Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
547/11.3TNLSB–C.L1-6
Relator: GILBERTO JORGE
Descritores: ARRESTO
NAVIO
CRÉDITO MARÍTIMO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/07/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. As despesas relacionadas com serviços de carregamento e descarregamento de navios e movimentação de contentores configuram “créditos marítimos”.
2. Não havendo coincidência entre o devedor e o proprietário do offending ship, aquele pode ser o locatário ou o afretador de casco nu ou a tempo ou por viagem do navio e o arresto pode ser decretado com base num dos créditos “comuns”.
(GSJ)
Decisão Texto Parcial:Acordam, na Secção Cível, do Tribunal da Relação de Lisboa
I – Relatório
S(…) – Terminal de Contentores de Santa Apolónia, S.A., com sede (…), Lisboa, intentou e fez seguir contra PM S I, S.A., com sede em (…) Espanha, o presente procedimento cautelar de arresto.
Para tanto e em síntese alegou que a pedido dos agentes de navegação da requerida prestou-lhe serviços portuários de carregamento e descarregamento de navios e movimentação de contentores, os quais não foram pagos, não obstante as sucessivas insistências que foram efectuadas para o efeito.
Tendo a final pedido o decretamento do arresto do navio T(…) TRES, com o IMO n.º 8411188 que arvora actualmente a bandeira do Panamá, para garantia do crédito de € 117.778,82.

Admitido liminarmente o procedimento, procedeu-se à inquirição das testemunhas arroladas pela requerente e à analise dos documentos juntos aos autos, sem observância do princípio do contraditório, após o que o Mm.º Juiz a quo proferiu decisão do seguinte teor:
“(…)
Nestes termos e com tais fundamentos, julgo procedente, por provado, o presente procedimento cautelar e, em consequência, decreto o arresto do navio T (…) TRES, com o IMO n.º 8411188 que arvora actualmente a bandeira do Panamá.
Efectuada a citação da requerida, notifique a requerente nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 2 do art. 389.º do C.P.C.
(…)”.

Notificada da decisão, a requerida deduziu oposição ao arresto tendo a final pugnado pela procedência da mesma e consequente revogação da providência decretada, ordenando-se a libertação da caução efectuada pela requerida; subsidiariamente, no caso de não ser revogada desde já a providência decretada, deve a requerente ser notificada para prestar caução nos termos do art. 390.º n.º 2 do C.P.C., em valor nunca inferior a € 134.711,50 que permita fazer face à indemnização em que se crê será condenada por uso sem a prudência normal do procedimento cautelar.
Para tanto e em síntese alegou não ter como objecto nem se dedicar à indústria dos transportes marítimos, antes dá de afretamento a tempo a terceiros as suas embarcações para que aqueles as explorem comercialmente.
Mais alegou não actuar em Portugal através da N(…) – Navegação e Trânsitos, Ld.ª, a qual não é seu agente, mas antes do afretador das suas embarcações, a saber, C S L – Transportes Marítimos, S.A.
Adianta também não ter contratado quaisquer serviços à requerente, nem directa nem indirectamente.
Sendo que os serviços prestados pela requerente respeitam à carga e não ao navio da requerida, pelo que é inaplicável in casu o regime da Convenção de Bruxelas de 1952.
Finalmente, adiantou que a requerente não detém qualquer crédito sobre a requerida e nunca a interpelou para proceder a qualquer pagamento.
Tendo o arresto causado prejuízos à requerida, decorrentes da imobilização do navio T (…) TRES, da importância que teve de colectar para oferecer a caução prestada nos autos e da perda de prestígio que a demandada tinha no mercado.

Admitida a oposição e produzidas as provas requeridas, o Mm.º Juiz a quo proferiu decisão nos seguintes termos:
“(…)
Nestes termos e com tais fundamentos, julgo improcedente a oposição deduzida pela requerida, PM S I, S.A., contra a requerente, S(…) – Terminal de Contentores de Santa Apolónia, S.A., e, consequentemente, mantenho o arresto do depósito bancário efectuado nos autos de prestação de caução apensos, substitutivo do arresto do navio T (...) TRES, com o IMO n.º 8411188 e pavilhão da República do Panamá.
(…)”.

Inconformada com tal decisão dela a requerida interpôs recurso que foi admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo.

