença recorrida afirma-se o direito do reclamante I. à restituição em dobro (€ 126.000,00) do que entregou à executada (€ 63.000,00), mais se afirmando decorrer esse direito do incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda em questão, tendo presente que as duas fracções autónomas objecto da promessa de contratar se mostram penhoradas.
Todavia, o tribunal recorrido recusa o reconhecimento do direito de retenção a que alude a al. f) do nº 1 do art.º 755º do Código Civil, em garantia do crédito pecuniário em questão, afirmando a inaplicabilidade do referido preceito legal à situação concreta dos autos.
É a seguinte a fundamentação dessa recusa de reconhecimento do direito de retenção invocado pelo reclamante I.:
Todavia, o disposto no artigo 755º n.º1 f) do CC dever ser interpretado restritivamente no sentido de que apenas é aplicável aos consumidores.
Este entendimento foi vertido no Acórdão Uniformizador (AUJ) do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2014, de 20-03-2012, publicado no Diário da República – 1.ª Série, n.º 95, de 19/05/2014, do qual se extrai a seguinte decisão: “No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído na alínea f) do n.º 1 do artigo 755.º do Código Civil”.
Não obstante o referido AUJ ter sido proferido no âmbito de um processo de insolvência, o certo é que o princípio jurisprudencial estabelecido não poderá deixar de ser aplicado também no domínio de uma execução singular.
As premissas subjacentes às execuções universais e singulares são as mesmas, sendo ainda necessário salvaguardar a unidade do sistema, para evitar a possibilidade de um mesmo credor beneficiar de regimes jurídicos distintos consoantes se esteja no âmbito de um processo de execução ou no âmbito de um processo de insolvência.
Neste sentido, vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/04/2015 (in www.dgsi.pt): “(…)”.
No mesmo sentido, vide ainda o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/02/2016 (in www.dgsi.pt): “(…)”.
Isto posto, cumpre definir o conceito de “consumidor” para os efeitos do disposto no artigo n.º 755º n.º1 f) do CC.
O acórdão uniformizador de jurisprudência a que aludimos não fixou qualquer entendimento relativamente ao conceito de consumidor.
Nos termos do artigo 2.º n.º 1 da Lei n.º 24/96 de 31/7 (com as alterações decorrentes do DL n.º 67/2003 de 08/04 e DL 84/2008 de 08/05), “considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios”.
Por seu turno, o DL 24/2014 de 14 de Fevereiro, ao transpor a Directiva 2011/83/EU do Parlamento e do Conselho, de 25/10/2011, definiu como consumidor “a pessoa singular que actue com fins que não se integrem no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional”.
Destas normas decorre uma diferenciação entre o uso pessoal, com a satisfação de necessidades pessoais, e o uso profissional para exercício de uma actividade económica dela retirando proveitos.
Neste sentido, pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 05/07/2016, no qual se extrai o seguinte trecho com elevada preponderância para a nossa reflexão: “O AUJ n.º 4/2014, de 20 de Março de 2014, não uniformizou o conceito de consumidor, dali não decorrendo a dimensão normativa a atribuir, sendo certo que se vislumbra, pelo texto do Aresto que eventualmente se tivesse querido conferir um sentido estrito, isto é, afastando do seu âmbito apenas as situações em que a actuação vise fins que se incluam no âmbito da actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional do contratante. (…) Não ignoramos que a vexata quaestio que se põe no direito do consumo é a própria noção de consumidor, a qual segundo os entendidos, não se reduz a um único conceito, nos termos do Direito europeu, contudo pensamos que no essencial a tónica põe-se na qualidade em que a parte intervém no contrato: será consumidor aquele que adquire o bem ou serviço sem fins empresariais ou profissionais livres, cfr a noção que nos é dada pelo § 13 do BGB alemão «Consumidor é toda a pessoa singular que conclua um negócio jurídico com finalidade que não lhe possa ser imputada a título empresarial ou de profissional livre.» (…)”.
