Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1855/13.4PULSB.L1-9
Relator: ALMEIDA CABRAL
Descritores: PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULO MOTORIZADO
PENA ACESSÓRIA
SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/21/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO
Sumário: I - A proibição de conduzir veículos motorizados assume a natureza de verdadeira pena acessória, pois que indissoluvelmente ligada ao facto praticado e à culpa do agente, desempenha uma função adjuvante da pena principal, reforçando e diversificando o conteúdo sancionatório da condenação

II - A medida de inibição, dentro da moldura geral abstracta, obedece aos mesmos critérios legais de fixação da medida concreta da pena, isto é, relevando-se a culpa e a prevenção e ponderando-se as circunstâncias enunciadas no n.º 2 do art.º 71.º do Cód. Penal

III - A proibição de conduzir veículos com motor é, inequivocamente, uma verdadeira pena, de execução efectiva, de tal modo que até nos casos de suspensão provisória do processo a mesma haverá de ser imposta, necessariamente

IV - Imposta e cumprida pelo arguido esta pena de proibição de conduzir, não pode a mesma, em qualquer circunstância, ser repetida, sob pena de se violar o princípio ne bis in idem

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


1 – Na Secção de Pequena Criminalidade da Instância Local de Lisboa, Juiz 5, Processo Abreviado n.º 1855/13.4PULSB, onde é arguido/recorrente P..., propôs o Ministério Público a Suspensão Provisória do Processo mediante o cumprimento das seguintes injunções: “não condução de veículos com motor durante quatro meses e cinco dias” e “prestação de 85 horas de trabalho socialmente útil”.
Havendo o arguido aceite as imposições em causa, logo o mesmo entregou na Esquadra da PSP, no dia 28/02/2014, a respectiva carta de condução.
Porém, não havendo o arguido cumprido a outra injunção, decidiu o Ministério Público revogar a suspensão provisória do processo e deduzir a respectiva acusação, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. p. nos termos dos artºs. 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal. 

Efectuado o respectivo julgamento, veio o arguido a ser condenado pela prática do imputado crime, sendo uma das penas impostas a de proibição de conduzir veículos com motor por um período de três meses, pena esta que o tribunal “a quo” não considerou já cumprida, na sequência da efectiva inibição do exercício da condução sofrida no âmbito da suspensão provisória do processo.

Com esta decisão não se conformou o arguido, dela havendo interposto o presente recurso, considerando que o período de inibição do exercício da condução por si já sofrido durante a suspensão provisória do processo haveria de ter sido levado agora em conta.

Da respectiva motivação extraiu as seguintes conclusões:

“(…)

1. No dia 19/10/2013, na Estrada de Benfica em Lisboa, o arguido conduzia o veículo 47-FR-62, tendo do teste de controlo de alcoolemia a que foi submetido resultado uma TAS de 1,54 gr/1.

2. Em 21/10/2013, foi determinada pelo Ministério Público a suspensão provisória do processo (adiante SPP) pelo período de 6 meses, com início em 15/02/2014 e termo em 15/08/2014, merecendo a concordância do Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal, por se considerarem preenchidos os requisitos plasmados no n.º 1 do artigo 281.º do CPP e a aceitação do arguido.

3. Como condição da suspensão provisória do processo, o arguido aceitou cumprir duas injunções, a saber: i) Prestar serviço de interesse público em conteúdo e nos termos a definir pela DGRSSP de acordo com as suas competências e com uma carga horária total de 85 horas; ii) Abster-se de conduzir veículos automóveis com motor pelo período de 4 meses e 5 dias.

4. O arguido cumpriu a segunda injunção integralmente: entregou a carta de condução em 28/02/2014, tendo-lhe o título sido devolvido em 04/07/2014.

5. O arguido incumpriu a injunção de prestar trabalho socialmente útil num total de 85 horas, pelo que, por despacho de 29/06/2015, o Ministério Público revogou a SPP, com fundamento no incumprimento da mencionada injunção.

6. Realizada a audiência de julgamento, o arguido foi condenado como autor material de um crime de condução em estado de embriaguez, numa pena de multa e ainda “(...) na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista e punida no artigo 69.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, pelo período de 3 (três) meses (...)”.

7. A condenação quer na pena de multa quer na pena acessória afigura-se correcta e conforme com os factos provados.

8. Todavia, tendo o arguido sido condenado numa pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 3 meses e tendo, em sede de SPP, cumprido inibição de conduzir veículos com motor pelo período de 4 meses e 5 dias, deveria a pena acessória (até porque inferior) ter sido considerada extinta pelo cumprimento.

