Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1577/08.8TBALQ-C.L1-8
Relator: RUI DA PONTE GOMES
Descritores: INSOLVÊNCIA
REQUISITOS
ÓNUS DA PROVA
NULIDADE DE SENTENÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/22/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. O conceito de insolvência traduz-se na impossibilidade de cumprimento, pelo devedor, das suas obrigações vencidas. Só são determinantes, para a caracterização da impossibilidade do cumprimento, as obrigações do devedor já vencidas.
2. As diversas alíneas artigo 20º, nº 1, do CIRE estabelecem factos presuntivos da insolvência que tem por principal objectivo permitir aos legitimados o desencadeamento do processo, fundados na ocorrência de alguns deles, sem haver necessidade, a partir daí, de fazer a demonstração efectiva de situação de penúria traduzida na insusceptibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, nos termos em que ela é assumida como característica nuclear da situação de insolvência.
3. Compete ao devedor trazer ao processo factos e circunstâncias probatórias de que não está insolvente, pese embora a ocorrência do facto que corporiza a causa de pedir, ilidindo a presunção emergente do facto-índice.
(AMPMR)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Estado da Causa

1.1. – A sociedade P, S.A. propôs, a presente acção judicial contra a sociedade R, Lda., em que é sócio gerente, S, requerendo a declaração judicial da sua insolvência.

Invoca, para tanto, que, no âmbito da sua actividade comercial, forneceu-lhe combustível no valor de 6 473 606,69 €, encontrando-se as facturas relativas a tais fornecimentos vencidas; não obstante interpelada para pagar, assim não procedeu; os juros de mora vencidos sobre tais facturas ascendem, até ao dia 3 de Novembro de 2008, ao valor de 604 331,01 €; a requerida tem um capital social de 5 000,00 €, não lhe sendo conhecidos imóveis, nem créditos bastantes sobre terceiros para pagar esta dívida; não dispõe de crédito bancário nem se encontra a exercer qualquer actividade.

A requerida contestou.

Procedeu-se a julgamento e, depois, foi proferida a douta sentença de 18 de Dezembro de 2008 (fls. 176/188), que___ entre o mais___ declarou a insolvência da requerida sociedade R, Lda..

1.2. - È desta sentença de 18 de Dezembro de 2008 (fls. 176/188) que apela o sócio-gerente da sociedade R, Lda., S ___ Concluindo:

1º) – O Tribunal a quo não teve em conta a matéria de facto dada como provada, mormente, a constante na alínea G) da base instrutória e os créditos detidos pela apelante, pelo que os factos dados como provados não se coadunam com a decisão, o que produz nulidade, de harmonia com o disposto no art. 668º, nº1, c), do C. P. Civil. 2º) – A sentença impugnada fez uma errada interpretação do art. 20º, nº1, b), do CIRE, designadamente, porque o pedido que subjaz à verificação do facto índice configurado neste normativo, ser mais vasto do que o mero reconhecimento do crédito do requerente, abraçando antes a falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações. Ou seja. A suspensão tem de ser generalizada e demonstrativa da incapacidade da requerida, através dos seus activos, a liquidar. O Tribunal a quo não cuidou de todos os aspectos a este respeito pertinentes. 3º) – A matéria fáctica dada por provada nas alíneas LL), MM) e NN), afastam, linearmente, a situação configurada no art. 3º, nº2, do CIRE. Com efeito. Tendo-se demonstrado que o activo é superior ao passivo, a requeridas fez prova da sua solvência.
II – Os Factos

2.1. – A 1ª instância deu como provados os factos constantes na douta sentença impugnada, a fls. 177/183, que aqui se dão por integralmente reproduzidos (art. 713º, nº6, do C. P. Civil).

2.2. – Aceitamos os factos fixados (art. 712º do C. P. Civil).

III – O Direito

3.1. - Quanto à 1ª Conclusão:

A sentença é nula “…quando os seus fundamentos estão em oposição com a decisão...” (art. 668º, nº1, c), do C. P. Civil).

Há que não olvidar, todavia, que o erro de interpretação dos factos e ou do direito ou na aplicação deste, constitui erro de julgamento, e não o vício de nulidade decorrente de contradição entre os fundamentos e a decisão a que alude a alínea c) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil.

