Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2542/17.0T8CSC.L1-8
Relator: ANA PAULA NUNES DUARTE OLIVENÇA
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
FACTO CONSTITUTIVO
AQUISIÇÃO DERIVADA
PRESUNÇÃO REGISTRAL
REGISTO PREDIAL
DUPLA DESCRIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/23/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. Na aquisição originária, o direito de propriedade é um direito autónomo, um direito independente do direito de propriedade anterior.
Na aquisição derivada, tem de levar-se em conta o direito do transmitente, o qual influi no direito do adquirente. Os negócios translativos, não criam a propriedade, apenas a transferem.
2. Na acção de reivindicação cumpre ao A. provar o seu direito por uma de três formas: pela prova de todas as aquisições derivadas percorrendo toda a série de transmissões anteriores à sua até chegar à aquisição originária; pela apresentação de uma certidão do registo predial, já que o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define ou, fazendo a prova dos pressupostos de uma das formas de aquisição originária da propriedade imobiliária;
3. Verificando-se uma dupla descrição, total ou parcial, do mesmo prédio, nenhum dos titulares registais poderá invocar a seu favor a presunção que resulta do artigo 7º do Código do Registo Predial, devendo o conflito ser resolvido com a aplicação exclusiva dos princípios e das regras de direito substantivo, a não ser que se demonstre a fraude de quem invoca uma das presunções.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

1.Relatório
MJL,
Veio propor a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de Processo comum, contra,
J e E;
C e M; e,
P e AL,
pedindo seja julgada procedente por provada a acção e, consequentemente:
A) Seja oficiosamente declarada a nulidade da escritura pública de compra e venda realizada no dia …de Setembro de 2011, no Cartório Notarial de ….., sobre o prédio físico identificado em 1., mas inscrito na matriz sob o nº….., com fundamento no artigo 892.º do CC que estabelece que é nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar;
B) Seja oficiosamente declarada a nulidade do contrato de compra e venda autenticado realizado no dia ……….. pelo. Advogado, do prédio físico identificado em 1., mas inscrito na matriz a favor dos 2ºs Réus com o nº…, com fundamento no artigo 892.º do CC que estabelece que é nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar, realizada entre os 2ºs Réus e os 3ºs Réus, …;
C) Seja declarada a nulidade de todo e qualquer registo lavrado na Conservatória do Registo Predial de …. com base nas escrituras a que aludem as alíneas A) e B) supra e com base nos elementos matriciais do prédio delas constantes, designadamente, a matriz provisória com o nº …., porquanto, o registo enferma de inexactidões (falso destaque) das quais resulta incerteza acerca do objecto da relação jurídica a que o facto registado se refere (cfr. Artº 16º c) do CRP);
D) Seja, em qualquer caso, declarada a ineficácia de ambos os negócios referidos nas alíneas A) e B), relativamente à autora;
E) Seja declarado que a autora é a legítima proprietária e possuidora do lote de terreno para construção, sito …. Concelho de Cascais, designado por lote…. , inscrito na respectiva matriz sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial , sob o nº …, encontrando-se o respectivo prédio inscrito na referida matriz nº…, desde o ano 1990 e inscrita a favor da Autora desde 1993, quer porque, validamente, o adquiriu dos 1ºs réus por escritura de compra e venda, ou em qualquer caso, porque o adquiriu também por aquisição originária porquanto decorreu o prazo máximo da usucapião;
F) Sejam, todos os Réus condenados a reconhecer o direito de propriedade da autora sobre o prédio e os 3ºs Réus ainda condenados a restituir imediatamente à Autora o identificado terreno para construção identificado na alínea anterior;
G) Seja ordenado o cancelamento de todo e qualquer registo lavrado na Conservatória do Registo Predial de … com base nas escrituras a que aludem as alíneas A) e B) supra e com base nos elementos matriciais do prédio delas constantes, designadamente, a matriz provisória com o nº -….;
H) Subsidiariamente, para o caso de não procederem os pedidos formulados nas alíneas anteriores requer-se a condenação dos 1ºs Réus a indemnizar a autora pelo valor actual do terreno que fixa em 58.000,00 €, a título de indemnização pelo prejuízo sofrido com a perda do terreno se tal vier a ocorrer;
I) Em qualquer caso devem ainda os 1ºs Réus ser condenados a pagar à autora o valor de 2000,00€ a título de danos não patrimoniais e ainda nos danos patrimoniais que se vierem a liquidar em execução de sentença.
Para tanto alega, em síntese:
A - Da Propriedade
É proprietária e possuidora do lote de terreno para construção, com a área de 269,50m2, sito no Lugar da ….Concelho de Cascais, designado por lote …, inscrito na respectiva matriz sob o artigo …, e descrito na Conservatória do Registo Predial de …, encontrando-se o respectivo prédio inscrito na referida matriz nº …., desde o ano 1990 e inscrita a favor da Autora desde 1993;
A adquiriu a propriedade do imóvel por compra a ….e mulher …., por escritura pública de compra e venda realizada, no dia 24 de Fevereiro de 1993, pela qual, os 1ºs Réus declararam vender e a Autora declarou comprar, o lote de terreno para construção, com a área de 269,50 m2, sito no Lugar da ….., designado por lote ….., inscrito na respectiva matriz sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial de …, sob o nº … B – 84, encontrando-se o prédio registado a favor dos primeiros réus pela inscrição ….. Livro …., pelo preço de um milhão e quinhentos mil escudos;
Por sua vez os primeiros réus adquiriram a propriedade do mesmo imóvel por escritura pública de compra e venda de 04/04/1984 realizada no Cartório Notarial de …. constante de fls. 70 do Lº ., pela qual, declararam comprar a AF…. e ML que declararam vender, o prédio rústico, com a área de duzentos e sessenta e nove metros quadrados e cinquenta centímetros, situado no lugar da …. freguesia de …, concelho de …., designado por lote …, a destacar do prédio rústico inscrito na respectiva matriz sob o artigo …secção .. descrito na primeira secção sob o número …., e encontrando-se o prédio registado a favor dos vendedores pela Ap….. com o nº ….;
Por seu turno o AF e ML adquiriram a propriedade do prédio identificado em 1, por escritura pública de divisão de coisa comum de 30/04/1973, realizada no Cartório Notarial de … constante de fls. …, sendo que, a matriz cadastral rústica original era o artigo …., com a área de 40.840m2, designado ….;
O 1º R. marido, em 10/07/1989, depois de adquirir a parte do prédio rústico a destacar e antes de a vender à aqui Autora, procedeu ao destaque da dita parcela de 269,50m2 a partir do terreno com a área de 40.840m2 inscrito na matriz rústica sob o nº … e, junto do Ministério das Finanças – Direcção- Geral das Contribuições e Impostos, fez uma Declaração para inscrição ou alteração de inscrição de prédios urbanos na matriz pedindo a inscrição na matriz do prédio identificado em 1. (a parcela de 269,50 m2) como terreno para construção, até aí inscrito sob parte do rústico artigo …., tendo- sido atribuído, ao dito lote de terreno para construção, o numero de matriz …..;
Foi o número de matriz 9310 que ficou a constar da escritura referida de 24 de Fevereiro de 1993, aquele sob o qual está, actualmente, o prédio inscrito na matriz a favor da Autora, sendo que, o prédio passou a urbano;
Como o registo predial só se tornou plenamente obrigatório desde o Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de Julho, a Autora que adquiriu em 24/02/1993, não procedeu ao registo do prédio junto da Conservatória do Registo Predial competente, apesar de se encontrar inscrito na matriz a seu favor;
Aproveitando-se desse facto, os 1ºs Réus,  em 08/11/2010, procedeu, agora com base na apresentação de um projecto de viabilidade construtiva, ao destaque de uma nova parcela de terreno com a mesma área de 269,50m2” e, novamente, junto do Ministério das Finanças-Autoridade Tributária e Aduaneira, procedeu a uma nova declaração para inscrição ou actualização de prédios na matriz de parte do artigo 748 do prédio identificado em 1 tendo-lhe sido atribuído desta vez o artigo provisório …;
Na posse de uma caderneta predial comprovativa da descrição do prédio na matriz sob o nº P…. a seu favor, os 1ºs Réus procederam a uma nova venda do prédio que indicaram, fisicamente, como sendo aquele vendido à A., bem sabendo que já não lhes pertencia e que estavam a vender coisa alheia com base em documentos obtidos com recurso à prestação de falsas declarações perante entidades públicas;
No dia 22 de Setembro de 2011, os 1ºs Réus, por escritura pública de compra e venda realizada no Cartório Notarial de …., declararam vender o prédio que fisicamente é o identificado em 1., mas objecto de um segundo destaque fictício que foi inscrito na matriz a favor dos 1ºs Réus com o nº … e descrito na primeira conservatória do registo predial de … sob o nº … da freguesia de …., aos 2ºs Réus, …., que declararam comprar pelo preço de trinta mil e um euros;
Este negócio foi mediado por uma imobiliária nas proximidades do terreno e que pertencia à filha dos 1ºs Réus, a qual tinha, por isso mesmo, conhecimento de que o prédio já fora anteriormente objecto de destaque e vendido à Autora;
A realização da segunda escritura pública apenas foi possível, porque, os 1ºs e 2ºs Réus fizeram constar da mesma um novo número de inscrição do prédio na matriz o número P… bem sabendo os 1ºs Réus, que o prédio já fora objecto de anterior destaque e que número de matriz do prédio era o … mas que essa matriz estava inscrita a favor da Autora, pois que o prédio lhe pertencia;
Por sua vez, os 2ºs réus, no dia 12 de Março de 2016, por contrato de compra e venda autenticado, declararam vender o prédio físico vendido à A. mas inscrito na matriz a favor dos 2ºs Réus com o nº … e descrito na primeira conservatória do registo predial de … sob o nº … da freguesia de S…, aos 3ºs Réus, …., pelo preço de trinta e oito mil euros que declararam comprar e ter pago, tudo conforme melhor se pode ver do contrato cuja copia se junta como documento nº 11 (Doc.11)
A realização do dito contrato de compra e venda autenticado apenas foi possível porque foi exibida uma caderneta predial, obtida com base num falso destaque e em declarações falsas;
Pelo menos os 1ºos réus sabiam, sem poder ignorar, que o terreno era pertença da autora porque lho venderam e porque procederam a duas operações de destaque da mesma parcela de terreno a primeira em 10/07/1989 e a segunda em 08/11/2010 conseguindo assim uma duplicação dos elementos matriciais do mesmo prédio;
Os 2ºs Réus nunca tomaram posse efectiva do prédio, uma vez que, a autora nem sequer se tinha apercebido, até ao mês de Março do corrente ano 2017, que o prédio esteve registado a favor daqueles entre 22/03/2011 e 12/03/2016;
Os 2º RR. nunca se apresentaram à autora como proprietários do prédio durante os 5 (cinco) anos que o prédio esteve registado a seu favor e nunca realizaram qualquer acto de posse material sobre o prédio.