No mesmo sentido, vide ainda o decidido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/11/2015 (in www.dgsi.pt): “A opção legislativa no conflito entre credores hipotecários e os particulares consumidores, concedendo-lhes o “direito de retenção” teve e continua a ter uma razão fundamental: a protecção destes últimos no mercado da habitação; na verdade, constituem a parte mais débil que por via de regra investem no imóvel as suas poupanças e contraem uma dívida por largos anos, estando muito menos protegidos do que o credor hipotecário (normalmente a banca) que dispõe regra geral de aconselhamento económico, jurídico e logístico que lhe permite prever com maior segurança os riscos que corre caso por caso e ponderar uma prudente selectividade na concessão de crédito.”
Por último, é mister trazer ainda à colação os considerandos do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/11/2014: “A uniformização operada pelo AUJ n.º 4/2004, de 20-03-2014, publicado no DR, I Série, n.º 95, de 19-05-2014, e acessível em www.dgsi.pt, reporta-se, exclusivamente, ao promitente-comprador que detenha, simultaneamente, a qualidade de consumidor. Esta deve ser entendida no seu sentido estrito, correspondente à pessoa que adquire um bem ou um serviço para uso privado, de modo a satisfazer as necessidades pessoais e familiares, não abrangendo quem obtém ou utiliza bens e serviços para satisfação das necessidades da sua profissão ou empresa”.
À luz deste entendimento, que subscrevemos, impõe-se concluir que, no caso vertente, o reclamante não assume a qualidade de consumidor, desde logo pelo teor do facto dado como provado na alínea F)”.
Ou seja, segundo a sentença recorrida o reclamante I. não é titular da garantia real que decorre da al. f) do nº 1 do art.º 755º do Código Civil porque, apesar de ter obtido a tradição das fracções autónomas prometidas comprar e vender, destinou as mesmas ao comércio e não ao seu uso pessoal, não podendo assim ser considerado consumidor, para efeitos da aplicação da jurisprudência que decorre do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 4/2014, de 20/3/2014.
Todavia, atente-se no que vem referido na fundamentação do referido acórdão, relativamente à restrição da interpretação para abranger apenas a tradição do imóvel prometido a favor de quem seja consumidor:
Começaremos por referir que o “direito de retenção” é apenas uma dentre outras garantias (v.g. os privilégios creditórios) de igual ou maior gravosidade com que se poderá defrontar o credor hipotecário no âmbito de um processo de insolvência; e a sua inserção valorativa no seio do ordenamento jurídico é tão só o resultado de uma ponderação de interesses que a conjuntura social motivou no legislador graduar de uma determinada forma, acautelados os limites constitucionais. A tudo acresce que o “direito de retenção” é ainda, acima dos não registáveis, o mais transparente, já que tem, na generalidade dos casos, uma faceta visível em resultado da sua própria natureza; a do uso do objeto sobre que recai (na maioria imóveis para habitação) o que implica naturalmente, dada aquela compleição, a publicidade, que quase sempre funciona como aviso aos restantes credores em ordem a melhor poderem acautelar-se antes de optarem pela concessão de um crédito que comporta sempre certa álea de risco. Aliás a proteção ao promitente-comprador que o legislador tem seguido nos termos apontados, também não pretende ver postergados os legítimos interesses do credor hipotecário, que tendo investido, por via de regra, capitais avultados financiando a construção do imóvel quer ver assegurado o respetivo retorno, acrescido dos juros devidos. Assim se compreende que a alínea f) do artigo 755º nº 1 seja entendida restritamente de molde a que se encontre a coberto da prevalência conferida pelo “direito de retenção” o promissário da transmissão de imóvel que obtendo a tradição da coisa seja simultaneamente um consumidor”.
E a seguir à expressão “consumidor” é feita a chamada para a seguinte nota de rodapé:
Cfr. v.g. Miguel Pestana de Vasconcelos “Direito de Retenção Contrato promessa e Insolvência” in “Cadernos de Direito Privado”, 3 págs. 8 ss. Não sofre dúvida que o promitente-comprador é in casu um consumidor no sentido de ser um utilizador final com o significado comum do termo, que utiliza os andares para seu uso próprio e não com escopo de revenda”.
