Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10648/2006-7
Relator: ORLANDO NASCIMENTO
Descritores: INVENTÁRIO
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
DIVÓRCIO
EFEITOS
RELAÇÃO DE BENS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/06/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PARCIAL PROVIMENTO
Sumário: I- Não deve integrar a relação de bens em inventário instaurado para partilha dos bens do casal o imóvel adquirido no dia 6-11-1975, registado em nome do respectivo titular já como divorciado pela ap. de 7-10-1997 com aquisição inscrita em 9-1-1976 a favor do adquirente casado em regime de comunhão geral de bens.
II- É que, autorizada a separação provisória de pessoas e bens em 4-10-1974, impõe-se atender a esta data, anterior à aquisição e registo da fracção pelo marido, considerando que o artigo 1424.º do Código de Processo Civil, com a redacção então em vigor, prescrevia que os efeitos da sentença que decrete a separação definitiva retrotraem-se, quanto aos bens e quanto às pessoas, à data em que foi autorizada a separação provisória.
III- Essa data (4-10-1974), anterior à aquisição e registo da fracção pelo marido, é, portanto, a que releva para os referidos efeitos, não relevando que fosse de casado o estado dos interessados na partilha quando a escritura de compra e venda foi outorgada, pois a data que releva é aquela, não a do divórcio.

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.

1. RELATÓRIO

Nos autos de inventário para partilha de bens do casal, em virtude de divórcio, em que é requerente M.[…] e requerido J.[…], tendo este apresentado RELAÇÃO DE BENS, a requerente apresentou Reclamação insurgindo-se contra: a) a relacionação de uma mobília de quarto com fundamento em que a mesma pereceu com o uso, não existindo já; b) a não relacionação de um estabelecimento de alfaiataria de que o requerido era detentor, à data da separação e do divórcio, […] em Lisboa que, entretanto, trespassou; c) o valor de um empréstimo de 100.000$00, garantido por hipoteca, concedido pelo requerido, em 1970, a Maria […]; d) o saldo de depósitos a prazo existentes no Banco […]; e) a fracção “C” do prédio sito […] em Odivelas, descrito na Conservatória do Registo Predial de Odivelas […] ; f) a imprecisão da descrição do imóvel da verba n.º 2, prédio constituído por terreno, descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras […].

O requerido deduziu oposição aceitando a correcção referida em f) e rejeitando as restantes reclamações.

O tribunal a quo proferiu despacho nos seguintes termos: “
Quanto à verba n.º 1, dado o tempo decorrido e a alegação de perecimento e ainda a falta de prova sobre a qualidade da mobília que a compõe, afigura-se-me razoável seja eliminada da relação de bens.
    …
Relativamente ao pretendido aditamento:
a) é manifesto que deve ser aditado o imóvel que se encontra em nome do casal;
b) b) por falta de prova quanto às contas e aplicações financeiras, indefere-se a pretensão da requerente.
c) Quanto ao estabelecimento, o locado onde funcionava foi entregue ao senhorio (fls. 41) em 1988. Nada se diz que o requerido fizesse uma exploração da alfaiataria para além de um nível de subsistência ou próxima disso e os autos não revelam qualquer indício em contrário (atendendo nomeadamente que o que o requerido possa ter ganho após o divórcio – Entre Novembro de 1975 e 1988) não releva. Como tal, não se vê razão (utilidade económica) para uma prestação de contas de exploração e para determinar qualquer aditamento de verba.
d) D) Quanto ao crédito a […], o crédito existia e, como tal deve ser relacionado”.