Os 3ºs Réus são vizinhos da autora e sempre a viram a circular livremente pelo terreno, a limpar o terreno e comportar-se como sua real proprietária que era;
Em data que a autora não consegue precisar teve um litígio com o pai dos 3ºs Réus proprietário confinante com o terreno dos autos, referente à construção de um muro, e que foi, a pessoa que a autora encontrou no seu terreno no passado mês de Março de 2017, e lhe comunicou que o prédio era agora do seu filho;
Os 3ºs Réus sabiam, por isso, e não podiam ignorar, sem culpa, que a autora era proprietária e possuidora do dito terreno;
Com efeito como bem se puderam aperceber os 3ºs réus, a Autora, teve o prédio à venda;
Os 1ºs Réus bem sabendo que já haviam vendido o prédio e que por isso não lhes pertencia, identificaram-se como proprietários do mesmo junto da Câmara Municipal de Cascais e junto da Autoridade Tributária para conseguir um novo destaque e um nova inscrição do prédio na matriz a seu favor, o que conseguiram;
Na data da realização da escritura de 24/02/1993, o prédio foi entregue à autora que desde tal data actuou sempre como a legítima proprietária e possuidora do terreno, tendo ocorrido a transmissão do direito de propriedade sobre o mesmo prédio por mero efeito da escritura referida em 1.;
A Autora, desde a data da aquisição pela compra do prédio passou a utilizar o prédio, circulando nele livremente fazendo dele coisa sua, pública, pacificamente e de boa-fé, certa que não lesava interesses alheios, desenvolvendo todos os actos materiais e jurídicos com vista a retirar as maiores utilidades do prédio, incluindo actos com vista à construção das infra estruturas urbanísticas do lote de terreno,
Com o seu comportamento os 1ºs Réus causaram um prejuízo à Autora que se consubstanciará, desde logo, no valor actual do terreno, caso se venha a entender que o mesmo ficará a pertencer ao titular inscrito no registo predial que calcula ascender a 58.000,00€;
A título de danos morais a autora reclama ainda dos 1ºs réus, o valor de 2.000,00€.
*
Os Réus, devidamente citados, apresentaram contestações:
Os primeiros RR. contestaram a acção apresentada tendo no essencial dito que efectivamente celebraram, em 1993, o contrato alegado pela A. porém, haviam esquecido a sua celebração pelo que, requereram pela segunda vez o desataque do terreno donde decorreu o artigo matricial … – o que aliás aconteceu sem que qualquer entidade envolvida questionasse a existência de um destaque anterior;
Este destaque não ocorreu em 2010 como a A. alega mas em data anterior que os RR. não sabem precisar;
 Os RR. suportaram, até à venda aos 2ºs RR. ocorrida em 22/09/2011 (cf. doc. 10 da p.i.), os encargos administrativos e fiscais relacionados com o terreno em causa, como foi o caso do pagamento da limpeza do terreno imposta pela CML em 2010 (processo …) e o IMI liquidado pela Autoridade Tributária relativamente aos anos de 2007, 2008, 2009 e 2010;
Mais dizem, não ser verdade que a A. tenha passado a utilizar o imóvel após a aquisição, de forma pública e ininterruptamente até ao presente.
Confrontados com esta acção, os 1º RR. manifestaram desde logo intenção de ressarcir a A. e continuam a ter tal pretensão.
O pedido que a A. formula no montante de €60.000,00 é manifestamente exagerado e sem qualquer fundamento plausível.
A final pedem, a sua absolvição do pedido.
*
Também os 2ºs RR. apresentaram contestação, tendo deduzido também, reconvenção.
Alegam ter adquirido o imóvel descrito nos autos, livre de ónus e encargos, através de escritura pública realizada em Cartório Notarial, tendo procedido ao correspondente registo;
De acordo, com os documentos juntos aos autos pela autora, os 1º réus, terão procedido a venda de um prédio rustico, e posteriormente através do Mod. 1 entregue nas Finanças, procederam à sua inscrição como lote para construção de algo que não lhes pertencia, situação que era totalmente desconhecida pelos aqui Réus;
Encontrando-se o imóvel, na sua esfera jurídica, em 12 de Março de 2016, procederam a sua venda aos aqui 3ºs réus;
São totalmente alheios a esta situação;
Desde 2011 que os 2ºRR tinham a propriedade e a posse do imóvel, tendo inclusivamente vedado o mesmo;
O único proprietário conhecido para os aqui réus era o Sr. …. (1º R.)  pessoa que celebrou a escritura de compra e venda e recebeu o dinheiro dessa venda;
Entre 2011 e 2016, todas as limpezas do imóvel foram realizadas pelos aqui Réus, inclusivamente, foram solicitados os serviços da C. M. Cascais, para recolha de detritos, em nome dos aqui Réus;
O imóvel não está ininterruptamente na posse da A. há mais de 20 anos;
Os Réus/Reconvintes, pagaram o montante de 31.000,00€ aos 1ºs Réus;
Com a limpeza do terreno durante os 6 anos que o mesmo esteve na sua posse gastaram sensivelmente 6.000,00€ em limpezas.
Deduzem pedido reconvencional para obter o recebimento do valor gasto em benfeitorias.
Terminam defendendo que:
a) Deve a presente acção ser julgada improcedente por não provada.
b) Deve o pedido de usucapião ser improcedente atendendo a que não se encontram preenchidos os seus pressupostos.
c) Deve a Autora ser condenada no pagamento do pedido reconvencional no valor de 6.000.00€
d) Deve ser condenada no pedido de litigância de má-fé, nos termos conjugados e para os efeitos dos artºs 542º e 543º do C.P.C. no montante mínimo de 3.000.00€
*
Os 3.ºs RR., … em sede de contestação alegam que no dia 20 de Fevereiro de 2016 foi celebrado contrato promessa de compra e venda entre os 2ºs RR e os 3ºs RR, através do qual os 2ºs RR prometeram vender aos 3ºs RR que, por sua vez, prometeram comprar, o imóvel em causa nos autos pelo preço de €38.000,00 (trinta e oito mil euros) tendo, a título de sinal e princípio de pagamento, pago aos 2ºsRR, naquela data, o montante de €500,00 (quinhentos euros);
Acordaram que o remanescente do preço no montante de €37.500,00 (trinta e sete mil e quinhentos euros), seria pago pelos 3ºs RR na data da outorga do contrato prometido;
No dia 12 de Março de 2016 foi celebrado contrato de compra e venda do imóvel que à data da celebração encontrava-se registado a favor dos 2ºs RR e tinha o valor patrimonial tributário de €39.942,38 (trinta e nove mil, novecentos e quarenta e dois euros e trinta e oito cêntimos);
O preço efectivamente pago pelos 3ºs RR. aos 2ºs RR. foi de €38.000,00 (trinta e oito mil euros), valor esse que, tal como declarado, foi o valor efectivamente pago pelos 3ºs RR e recebido pelos 2ºs RR.;
O negócio celebrado entre os 2ºs RR e os 3ºs RR teve a intervenção de mediadora imobiliária;
Os 3ºs RR residem em imóvel que confronta com o terreno em questão e entre meados de 2011/2012 e 2015 sempre viram os 2ºs RR. a executar a limpeza do terreno em questão.
Após a aquisição, no dia 25.03.2016, os 3ºs RR procederam à limpeza do terreno e desde tal data vêm cultivando o terreno, sem que hajam sido confrontados ou questionados pela A. sobre a motivação ou autoria da limpeza ou do cultivo do terreno;
Em 20.01.2010 foi apontada pela Câmara Municipal de … a verificação de infracção emergente da falta de limpeza do terreno em questão, a qual foi imputada ao 1º R. que culminou com a realização da limpeza do terreno por parte da Câmara Municipal … e com a imputação ao 1º R. de coima paga por aquele;
A A. nunca foi tida pelas pessoas da zona, como sendo a proprietária ou possuidora daquele terreno.
A acção não foi proposta pela A. dentro dos 03 (três) anos posteriores à conclusão do negócio, já que este terá ocorrido em 22/09/2011 e a acção foi proposta em 02/08/2017, quase 06 (seis) anos depois e o prazo de caducidade a que se refere a citada norma, prazo que começa a contar a partir da data da celebração do primeiro negócio inválido, que dá origem à cadeia;
Em face do hiato temporal decorrido, os efeitos da nulidade sempre teriam que ceder perante os direitos dos terceiros adquirentes que registaram as suas aquisições, feitas a título oneroso e de boa fé, como sucedeu com os 2ºs RR e os 3ºs RR.;
Falece o argumento invocado pela A. segundo o qual, não obstante, a mesma adquiriu o referido terreno por aquisição originária, em virtude do decurso do prazo máximo da usucapião;
Não obstante o negócio celebrado entre os 1ºs RR e a A., esta não praticou actos conducentes à sua publicidade, como foi o caso de nem sequer haver requerido o respectivo registo.
Terminam defendendo que deve a acção ser julgada totalmente improcedente, por não provada, absolvendo-se os 3ªs RR dos pedidos formulados pela A.
***
Devidamente notificada a A. vem responder à reconvenção alegando que a propriedade e a posse do prédio foi transferida para si por efeito da escritura pública de compra e venda, realizada em 24 de Fevereiro de 1993, propriedade e posse que se mantêm na autora, visto que só em Março de 2017, teve conhecimento das alienações;
Pede a improcedência do pedido reconvencional.
*
No decurso dos autos sobreveio o falecimento de ambos os 1º RR., pelo que foram habilitados, para consigo prosseguirem os termos da causa, os seus herdeiros.
*
Foi realizada tentativa de conciliação a qual resultou infrutífera.
Foi dispensada a audiência prévia.
Foi admitida a reconvenção.
Considerada a simplicidade da causa, foi dispensada a fixação do objecto do litígio e dos temas da prova.
Realizou-se a audiência final.
*
Foi proferida sentença que, a final, decidiu:
«V – Decisão
Pelo exposto:
V.I)- Declaro a nulidade da escritura pública de compra e venda realizada no dia 22 de Setembro de 2011, no Cartório Notarial, sobre o prédio físico identificado em 1. Dos factos provados, mas inscrito na matriz sob o nº P…, com fundamento no artigo 892.º do CC, realizada entre os 1ºs Réus … e os 2ºs Réus, …, (Doc. 10).
V.II) declaro a nulidade do contrato de compra e venda autenticado realizado no dia 12 de Março de 2016, pelo M.I. Advogado, .., do prédio físico identificado em 1., mas inscrito na matriz a favor dos 2ºs Réus com o nº P…., com fundamento no artigo 892.º do CC, realizada entre os 2ºs Réus e os 3ºs Réus, constante do documento nº 11 (Doc.11);
V.III) declaro a nulidade de todo e qualquer registo lavrado na Conservatória do Registo Predial de … com base nas escrituras a que aludem os pontos V.I e V.II supra e com base nos elementos matriciais do prédio delas constantes, designadamente, a matriz provisória com o nº P….;
V.IV) declaro a ineficácia de ambos os negócios referidos nos pontos
V.I e V.II, relativamente à autora ….;
V.V) Declara que a autora …. é a legítima proprietária e possuidora do lote de terreno para construção, com a área de 269,50m2, sito no Lugar da …., Freguesia …, Concelho de …, designado por lote 41, inscrito na respetiva matriz sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais 1ª secção, sob o nº …, encontrando-se o respetivo prédio inscrito na referida matriz nº …, desde o ano 1990 e inscrita a favor da Autora desde 1993, quer porque, validamente, o adquiriu dos 1ºs réus por escritura de compra e venda, ou em qualquer caso, porque o adquiriu também por aquisição originária porquanto decorreu o prazo máximo da usucapião.