Ou seja, na economia da fundamentação do acórdão em causa, aquilo que ressalta é que se considera a expressão “consumidor promitente-comprador” como correspondendo ao promitente comprador que utiliza para seu uso próprio, e não com escopo de revenda, as fracções autónomas que lhe foram entregues.
Por outro lado decorre do voto de vencido do Conselheiro Abrantes Geraldes o seguinte entendimento:
A minha discordância relativamente ao decidido circunscreve-se apenas à explicitação de que o direito de retenção conferido pelo art. 755º, nº 1, al. f), do CC, apenas pode ser invocado no processo de insolvência nos casos em que o promitente‑comprador, titular do crédito reclamado, tem a qualidade de consumidor.
Como decorre dos preâmbulos do Dec. Lei nº 236/80, de 18 de Julho, e do Dec. Lei nº 379/86, de 11 de Novembro, o objectivo fundamental das modificações que foram introduzidas no regime do contrato-promessa de compra e venda, designadamente no que se reporta à atribuição do direito de retenção em situações de tradittio do bem, foi o de tutelar os interesses dos promitentes-compradores em geral, sem que o legislador tenha assumido formalmente a aludida limitação subjectiva. Por isso, não encontro motivos para a sua inscrição num acórdão de uniformização de jurisprudência proferido num processo em que, aliás, nem sequer foi discutida a qualidade em que o reclamante interveio no contrato-promessa de compra e venda.
Por conseguinte, além de sustentar a exclusão dessa limitação da fundamentação do acórdão, considero que a súmula jurisprudencial deveria ser a seguinte:
“No âmbito da graduação de créditos em processo de insolvência, o crédito do promitente-comprador emergente de contrato-promessa, ainda que com eficácia meramente obrigacional, em que tenha havido tradição da coisa, goza do direito de retenção, nos termos previstos no art. 755º, nº 1, al. f), do CC”.
Também o Conselheiro Pires da Rosa votou vencido na formulação do segmento uniformizador do acórdão em questão, com a seguinte fundamentação:
Recuperando o meu voto de vencido no acórdão (intercalar) que reconheceu a nulidade do original acórdão proferido nestes autos, anulando-o, direi que a questão colocada perante este Supremo Tribunal não é a da dicotomia consumidor/não consumidor como linha que separa a existência da inexistência do direito de retenção (até porque, reconhecidamente, esse problema se não colocou nas instâncias – veja‑se a nota 7 a fls. 19 do acórdão onde se escreve «não sofre dúvida que o promitente comprador é in casu um consumidor no sentido de ser um utilizador final com o significado comum do termo, que utiliza os andares para seu uso próprio e não com escopo de revenda»), mas antes a de saber se sim ou não, em processo de insolvência, se mantém vivo o direito de retenção configurado na al. f ) do nº1 do art.755º do CCivil, exactamente tal como essa configuração existe e tendo por detrás, naturalmente, as considerações constantes dos preâmbulos dos Decs.leis nºs236/80, de 10 de Julho e 379/86, de 11 de Novembro.
Mas exactamente porque a questão que nos é colocada era esta – a que se descreveu – e não outra, não penso que se possa redigir o segmento uniformizador do acórdão de um modo que não seja circunscrito a isso mesmo, deixando intacta a formulação do direito de retenção constante do artigo. Assim, por exemplo: o direito de retenção do beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, inscrito no art.755º, nº1, al. f ) do CCivil, permanece qua tale em processo de insolvência”.
 E dos votos de vencido dos Conselheiros Salreta Pereira, João Bernardo, João Camilo, Maria dos Prazeres Pizarro Beleza e Lopes do Rego igualmente decorre não haver qualquer razão para interpretar a al. f) do nº 1 do art.º 755º do Código Civil no sentido restritivo de só o promitente-comprador que seja consumidor (na acepção do nº 1 do art.º 2º da Lei 24/96, de 31/7) poder ser titular da garantia real em questão.
Assim, e na sequência do referido Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 4/2014, de 20/3/2014, o mesmo Supremo Tribunal de Justiça tem sido chamado a interpretar tal conceito de “consumidor”, impondo-se a corrente que considera que esse conceito compreende todo o promitente-comprador que não destina o imóvel ao comércio imobiliário (que é o mesmo que dizer que não o destina a revenda).