9. Desde logo porque, a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor imposta ao arguido na decisão condenatória teve por objecto o mesmo facto que constituiu o objecto da injunção que anteriormente determinou a suspensão provisória do processo e que é a condução do veículo pelo arguido em estado de embriaguez.

10. Além disso, os efeitos substantivos da proibição de conduzir imposta em ambas as sedes, são os mesmos, ou seja, a impossibilidade de o arguido conduzir veículos com motor durante determinado lapso de tempo.

11. Acresce que, tanto o cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor como o cumprimento de injunção de abstenção de conduzir veículos com motor é feito (e foi) da mesma forma, a saber: de acordo com o disposto no artigo 500.º do CP.

12. Por outro lado, embora a pena e a injunção não tenham a mesma natureza jurídico-formal, a verdade é que coincidem na realização dos mesmos interesses públicos, a saber: boa administração da justiça e protecção dos bens jurídicos socialmente relevantes, como sejam a paz social e jurídica, a segurança do tráfego jurídico e ressocialização do arguido.

13. Ou seja, as injunções funcionam como equivalentes funcionais de uma sanção penal.

14. Por último e não menos importante, é a actual redacção do artigo 281.º, n.º 3 do Código Penal, dada pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, com a qual se diluiu o elemento da voluntariedade - traço distintivo entre injunção e pena acessória.

15. Com efeito, o arguido pode concordar ou não com a suspensão provisória do processo promovida pelo Ministério Público, mas, no tipo de crime dos autos, se aceitar e pretender beneficiar da suspensão provisória do processo, como quis, o arguido teve que aceitar a aplicação de proibição de conduzir, sendo o que resulta do aludido artigo 281.º, n.º 3 do Código Penal.

16. Em suma: a injunção e a pena acessória têm a mesma justificação, o mesmo modo de execução e a mesma finalidade sancionatória.

17. Ora, se é certo que o arguido já cumpriu um período de 4 meses e 5 dias de inibição de conduzir, se a pena acessória em foi condenado teve por objecto o mesmo facto que constituiu o objecto da injunção, se os efeitos substantivos de uma e de outra são a impossibilidade de conduzir veículos com motor durante um determinado período de tempo, a que acresce a exacta forma como o respectivo cumprimento é realizado e o facto de o período da injunção ter sido superior ao da sanção em que foi condenado, é forçoso concluir que o cumprimento da injunção prevista e determinada ao abrigo do n.º 3 do artigo 281.º do CP em sede de SPP terá de ser atendida, face ao ulterior prosseguimento dos autos e à condenação final.

18. E não se diga, como fez o Tribunal a quo, que o artigo 282.º, n.º 4, alínea a) do CPP a tanto se opõe, pois este dispositivo legal, apenas, determina a irrepetibilidade de prestações realizadas em injunção pelo que, não tendo a proibição de conduzir essa natureza, tal comando não se lhe mostra aplicável.

19. A tudo acresce que, a ausência do desconto leva a sancionar duplamente a mesma conduta e consequentemente à violação do princípio da proporcionalidade da pena previsto no artigo 71.º, nºs. 1 e 2 do CP.

20. Assim, tendo, no caso concreto, o arguido sido condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 3 meses, tendo cumprido, em sede de SPP, a injunção de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 4 meses e 5 dias, há que considerar extinta, pelo cumprimento, a pena acessória imposta.

21. Não tendo o Tribunal a quo descontado o período de inibição de conduzir cumprido em sede de SPP à pena acessória de proibição de conduzir aplicada e consequentemente não tendo julgado extinta a dita pena acessória pelo cumprimento, fez o Tribunal a quo incorrecta interpretação e aplicação do artigo 282.º, n.º 4, alínea a) do CPP e dos artigos 71.º, nºs. 1 e 2 e 281.º, n.º 3 do CP.

Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, deve o recurso interposto ser julgado totalmente procedente e em consequência ser a sentença recorrida revogada na parte de que se recorre e substituída por outra que acolha os fundamentos do arguido/recorrente (…)”.

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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

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Notificado do recurso, apresentou o Ministério Público a respectiva “resposta”, concluindo, a final, no sentido da sua improcedência.

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Neste Tribunal a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta sufragou a posição assumida pelo arguido/recorrente, concluindo no sentido da procedência do recurso.

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Mantêm-se verificados e válidos todos os pressupostos processuais conducentes ao conhecimento do recurso, o qual, por isso, deve ser admitido, havendo-lhe, também, sido correctamente fixados o efeito e o regime de subida.

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2 - Cumpre apreciar e decidir:

É o objecto do presente recurso, segundo a motivação do recorrente, o saber-se, tão só, se o período de inibição do exercício da condução de veículos com motor por si já sofrido durante a suspensão provisória do processo, entretanto revogada, haverá, ou não, de ser descontado na pena final que veio a ser fixada pelo tribunal “a quo”.