V.VI)- Condeno os Réus a reconhecer o direito de propriedade da autora sobre o prédio identificado em V.I;
V.VII-Condeno os 3ºs Réus a restituir imediatamente à Autora o identificado terreno para construção identificado, e por força da nulidade determino a restituição pelos habilitados dos 1.º RR do preço que receberam dos 2.ºs RR e pelos 2.ºs RR do preço que receberam dos 3.ºs RR, tudo por força do disposto no art.º 289.º, do CC.
V.VII) Ordeno o cancelamento de todo e qualquer registo lavrado na Conservatória do Registo Predial …. com base nas escrituras a que aludem as os pontos VI e VII supra e com base nos elementos matriciais do prédio delas constantes, designadamente, a matriz provisória com o nº P22166.
V.VIII) Condeno os habilitados dos 1.ºs RR. …. a pagar à A. ….. o montante de €1.500,00 a título de indemnização por dano não patrimoniais.
V.IX) Absolvo a A. do pedido reconvencional.
V.X) Absolvo a A. do pedido de condenação como litigante de má fé.
***
Custas pelos RR. (art.º 527.º do Código de Processo Civil).
Registe e notifique.
Após trânsito, cumpra o art.º 13.º do Código de Registo Predial.»                                   
*
Não se conformando com a decisão, dela vêm recorrer os 3º RR., …, alinhando as seguintes conclusões:
«CONCLUSÕES:
A) Os 3.ºRR/Recorrentes não se conformam com a Douta Sentença recorrida entendendo que a subsunção jurídica realizada pelo Tribunal “a quo” relativamente aos factos dados por provados resultou de uma incorrecta interpretação do artigo 291.º do CC, que determinou a sua não aplicação.
B) O raciocínio do Tribunal “a quo”, quanto à exclusão da protecção dos 2.ºs e 3.ºs RR/Recorrentes a cobro do citado artigo 291.º do Código Civil, parte da circunstância de entender que aquando da celebração do negócio entre os 1.ºs e os 2.ºs RR já a propriedade do imóvel físico se encontrava estabilizada na esfera jurídica da A., pela aquisição derivada translactiva, pela aquisição originaria e pela usucapião.
C) Ponderada a factualidade dada por provada sob 10., 38., 40., 45., 46., 49. a 51. e 53. a 59., forçoso será concluir que a A. não foi reconhecida como proprietária ou sequer possuidora do prédio físico em questão. Mas antes, que os 2.ºs RR estavam, à data da celebração do negócio como os 1.º RR, convictos da legitima propriedade destes últimos sobre o prédio em questão, tendo (os 2.ºs RR), tomado posse do prédio físico (que é o mesmo) e sobre ele praticado actos de posse (chegando a realizar a limpeza do terreno) e que o mesmo sucedeu quanto aos 3.ºs RR/Recorrentes
D) Resultou assim demonstrado que a A. perdera, há muito, a posse do prédio, porque incompatível com os actos possessórios sucessivamente praticados, quer pelos 2.ºs RR, quer pelos 3.ºs RR/Recorrente e que se deram por provados. E que a posse da A. a ter existido cessou, sendo substituída por mais de 01 (um) ano, quer pelos 2.ºs RR, quer, imediatamente depois, pelos 3.ºs RR/Recorrentes, na sequência dos respectivos negócios que celebraram.
E) A A. não teve, nem manteve, a posse do imóvel, nem até 2011, nem, muito menos, até à data da interposição da presente acção (que é o momento temporal relevante, para efeitos da apreciação da pretensão, tal qual apresentada), o que concorre para o preenchimento do disposto na al. d) do n.º 1 do artigo 1267.º do Código Civil e que impedia que pudesse o Tribunal “a quo” concluir, como concluiu, que a propriedade do imóvel físico se encontrava estabilizada na esfera jurídica da A.
H) O caso vertente consubstancia a situação usada como exemplo académico clássico da dupla alienação com subtransmissão. Alienação essa operada (factos provados 8., 9. e 10.), pelos 1.ºs RR, na qualidade de proprietários do bem físico visado (e que é o mesmo), tratando-se de uma dupla alienação de um mesmo bem pelos seus proprietários, os 1.ºs RR.
I) Compreende-se o sentido da decisão, ao considerar que o art.º 291.º do CC “não protege o terceiro adquirente que beneficia dos requisitos do n.º 1, caso não tenha sido o verdadeiro proprietário a iniciar a cadeia de negócios nulos, como parte do primeiro negócio inválido”, mas tal interpretação será de sufragar perante situação diversa daquela que é a dos autos. Mormente, quando a cadeia se inicie por pessoa diversa do verdadeiro proprietário.
J) Bastará atentar ao contexto do Douto Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 19.04.2016, nos autos 5800/12.6TBOER.L1-A.S1, consultável in www.dgsi.pt, e no qual, claramente, se apoia a Sentença recorrida, para alcançar as diferenças entre a situação sub judice e a ali retratada.
K) O silogismo adoptado pelo Tribunal “a quo” para o afastamento da aplicação da protecção resultante do artigo 291.º do Código Civil não está em consonância com aquela que é a factualidade dada por provada e o caso vertente. E seria certeira acaso a venda realizada aos 2.ºs RR o tivesse sido por estranho ao imóvel, que, nunca dele tendo sido proprietário e fazendo uso de um título sem correspondência com a realidade, levasse a cabo a transmissão.
L) De outro modo, e seguindo a interpretação acolhida pelo Tribunal “a quo”, nunca a previsão do artigo 291.º do Código Civil teria aplicação (!) e como tal não poderia o Tribunal “a quo” haver concluído pelo afastamento da aplicação do artigo 291.º do Código Civil, relativamente aos 3.ºRR/Recorrentes. Devendo ser decisão recorrida revogada e substituída por outra que determine a sua aplicação, reconhecendo a prevalência do mesmo à situação dos 3.ºRR/Recorrentes, julgando- se por não provada, a acção, absolvendo os 3.ºRR/Recorrentes dos pedidos formulados pela A/Recorrida, mantendo o registo de aquisição lavrada a favor dos 2.ºsRR e dos 3.ºsRR/Recorrentes.
M) Mais, tendo o Tribunal “a quo” reconhecido que a presente acção foi intentada já após o decurso do prazo previsto no n.º 3 do artigo 291.º do Código Civil, impunha-se que houvesse decidido pela ultrapassagem do prazo de caducidade previsto no n.º 2 do art.º 291.º do CC, julgando improcedente a acção e absolvendo os 3.ºRR/Recorrentes dos pedidos formulados pela A..
Mas, e ainda que assim não fosse,
N) Tendo os 2.ºS RR adquirido posteriormente o direito de propriedade do mesmo imóvel dos mesmos alienantes (1.ºs RR) e procedido prioritariamente à respectiva inscrição registal, subsiste a favor deles a presunção derivada do registo (artigo 7.º do Código do Registo Predial), por virtude da A. não lhes poder opor a sua aquisição (n.º 3 do artigo 5.º do Código do Registo Predial).
O) Por via das regras do registo predial, o contrato de compra e venda celebrado entre a A. e os 1.ºs RR , porque não foi levado ao registo predial, não produz efeitos em relação aos Recorrentes (art.º 5.º do Código do Registo Predial). Atenta a prioridade a favor dos Recorrentes do registo predial de aquisição do direito de propriedade sobre o imóvel em causa, é-lhes conferida como que uma presunção jure et de jure da titularidade desse direito tal como o registo o define.
P) Pelo que, a aquisição do direito de propriedade relativo ao imóvel em questão pela A. é inoponível aos 3.ºRR/Recorrentes, sendo esta a decisão que se impunha ao Tribunal “a quo”.
Q) Consequentemente, sempre deverá, sob qualquer uma das formulações apresentadas, o presente recurso ser julgado procedente, substituindo-se a decisão recorrida por outra que, julgando improcedente, por não provada, a acção, absolva os 3.ºRR/Recorrentes dos pedidos formulados pela A/Recorrida, mantendo o registo de aquisição lavrada a favor dos 2.ºsRR e dos 3.ºsRR/Recorrentes.»
Devidamente notificada do recurso apresentado, veio a A. apresentar as contra-alegações concluindo:
«CONCLUSÕES
A) Respondendo à primeira ordem de argumentos dos Apelantes, suas conclusões B); C).; D) e E), entende a Apelada que os Apelantes confundem a aquisição a “non domino” com o esbulho que consiste na privação da coisa por ato de terceiro contra a vontade do possuidor em que o esbulhador toma, o controlo material da coisa, afastando o controlo material do possuidor e cujas formas típicas de esbulho são o apossamento e a inversão do título da posse pelo detentor da coisa, o que não é confundível.
B) Os Apelantes laboram num erro de raciocínio quando referem que dos factos provados, em 10., 38., 40., 45., 46., 49. a 51. e 53. a 59., resulta uma incompatibilidade com a propriedade e a posse da Apelada que resultou provada conforme factos 8 e 36 a 45, pois é possível confluírem duas posses sobre a mesma coisa e será possuidor, para efeitos da presunção, aquele que tiver melhor posse, nos termos do disposto nos arts.1268º/1 e 2.
C) Demonstrado que ficou nos factos 8 e 36 a 45., a posse da Apelante, que é titulada, pública, pacífica, de boa fé com início em 24-02-1993 e mantida por mais de 17 anos consecutivos, mesmo considerando até à 1ª alienação em 22-09-2011, aquando desta, já a Apelante, havia adquirido o prédio por usucapião (artigos 1296.º, 1268.º, n.º 1, 1257.º, nº1 e nº2, 1254.º nº2, 1251.º, 1287.º, 1288.º, do CC) e isso mesmo foi invocado.
D) Pois ao princípio geral de que os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros, depois da data do respectivo registo, há a opor a exceção da usucapião, que se sobrepõe a qualquer registo, seja qual for o momento - anterior ou posterior - da sua efectivação;
E) E como se refere na sentença recorrida quanto à usucapião, “considerando os factos provados em 8 e 36 a 45 é mister concluir pela sua verificação atento o tempo que decorreu desde a aquisição, mesmo, contado que fosse até 2011, ano da venda pelos 1.ºs aos 2.ºs RR., estando verificados quer o corpus quer o animus da posse, evidenciando-se aquele os poderes de facto relacionados com pagamento de impostos, limpezas que chegou a realizar, pagamentos à Associação de Moradores, não evidenciando a não ida ao imóvel, qualquer abandono ou perda da posse, porquanto a finalidade da aquisição do imóvel era a sua posterior revenda, mantendo sempre o cumprimento das obrigações fiscais”
F) E citando José de Oliveira Ascensão, in Direito Civil Reais 5ª Edição Coimbra Editora, pág. 382, “(…) Consideremos agora a hipótese de dupla alienação. T titular inscrito vende a A, que não registou. Anos depois, aproveitando-se dessa circunstância, T vende a P que está de boa fé e regista. Em princípio P será o proprietário da coisa; mas tudo depende de saber se já passou ou não o prazo necessário para a usucapião em benefício de A. Se passou, a aquisição aparente e registada de nada vale a P; se não passou então P é o verdadeiro proprietário.”