A apelante sintetizou a sua alegação de recurso mediante as (extensas) conclusões seguintes:
(…)
Termos em que dando provimento ao presente recurso, revogando, nessa parte, a decisão recorrida e, consequentemente, determinando a improcedência do arresto com a subsequente devolução à apelante da caução que o substituiu.

A apelada contra alegou formulando as seguintes conclusões:
(…)
Termos em que deve ser negado provimento ao recurso mantendo-se nos autos a caução no valor correspondente ao montante das facturas correspondentes aos serviços prestados ao navio “T (...) TRES” e respectivos juros de mora.

Colhidos os vistos legais das Exm.ªs Juízes Desembargadoras Adjuntas cumpre agora apreciar e decidir ao que nada obsta.

II – Fundamentação de facto
O quadro factual dado como indiciáriamente provado – nas decisões que decretou o arresto e que conheceu a oposição – é o seguinte:
a) A requerente é uma empresa que se dedica à actividade de prestação de serviços portuários, nomeadamente, carregamento e descarregamento de navios e movimentação de contentores, entre outros, no Porto de Lisboa.
b) A requerida é proprietária de três navios de transporte de mercadorias denominados T (...) DOS, T (...) TRES e T (...) SIETE, com os IMO n.ºs 8502377, 8411188 e 8405933, respectivamente, e todos eles com pavilhão da República do Panamá.
c) Os três navios em causa encontravam-se afectos a uma linha de transporte marítimo entre Portugal e Cabo Verde.
d) Durante algum tempo a requerente prestou serviços portuários no Porto de Lisboa aos três navios acima referidos, propriedade da requerida, tendo existido inclusivamente uma tabela de tarifas aplicáveis ajustada entre a requerente e a sociedade N(...) – Navegação e Trânsitos, Ld.ª (adiante designada abreviadamente por N(...)) durante o ano de 2011 relativa aos mesmos, junta com o requerimento inicial como documento n.º 2 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
e) A requerente prestou serviços portuários aos navios em apreço entre 16.06.2011 e 16.09.2011, no valor global de € 110.291,30, titulado pelas facturas juntas com o requerimento inicial sob os documentos n.ºs 3 a 20 e 23 a 33, todas elas vencidas e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
f) A requerente prestou os seguintes serviços portuários: delivery empty/full containers, delivery motorcars/vehicles, discharging empty/full containers, discharging of motorcars/vehicles, export/import storage, ISPS Surcharge, loading full/empty containers, loading full transshipment, loading general cargo, loading of motorcars/vehicles, motorcars storage, receiving empty/full containers, receiving general cargo, receiving motorscars/vehicles, reefer units, shifting via quay, vehicles storage, yard to ship shore movement.
g) Apesar das sucessivas insistências da requerente, nenhuma das facturas acima referidas foi paga até ao momento.
h) A requerente não conhece outros bens à requerida.
i) A requerida é uma sociedade cuja actividade consiste em adquirir navios e dá-los de fretamento a terceiros para que estes os explorem a troco do pagamento do correspectivo frete.
j) Os afretadores dos seus navios, que os exploram comercialmente, procedem ao transporte marítimo de mercadorias.