Assim, no acórdão de 29/5/2014 (relatado por João Bernardo e disponível em www.dgsi.pt) afirma-se que “cremos poder concluir que do conceito de “consumidor” inserto no texto da uniformização só está excluído aquele que adquire o bem no exercício da sua atividade profissional de comerciante de imóveis”.
E no acórdão de 17/11/2015 (relatado por Fonseca Ramos e disponível em www.dgsi.pt), conclui-se (em sumário) que “o conceito de consumidor que o referido AUJ acolheu foi o conceito restrito, funcional, segundo o qual consumidor é a pessoa singular, destinatário final do bem transaccionado, ou do serviço adquirido, sendo‑lhe alheio qualquer propósito de revenda lucrativa”.
E no acórdão de 16/2/2016 (relatado por Maria Clara Sottomayor e disponível em www.dgsi.pt) conclui-se (em sumário) que “segundo o AUJ n.º 4/2014, a qualidade de consumidor refere-se ao utilizador final dos imóveis, que faz destes um uso próprio, ao qual é alheio o escopo de revenda, mas não implica que o prédio seja urbano e se destine a habitação permanente do promitente-comprador”.
E no acórdão de 24/5/2016 (relatado por Nuno Cameira e disponível em www.dgsi.pt) conclui-se (em sumário) que “o conceito de consumidor constante da fundamentação do AUJ, ou seja, de utilizador final, com o significo comum do termo, que utiliza os andares para seu uso próprio e não com escopo de revenda, corresponde ao conceito estrito adoptado pelo ordenamento jurídico português”.
Por último, e também no acórdão de 3/10/2017 (relatado por Júlio Gomes e disponível em www.dgsi.pt), conclui-se (em sumário) que “do conceito de “consumidor” inserto no texto da uniformização só está excluído aquele que adquire o bem no exercício da sua actividade profissional de comerciante de imóveis” e bem ainda que “agem como consumidores, na acepção de utilizadores finais, e não como profissionais do ramo imobiliário, os recorrentes que instalaram nas respectivas fracções que prometeram comprar uma agência de seguros e um salão de cabeleireiro”.
Em todos estes acórdãos (e bem ainda na restante jurisprudência que aí é citada) é referida a circunstância do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 4/2014, de 20/3/2014, não ter uniformizado o conceito de consumidor, incidindo a uniformização apenas sobre a questão da aplicação do regime que decorre do art.º 755º, nº 1, al f), do Código Civil, em sede de insolvência.
Mas igualmente é referida a circunstância desse conceito não poder coincidir com o conceito segundo o qual se trata de “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional” (na formulação do nº 1 do art.º 2º da Lei 24/96, de 31/7). Ou bem ainda como aquele segundo o qual se trata da “pessoa singular que atue com fins que não se integrem no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional” (na formulação da al. c) do art.º 3º do D.L. 24/2014, de 14/2).
Por outro lado, e como já referiu Menezes Cordeiro a respeito da interpretação do disposto no art.º 755º, nº 1, al. f), do Código Civil (in Estudos de Direito Civil, volume I, Almedina, Coimbra, 1987, pág. 87), “O dispositivo do artigo 442º/3, versão de 1980, tinha aplicação, segundo a doutrina dominante acima ponderada, apenas a certos contratos‑promessas: os referidos no artigo 410º/3 do mesmo diploma de 1980. A versão de 1986, formalmente sistemática, vem conferir ao dispositivo um inequívoco sabor generalizante: todos os contratos-promessas em que haja tradição da coisa incorrem na previsão da retenção, hoje inserida no artigo 755º/1, f)”.
Que é o mesmo que afirmar que é titular do direito de retenção todo o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição do imóvel a que se refere o contrato prometido, desde que o tenha destinado a seu uso próprio e não para revenda, e não só aquela pessoa singular que detenha a qualidade de promitente‑comprador de prédio urbano ou sua fracção autónoma, destinado a uso próprio (v.g. habitacional) e não integrado no exercício da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional.
Pelo que, revertendo tais considerações ao caso concreto dos autos, tal como decorre da matéria de facto provada, logo se constata o desacerto da sentença recorrida.