G) E existindo colisão entre a presunção fundada no registo de um direito (artº 7º do CRP) e a presunção decorrente da posse (artº 1268º CC) com início em data anterior à do registo, prevalece esta última;
H) e “verificando-se uma dupla descrição, total ou parcial, do mesmo prédio, nenhum dos titulares registais poderá invocar a seu favor a presunção que resulta do artigo 7.º do Código do Registo Predial, devendo o conflito ser resolvido com a aplicação exclusiva dos princípios e das regras de direito substantivo, a não ser que se demonstre a fraude de quem invoca uma das presunções” in Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2017 Publicação: Diário da República n.º 38/2017, Série I de 2017-02-22, páginas 1049 – 1057 in https://data.dre.pt/eli/acstj/1/2017/02/22/p/dre/pt/html;
I) Respondendo às conclusões A); H); I); J); K); L); M; N); O); P; Q); diz a Apelada que os Apelantes, não obstante, aceitarem os factos provado não atribuem, devendo atribuir, relevância para a decisão de direito, aos factos, provados em 11. a 15., designadamente, que a realização da segunda escritura pública apenas foi possível, porque, os 1ºs e 2ºs Réus fizeram constar da mesma um novo número de inscrição do prédio na matriz o número P... bem sabendo os 1ºs Réus, que o prédio já fora objeto de anterior destaque e que número de matriz do prédio era o .... mas que essa matriz estava inscrita a favor da Autora, pois que o prédio lhe pertencia.
J) A realização dos negócios sucessivos a “non domino”, apenas foi possível porque foi exibida uma caderneta predial, obtida com base num falso destaque e em declarações falsas, para obter a inscrição do número P.... quando o número verdadeiro de matriz do prédio era o ...., matriz essa, inscrita a favor da autora, procedendo os 1.ºs RR a duas operações de destaque da mesma parcela de terreno a primeira em 10/07/1989 e a segunda em 08/11/2010 conseguiram assim uma duplicação dos elementos matriciais e registrais do mesmo prédio, o que releva para concluir que “nenhum dos 2.º e 3.º RR poderá prevalecer-se da protecção quer do art.º 291.º, do CC nem mesmo do art.º 17.º do C. Registo Predial.”
K) “Tal como se refere na sentença: “Ora, por um lado, vemos que o negócio com a A. já  tinha sido realizado algures no ano 1993, e quando a propriedade já se encontrava estabilizada na esfera jurídica da A., até, quanto mais não seja, não só pela aquisição derivada translativa quer pela aquisição originária que pela usucapião, atentos os factos provados, quando os 1.ºs RR num verdadeiro acto de usurpação/expropriação e com o referido artifício enganoso, conseguem obter novo destaque consequente nova inscrição, qual milagre da duplicação, e vendem o imóvel em 22/09/2011 (passados 17 anos da venda à A.) aos 2.ºs RR.”
L) Foi, pois, criado um novo prédio, com base num novo e falso destaque e na duplicação dos elementos matriciais, a partir da mesma descrição, pelo que, citando a sentença recorrida, “não é um verdadeiro proprietário que inicia a cadeia de negócios nulos, não podendo ser aplicado o art.º 291.º.”
M) A conduta dos 1ºs réus que deu origem ao segundo negócio jurídico é uma “conduta típica, ilícita e dolosa, com verificação de todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito criminal de burla.”
N)“Não pode, pois, ser “branqueada” esta fraude/burla ficando sanada  nulidade negocial derivada da cadeia transmissiva assim gerada, pois tal solução seria equivalente a admitir a expropriação do verdadeiro titular que não se apercebe da fraude por não ter praticado qualquer negócio jurídico que desse origem à cadeia de negócios inválidos e face ao artifício enganoso, e até inimaginável, dificultou a detecção da A. face à criação de uma nova inscrição na matriz e no registo para o mesmo terreno físico que nem a autoridade tributária nem o notário detectaram”
O) Em face de tudo quanto foi exposto, cabe concluir pela falta manifesta, completa e absoluta de fundamento do presente recurso que, assim, deve ser julgado improcedente,
P) Caso assim se não entenda deve apreciar-se julgando procedente o pedido subsidiário de indemnização por danos.»
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O recurso foi admitido em 1ª instância, e mostrando-se cumpridos os vistos legais, cabe apreciar e decidir.
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2. Objeto do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas suas conclusões, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. art.ºs 635º, nº 4, 639º, nº 1, e 662º, nº 2, todos do Código de Processo Civil), sendo que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (cf. art.º 5º, nº3 do mesmo Código).
No caso, as questões que importa decidir são as seguintes:
A- Da exclusão da protecção dos 2ºs e 3ºs RR. resultante do art.291º do CCivil;
B-Da presunção derivada do registo a favor dos 2º RR. que determina, que a aquisição do direito de propriedade pelo contrato de compra e venda por parte da A. é inoponível aos 3º RR..
3. Fundamentação de facto
São os seguintes os factos que a 1ª instância deu como provados e que não são objecto de recurso pelo que, e não se concluindo pela existência de erro na apreciação da prova considerada pelo tribunal de 1ª instância tendo a fixação dos factos provados feita com base na prova invocada, nem tendo sido detectada qualquer deficiência, que determine a alteração da decisão proferida sobre a decisão de facto nos termos do art.º 662º, nº 1, e nº 2, al. c), 1ª parte, do Código de Processo Civil, consideram-se definitivamente provados:
«1. Mostra-se inscrito na Conservatória do registo Predial a fls 73V do livro …., com o n.ºs …. o lote de terreno para construção, com a área de 269,50 m2, sito no Lugar da …, Freguesia de …, Concelho de …, designado por lote .., inscrito na respetiva matriz sob o artigo …, desanexado do descrito sob o n.º …. a fls. 65v deste livro (cr. Certidão de registo predial de fls. 82v e 83).
2. O AF e mulher ML adquiriram a propriedade do prédio identificado em 1, por escritura pública de divisão de coisa comum de 30/04/1973, realizada no Cartório Notarial de … constante de fls. …, sendo que, a matriz cadastral rústica original era o artigo …, com a área de 40.840m2, designado …, tudo conforme também consta da certidão de teor da descrição do prédio na matriz junta como documento nº 5 e das descrições e inscrições do prédio no registo predial em vigor cuja cópia informativa está junta como documento nº 4 (Docs. 4 e 5 juntos com a PI)
3. Os primeiros réus J e E adquiriram a propriedade do imóvel identificado no ponto 1. por escritura pública de compra e venda de 04/04/1984 realizada no Cartório Notarial de …s constante de fls. 70 do Lº …, pela qual, declararam comprar a AF e ML que declararam vender, o prédio rústico, com a área de duzentos e sessenta e nove metros quadrados e cinquenta centímetros, situado no lugar da … freguesia de .., concelho de …, designado por lote 41, a destacar do prédio rústico inscrito na respetiva matriz sob o artigo … descrito na primeira secção sob o número …, a fls. ., e encontrando-se o prédio registado a favor dos vendedores pela Ap. … com o nº … conforme se pode ver dos documentos nº 3 e nº4 juntos com a PI);
4. Em 10/07/1989, depois de adquirir a parte do rústico a destacar e antes de a vender à aqui Autora, o 1º Réu marido, J, procedeu ao destaque da dita parcela de 269,50m2 a partir do terreno com a área de 40.840m2 inscrito na matriz rústica sob o nº … e,
5. junto do Ministério das Finanças – Direcção- Geral das Contribuições e Impostos, fez uma Declaração para inscrição ou alteração de inscrição de prédios urbanos na matriz pedindo a inscrição na matriz do prédio identificado em 1. (a parcela de 269,50m2) como terreno para construção, até aí inscrito sob parte do rústico artigo …, tudo conforme documento nº 6 junto com a PI)
6. tendo-lhe sido atribuído, ao dito lote de terreno para construção, o número de matriz …, com o que ficou inscrito desde essa altura, conforme a certidão de teor junta como documento nº 7 com a PI),
7. sendo que, o prédio passou a urbano em conformidade com tal requerimento–terreno para construção - em 30/01/1989, conforme ficha de avaliação feita pelo Serviço de Finanças em 15/01/2013 junta como documento nº 8 com a PI)
8. A Autora adquiriu a propriedade do imóvel identificado em 1. por compra aos 1º RR, por escritura pública de compra e venda realizada, no dia 24 de Fevereiro de 1993, no Cartório Notarial de Lisboa, pela qual, os 1ºs Réus declararam vender e a Autora declarou comprar, o lote de terreno para construção, com a área de 269,50m2, sito no Lugar …., Concelho de …., designado por lote 41, inscrito na respetiva matriz sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial de …., sob o nº … a fls 73V do livro ., pelo preço de um milhão e quinhentos mil escudos, tudo conforme consta da certidão da escritura de compra e venda, emitida pelo  Cartório Notarial de …, extraída do instrumento lavrado no dia 24/02/1993 de fls. …do Livro…, junta como documento nº 2, com a PI.
9. Foi o número de matriz … que ficou a constar da escritura referida em 1., e aquele sob o qual está, atualmente, o prédio inscrito na matriz a favor da Autora, (cfr. Doc.1 junto com a PI)
10. A Autora não procedeu ao registo do prédio junto da Conservatória do Registo Predial competente, apesar de se encontrar inscrito na matriz a seu favor, conforme resulta da certidão de teor junta como documento nº 1.
11. O1º R., em 08/11/2010, procedeu, agora com base na apresentação de um projeto de viabilidade construtiva, ao destaque de uma nova parcela de terreno com a mesma área de 269,50m2” e, novamente, junto do Ministério das Finanças-Autoridade Tributária e Aduaneira, procedeu a uma nova declaração para inscrição ou atualização de prédios na matriz de parte do artigo … do prédio identificado em 1 tendo-lhe sido atribuído desta vez o artigo provisório P.. (Doc. 9 junto com a PI e a descrição no registo predial com o n.º … realizada em 21/06/2010, cfr. Certidão de registo predial junta pelos 3.ºs RR. a fls. 82v e 83 e docs. Juntos com o requerimento ref.ª 40712037)
12. Na posse de uma caderneta predial comprovativa da descrição do prédio na matriz sob o nº … a seu favor, os 1ºs Réus procederam à venda do prédio que indicaram, fisicamente, como sendo o identificado em 1., bem sabendo que não lhes pertencia e que estavam a vender coisa pertencente à A. com base em documentos obtidos com recurso à prestação de falsas declarações perante entidades públicas.
13. No dia 22 de Setembro de 2011, os 1ºs Réus, por escritura pública de compra e venda realizada no Cartório Notarial …, declararam vender o prédio que fisicamente é o identificado em 1., mas objeto de um segundo destaque fictício que foi inscrito na matriz a favor dos 1ºs Réus com o nº … e descrito na primeira conservatória do registo predial … sob o nº …. da freguesia de S…, aos 2ºs Réus, que declararam comprar pelo preço de trinta mil e um euros, tudo conforme documento, junto com o n.º 10 junto com a PI.