k) Em 01.05.2006, a sociedade C S L – Transportes Marítimos, S.A. – pessoa colectiva n.º 506213404, com sede (…) – Matosinhos – (adiante designada abreviadamente por C (…)) tomou de fretamento a tempo, pelo período de 6 anos, os navios da requerida T (...) TRES e T (...) SIETE, a troco dos fretes de € 3785 e € 6000, respectivamente, tudo nos termos das cartas-partidas tipo Baltime 1939 juntas com a oposição sob os documentos n.ºs 4 e 5 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
l) Em 13.02.2008, a mesma sociedade C (...) tomou de fretamento a tempo, pelo período de 6 anos, o navio da requerente T (...) DOS, a troco do frete de € 3984,30, tudo nos termos da carta-partida tipo Baltime 1939 junta com a oposição sob o documento n.º 6 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
m) A C (...) utilizava os navios da requerida na exploração da sobredita linha marítima entre Portugal e Cabo Verde.
n) Tal exploração era feita directamente pela C (...) e/ou através da N(...) a quem, como agente daquela, competia a angariação de carga e clientela.
o) Em momento algum a requerida actuou no transporte marítimo através da N(...).
p) A N(...) afiançou a C (...) nas suas responsabilidades perante a requerida nos contratos de fretamento celebrados com a requerida.
q) A requerida jamais solicitou à requerente a prestação de quaisquer serviços.
r) A requerida não possui nem transporta por sua conta contentores.
s) Os conhecimentos de carga respeitantes às mercadorias transportadas nos navios da requerida eram emitidos pela N(...) em nome da C (...).
t) A requerida não interveio na celebração de tais contratos nem é citada nos conhecimentos de carga que os titulam.
u) A requerente prestou os sobreditos serviços portuários a pedido da N(...)/C (...).
v) A requerente facturou os sobreditos serviços à N(...).
w) A N(...) recebeu os respectivos custos dos seus clientes, a quem os repercutiu.
x) A requerida jamais foi interpelada pela requerente para proceder ao pagamento das sobreditas facturas.
y) A N(...) apresentou-se à insolvência – estando o processo respectivo a correr termos no 1.º Juízo do Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia sob o n.º 1018/11.3TYVNG – tendo a mesma na petição inicial indicado a requerente como sendo sua credora pelo montante de € 118.897,70.
z) Quando foi pedido o presente arresto, o T (...) TRES encontrava-se fretado à sociedade V & S – Transportes Marítimos, com sede (…), Funchal, à razão de € 3250 por dia.
aa) No período compreendido entre 31.10.2011 e 26.11.2011, a requerida deixou de auferir tal quantia.
bb) As mercadorias carregadas no T (...) TRES foram descarregadas e colocadas a bordo de outro navio a fim de poderem ser transportadas.
cc) Tal facto originou custos de € 14.661,50 que o afretador debitou à requerida.
dd) Durante o período compreendido entre 31.10.2011 e 26.11.2011, a requerida gastou em combustível no T (...) TRES a quantia de € 12.300.
ee) Em ordenados e alimentação à tripulação do T (...) TRES, a requerida suportou no mesmo período a quantia de cerca de € 20.000.
ff) Há cerca de 7 anos que a requerida dava de fretamento os seus navios a afretadores/transportadores portugueses.
gg) O arresto de navios, uma vez peticionado, passa a ser imediatamente conhecido no meio da navegação.
hh) A requerida ainda não conseguiu fretar o T (...) SIETE.
ii) A melhor oferta que a requerida conseguiu até agora pela compra do mesmo foi de € 1.230.000, sendo que o mesmo foi avaliado há 10 meses em € 3.200.000.
jj) A requerida, para conseguir a libertação do arresto nos presentes autos, ofereceu e prestou a caução de € 134.711,50.