Inconformado com essa decisão o requerido dela interpôs recurso, recebido como agravo, pedindo a sua revogação e o afastamento da relação de bens das verbas que a ordenou fossem relacionadas, suscitando as seguintes questões: 

1.ª A fracção “C” do prédio […] é propriedade exclusiva do agravante por ter sido adquirida no dia 6/11/1975, muito depois da cessação da coabitação dos cônjuges e da separação de pessoas e bens encontrando-se registada em nome do agravado, como divorciado e único titular, consoante apresentação n.º 20, de 07/07/1997 (conclusões 1.º, 2.ª e 5.ª).
2.ª Desde essa aquisição o agravante foi o seu detentor exclusivo, como tal reconhecido pelos vizinhos, pagando os impostos, recebendo as rendas, sem oposição de quem quer que seja, pelo que, também por aquisição por usucapião a fracção lhe pertenceria em exclusivo (conclusão 6.ª).
3.ª O alegado crédito a […], a existir, só após boa cobrança reverterá a favor do agravante e agravada, sem prejuízo da sua prescrição pelo decurso do prazo de trinta anos (conclusão 3.ª).
4.ª O imóvel descrito sob a verba n.º 2, prédio constituído por terreno, descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras […] encontra-se na mesma situação acima descrita na questão segunda, pois, o agravante registou o mesmo depois de divorciado, mas ao longo de 27 anos, cortou as ervas do terreno, pagou os seus impostos, sem a oposição da agravante ou de quem quer que seja, com a convicção de proprietário, sendo como tal reconhecido pelos vizinhos, adquirindo-o por usucapião, pois, só em 30/11/2001 a agravante requereu o inventário (conclusão 7.º e 8.ª)
5.ª Quanto à verba n.º 1, mobília de quarto, deve ser relacionada porque a relação de bens deve atender á realidade existente à data da separação e não à presente data (conclusão 9.ª).
A agravada contra-alegou pugnando pela confirmação da decisão recorrida.


2. FUNDAMENTAÇÃO

A) OS FACTOS

Os factos a considerar são os acima descritos, sendo certo que a questão submetida ao conhecimento deste Tribunal se configura, essencialmente, como uma questão de direito.

B) O DIREITO APLICÁVEL

O conhecimento deste Tribunal de 2.ª instância, quanto à matéria dos autos e quanto ao objecto do recurso, é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 684.º, n.º 3 e 690.º, n.º 1 e 2 do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 660.º, n.º 2 do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso).

Atentas as conclusões do agravo, supra descritas as questões submetidas ao conhecimento deste Tribunal pelo agravante são as acima descritas, consistindo em saber se a decisão recorrida se deve manter quanto aos bens em causa.

Vejamos.

I. Quanto à verba n.º 1, mobília de quarto (5.ª questão supra), sem embargo de os efeitos patrimoniais do divórcio, entre os cônjuges se produzirem a partir do trânsito em julgado da sentença, podendo retroagir à data da propositura da acção (art.º 1789.º, n.º 1 do C. Civil) e à data da cessação da coabitação (n.º 2), devendo em inventário para partilha do acervo comum ser relacionados os bens existentes a nessas datas, o certo é que só poderão ser partilhados bens existentes à data em que se requer a partilha.

Quanto à mobília em causa, tendo sido relacionada pela cabeça de casal, o agravante, a agravada declarou que a mesma pereceu entretanto, ou seja, que já não existe.

O agravante não declarou o contrário – e muito menos se propôs prová-lo – pelo que não existindo o bem em causa não pode ordenar-se a sua relacionação.

E, na ausência de outros elementos relevantes como sejam, v. g. a especial natureza ou valor dessa mobília, nem sequer se deve remeter a questão para os meios comuns, nos termos do disposto nos art.º 1350.º, n.º 3 e 1336.º, n.º 2 do C. P. Civil.

Improcedem, pois, as conclusões do agravo quanto a esta questão.

II. Quanto ao alegado “crédito” a […] (questão 3.ª supra), existindo ele como bem comum do casal à data da dissolução do casamento e existindo actualmente, o mesmo não poderá deixar de ser relacionado tal como existe e com as vicissitudes jurídicas e de facto que lhe são inerentes.

 Se é difícil ou mesmo impossível executá-lo, são factores a considerar na sua partilha mas não na sua relacionação, tal como existe.

Improcedem, pois, as conclusões do agravo a este respeito.

III. Quanto à fracção “C” do prédio […] (questões 1.ª e 2.ª supra).

O divórcio dissolve o casamento (art.º 1789.º do C. Civil na redacção vigente à data dos factos), incluindo os seus efeitos patrimoniais (art.º 1791.º do C. Civil na mesma redacção), fixando um acervo patrimonial, a ser partilhado, de acordo com o respectivo regime de bens, deixando uma eficácia ex post factum no respeitante a alimentos (art.º 2009.º do C. Civil) ao cônjuge que deles necessite.