14. Neste negócio os 1.ºs RR foram auxiliados pela sua filha que tinha uma imobiliária sita na … nas proximidades do terreno.
15. A realização da segunda escritura pública apenas foi possível, porque, os 1ºs e 2ºs Réus fizeram constar da mesma um novo número de inscrição do prédio na matriz o número P… bem sabendo os 1ºs Réus, que o prédio já fora objeto de anterior destaque e que número de matriz do prédio era o … mas que essa matriz estava inscrita a favor da Autora, pois que o prédio lhe pertencia (Docs. 1, e 2, 7 e 9 juntos com a PI e a descrição no registo predial com o n.º … realizada em 21/06/2010, cfr. Certidão de registo predial junta pelos 3.ºs RR. a fls. 82v e 83 e docs. Juntos com o requerimento ref.ª 40712037)
16. A aquisição foi registada a favor dos 2.ºs RR. pela Ap. … de 22/09/2011 (cfr. Doc.11 junto com a PI).
17. No dia 20 de Fevereiro de 2016 foi celebrado contrato promessa de compra e venda entre os 2ºs RR e os 3ºs RR … (vide Doc. 1 junto com a contestação dos 2.ºs RR).
18. Através do qual os 2ºs RR prometeram vender aos 3ºs RR, que, por sua vez, prometeram comprar, o prédio urbano - terreno para construção - com 269,50m2, sito na Rua de …., Lugar da … lote 41, freguesia de …, concelho de …., descrito na Primeira Conservatória do Registo … sob o número …. da referida freguesia, pelo preço declarado de €38.000,00 (trinta e oito mil euros),
19. Sendo que a título de sinal e princípio de pagamento os 3ºs RR pagaram aos 2ºsRR, naquela data, o montante de €500,00 (quinhentos euros),
20. Tendo sido declarado que o remanescente do preço, no montante de €37.500,00 (trinta e sete mil e quinhentos euros), seria pago pelos 3ºs RR na data da outorga do contrato prometido.
21. No dia 12 de Março de 2016 foi celebrado contrato de compra e venda (contrato prometido) entre os 2ºs RR e os 3ºs RR, sobre o identificado prédio urbano (Cfr. Doc. 11 junto com a P.I.).
22. Os 2ºs réus, no dia 12 de Março de 2016, por contrato de compra e venda autenticado, realizado pelo M.I. Advogado, ……s, declararam vender o prédio físico identificado em 1., mas inscrito na matriz a favor dos 2ºs Réus com o nº P…. e descrito na primeira conservatória do registo predial de …. sob o nº …. da freguesia de …., aos 3ºs Réus, …, pelo preço de trinta e oito mil euros que declararam comprar e ter pago, tudo conforme melhor se pode ver do contrato junto como documento nº 11 (Doc.11)
23. À data da celebração de ambos os contratos (promessa e prometido), o bem imóvel em apreço encontrava-se registado a favor dos 2ºs RR pela apresentação 2884 de 22/09/2011 (conforme doc. 11 junto com a PI);
24. inscrito na matriz predial urbana da mesma freguesia sob o artigo …. (cfr. Certidão de teor do prédio urbano junta com o requerimento ref.ª 40712037);
25. E tinha o valor patrimonial tributário de €39.942,38 determinado no ano de 2016 (trinta e nove mil, novecentos e quarenta e dois euros e trinta e oito cêntimos).
26. Sendo que o preço pago pelos 3ºs RR aos 2ºs RR se fixou no montante de €38.000,00 (trinta e oito mil euros)
27. Valor esse que, tal como declarado, foi o valor pago pelos 3ºs RR e recebido pelos 2ºs RR (vide Doc. 2, 3 e 4 juntos com a contestação dos 3.ºs RR).
28. O negócio celebrado entre os 2ºs RR e os 3ºs RR teve a intervenção de mediadora imobiliária, …..
29. A qual, através de …. e via e-mail de 23.03.2016, remeteu aos 3ºs RR certidão permanente do imóvel, com o averbamento do registo da sua aquisição, informando-os da possibilidade de proporem o pagamento faseado das dívidas existentes por conta das infra-estruturas de €2.244,59, junto da Câmara Municipal de Cascais. (vide Doc. 5, 6 e 7 juntos com a contestação dos 3.ºs RR).
30. A realização do dito contrato de compra e venda autenticado apenas foi possível porque foi exibida uma caderneta predial, obtida com base num falso destaque e em declarações falsas, para do número P… (anteriormente parte do 748 Secção 41) quando o número verdadeira de matriz do prédio era o …, matriz essa, inscrita a favor da autora, pois que o prédio lhe pertencia;
31. os 1ºos réus sabiam, sem poder ignorar, que o terreno era pertença da autora porque lho venderam e porque procederam a duas operações de destaque da mesma parcela de terreno a primeira em 10/07/1989 e a segunda em 08/11/2010 conseguiram assim uma duplicação dos elementos matriciais e registrais do mesmo prédio.
32. Até ao mês de Março do ano 2017, a A. não se apercebeu que o prédio que adquiriu foi inscrito na matriz com outro n.º o …. e esteve registado a favor dos 2.ºs RR entre 22/03/2011 e 12/03/2016.
33. Os 2ºs Réus nunca se apresentaram à autora como proprietários do prédio.
34. Os 3ºs Réus são vizinhos do imóvel em causa residindo em imóvel que confronta com o terreno em questão (traseiras), sito na Rua ….
35. Pese embora todos os réus tenham declarado nas escrituras que vendiam o terreno, na 1ª escritura por 31.000,00€ aos 2ºs réus e, os 2ºs réus na 2ª escritura aos 3ºs réus, por 38.000,00€. Os pais dos terceiros réus referiram à autora que pagaram pelo terreno 55.000,00€.
36. Na data da realização da escritura em 24/02/1993, o prédio foi entregue à autora que desde essa data atuou na convicção de ser legitima proprietária e possuidora do terreno;
37. fazendo a A. dele coisa sua, pública, pacificamente e de boa-fé, certa que não lesava interesses alheios.
38. Em data que a autora não consegue precisar teve um litígio com o pai dos 3ºs Réus proprietário confinante com o terreno dos autos, referente à construção de um muro, e que foi, exatamente, a pessoa que a autora encontrou no seu terreno no mês de Março de 2017, e lhe comunicou que o prédio tinha sido adquirido pelo seu filho.
39. A Autora chegou a ter o prédio à venda em 2011 por 65.000,00€ na imobiliária ….. Cfr. Contrato junto com req. Ref. 31249032 e a colocar placa a publicitar que o terreno estava à venda em 2010/2011.
40. A Autora chegou a limpar o terreno nos primeiros anos, após a aquisição, e a depositar no mesmo madeiras e pedaços de mármore.
41. Desde 1994 a autora é sócia da Associação de Proprietários …, com o nº de associado nº …, cujo objetivo era, designadamente, a recuperação, promoção e legalização do loteamento ilegal na área do bairro da Tojeira, onde se inclui o imóvel referido em 1..,
42. A A. procedeu ao pagamento de quotizações à dita associação, por referência ao seu lote de terreno com o nº .., relativas a inscrição e quotas do ano de 1995 no valor de três mil e quatrocentos escudos, e de vinte mil escudos relativos à 1.ª e 2.ª prestações de comparticipação nas infraestruturas referentes ao lote R…(conforme documento, nº 12 junto com a PI).
43. A A. pagou ainda todos os impostos referentes ao prédio, nomeadamente, a contribuição autárquica e depois o designado IMI, no valor de €2.885,88, (conforme documento nº 13 junto com a PI).
44. A autora adquiriu o terreno para revenda.
45. Só no passado mês de Março de 2017, a Autora foi surpreendida e teve conhecimento dos negócios e atos jurídicos envolvendo o seu terreno.
46. Nessa data a autora deparou-se com o seu vizinho pai do 3.º R. A proprietário confinante, no interior do seu terreno e que lhe transmitiu que o terreno, tinha sido comprado pelo seu filho;
47. o que levou a autora a ir ter com os 1.ºs RR a fim de apurar se e como teriam conseguido vender o prédio que já lhe tinham vendido em 24/02/1993.
48. Toda esta situação tem causado à autora muita perturbação nervosa, a qual desde que tomou conhecimento dos factos, não tem dormido bem, anda perturbada, sente-se burlada, deixou de se concentrar no trabalho, anda triste e desalentada.
49. Os 2ºs RR. estavam convictos da legitima propriedade dos 1ºs RR quando celebraram o contrato de compra e venda com aqueles.
50. Os 2ºs RR chegaram a fazer limpeza ao terreno.
51. Tal situação, era totalmente desconhecida, para os 2.ºs Réus e;
52. até mesmo para o Cartório Notarial, onde a 22 de Setembro de 2011 se realizou a escritura de compra e venda entre 1ºs e 2ºs réus
53. O único proprietário conhecido para os aqui 2.ºs Réus era o 1.º R. C, pessoa que celebrou a escritura de compra e venda e recebeu o dinheiro dessa venda.
54. Nunca os 3ºs RR equacionaram como possível que o imóvel alvo do negócio não fosse propriedade dos 2ºs RR..
55. Após a aquisição, no dia 25.03.2016, os 3ºs RR procederam à limpeza do terreno (vide Doc. 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17 e 18 juntos com a contestação dos 3.ºs RR).
56. Tendo os resíduos resultantes de tal limpeza sido recolhidos pela Câmara Municipal de Cascais em 06.04.2016 (junto com a contestação dos 3.ºs RR).
57. Os 3ºs RR chegaram a semear favas no terreno.
58. A Câmara Municipal de Cascais instaurou contra o 1º R. o processo de limpeza n.º ….0 relativo ao terreno em causa nos autos.
59. Tendo cobrado ao J a quantia de €510,20 (quinhentos e dez euros e vinte cêntimos), a qual foi paga em 27/03/2012. (cfr. Doc. 1 junto com a contestação dos 1.ºs RR).
60. Em Janeiro de 2019 GF avaliador da CMVM procedeu á avaliação do imóvel atribuindo ao mesmo a essa data o valor de €66.600,00 (cfr. Doc. Junto com o requerimento ref.ª 31249032).
61. Correu termos o proc. 3176/17.4t9csc no Departamento de Investigação e Acção Penal de Cascais no qual foi deduzida acusação contra a R. falecida 1ª R,
62. Requerida abertura de instrução foi proferido despacho de pronuncia, porém a responsabilidade penal foi extinta com a sua morte, ocorrida em 14/09/2020.
63. O 1.º R. … acabou por falecer em 18/11/2018 não tendo sido contra ele deduzida acusação, por a responsabilidade penal se ter extinto com a morte.»