É que o reclamante I. é titular de um crédito sobre a executada no valor de € 126.000,00, emergente do incumprimento definitivo, por esta, do contrato promessa de compra e venda que ambos celebraram. E no âmbito desse contrato promessa de compra e venda o reclamante I. foi autorizado pela executada a tomar posse das fracções, ficando responsável pelo pagamento de todos os custos inerentes ao uso das mesmas. O que passou a suceder desde que as fracções lhe foram entregues, passando igualmente a utilizar as mesmas, para lojas de comércio.
Ou seja, o reclamante I.:
a) É beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real de duas fracções autónomas;
b) É titular de um crédito resultante do não cumprimento dessa promessa, imputável à outra parte, nos temos do art.º 442º do Código Civil;
c) Obteve a tradição dessas duas fracções autónomas a que se refere o contrato prometido;
d) Passou a utilizar as mesmas duas fracções autónomas como lojas de comércio, suportando todos os custos inerentes ao uso das mesmas.
O que equivale a afirmar que, na conjugação do disposto no art.º 755º, nº 1, al. f), do Código Civil com a uniformização de jurisprudência que decorre do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/3/2014, o reclamante I. é titular do direito de retenção sobre essas duas fracções autónomas, tendo a faculdade de executar as mesmas, nos mesmos termos em que o pode fazer a exequente, enquanto credora hipotecária, e de ser pago com preferência aos demais credores da executada, mesmo com preferência sobre a exequente, como decorre do art.º 759º do Código Civil.
Neste sentido veja-se, por todos, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/9/2007, relatado por Santos Bernardino (disponível em www.dgsi.pt), aí se dispondo que “por se tratar de um puro direito real de garantia (e não de um direito real de gozo), o aludido direito de retenção não impede a penhora da moradia em causa, objecto da retenção, (nem, consequentemente, a sua ulterior venda executiva) no âmbito de qualquer execução judicial. Na verdade, os seus titulares (…) encontrarão satisfação no esquema da acção executiva, onde têm a faculdade de reclamar o seu crédito sobre o promitente-vendedor infiel, transferindo-se, com a venda, para o respectivo produto, o direito de garantia em causa, assim assegurando o pagamento com preferência aos demais credores do executado.
Ou seja: prosseguindo a execução até à venda judicial, o direito de retenção – direito real de garantia – caduca com esta venda, nos termos do n.º 2 do art. 824º, transferindo-se para o produto da venda, nos termos do n.º 3 daquele mesmo normativo”.
E como da matéria de facto provada não se retira o preenchimento de qualquer uma das circunstâncias a que alude o art.º 756º do Código Civil, não há lugar a falar de qualquer exclusão desta garantia real do crédito do reclamante I. sobre a executada.
O que equivale a afirmar a procedência das conclusões do reclamante I., havendo que revogar a sentença recorrida e substitui-la por outra que reconheça o crédito em questão, mais o graduando para ser pago pelo produto das fracções autónomas penhoradas, com preferência sobre os créditos já verificados e graduados, tendo em atenção o reconhecimento do direito de retenção de que goza.

DECISÃO
Em face do exposto julga-se procedente o recurso, revogando-se a sentença recorrida e substituindo-a por esta outra em que:
a) Se declara procedente a reclamação de créditos formulada pelo reclamante I., reconhecendo-se o crédito reclamado pelo mesmo, no montante de € 126.000,00 (cento e vinte se seis mil euros);
b) Se reconhece e declara o direito de retenção da titularidade do mesmo reclamante I. sobre as duas fracções autónomas penhoradas e melhor identificadas no ponto 1. dos factos provados, para garantia da satisfação do crédito acima referido;
c) Se gradua tal crédito no montante de € 126.000,00 (cento e vinte e seis mil euros), para ser satisfeito pelo produto das duas fracções autónomas acima identificadas, com prioridade sobre o crédito reconhecido na sentença de fls. 12 a 16 e sobre o crédito exequendo (melhor identificados nas al. b) e c) do dispositivo da referida sentença).
Sem custas.

Lisboa, 4 de Outubro de 2018

António Moreira

Magda Geraldes

Farinha Alves