III – Fundamentação de direito
Como é sabido, o procedimento cautelar é um meio processual de natureza transitória, sempre dependente da causa que tenha por fundamento o direito acautelado e caducando se ela não for proposta; caracterizando-se ainda pela rápida tramitação processual (no caso, requerimento inicial, produção de prova e decisão), basta-se que sumariamente se conclua pela séria probabilidade da existência do direito (aparência do direito) invocado pela requerente e pelo justificado receio de que a natural demora na resolução definitiva do litígio cause prejuízo irreparável ou de difícil reparação (perigo de insatisfação desse direito).
O procedimento cautelar constitui, pois, simples instrumento jurídico, de natureza incidental, destinado a acautelar o efeito útil da acção de que depende – art. 2.º n.º 2, parte final, e 383.º n.º 1, ambos do C.P.Civil.
Como refere o Prof. Manuel Rodrigues, in Lições de Processo Preventivo e Conservatório, «As providências cautelares são acto preparatório da acção em que se há-de definir e reconhecer o direito posto em foco pelos factos ou pelas ameaças que determinaram as providências».
Os procedimentos cautelares não são meios adequados para definir direitos, mas apenas para os acautelar e proteger.
Tais procedimentos não se destinam a resolver questões de fundo, nem a decisão neles proferida se reflecte na acção principal, conforme resulta do disposto no art. 383.º n.º 4 do C.P.Civil.
Pretende-se, tão-sómente e com uma investigação sumária, acautelar os efeitos práticos da decisão definitiva que será proferida na acção que, necessáriamente, tem que ser proposta.
Sendo nessa acção que o litígio se resolverá em definitivo.
Com efeito, é na acção que a causa é discutida e apreciada em toda a sua plenitude. É, nessa sede, que a matéria questionada pelas partes assume dignidade de debate entre elas e não em sede de procedimento cautelar, em face de todas as reservas, limitações e características decorrentes do quadro legal processual.
Portanto, o procedimento cautelar não produz efeitos irreversíveis na esfera jurídica da requerida, nem proporciona à requerente uma tutela imediata do seu direito; permitindo, no entanto, que, proferida a decisão na acção principal possa revelar-se útil a actividade jurisdicional subsequente.
Ao fim e ao cabo, porque não satisfaz, nem resolve definitivamente o litígio, o procedimento cautelar limita-se a preparar terreno, a tomar precauções para que o processo principal possa realizar completamente o seu fim.
A concluir estas considerações importa também salientar que deve existir proporcionalidade entre as medidas a adoptar e os interesses que se visam acautelar – princípio da proporcionalidade que resulta, desde logo, do disposto no art. 381.º n.º 1, do C. C.P.Civil quando determina que a medida requerida deve ser adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado.
Também, como é sabido, o património do devedor constitui a garantia geral dos credores respondendo pelo cumprimento das obrigações com todos os bens susceptíveis de penhora, garantia essa que se torna efectiva por meio de execução – de harmonia com o disposto nos arts. 601.º e 817.º, ambos do C.Civil.
Em geral, a averiguação do direito da requerente não tem de ser intensa, bastando a mera aparência de um direito, isto é, de um direito que se afigura verosímil, num juízo de simples probabilidade, embora, já quanto ao «periculum in mora» é preciso que haja um «justo receio» num critério de mais apertada probabilidade, receio que não seja inconsistente mas lesão grave e de difícil reparação.
Justo receio que terá de se configurar em razões objectivas, convincentes e capazes de justificar a pretensão drástica da requerente, que vai subtrair, se procedente a providência cautelar, os bens à livre disposição do seu titular, não bastando a alegação de meras convicções ou desconfianças de carácter subjectivo.
No caso em análise, estamos perante a figura do processo cautelar de arresto segundo o qual o credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor; consistindo o arresto numa apreensão judicial de bens, à qual são aplicáveis as disposições relativas à penhora, em tudo quanto não contrariar o preceituado nesta subsecção – art. 406.º n.ºs 1 e 2 do C.P.C.
Com efeito, o procedimento cautelar de arresto visa – segundo M. Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 235 – garantir a realização de uma prestação e assegurar a sua execução e para o seu decretamento deve o credor demonstrar a probabilidade séria da existência do crédito que invoca e o justo receio da perda da garantia patrimonial.
Como também refere Ferreira de Almeida, in Direito Processual Civil, vol. I, Almedina, pág. 192, “… Visa o arresto precisamente garantir que os bens do devedor, uma vez apreendidos, permaneçam na sua esfera jurídica até ao momento da realização da respectiva penhora, por cuja excussão o credor espera obter a satisfação do seu crédito (arts. 601.º e 619.º do Cód. Civil). Pode também incidir sobre o adquirente desses bens se tiver sido judicialmente impugnada a sua transmissão através de impugnação pauliana (cfr. arts. 610.º e 619.º n.º 2 do C.Civil).
Porém, tratando-se de arresto de navio (como ocorre no caso sub judice), dispõe o art. 409.º n.º 1, do mesmo diploma legal, que incumbe ao requerente demonstrar, para além do preenchimento dos requisitos gerais, que a penhora é admissível, atenta a natureza do crédito.
Podendo o juiz decidir que a requerente do arresto preste caução, e se o arresto for julgado injustificado ou caducar, a requerente que não tenha agido com a prudência normal é responsável pelos danos causados à arrestada (arts. 620.º e 621.º ambos do C.C. e 390.º do C.P.C.