Não provada, resultou a seguinte factualidade:
«a) Os 3ºs Réus sempre viram a A. a circular livremente pelo terreno, a limpar o terreno e comportar-se como sua real proprietária que era.
b) Os 3ºs Réus sabiam, que a autora era proprietária do dito terreno,
c) sabiam, que a autora era a possuidora do terreno que lhe tinha advindo do titular inscrito o 1º Réu.
d) A A. participou em diversas assembleias gerais e reuniões para tomada de decisões da referida associação com vista à realização das obras de urbanização do terreno,
e) Nunca a A. foi tida por, pelas pessoas da zona, como sendo a proprietária ou possuidora daquele terreno.
f) Com a limpeza do terreno durante os 6 anos que o mesmo esteve na sua posse os 2.ºs RR gastaram sensivelmente 6.000,00€ em limpezas.
g) Os 2.ºs RR vedaram o terreno.»
Definitivamente não provada se há-de considerar, também, a matéria de facto assim considerada pela 1ª instância, a saber:
«a) Os 3ºs Réus sempre viram a A. a circular livremente pelo terreno, a limpar o terreno e comportar-se como sua real proprietária que era.
b) Os 3ºs Réus sabiam, que a autora era proprietária do dito terreno,
c) sabiam, que a autora era a possuidora do terreno que lhe tinha advindo do titular inscrito o 1º Réu.
d) A A. participou em diversas assembleias gerais e reuniões para tomada de decisões da referida associação com vista à realização das obras de urbanização do terreno,
e) Nunca a A. foi tida por, pelas pessoas da zona, como sendo a proprietária ou possuidora daquele terreno.
f) Com a limpeza do terreno durante os 6 anos que o mesmo esteve na sua posse os 2.ºs RR gastaram sensivelmente 6.000,00€ em limpezas.
g) Os 2.ºs RR vedaram o terreno.»
*
4. Fundamentação de Direito
Defendem os apelantes a revogação da sentença nos autos prolatada invocando duas ordens de argumentos:
A primeira reconduz-se à alegação de que a A. não é proprietária nem possuidora do imóvel uma vez que dos factos dados como provados sob os n.ºs 10, 38, 40, 45, 46, 49 a 51 e 53 a 59 resulta que os actos possessórios praticados sucessivamente pelos 2º e 3º RR. são incompatíveis com a propriedade e a posse da A. a qual, a ter existido, cessou ao ser substituída por mais de um ano quer pela posse dos 2º RR. quer pela posse dos ora recorrentes em função dos contratos de compra e venda que celebraram. Defendem que o Tribunal errou quando considerou que aquando da realização do negócio jurídico de compra e venda dos 1ºs RR. a favor dos 2ºs RR., em 22.9.2011, já a aquisição propriedade se encontrava estabilizada a favor da A., quer por via da aquisição derivada -contrato de compra e venda- quer por via da aquisição originária- usucapião.
Recordemos o que consta na factualidade provada expressamente invocada a respeito pelos apelantes:
«10. a Autora não procedeu ao registo do prédio junto da Conservatória do Registo Predial competente, apesar de se encontrar inscrito na matriz a seu favor, conforme resulta da certidão de teor junta como documento nº 1.
38. Em data que a autora não consegue precisar teve um litígio com o pai dos 3ºs Réus proprietário confinante com o terreno dos autos, referente à construção de um muro, e que foi, exatamente, a pessoa que a autora encontrou no seu terreno no mês de Março de 2017, e lhe comunicou que o prédio tinha sido adquirido pelo seu filho.
40. A Autora chegou a limpar o terreno nos primeiros anos, após a aquisição, e a depositar no mesmo madeiras e pedaços de mármore.
45. Só no passado mês de Março de 2017, a Autora foi surpreendida e teve conhecimento dos negócios e atos jurídicos envolvendo o seu terreno.
46. Nessa data a autora deparou-se com o seu vizinho pai do 3.º R. P proprietário confinante, no interior do seu terreno e que lhe transmitiu que o terreno, tinha sido comprado pelo seu filho;
49. Os 2ºs RR. estavam convictos da legítima propriedade dos 1ºs RR quando celebraram o contrato de compra e venda com aqueles.
50. Os 2ºs RR chegaram a fazer limpeza ao terreno.
51. Tal situação, era totalmente desconhecida, para os 2.ºs Réus e;
53. O único proprietário conhecido para os aqui 2.ºs Réus era o 1.º R. J, pessoa que celebrou a escritura de compra e venda e recebeu o dinheiro dessa venda.
54. Nunca os 3ºs RR equacionaram como possível que o imóvel alvo do negócio não fosse propriedade dos 2ºs RR..
55. Após a aquisição, no dia 25.03.2016, os 3ºs RR procederam à limpeza do terreno (vide Doc. 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17 e 18 juntos com a contestação dos 3.ºs RR).
56. Tendo os resíduos resultantes de tal limpeza sido recolhidos pela Câmara Municipal de Cascais em 06.04.2016 (junto com a contestação dos 3.ºs RR).
57. Os 3ºs RR chegaram a semear favas no terreno.
58. A Câmara Municipal de … instaurou contra J o processo de limpeza n.º 150/2010 relativo ao terreno em causa nos autos.»
Apreciando e decidindo.
Antes de mais caracterizemos a natureza da acção aqui em causa.
À luz do preceituado no art.º 1311º do CCivil, não podemos deixar de considerar estar-se perante uma acção de reivindicação.
O actual Código Civil, refere-se à acção de reivindicação, acção real por excelência, concedida para defesa da propriedade, no seu Art.º 1311º.
Tal preceito estabelece:
«O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa, o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.»
O direito de propriedade, pode existir num património, em virtude de aquisição originária ou derivada.
Na aquisição originária, o direito de propriedade é um direito autónomo, um direito independente do direito de propriedade anterior.
Na aquisição derivada, tem de levar-se em conta o direito do transmitente, o qual influi profundamente no direito do adquirente, pois os negócios translativos, como a compra e venda, a doação e outros, não criam a propriedade, apenas a transferem.
Na reivindicação é necessário conhecer a forma de aquisição, porque a situação do proprietário reivindicante, varia conforme a aquisição do direito que invoca, se fez por um ou por outro daqueles modos.
Na aquisição derivada, não basta o título de aquisição para se provar que ao adquirente pertence um direito real que vale sobre qualquer possuidor ou detentor. Tal título, prova, somente, que o adquirente recebeu os direitos que eram pertença do alienante.
Nos termos do art.º 1316º do Cód.Civil, o direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei.
A aquisição da propriedade por ocupação, acessão ou usucapião, é‚ considerada pela doutrina como forma de aquisição originária, todas as restantes formas de aquisição são derivadas.
E, como diz Antunes Varela, «se o autor invoca como título do seu direito uma forma de aquisição originária da propriedade, como a ocupação, a usucapião, ou a acessão, apenas precisa provar o facto de que emerge o seu direito. Se a aquisição é derivada, não basta provar, por ex., que comprou a coisa, ou que esta lhe foi doada. Nem a compra e venda, nem a doação são constitutivas do direito de propriedade, mas, apenas, translativas desse direito. É preciso, pois, provar que tal direito já existia no transmitente». - Pires de Lima e Antunes Varela, C.C.Anot., III Vol., comentário ao Art.1311º.
Também, Manuel Salvador assim entende: «Supor, porém, que pelo facto de se ter um título, o alienante é‚ legítimo, é inaceitável dada a regra fundamental da aquisição derivada:  a legitimidade de o antecessor ter sido o verdadeiro titular e sucessivamente. O título é uma simples presunção nominis, mais frágil que a presunção legal de posse.» - Manuel Salvador, Suplemento aos Elementos da Reivindicação, pág.66.
Esta tem vindo a ser, também, a orientação da jurisprudência. Cfr.Ac.S.T.J., de 4/7/72, in R.L.J., Ano 106§, Pág.281 e Ac.Rel.Lisboa de 19/3/75, B.M.J. 246-177.
Ora, quando o autor invoca uma aquisição originária a prova, em regra, é fácil, já quando invoca uma aquisição derivada, a prova torna-se, em muitos casos difícil, «Probatio Diabolica» lhe chamam alguns autores.
A extrema dificuldade de provar a propriedade, está hoje minorada. Há modos de suprir as insuficiências:
Assim,
1º A usucapião limita a prova a um certo número de anos;
2º A acessio possessionis, permita somar ao tempo da posse do titular actual, o tempo durante o qual possuíram os seus antecessores;
3º A presunção de permanência, que exige, prova da existência da titularidade actual, porém, não a da subsistência (Manuel Salvador, Ob.Cit.);
4º A presunção derivada do registo quando exista.
A presunção registral actua relevantemente em relação ao facto inscrito e aos sujeitos e objecto da relação jurídica dele emergente.
Tratando-se de uma mera presunção, é ilidível por prova em contrário.
Para conseguir a ilisão da presunção legal derivada do registo, há que provar e para isso alegar os factos demonstrativos de que a titularidade da propriedade inscrita não corresponde à verdade, e tal ónus incumbe ao impugnante do registo.
São dois os pedidos que integram e caracterizam a reivindicação:
- o pedido de reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio) e,
- o de restituição da coisa (condemnatio).
Vejamos, a esta luz, a argumentação dos apelantes.
Defendem que, a A. não foi reconhecida como proprietária ou sequer possuidora do prédio em causa, mas que os 2º RR. quando celebraram o negócio de compra e venda com os 1º RR. o fizeram convencidos de que eram os proprietários, tendo a partir de então tomado conta do imóvel e sobre ele praticado actos de posse (por ex. a limpeza do terreno) o mesmo acontecendo com os 3º RR.. A ter havido posse por parte da A. ela cessou pela prática pelos 2º e 3º RR. de actos possessórios sobre o imóvel durante mais de um ano. Está assim preenchido o requisito previsto no art.º 1267º, nº1, al. d) do CCivil.
Antes de mais cumpre dizer que o direito de propriedade tem como característica a tendencial perpetuidade (não se extingue pelo não uso a não ser nos casos previstos na lei-art.298º do CCivil).
Sendo a causa de pedir da presente acção desde logo o facto de que resulta o direito de propriedade da A. incumbe-lhe provar tal direito por uma de três formas: pela prova de todas as aquisições derivadas percorrendo toda a série de transmissões anteriores à sua até chegar à aquisição originária; pela apresentação de uma certidão do registo predial, já que o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define (art.º 7º do CRPredial) ou, fazendo a prova dos pressupostos de uma das formas de aquisição originária da propriedade imobiliária, de cujo exemplo paradigmático é a usucapião.
Dos factos provados resulta que a A. celebrou com os 1º RR. um contrato de compra e venda cujo objecto é o prédio em causa nos presentes autos.
A compra e venda vem prevista no art.º 874º do CCivil que preceitua «Compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço.» O art.º 879º consagra os efeitos essenciais da compra e venda elencando: «a) A transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito; b) a obrigação de entregar a coisa; a obrigação de pagar o preço.»
Prevê-se aqui a transmissão por negócio jurídico e a regra geral é a da alienabilidade dos direitos reais, subordinada aos princípios da consensualidade e da causalidade. Conforme refere Menezes Leitão: «O princípio da consensualidade significa que os direitos reais são transmissíveis apenas através de contrato, sem realização de qualquer outro acto, como a tradição ou o registo, conforme se prevê no art.º 408º. O princípio da causalidade significa que a transmissão do direito real depende da validade do negócio transmitido, pelo que, no caso deste ser inválido, a transmissão do direito real não chega a ocorrer.» Cfr.«Direitos Reais», Menezes Leitão, Almedina, 9ª ed., pág.240.
Na verdade, decorre do princípio da alienabilidade dos direitos reais no âmbito da autonomia privada, a possibilidade de celebrar negócios de disposição dos mesmos, pressupondo, claro está, a titularidade do direito que é seu objecto.
In casu,  resultou provado que após a celebração do contrato de compra e venda, a A. recebeu o bem e sobre ele começou a praticar os actos correspondentes ao exercício do direito de propriedade de forma pacífica e pública. Estabeleceu, a partir desde momento, uma relação directa com o imóvel que o legislador reconhece, só por si, como apta para a aquisição do direito de propriedade, verificadas certas condições. Cfr. art.º 1316º. O efeito aquisitivo, nesse caso, retrotrai ao momento do início da posse (art.º 1317º). Veja-se a esse propósito a matéria dada como provada sob os pontos 8, 36, 37, 40, 41, 42, 43.
Relativamente aos 2º e 3º RR., provado está que ao prédio objecto dos autos e por força das declarações falsas dos 1º RR., corresponderam duas descrições matriciais duas descrições prediais do mesmo imóvel.
Foi com fundamento nessas falsas declarações dos 1ºs RR., que já haviam celebrado o contrato de compra e venda com a A., que o mesmo prédio veio a ser vendido aos 2ºs RR. que posteriormente o venderam aos 3ºs RR.
Vejamos, pois, a esta luz a argumentação recursiva dos 3º RR.
Vem alegado que o tribunal afastou, erradamente, a aplicação ao caso do disposto no art.º 291º do CCivil, partindo do pressuposto, errado, de que aquando da celebração do contrato de compra e venda celebrado entre os 1ºs RR. e os 2º RR. já a propriedade do imóvel físico se encontrava estabilizada na esfera jurídica da A., pela aquisição derivada translativa, pela aquisição originária e pela usucapião, quando tal não é verdade. Defendem, a respeito que a A. não teve nem manteve a posse do imóvel em causa nem até 2011 nem até à data da interposição desta acção, momento relevante para fazer operar o preenchimento do disposto no art.1267º, nº 1, al. d) do CCivil,.
Vejamos o que preceitua tal disposição legal, sob a epígrafe «Perda da Posse»:
«1. O possuidor perde a posse:
(…)
d) Pela posse de outrem, mesmo contra a vontade do antigo possuidor, se a nova posse houver durado por mais de um ano.»
Daqui decorre que, só passado um ano da constituição da nova posse não tendo havido abandono ou cedência é que a posse antiga se perde e aí, o possuidor perde a posse em consequência do apossamento de terceiro, mesmo contra a sua vontade desde que tal apossamento se mantenha por mais de um ano.
Ora, mais uma vez se invoca o que a respeito ficou provado, desta feita, com a transcrição dos pontos de facto a respeito:
«8. A Autora adquiriu a propriedade do imóvel identificado em 1. por compra a aos 1º RR., por escritura pública de compra e venda realizada, no dia 24 de Fevereiro de 1993, no Cartório Notarial de …., pela qual, os 1ºs Réus declararam vender e a Autora declarou comprar, o lote de terreno para construção, com a área de 269,50 m2, sito no Lugar …, Freguesia de …, Concelho de …, designado por lote 41, inscrito na respetiva matriz sob o artigo …e descrito na Conservatória do Registo Predial … 1ª secção, sob o nº 2… a fls 73V do livro B – …, pelo preço de um milhão e quinhentos mil escudos, tudo conforme consta da certidão da escritura de compra e venda, emitida pelo Vigésimo … Cartório Notarial de L…, extraída do instrumento lavrado no dia 24/02/1993 de fls. 135 do Livro9 M, junta como documento nº 2, com a PI.
36. Na data da realização da escritura em 24/02/1993, o prédio foi entregue à autora que desde essa data atuou na convicção de ser legitima proprietária e possuidora do terreno;
37. fazendo a A. dele coisa sua, pública, pacificamente e de boa-fé, certa que não lesava interesses alheios.
38. Em data que a autora não consegue precisar teve um litígio com o pai dos 3ºs Réus proprietário confinante com o terreno dos autos, referente à construção de um muro, e que foi, exatamente, a pessoa que a autora encontrou no seu terreno no mês de Março de 2017, e lhe comunicou que o prédio tinha sido adquirido pelo seu filho.
39. A Autora chegou a ter o prédio à venda em 2011 por 65.000,00€ na imobiliária ….. Cfr. Contrato junto com req. Ref. 31249032 e a colocar placa a publicitar que o terreno estava à venda em 2010/2011.
40. A Autora chegou a limpar o terreno nos primeiros anos, após a aquisição, e a depositar no mesmo madeiras e pedaços de mármore.
41. Desde 1994 a autora é sócia da Associação de Proprietários …., com o nº de associado nº …, cujo objetivo era, designadamente, a recuperação, promoção e legalização do loteamento ilegal na área do bairro da Tojeira, onde se inclui o imóvel referido em 1..,
42. A A. procedeu ao pagamento de quotizações à dita associação, por referência ao seu lote de terreno com o nº41, relativas a inscrição e quotas do ano de 1995 no valor de três mil e quatrocentos escudos, e de vinte mil escudos relativos à 1.ª e 2.ª prestações de comparticipação nas infraestruturas referentes ao lote … (conforme documento, nº 12 junto com a PI).
43. A A. pagou ainda todos os impostos referentes ao prédio, nomeadamente, a contribuição autárquica e depois o designado IMI, no valor de €2.885,88, (conforme documento nº13 junto com a PI).
44. A autora adquiriu o terreno para revenda.
45. Só no passado mês de Março de 2017, a Autora foi surpreendida e teve conhecimento dos negócios e atos jurídicos envolvendo o seu terreno.»

Conforme se anotou acima, está provado que desde a data da escritura de compra e venda ou seja, desde 24 de Fevereiro de 1993 a A. adquiriu dos 1º RR. a propriedade e posse do imóvel, propriedade e posse que, e conforme resulta da matéria de facto dada como provada, a A. adquiriu por efeito do contrato de compra e venda celebrado com os 1º RR. como, sendo que, só em Março de 2017, veio a ter conhecimento de que os 1º RR. haviam procedido a alienação do mesmo imóvel aos 2º RR e após, estes aos 3º RR. Cfr. Factualidade Provada sob os n.ºs 32, 45, 46 e 47,
Provado ficou que só em Março de 2017, veio a ter conhecimento de que os 1º RR. haviam procedido a alienação do mesmo imóvel aos 2º RR e após, estes aos 3ºRR. Preceitua a respeito o art.º 1267º, nº 1, al. d) do CCivil sob a epígrafe «Perda da Posse»: «1. O possuidor perde a posse: (…) d) Pela posse de outrem, mesmo contra a vontade do antigo possuidor, se a nova posse houver durado por mais de um ano.». Esta perda da posse conta-se desde o início se foi tomada publicamente, ou desde que é conhecida do esbulhado, se foi tomada ocultamente. Assim, a A. interpôs a presente acção em 2 de Agosto de 2017 pelo que, antes de decorrido um ano contado a partir de tal conhecimento.
Anote-se, também, que desde 24 de Fevereiro de 1993, até à data em que os 1º RR. procederam à venda aos 2º RR. -22 de Setembro de 2011-, decorreram cerca de 18 anos, período de tempo que, se considerarmos a data da entrada da presente acção em juízo ascende a 24 anos.
Não houve dúvidas que esta segunda venda só foi possível uma vez que os 1º RR. e 2º RR fizeram constar na mesma um novo número de inscrição na matriz bem sabendo os 1º RR. que tal prédio já fora objecto de um destaque e que o prédio pertencia à A.. Veja-se o ponto 15 da matéria de facto provada.
Verificamos, assim, que o mesmo prédio foi vendido pelos primitivos proprietários (1º RR.) à A. e, recorrendo a uma nova inscrição na matriz, como se tratasse de um novo prédio, os 1º RR. lograram vender o mesmo prédio aos 2º RR. que por sua vez o venderam aos 3º RR.
Resulta, assim, sem margem para dúvidas que, quando os 1º RR., procederam à venda aos 2º RR., já não eram os proprietários do imóvel. Não está posta em causa a conclusão de que os 1º RR. ao procederem à venda do imóvel aos 2º RR. efectivaram uma venda de coisa alheia coisa essa que haviam validamente vendido à A.. Lograram fazer a segunda venda do mesmo bem, com base em falsas declarações levadas a registo.
A lei comina com a nulidade a venda de bens alheios. É o que resulta do disposto no art.º 892º do CCivil. E também não está em causa que a venda aos 2º RR. foi feita por quem já não era seus proprietários pelo que, a situação se enquadra no referido art.º 892º, estando-se pois, perante um negócio nulo. Porém, tal nulidade funciona para as relações entre vendedor e comprador. Relativamente ao verdadeiro dono da coisa, a venda é ineficaz, podendo, assim, reivindicar a coisa sem necessidade de demonstrar a invalidade da venda.
Porém, os apelantes, aqui 3º RR. entendem que a subsunção jurídica realizada pelo Tribunal “a quo” relativamente aos factos dados por provados resultou de uma incorrecta interpretação do artigo 291.º do CC, que determinou a sua não aplicação. Entendem que sendo terceiros de boa fé a sua situação está protegida pela subsunção a este normativo.
Vejamos se assim é.
Recordemos o corpo do art.º 291º do C.Civil, sob a epígrafe «Inoponibilidade da nulidade e da anulação»: «1. A declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis, ou a móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio. 2. Os direitos de terceiro não são, todavia, reconhecidos, se a acção for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio. 3. É considerado de boa fé o terceiro adquirente que no momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável.»
Institui este preceito que não são prejudicados os direitos de terceiros, adquiridos de boa fé e a título oneroso e que registem a aquisição antes de inscrita qualquer acção de nulidade ou anulação ou qualquer acordo quanto à validade do negócio (nº 1), porém esse regime apenas se aplica quando tenham decorrido três anos sobre a conclusão do negócio.
Conforme escreve Menezes Cordeiro, são três os requisitos a considerar na aplicação deste regime:
«-um negócio nulo ou anulado;
- um terceiro de boa fé;
- que adquira a título oneroso;
- e sendo decorridos 3 anos sobre a celebração do negócio em causa.
Os terceiros são protegidos por estarem de boa fé e por terem realizado o investimento de confiança: o título oneroso e o decurso de 3 anos atestam-no. Este preceito não se confunde com o art.17/2 do CRP: exige-se, aqui, um registo prévio, nulo ou anulado, não requerido pela lei civil.» Cfr. «Tratado de Direito Civil» II, Almedina, 5ª ed., pág. 939.
Este preceito constitui um desvio ao princípio geral sobre a nulidade ou anulabilidade consagrado no art.º 289º, quando está em causa a restituição de bens imóveis ou móveis sujeitos a registo «na medida em que permite ao titular da inscrição efectuada no registo, embora só a partir de certo período posterior à conclusão do contrato nulo ou anulável, fazer prevalecer o seu direito (real)referente ao imóvel ou ao móvel sujeito a registo, a registo sobre direito relativo à mesma coisa, do beneficiário da nulidade ou da anulação» Cfr. Antunes Varela, na «Rev. de Legislação e Jurisprudência», ano 118º, pág.310 e ss., citado in Código Civil Anot., Vol.I, Pires de Lima e Antunes Varela, Coimbra Editora, 4ª ed..