Em tudo o mais, cada um dos cônjuges passa a ter, perante o outro, os direitos e deveres comuns a qualquer outro cidadão.

Esta fracção “C”, no que à matéria dos autos diz respeito, encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial de Odivelas, em 09/01/76, “AQUISIÇÃO a favor de J.[…] c.c. M.[…], na C. geral -  […] . Por compra a J.M..[…] e M. da C.[…]” e, em 07/07/1997, “O sujeito activo J.[…] é actualmente divorciado e único titular” (certidão de fls. 85).

Nos termos do disposto no art.º 7.º do C. R. Predial o registo estabelece uma presunção de propriedade a favor do respectivo titular.

Nessa medida o proprietário, como tal legalmente presumido, é o agravante, não se vislumbrando nos autos elementos suficientes para que se considere elidida a referida presunção legal, tanto mais que, apesar de o primeiro registo se referir ao agravante como casado com a agravada no regime da comunhão geral de bens em 09/01/76, nessa data tinha já sido decretado o divórcio, assim adquirindo significado pleno o registo subsequente, datado de 07/07/1997.

O despacho recorrido limitou-se a referir que é manifesto que deve ser aditado o imóvel que se encontra em nome do casal, quando a respectiva certidão do registo predial demonstra o contrário.

Por outro lado, ainda.

Alega o agravante que a fracção foi por si adquirida em 06/11/1975, muito depois da cessação da coabitação e da separação de pessoas e bens, pelo que lhe pertence em exclusivo, ao que a agravada contrapõe que a aquisição foi feita com dinheiro do casal, sendo indiferente se coabitavam ou não, se estavam separados ou não.

Nos termos da prova documental constante dos autos a conferência de conversão da separação em divórcio definitivo realizou-se em 29/10/1975, portanto em data anterior a essa aquisição, tendo a sentença de divórcio sido proferida em 07/11/1975.

Em 24/07/1974 tinha sido requerida a separação de pessoas e bens e em 4/10/1974 realizou-se a conferência subsequente, em que foi autorizada a separação provisória de pessoas e bens (art.ºs 1420.º e 1421.º do C. P. Civil na redacção à data vigente)

A separação e divórcio entre o agravante e a agravada ocorreram num período temporal de sucessivas alterações legislativas na matéria.

Não obstante, na parte que ora nos interessa e que é a dos efeitos patrimoniais entre os cônjuges dessa separação e divórcio, dispunha o art.º 1774.º, n.º 3 do C. Civil, na redacção vigente à data dos factos (separação) que: “Relativamente aos bens, a separação produz os efeitos que produziria a dissolução do casamento;...”.

O art.º 1788.º dispunha do mesmo Código que: “A separação por mútuo consentimento não será homologada definitivamente sem que decorra um ano de separação provisória”.

Por sua vez dispunha o art.º 1424.º do C. P. Civil, na redacção vigente à data dos factos que: “Os efeitos da sentença que decrete a separação definitiva retrotraem-se, quanto aos bens e quanto às pessoas, à data em que foi autorizada a separação provisória, sem prejuízo do disposto no n.º 1, do art.º 1793.º do Código Civil”.

Semelhante redacção manteve este preceito, após a alteração pelo Dec. Lei n.º 605/76, de 24 de Julho, a saber: “Os efeitos da sentença que decrete a separação ou o divórcio definitivos retrotraem-se, quanto aos bens e quanto às pessoas, à data em que foram autorizados a separação ou o divórcio provisórios”. 

Com as alterações ao C. Civil pelo Dec. Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro, os efeitos do divórcio e da separação judicial de pessoas e bens passaram a retrotrair-se à data da propositura da acção (art.ºs 1789.º, n.º 1 e 1794.º do Civil), podendo retrotrair-se ainda à data em que a coabitação tiver cessado, nos termos do disposto no art.º 1789.º, n.º 2, sendo que o art.º 1829.º, n.º 2, al. a) estabelece como presunção de cessação da coabitação, em caso de divórcio ou de separação por mútuo consentimento, a data da primeira conferência.