Regressando aos autos e às conclusões da alegação de recurso delimitadoras do seu objecto – nos termos dos arts. 684.º n.º 3 e 685.º-A n.º 1, ambos do C.P.Civil – cumpre averiguar se os factos indiciáriamente provados (matéria de facto não impugnada e ausência de motivo para este Tribunal da Relação se socorrer dos poderes de alteração permitidos no art. 712.º do C.P.C.) permitem acolher as críticas assacadas à decisão recorrida e que se prendem com a interpretação errada, na perspectiva da apelante, levada a cabo pelo Mm.º Juiz a quo, sobre o alcance da alínea l) do § 1º do art.º 1 da Convenção de Bruxelas de 1952 e sobre qual a entidade responsável pelas despesas resultantes de serviços prestados, por forma a obter-se a pretendida revogação da decisão sob censura com consequente improcedência do arresto e subsequente devolução à apelante da caução que o substituiu.

No que concerne à 1.ª critica – interpretação da alínea l) do § 1º do art.º 1 da Convenção de Bruxelas de 1952.
A propósito escreveu-se na sentença recorrida:
“(…)
De acordo com o art. 1.º, § 1º, al. l) da CB 1952, “ «crédito marítimo» significa alegação de um direito ou de um crédito provenientes de uma das causas seguintes: construção, reparações, equipamento de um navio ou despesas de estiva”.
(…)
Dado que o texto não concretiza o termo «reparações», este deve ser interpretado em sentido amplo, abrangendo assim tanto a eliminação de danos ou defeitos no funcionamento de algum dos componentes do navio como os melhoramentos introduzidos no mesmo.
A palavra «equipamento» refere-se ao trabalho efectuado a bordo com o fim de prover o navio do equipamento necessário para a sua exploração.
No que concerne às «despesas de estiva», a história revela que as mesmas não constavam do projecto aprovado pelo Comité Maritime International em Nápoles e foram acrescentadas na Conferência Diplomática de Bruxelas de 1952, a pedido da delegação britânica, a qual motivou a sua inclusão por considerá-las um complemento do crédito por reparações ou construção do reparador ou construtor que para esse efeito suportou os custos relativos à entrada, permanência e saída da embarcação da doca seca.
(…)
Esta interpretação, para além de ser a que decorre directamente da análise dos trabalhos da referida Conferência Diplomática, parece ser a mais consentânea com o contexto da alínea na qual as despesas de estiva se inserem, ao lado da construção e das reparações. Porém, e dada a pouca precisão da terminologia utilizada nos textos autênticos, é de considerar que as despesas de estiva também compreendem os gastos com a atracação e as taxas pagas pelo carregamento ou descarregamento de mercadorias, até porque as mesmas derivam da utilização típica do navio e contribuem decisivamente para a prossecução do fim visado por esta.
No caso dos autos, o crédito da requerente refere-se a serviços portuários de estiva de carga dos navios da requerente, atenta a realidade vertida nas als. f) e g) da matéria de facto assente, consequentemente inserível na previsão da al. l) do § 1º do art. 1.º da CB 1952.
(…)”.
Salvo melhor entendimento, afigura-se-nos não ser merecedora de reparo, nesta parte, a decisão recorrida, sendo destituída de razão a crítica formulada pela apelante que, em síntese, sustenta que nenhum dos serviços pretensamente prestados pela requerente se referem ao navio, mas antes dizendo respeito à carga, por isso, na sua óptica, não estando em causa um crédito marítimo sobre o navio, mas antes sobre a carga, não é possível manter o arresto decretado nos autos ao abrigo da Convenção.