Como refere o Conselheiro Salvador da Costa (Acórdão do S.T.J. de 31 de Maio de 2005, www. dgsi.pt) “…É que o vício de nulidade a que se reporta o aludido normativo só ocorre quando os fundamentos de facto e ou de direito invocados no acórdão conduzirem logicamente ao resultado oposto àquele que o integra o respectivo segmento decisório…”.

Ora ___os fundamentos de facto e de Direito utilizados na sentença impugnada mostram-se harmónicos com a pertinente conclusão ou decisão e não é alegadamente o facto de o Senhor Juiz a quo não ter tido em conta a matéria de facto dada como provada, mormente, a constante na alínea G) da base instrutória e os créditos detidos pela apelante que vai inquinar a sua decisão da nulidade invocada. Nada verdade, o que resulta do alegado pela apelante é tão só a sua discordância quanto ao decidido, o que poderá eventualmente enquadrar o erro de julgamento, mas não o vício de nulidade da sentença invocado.

Improcede pois a conclusão de que o Tribunal a quo não teve em conta a matéria de facto dada como provada, mormente, a constante na alínea G) da base instrutória e os créditos detidos pela apelante, pelo que os factos dados como provados não se coadunam com a decisão, o que produz nulidade, de harmonia com o disposto no art. 668º, nº1, c), do C. P. Civil.

3.2. - Quanto à 2ª e 3ª Conclusões:

A questão essencial que se coloca nestes tópicos da vertente apelação___ que, no fundo, é o que o apelante pretende ver satisfeito ___ é saber se a sociedade R, Lda. deve ou não ser declarada insolvente face a factualidade assente.
O art. 3º, nº 1, do CIRE, estipula que “…é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas…”. O nº 4 do mesmo preceito acrescenta que “…equipara-se à situação de insolvência actual a que seja meramente iminente, no caso de apresentação pelo devedor à insolvência…”.
O conceito básico de insolvência expresso por este preceito traduz-se na impossibilidade de cumprimento, pelo devedor, das suas obrigações vencidas. Só são, pois, determinantes, para a caracterização da impossibilidade do cumprimento, as obrigações do devedor já vencidas, sem embargo de se permitir ao devedor que se apresente à insolvência quando esta seja meramente iminente. Mas essa é uma faculdade que apenas assiste ao devedor.
Os credores apenas estão legitimados, nos termos do preceituado no art. 20º, nº 1, do CIRE, para requererem a declaração de insolvência verificando-se, para além do mais que aqui não tem relevo transcrever, algum dos seguintes factos: a) Suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas; b) Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações; c) Fuga do titular da empresa ou dos administradores do devedor ou abandono do local em que a empresa tem a sede ou exerce a sua principal actividade, relacionados com a falta de solvabilidade do devedor e sem designação de substituto idóneo; d) Dissipação, abandono, liquidação apressada ou ruinosa de bens e constituição fictícia de créditos; e) Insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor; h) Sendo o devedor uma das entidades referidas no nº 2 do artigo 3º, manifesta superioridade do passivo sobre o activo segundo o último balanço aprovado, ou atraso superior a nove meses na aprovação e depósito das contas, se a tanto estiver legalmente obrigado.
De acordo com o disposto no art. 25º, nº1, daquele diploma, quando o pedido não provenha do próprio devedor, o requerente da declaração de insolvência deve justificar na petição a origem, natureza e montante do seu crédito, ou a sua responsabilidade pelos créditos sobre a insolvência, consoante o caso, e oferecer com ela os elementos que possua relativamente ao activo e passivo do devedor.
Como ensinaram Carvalho Fernandes e João Labareda (“CIRE Anotado”, 2008, pp. 72), de há muito que tem sido geral e pacificamente entendido pela doutrina e pela jurisprudência que, para caracterizar a insolvência, a impossibilidade cumprimento não tem de abranger todas as obrigações assumidas pelo insolvente e vencidas. O que verdadeiramente releva para a insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos. Com efeito, acrescentam aqueles Juristas, pode até suceder que a não satisfação de um pequeno número de obrigações ou até de uma única indicie, por si só, a penúria do devedor, característica da sua insolvência, do mesmo modo que o facto de continuar a honrar um número quantitativamente significativo pode não ser suficiente para fundar saúde financeira bastante.
As diversas alíneas do citado artigo 20º, nº 1, estabelecem factos presuntivos da insolvência (ob. cit., pp. 135) que tem por principal objectivo permitir aos legitimados o desencadeamento do processo, fundados na ocorrência de alguns deles, sem haver necessidade, a partir daí, de fazer a demonstração efectiva de situação de penúria traduzida na insusceptibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, nos termos em que ela é assumida como característica nuclear da situação de insolvência (art. 3º, nº 1).
Caberá, então, ao devedor, se nisso estiver interessado e, naturalmente, o puder fazer, trazer ao processo factos e circunstâncias probatórias de que não está insolvente, pese embora a ocorrência do facto que corporiza a causa de pedir. Por outras palavras, cabe-lhe ilidir a presunção emergente do facto-índice (Acórdão da R. de Évora de 25 de Outubro de 2007, C.J., 2007, 4º, pp. 259). Na verdade, o art. 30º, nº 4, do CIRE, é taxativo quanto ao ónus que impende sobre o devedor de provar a sua solvência.
Ora___ Considerando que:
- Da factualidade apurada fluí que se encontram vencidas e não pagas débitos que no seu total perfazem o valor de 6 473 636,59 € (Factos M), N) O)), sendo que o primeiro vencimento ocorreu em Fevereiro de 2008 e, pelo menos até à actualidade não foi cumprido (Factos R), S) T)), devendo tê-lo sido em 30 dias (Factos H)).
- No “…dia 4 de Abril de 2008, a partir das 00:00 h, a requerente cortou os abastecimentos aos Cartões emitidos em nome da requerida, facto que foi comunicado a este por aquela, através de fax datado do dia 3 de Abril de 2008…” (Facto P)).
- Dispõe o art. 20º, nº1, b) do CIRE que a declaração de insolvência pode ser requerida quando se verifique que “…Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações…”.
- Como acima já se referiu, pode suceder que a não satisfação de um pequeno número de obrigações ou até de uma única indicie, por si só, a penúria do devedor, característica da sua insolvência, do mesmo modo que o facto de continuar a honrar um número quantitativamente significativo pode não ser suficiente para fundar saúde financeira bastante.
- Da materialidade apurada e a este respeito pertinente, resulta que “…Em Outubro de 2008, o activo da requerida era no valor de 7 176.551,14 €…” (Facto LL) e “…o passivo era no valor de 7 045 196,06…” (Facto MM); “…Em Outubro de 2008, a requerida dispunha de capitais próprios no valor de 104 382,99 €…” (Facto NN) e “…tem créditos a curto prazo no valor de 6 641.332,03…” (Facto PP); mais se provou que “…a requerida não tem dívidas para com a Segurança social…” (Facto SS) e “…para com as Finanças…”…” (Facto TT); por fim “…A requerida no mês de Novembro de 2008, voltou a comprar e vender combustível…” (Facto VV).
Não se pode legalmente configurar que a sociedade R, Lda. se encontre impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas.
Com efeito.
Num país em que são generalizadas as dívidas à Segurança Social e às Finanças, a requerida sociedade apresenta, em dia, o seu cumprimento. È certo que crédito da apelante é considerável, mas não podemos olvidar que a apelada sociedade tem créditos a curto prazo no valor de 6 641.332,03 €, muito equivalentes ao montante que serve de fundamento à insolvência. Independentemente de se saber se tais créditos vêm ou não a ser pagos, o facto é que os têm e a decisão de declaração de insolvência tem de os ter em devida ponderação. A isto é preciso coligir o facto de o passivo e o activo não estarem em evidente desequilíbrio. Antes pelo contrário. Resta também ter em atenção que a requerida insolvente no mês de Novembro de 2008, voltou a comprar e vender combustível. Tal facto, só por si, indicia que a sua actividade comercial está em movimento o que é um factor adicional de susceptibilidade de possibilidade de cumprimento das dívidas.
Neste conspecto, aceitamos a argumentação expendida nestas conclusões de recurso que, ut supra, se enumeraram.

IV Em Consequência – Decidimos:

a) – Julgar procedente a apelação do sócio-gerente da sociedade R., S, revogar a douta sentença de 18 de Dezembro de 2008 (fls. 176/188), julgando-se improcedente a declaração judicial de insolvência da sociedade R, Lda..
b) – Condenar a apelada, P, S.A., nas custas.

Lisboa – 22 de Abril de 2010

Rui da Ponte Gomes
Luís Correia Mendonça
Carlos Marinho