Relativamente ao nº 2, não se reconhecem os direitos de terceiro constituídos sobre as coisas a restituir, mesmo que haja registo de aquisição anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação, se esta for proposta e registada dentro do prazo de três anos. Decorrido este prazo são protegidas as aquisições a título oneroso por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção.
Consagra-se, pois, um regime de equilíbrio entre, por um lado, o interesse que alguém poderá ter na declaração de nulidade ou na anulação de um negócio jurídico relativo a direitos sobre bens imóveis ou móveis sujeitos a registo e o interesse que um terceiro, relativamente a esse negócio, possa ter em não ser prejudicado pelos efeitos dessa declaração de nulidade ou dessa anulação. Cfr. neste sent. «Código Civil Anotado», Coord. Ana Prata, 2017, Vol.I, pág. 358.
Relativamente à protecção de terceiros, deste regime resulta que nem todos os terceiros de boa fé são protegidos, estando este regime previsto apenas para os terceiros de boa fé que adquiram bens imóveis ou bens móveis sujeitos a registo e que os tenham adquirido a título oneroso. Note-se, também, que tais direitos não são protegidos nos três anos posteriores à conclusão do negócio inválido e, após esses três anos, só o são se o registo da aquisição do direito de terceiro anteceder o registo da acção judicial em que se peticione a declaração de nulidade ou a anulação do negócio inválido ou se anteceder o registo de um eventual acordo a que as partes tenham chegado sobre a invalidade do negócio. O terceiro de boa fé, há-de ser aquele que, no momento da aquisição, sem culpa, desconhecia o vício do negócio nulo ou anulável.
Assim, «…se durante os três primeiros anos de vida do negócio o terceiro não é protegido; já decorrido que estiver esse prazo, o mesmo terceiro desde que registe primeiro, vê ser-lhe inoponível a anulação ou a declaração de nulidade do negócio inválido, conservando este terceiro o seu direito tal como putativamente o havia adquirido» Cfr. Ana Prata, ob. Cit. pág.359.
Através deste preceito se hão-de solucionar os casos de conflito de direitos entre o primeiro adquirente, o verdadeiro proprietário e o terceiro, subadquirente de boa fé, que desconhecia sem culpa o vício do negócio.
De acordo com o disposto no art.º 291º, nº 2 do CCivil, o momento relevante para se aferir da boa fé é o da data da conclusão do negócio em que interveio o terceiro adquirente (no caso sub judice está em causa a aquisição dos 3ºs RR.).
Vejamos a esta luz, o caso concreto.
Ambas as partes invocam serem proprietários do imóvel por terem adquirido mediante escritura pública de compra e venda. Os AA. por terem adquirido dos proprietários e os 3º RR. por estarem convictos, de boa fé, que o estavam a adquirir também dos verdadeiros proprietários.
Provado está que ao mesmo prédio e por força das declarações falsas dos 1º RR., corresponderam duas descrições matriciais duas descrições prediais do mesmo imóvel.
As primeiras serviram de base ao contrato de compra e venda efectuado pelos 1º RR com a A. e as segundas, serviram de base à venda dos 1º RR. aos 2º RR. e, posteriormente, aos 3º RR.
Temos assim duas inscrições na matriz e duas inscrições na conservatória do registo predial correspondente ao mesmo prédio.
Vale para esta situação, a jurisprudência fixada no  AUJ nº 1/2017, de 23 de Fevereiro de 2016, proc. 1373/06.7TBFLG.G1.S1-A, Diário da República, I Série, nº 38/2017, de 22 de Fevereiro de 2017, e www.dsgi.pt, no sentido de que «Verificando-se uma dupla descrição, total ou parcial, do mesmo prédio, nenhum dos titulares registais poderá invocar a seu favor a presunção que resulta do artigo 7º do Código do Registo Predial, devendo o conflito ser resolvido com a aplicação exclusiva dos princípios e das regras de direito substantivo, a não ser que se demonstre a fraude de quem invoca uma das presunções». Afastado fica assim, o argumento invocado pelos recorrentes de que o contrato de compra e venda celebrado entre A. e os 1º RR. porque não foi levado ao Registo Predial, não produz efeitos em relação a si.
Na verdade, a actuação dos 1º RR. gerou uma situação de dupla descrição no registo predial de um mesmo prédio. Decorre da jurisprudência do AUJ que verificando-se uma dupla descrição, total ou parcial, do mesmo prédio, nenhum dos titulares registais poderá invocar a seu favor a presunção que resulta do artigo 7º do Código do Registo Predial, devendo o conflito ser resolvido com a aplicação exclusiva dos princípios e das regras de direito substantivo, a não ser que se demonstre a fraude de quem invoca uma das presunções.
Como se defendeu no Ac. STJ de 5 de Julho de 2007, www.dgsi.pt, proc. nº 07B1361: «O artigo 291º do Código Civil aplica-se, pois, às hipóteses em que o interveniente num negócio substantivamente inválido pretende a respectiva invalidação, mas se vê confrontado com terceiros (não intervenientes nesse negócio) que adquiriram, de boa fé e a título oneroso, direitos sobre os bens (imóveis ou móveis sujeitos a registo) cuja subsistência depende do primeiro negócio. Se esses terceiros registaram o correspondente acto aquisitivo, a invalidade não lhes é oponível, salvo se a acção de anulação ou de declaração de nulidade for instaurada e registada nos três anos posteriores à celebração do primeiro negócio. Entre a tutela da validade substancial do negócio e da confiança depositada no registo, o equilíbrio encontrado pela lei foi assim definido».
Aqui, é a protecção da confiança baseada no registo que justifica o afastamento da eficácia retroactiva da anulação ou da declaração de nulidade de «negócio jurídico que respeite a bens imóveis», nos termos previstos do artigo 291º do Código Civil, ou que permite proteger terceiros de boa fé em caso de declaração de nulidade do registo (nº 2 do artigo 17º do CRP).
O Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciou por diversas vezes no sentido de que o disposto no artigo 291º do CCivil, que excepciona dos efeitos retroactivos da declaração de nulidade ou da anulação certas aquisições inválidas (cfr. nº 1 do artigo 289º do Código Civil), fazendo-as subsistir, não se aplica em caso de ineficácia do acto, como sucede, in casu, já que em relação à A. estamos perante uma compra e venda eficaz, porque efectuada entre os seus verdadeiros proprietários que assumiram a posição de vendedores sendo as seguintes, relativamente a si, e nesta ordem de ideias, ineficazes.
Quando os 1ºs RR procederam à venda do mesmo prédio aos 2ºRR, ou seja, vendendo o imóvel que já tinham validamente alienado à A., estavam a alienar um imóvel que já não lhes pertencia e, por isso, estavam a vender coisa alheia, valendo, aqui a jurisprudência dos Ac. de 16 de Novembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 42/2001.C1.S1, de 29 de Março de 2012, www.dgsi.pt, proc.nº 2442/05.8TBVIS.C1.S1 ou de 1 de Agosto de 2015, www.dgsi.pt, proc. nº 129/11.0TCGMR.G1.S1, todos do STJ. Concorda-se, pois, que o disposto no artigo 291º do Código Civil, que excepciona dos efeitos retroactivos da declaração de nulidade ou da anulação certas aquisições inválidas (cfr. nº 1 do artigo 289º do Código Civil), fazendo-as subsistir, não se aplica em caso de ineficácia do acto, como sucede, em relação ao verdadeiro proprietário, com a venda de coisa alheia.
Relativamente à conclusão dos recorrentes de que na sentença sob recurso se excluíram indevidamente os 2º e 3º RR. da protecção conferida pelo art.º 291º do CCivil por considerar, erradamente, que aquando da celebração do negócio entre os 1ºs e os 2º RR. já a propriedade do imóvel físico se encontrava na esfera jurídica da A. por via da aquisição derivada translativa, pela aquisição originária e pela usucapião cumpre apreciar.
Por via da aquisição derivada -negócio de compra e venda- a questão já se mostra analisada supra.
Já quanto à aquisição originária cumpre apreciar.
É certo que a A. tornou-se possuidora por ter estabelecido com o imóvel uma relação de poder de facto com animus possedendi. A posse destes trata-se de posse titulada, já que foi adquirida de modo abstractamente idóneo à aquisição do direito real nos termos do qual possui (art.1316º do CCivil) e trata-se de posse de boa fé. (art.1261º, nº2). Trata-se de igual modo de posse pacífica e pública. Cfr. arts.1261º e 1262º do CCivil.
Quando a posse de um direito real de gozo seja pública e passiva e se mantenha durante um certo período de tempo fica o possuidor autorizado a invocar a aquisição desse direito por usucapião, forma de aquisição originária dos direitos reais de gozo. Cfr. arts.1292º, 303º e 1287º do CCivil.
Considerando que não haverá registo da mera posse, a usucapião poderá ocorrer decorridos que sejam quinze anos se a posse for de boa fé e de vinte anos se for de má-fé, contados a partir do início da posse. Cfr. art.º 1296º do CCivil.
Procedendo a invocação da usucapião, retrotrai o efeito aquisitivo, nos termos do disposto no art.1317º, nº1, al. c) do CCivil.
De tudo resulta que, e tal como se decidiu na sentença sob recurso, e atendendo aos factos dados como provados sob os n.ºs 8 e 36 a 45º, que a A. adquiriu o imóvel por usucapião. Na verdade, considerado o tempo que decorreu desde a celebração da escritura de compra e venda mesmo que só contado até ao ano de 2011, ano em que os 1º RR. declararam vender o prédio aos 2º RR., vemos que decorreram mais de quinze anos. Não sofre dúvidas que, em face dos factos provados, estão preenchidos ambos os requisitos do animus e do corpus ponderados os poderes de facto sobre o imóvel evidenciados no pagamento de impostos, limpeza, pagamentos a associação de moradores, não se podendo concluir que a não ida frequente ao prédio demonstrasse o abandoo do mesmo, até porque provado ficou, o imóvel destinava-se a ser vendido. Reitera-se que, sendo característica do direito de propriedade a sua tendencial perpetuidade, a não ser nos casos especialmente previstos na lei, não se extingue pelo não uso.
Não merece pois qualquer censura a decisão recorrida quando afasta in casu a aplicação do o artigo 291º Código Civil.
Já quanto à invocada presunção derivada do registo, como está bem de ver, mostra-se ilidida pela prova pela A. de uma forma de aquisição originária: a usucapião.
Assim se declara a presente apelação totalmente improcedente, nenhuma censura merecendo a decisão recorrida que nenhuma censura merece.
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5. Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes que compõem esta 8ª secção, julgar o presente recurso improcedente e, consequentemente, confirmar integralmente a decisão recorrida.
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Custas a cargo dos apelantes.
Notifique e registe.
Ana Paula Nunes Duarte Olivença
Rui Manuel Pinheiro Oliveira
Teresa Prazeres Pais