Acontece que o direito da requerente resulta de crédito proveniente de serviços de carregamento e descarregamento de navios e movimentação de contentores – de acordo com a factualidade indiciáriamente provada e descrita nas alíneas a), d), e) e f), da fundamentação de facto – sendo consequentemente crédito marítimo, atento o disposto no art. 1.º al. l) da CB 1952.
Como até a apelante refere nas conclusões da sua alegação recursiva “(…) o texto do art. 1.º da CB 1952 foi alvo de diversas fases começando por uma definição e acabando no elencar de diversas causas de créditos marítimos (cfr. textos submetidos às Conferência de Oslo de 1933 e à Conferência de Paris de 1937). Foi na Conferência de Nápoles de 1951 que é adoptada uma listagem (…) dos créditos marítimos susceptíveis de dar azo ao arresto. Na primeira versão dessa listagem (…) não fazia qualquer referência às dock charges ou frais de cale (…). A referência a estas despesas só aparece na 4.ª sessão plenária de 5 de Maio de 1952 da Conferência Diplomática de Bruxelas, onde a delegação britânica afirma desejar acrescentar naquela alínea todas as despesas dos construtores e reparadores do navio (…)”.
Ora, a inclusão de tais despesas relacionadas com serviços de carregamento e descarregamento de navios e movimentação de contentores como «créditos marítimos» e, em particular, como «despesas de estiva» a que alude o § 1º do art. 1.º da CB 1952 está em sintonia, salvo melhor entendimento, com a evolução que tal preceito legal vem sofrendo.
Neste sentido, veja-se a jurisprudência, nacional e estrangeira, citada na obra de Mário Raposo, Estudos sobre Arbitragem Comercial e Direito Marítimo, Almedina, págs. 98/99: “(…) Face à lista do n.º 1 do art. 1.º da Convenção tem sido entendido não serem créditos marítimos os resultantes de prémios de seguros e de encargos de corretagem. As omissões foram corrigidas na Convenção de 1999 (alíneas q) e r) do n.º 1 do art. 1.º). De qualquer modo, créditos marítimos há cujo enquadramento na listagem taxativa e de interpretação restritiva do n.º 1 do art. 1.º da Convenção de 1952 é duvidoso. Subsiste sempre, com efeito, uma certa margem de interpretação, caso a caso. Assim, e como exemplo, a Cour d`Appel de Ruão decidiu, em 27.04.1990, que se enquadrava no âmbito da “closed list” da Convenção o arresto de um navio com base nas operações de descarga do mesmo navio, por se tratar de um desembolso do capitão por conta do navio. O S.T.J., no acordão de 14.04.1997 (BMJ, 486.º-246) decidiu e bem, que as despesas feitas com o fornecimento de combustível a um navio constituem um crédito marítimo (…)”.
Aqui chegados, afigura-se-nos que a solução perfilhada pelo Tribunal de 1.ª Instância relativamente à inclusão das despesas relativas aos serviços prestados pela requerente aos navios da requerida, e não pagos (pagamento não objecto de controvérsia) [cfr. alíneas a), d), e), f), g), da fundamentação de facto] como «despesas de estiva», no elenco dos «créditos marítimos» que podem ser garantidos com o arresto do navio, nos quais se incluem a construção e as reparações, é a que mais se adequa à evolução histórica do preceito legal, à letra do mesmo, e à natureza dos serviços em causa.
Pelo que improcedem as conclusões da alegação da apelante relativas a esta matéria.