Ora, salvo melhor opinião, a pretensão do recorrente não pode deixar de merecer acolhimento, à semelhança, aliás, da decisão por nós já proferida no Recurso n.º 821/12.1PFCSC.

Vejamos:

Desde logo, a posição sufragada pelo tribunal “a quo” atenta contra o P.º ne bis in idem, consagrado no art.º 29.º, n.º 5, da C.R.P.

Efectivamente, o P.º da Concepção Unitária da Pena liga à prática de determinados crimes, automaticamente, outros efeitos, como seja, aqui, o da proibição de conduzir veículos motorizados, compreendida num período que pode oscilar entre três meses e três anos, como resulta do art.º 69.º, n.º 1, al. c), do Cód. Penal.
Depois, diz Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, § 232, que “a proibição de conduzir veículos motorizados assume a natureza de verdadeira pena acessória, pois que indissoluvelmente ligada ao facto praticado e à culpa do agente, desempenha uma função adjuvante da pena principal, reforçando e diversificando o conteúdo sancionatório da condenação”.
Do mesmo modo assim o entendeu Maia Gonçalves, quando disse que a medida de inibição, dentro da moldura geral abstracta, obedece aos mesmos critérios legais de fixação da medida concreta da pena, isto é, relevando-se a culpa e a prevenção e ponderando-se as circunstâncias enunciadas no n.º 2 do art.º 71.º do Cód. Penal.

Assim, a proibição de conduzir veículos com motor é, inequivocamente, uma verdadeira pena, de execução efectiva, de tal modo que até nos casos de suspensão provisória do processo a mesma haverá de ser imposta, necessariamente, como se verificou, aliás, no caso dos autos e resulta do disposto no atrás citado art.º 69.º, n.º 1 e no art.º 281.º, n.º 3, do C.P.P.: “É condenado na proibição de conduzir (…)”, diz-se ali; “(…) É obrigatoriamente oponível ao arguido a pena acessória de proibição de conduzir (…)”, diz-se aqui.

Deste modo, “imposta” e cumprida pelo arguido esta pena de proibição de conduzir, não pode a mesma, em qualquer circunstância, ser repetida, sob pena de se violar o acima referido P.º ne bis in idem. Aliás, essa seria uma decisão que, para além de atentar contra todos os princípios, não deixaria de ser tida como “cruel” e de todo incompreendida pelo sensato cidadão comum!

Sendo assim, como se entende, nunca o pensamento do legislador poderia ter sido no sentido aqui defendido pelo tribunal “a quo”, nem o mesmo colhe na letra da lei, contrariamente ao que refere o Ministério Público na sua “resposta”, o necessário mínimo de correspondência verbal.

Na verdade, aquilo que se diz no art.º 282.º, n.º 4, do C.P.P. é que, se o processo houver de prosseguir, porque o arguido não cumpriu as injunções e as regras de conduta impostas, as “prestações” já feitas não podem ser repetidas. E, estas, as prestações, são, obviamente, as previstas, v.g., no art.º 281.º, designadamente nas als. a) e c) do seu n.º 2. Ora, uma pena não é uma “prestação”, como parece ser óbvio!

Por outro lado, não sendo aqui afastada, de todo, a possibilidade do recurso à “analogia”, na interpretação restritiva que sempre haverá de ser feita do disposto no art.º 1.º, n.º 3, do Cód. Penal, veja-se, v.g., a amplitude que o “desconto” de penas pode assumir, tal como o mesmo se prevê no art.º 80.º e sgs. do mesmo Cód. Penal.

Porque haveria, então, de ser aberta uma excepção, em manifesto prejuízo do arguido, nos casos de pena de proibição de conduzir veículos com motor!?

Finalmente, ainda que se considere ser esta uma situação de “dúvida”, não prevista pelo legislador, sempre a mesma haverá de ser feita relevar em benefício do arguido à luz do respectivo Princípio.

Assim sendo, reportados ao caso dos autos, ante os fundamentos expostos, mal decidiu o tribunal “a quo” ao não considerar integralmente cumprida a pena de proibição de conduzir veículos com motor em que condenou o arguido através do “desconto” feito no período de efectiva inibição sofrido pelo mesmo no âmbito da “suspensão provisória do processo”.

 3 - Nestes termos e com os expostos fundamentos, acordam os mesmos Juízes, em conferência, em conceder provimento ao recurso, considerando integralmente cumprida a pena de proibição de conduzir veículos com motor em que o tribunal “a quo” condenou agora o arguido.

Sem custas.

Notifique.

 

Lisboa, 21-04-2016

Almeida Cabral

Rui Rangel