No caso sub judice, embora o agravante se reporte à cessação da coabitação, citando os preceitos do C. Civil resultantes das alterações introduzidas pelo Dec. Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro, a data relevante para sabermos se a fracção “C” deve ou não ser relacionada é a data da autorização da separação provisória.

E esta ocorreu em 04/10/1974, portanto, muito antes da aquisição e registo da fracção pelo agravante.

Resulta, assim, inócua para o efeito pretendido, qual seja, a sua relacionação e partilha, a alegação da agravada no sentido de que se encontravam casados aquando da celebração da escritura de compra e venda, uma vez que a data relevante não é a do divórcio, mas a data indicada.

Temos, assim, forçosamente, que concluir que, também por esta via a fracção não pertence a ambos os cônjuges, para efeitos de relação de bens e partilha subsequente ao divórcio, sem prejuízo de a agravada poder fazer a prova, nos meios comuns, de que a fracção, não obstante ter sido adquirida pelo agravante numa data em que já tinham cessado as relações patrimoniais entre os cônjuges, foi adquirida com dinheiro pertencente ao acervo do casal.

Este imóvel não poderá, pois, ser relacionado, improcedendo, nessa medida a reclamação da agravada, sem prejuízo do recurso aos meios comuns, nos termos do disposto no art.º 1350.º, n.º 1 do C. P. Civil, para demonstrar que, não obstante a presunção registal e a aquisição da coisa depois de terem cessado as relações patrimoniais entre os cônjuges, o bem pertence a ambos e como tal deve ser partilhado.
Procedem, pois, quanto a esta questão, as conclusões do agravo.

IV. Quanto ao imóvel descrito sob a verba n.º 2, prédio constituído por terreno, descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras […]  (questão 4.ª supra).
Este imóvel foi relacionado pelo agravado, tendo a agravada reclamado apenas por considerar que se apresentava “deficientemente identificado”.

Na oposição à reclamação, o agravado aceitou a correcção a essa identificação, como se deduz da sua expressão: “Quanto ao imóvel, o Requerido agradece os preciosismos acrescentados à identificação bastante, feita”.  

Só posteriormente terá inflectido a sua posição.

Este reposicionar da questão no âmbito do processo, seria suficiente para a improcedência do agravo, com a consequente relacionação do imóvel.

Não obstante, ainda que assim não fosse, pelos fundamentos aduzidos a respeito da questão anterior, também o agravo não deixaria de improceder.

É que o imóvel encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial de Torres Vedras, desde 31/10/1994, nos seguintes termos: “Aquisição a favor de J.[…] c. c. M.[…] a, na c. geral, actualmente divorciados,[…] respectivamente – por arrematação à Câmara Municipal de T. Vedras” (certidão de fls. 42), pelo que a presunção de propriedade conferida pelo registo é a favor de ambos os interessados no inventário.

Nas suas alegações (conclusões 7.ª e 8.ª) o agravado invoca a aquisição da propriedade deste imóvel por usucapião.

Trata-se de questão nova, não apreciada pelo Tribunal a quo, porventura porque lhe não foi colocada, e dela não tem este tribunal que conhecer.

Não obstante, tendo este inventário sido requerido em 30/11/2001, nada impediu o agravante de suscitar a questão nos meios comuns.

Se o não fez “sibi imputet”.

Improcedem, pois, as conclusões do agravo quanto a esta questão.
 
3. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em conceder provimento parcial ao agravo, revogando a decisão recorrida quanto à fracção “C” supra identificada, a qual será substituída por outra que remata os interessados para os meios comuns, não se incluindo tal imóvel no inventário, nos termos do disposto no art.º 1350.º, n.º 1 e 2, do C. P. Civil.

No mais, mantém-se a decisão recorrida.

Custas em partes iguais.

Lisboa, 06 de Fevereiro de 2007

(Orlando Nascimento)
 (Ana Resende)
(Dina Monteiro)