Quanto à 2.ª crítica – entidade responsável pelas despesas resultantes de serviços prestados.
Em síntese, a apelante não se conforma com o facto de que, sendo os navios sua propriedade e estando fretados por contratos de fretamento a tempo à C (...), S.A., possa ser responsabilizada por despesas resultantes de serviços que não contratou.
Acerca deste ponto, o Mm.º Juiz a quo discreteriou, na sentença, do modo seguinte:
“(…)
O art. 3.º, § 4 º da CB 1952 estabelece que “(…) no caso de fretamento de navio, com transferência de gestão náutica, quando só o fretador responda por um crédito marítimo relativo a esse navio, o autor poderá fazer arrestar o mesmo navio (…). A precedente alínea aplica-se igualmente a todos os casos em que pessoa diversa do proprietário é devedora de um crédito marítimo”. O normativo abre, assim, uma excepção ao sobredito princípio geral da responsabilidade patrimonial.
(…).
Tal disposição legal, permite efectivamente o arresto de um navio com base num crédito a que deu causa pessoa diferente do seu proprietário, referindo-se o preceito expressamente ao afretador para o qual tenha sido transferida a gestão náutica e implicitamente ao locatário da embarcação. Porém, a doutrina tem considerado também que estão incluídos na previsão normativa os afretadores por tempo e por viagem na medida em que contraiam dívidas que originem um ou uns dos créditos marítimos previstos na Convenção. É que, caso se reservasse a aplicação do preceito aos casos de cessão da gestão náutica, a 2.ª parte do § 4 do art. 3.º da CB 1952 ficaria vazia de conteúdo.
Em qualquer dos casos, o navio sobre que recaia o arresto será apenas o que deu causa ao crédito e nenhum outro do proprietário dessa embarcação.
(…)
Na sequência da oposição deduzida pela requerida e da prova entretanto produzida apurou-se que os serviços de estiva em causa afinal foram prestados à afretadora a tempo das embarcações da requerida, uma delas a arrestada, a pedido daquela e sem que esta tivesse qualquer intervenção em tais negócios.
(…)
No caso dos autos, os navios T (...) DOS, T (...) TRES e T (...) SIETE da requerida foram dados de fretamento a tempo à sociedade C (...) Shipping Line – Transportes Marítimos, S.A., tendo a requerente prestado os serviços que deram origem ao concreto crédito marítimo a pedido daquela e da N(...) – Navegação e Trânsitos, Ld.ª e sem que a demandada alguma vez tivesse qualquer intervenção em tais contratos atenta a realidade vertida nas als. k), l), q) e u) dos factos provados.
Está, pois, concretamente preenchida a previsão do art. 3.º, § 4º da CB 1952, o qual permite o arresto de navio fretado por créditos marítimos da responsabilidade do afretador e relativos a essa embarcação.
(…)”.
Também nos parece que o Tribunal recorrido ajuizou correctamente a questão colocada.
Acerca da identificação do contrato de fretamento, escreveu Francisco Costeira da Rocha, in O Contrato de Transporte de Mercadorias, Almedina, pág. 109 e segs., “(…) Contrato de fretamento de navio é aquele em que uma das partes (fretador) se obriga em relação à outra (afretador) a pôr à sua disposição um navio, ou parte dele, para fim de navegação marítima, mediante uma retribuição pecuniária denominada frete – art. 1.º do DL n.º 191/87, (…), no fretamento está em causa a disponibilidade de um navio (no todo ou em parte) para fins de navegação marítima, (…), o acento tónico é posto no navio e não na deslocação das mercadorias. O fretador assume a obrigação de navegar, hoc sensu, (…), no contrato de fretamento o fretador limita-se a colocar à disposição da outra parte (afretador) um veículo de transporte, podendo eventualmente responder pelas suas deficiências, (…), por um lado, no fretamento o gozo do navio é proporcionado para fins relacionados com a navegação marítima, há uma “afectação marítima do navio”, (…), por outro lado, o afretador não dispõe de um gozo pleno sobre o navio ou parte dele, o navio não lhe é entregue apenas lhe é apresentado (cfr. arts. 7.º alíneas a) e b) e 24.º), (…), o gozo conferido ao locatário é decididamente mais intenso do que a mera disponibilidade que assiste ao afretador. Daí que se possa questionar a bondade da utilização do termo gozo no âmbito fretamento. Até pela importante razão de que, como não há entrega do navio fretado ao afretador, o fretador não ser privado do gozo do mesmo – ao contrário do que sucede na locação – embora esteja limitado pela disponibilidade (parcial) concedida ao afretador (…)”.
Sobre esta matéria pode ler-se também na citada obra de Mário Raposo, págs. 100/101 que “(…) É o n.º 1 do art. 3.º da CB de 1952 de fácil entendimento. Como regra, pode ser arrestado não apenas o navio a que o crédito se reporta (offending ship) como qualquer outro do mesmo proprietário. (…). Permite o n.º 4 do mesmo art. 3.º o arresto de um navio com base num crédito a que deu causa pessoa diferente do seu proprietário. Assim, no caso de uma dívida contraída por um afretador para a qual tenha sido transferida a gestão náutica. (…). Diz Francesco Berlingieri que o arresto poderá recair sobre um navio em relação ao qual tenha sido contratado um fretamento em casco nu (bareboat charter), ou mesmo em regime de time charter “and, even if in a more limited number of cases, against a voyage charter”. (…). A 2.ª parte do n.º 4 do art. 3.º permite o direito de arresto incondicionado, sem qualquer dependência do carácter privilegiado do crédito. E neste sentido são de apontar numerosas decisões judiciais francesas e italianas recentes (sobretudo da 2.ª metade dos anos 90) (…)”.
Como bem sintetizou o Mm.º Juiz a quo, na sentença em crise:
“(…)
A Convenção contempla o arresto do navio a que o crédito se reporta (offending ship), sendo devedor o seu proprietário, o arresto de outro navio (sister ship) pertencente àquele que, na data da constituição do crédito marítimo, era proprietário do navio a que o referido direito se reporta, e o arresto do navio (offending ship) quando outra qualquer pessoa responda por um crédito marítimo relativo a esse navio. Não havendo coincidência entre o devedor e o proprietário do offending ship, aquele pode ser o locatário ou o afretador de casco nu ou a tempo ou por viagem do navio e o arresto pode ser decretado com base num dos créditos “comuns” do art. 1.º, § 1.º da CB 1952.
(…)”.
Em face de tudo quanto se deixou dito, improcedem também as conclusões relativas a este assunto.

IV – Decisão
Em face do exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da apelante, em ambas as instâncias.
Lisboa, 7 de Março de 2013
Gilberto Martinho dos Santos Jorge
Maria Teresa Batalha Pires Soares
Ana Lucinda Mendes Cabral
Decisão Texto Integral: