Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1267/04.0TBSXL-F.L1-2
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: INVENTÁRIO PARA PARTILHA DE BENS COMUNS DO CASAL
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
RELAÇÃO DE BENS
IMÓVEL
SIMULAÇÃO
COMPENSAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/11/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIAL PROCEDÊNCIA
Sumário: I - O reclamante na relação de bens em inventário que tem lugar nos termos do art 1404º e ss CPC deverá ser admitido a provar que o imóvel adquirido antes do casamento, figurando a cabeça de casal na respectiva escritura como sua única adquirente, é, não obstante, um bem comum, por ter sido vontade real de ambos adquirirem-no em comum, só tendo constado como sua única adquirente a cabeça de casal para acederem a juros bonificados.
II - Não logrando essa prova, tem esse reclamante direito a ver incluída na relação de bens a verba correspondente à compensação devida pelo património próprio da requerida ao património comum, no valor correspondente a metade dos pagamentos feitos por ele em benefício daquele.
III - Naquele primeiro caso, terá de provar que ocorreu simulação na escritura do imóvel para o que dispõe de variados documentos que constituirão um princípio de prova, podendo em função deles recorrer à prova testemunhal.
IV - Se se vier a concluir que existiu simulação, o imóvel deverá integrar a relação de bens e dever-se-á qualificar o mútuo bancário como dívida da responsabilidade de ambos os cônjuges.
V - No que respeita à situação desse imóvel antes do casamento, a prova da respectiva compropriedade pode fazer-se no inventário, admitindo que um e outro dos ex cônjuges façam prova dos diversos contributos de cada qual para a aquisição do mesmo enquanto se mantiveram a viver em união de facto, com o reflexo subsequente na partilha do mesmo, solução que decorre, senão em função do disposto no art 96º CPC, pelo menos em função da disciplina constante do art 1336º/1 CPC.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I -”A” intentou inventário para partilha dos bens comuns do dissolvido casal que constituiu com “B”, fazendo-o por apenso ao processo de divórcio litigioso e nos demais termos do art 1404º CPC.
Esta, na qualidade de cabeça de casal, prestou declarações e nelas referiu ter sido casada em primeiras núpcias com o requerente, sob o regime comunhão de adquiridos e não haver bens a partilhar, nem dívidas comuns.
Notificado do teor destas declarações veio o requerente referir, existir (para além de outros bens aqui não relevantes) um imóvel que deve ser inventariado por se dever considerar como bem comum ou, quando assim não se entenda, dever ao menos ser levada em conta, em partilha, a circunstância de o mesmo ter sido, em parte, adquirido com dinheiro comum do casal e, em parte, com dinheiros próprios do requerente, referindo em síntese o seguinte circunstancialismo de facto:
Em 4/3/1994, antes do casamento, vivendo requerente e requerida já em plena comunhão, adquiriram, pelo preço global de Esc. 11.500.000$00, o referido imóvel, onde passaram a residir. A requerida figura na escritura como única adquirente, o que se deveu a acordo entre os dois por a mesma ter rendimentos inferiores aos dele e poderem, assim, usufruir de melhores condições (juros bonificados) para aquisição de habitação própria. Cada um deles pagou, previamente, Esc. 1.000.000$00, pelo que, à data da escritura, estavam em dívida apenas os remanescentes Esc. 9.500.000$00, valor que consta da escritura. Para o pagamento deste valor no acto da escritura  foi contraído empréstimo junto da Caixa ... figurando a requerida como mutuária e o requerente como fiador. Desde a escritura até ao casamento, 5/8/1995, o casal realizou prestações mensais à C..., para amortização do empréstimo, no valor de Esc. 655.982$00 (em 1994) e de Esc. 583.972$00 (em 1995), a que acresceu uma prestação, extraordinária, de Esc. 500.000$00, feita em 8/11/1994. Tais prestações perfazem Esc. 1.739.954$00, e foram pagas através de transferências feitas da conta conjunta que o casal tinha para o efeito aberto na C..., e onde o requerente havia domiciliado o seu vencimento, juntando os extractos de que constam tais movimentos (Docs. n°s. 7 a 15). Na constância do casamento foram feitos pelo casal novos pagamentos de prestações mensais, e de prestações extraordinárias, bem como transferências para a conta poupança habitação, que o requerente indica e que, ao todo, reverteram em amortização do empréstimo contraído em Esc. 11.836.030$00 (sendo a metade Esc. 5.918.015$00). O total de valores pagos pelo casal antes do casamento fora de Esc. 3.739.954$00 (sendo a metade Esc. 1.869.977$00). Mais alega que após a separação de facto do casal, e tendo a aqui requerida intentado acção de alimentos provisórios, foi conseguido acordo por via do qual a requerida reduziu o seu pedido de pensão de alimentos para Esc. 20.000$00 mensais, desde 1/09/2001, montante que o ora requerente aceitou pagar, tendo-se a requerida comprometido a, com a supra referida pensão, “proceder ao pagamento das despesas de condomínio e da prestação do empréstimo, para aquisição da casa que é bem comum do casal e que é actualmente residência da requerente...” e ter-se igualmente acordado que “este quantitativo não será considerado em sede de eventual processo de partilhas, maxime por conta do requerido (aqui, o requerente)”. Pelo que termina requerendo que a cabeça de casal seja notificada para relacionar os bens em falta, ou dizer o que se lhe oferecer no prazo de 10 dias.
A cabeça de casal manteve que não existem bens comuns a partilhar, referindo no que respeita ao imóvel ser este um bem próprio dela adquirido antes do casamento, sendo falso que tenham vivido em comunhão antes do casamento e tenham acordado que o imóvel seria dos dois por igual, pois que, ela sempre pretendeu ter uma casa própria sua, tendo contado com a ajuda e o apoio dos pais para alcançar esse objectivo; ao contrário, o Requerente queria estudar e investir na sua formação, tal como veio a acontecer. Todos os montantes liquidados antes do casamento foram dinheiros da Requerida e dos pais desta. E depois do casamento o Requerente e Requerida acordaram que esta pagaria a prestação da casa bem próprio seu, e o Requerente suportaria outras despesas e pagaria a sua formação académica. Referindo entender que o presente processo não é o próprio para decidir as questões levantadas, devendo os interessados vir a ser remetidos para os meios comuns (1350º C.P.C.).

            Foi proferido despacho em que foi decidido relativamente ao bem imóvel, indeferir a sua inclusão na relação de bens, como pretendido pelo requerente, referindo-se a esse respeito:
«Quanto ao imóvel, o mesmo foi adquirido pela requerida antes da vigência do regime de comunhão de adquiridos, pelo que o mesmo nunca poderia ser bem comum, não devendo ser objecto de partilha. Quando muito, tal bem, poderia ser compropriedade de ambos, requerente e requerida, caso o requerente, em acção cível, com notável complexidade (desde logo pela simulação ou ilicitude que, ao que parece, subjaz ao modo como ambas as partes decidiram alegadamente adquirir o imóvel), viesse demonstrar que adquiriu o imóvel em conjunto com a requerente. Assim sendo, e desde já, quanto ao imóvel, indefere-se a sua inclusão na relação de bens».

            II – Do assim decidido, apelou o requerente que concluiu as respectivas alegações nos seguintes termos:
 1. A douta decisão recorrida enferma de nulidade por não se ter pronunciado sobre a matéria alegada nos art.ºs 4º (2ª parte), 8º,11º, 14º a 17º e 21º a 26º da reclamação apresentada pelo ora recorrente contra a relação de bens apresentada pela recorrida.
 2. Tal matéria é de molde a influir decisivamente na causa, seja por conduzir à inclusão, na relação de bens a partilhar, do imóvel referenciado nos autos, seja por, quando menos, implicar que o património comum do casal, em partilha, seja compensado das prestações feitas, com dinheiros comuns do casal, em benefício da amortização de empréstimo que não constituirá dívida do casal mas apenas da recorrida.
 3. O imóvel, referenciado nos autos, foi na maior parte adquirido com dinheiro comum, devendo ser considerado bem comum nos termos do artº 1726º, 1, do Código Civil, e incluída na relação de bens comuns a correspondente verba.
 4. Na economia do referido preceito, o momento relevante não é o do negócio aquisitivo mas sim o da mobilização do dinheiro ou bens que possibilitam o negócio – leitura que se propugna aqui.
 5. A não procederem as duas conclusões que precedem, então, tendo-se o imóvel como pertencente ao património próprio da recorrida, também neste se incluirão, ao tempo do início da comunhão, o ónus hipotecário que incidia sobre o imóvel e a posição devedora no contrato de mútuo bancário celebrado com vista à aquisição daquele pela recorrida, em que esta era mutuária, sendo o recorrente simples fiador.
 6 -No caso contemplado na conclusão que precede releva e é incontornável a circunstância alegada e documentada na reclamação apresentada pelo ora recorrente, de terem sido pagos com dinheiro comum e na constância do casamento Esc. 11.836.030$00 para amortização da dívida própria da recorrida.
 7. Em obediência ao comando do artº 1726º, nº 2, do Código Civil, deve, em partilha, o património próprio da recorrida compensar o património comum pelo enriquecimento (desoneração), obtido por via desses pagamentos que totalizam Esc. 11.836.030$00.
 8. Devendo em consequência e nesse e só nesse caso, ser incluída na relação de bens, se não a verba correspondente ao imóvel, então a verba correspondente à compensação, devida pelo património próprio da requerida ao património comum, no valor, em moeda portuguesa, de Esc. 11.836.030$00, pelo seu contravalor em Euros, ou seja, € 59.037,87, partilhar.
 9. Decidindo como decidiu, violou o douto despacho recorrido os preceitos do artº 1726º, nºs 1 e 2, do Código Civil e os dos art.ºs659º, nº 2, 660º, nº 2 e 668º, nº 1, d) do Cód igo de Processo Civil

A requerida apresentou contra-alegações, nelas defendendo a manutenção do decidido.

Colhidos os vistos cumpre decidir, tendo em consideração o circunstancialismo de facto atrás alegado.
Releva ainda ter presente que tendo o recurso agora em apreciação sido admitido a subir apenas a final nos próprios autos, foi já feita a partilha dos demais bens que estavam em questão, subsistindo apenas a questão objecto do recurso.  
 
            IV – São as seguintes as questões que emergem das conclusões das alegações para apreciação: se o despacho recorrido é nulo, por omissão de pronúncia; se, suprida essa nulidade e conhecendo-se das questões invocadas na reclamação apresentada pelo aqui apelante contra a relação de bens, deverá ser incluída nesta o imóvel referenciado nos autos ou, pelo menos, o crédito de compensação devido pelo património da requerida ao património comum pelos pagamentos feitos pelo apelante em benefício daquele.

Verifica-se omissão de pronúncia quando o juiz não se pronuncia sobre questões que devesse apreciar, como decorre do art 660º/ 2 1ª parte do CPC, sendo que o juiz deve apreciar todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
            O apelante reclamou da relação de bens apresentada no inventário por deficiência da mesma pretendendo que, das duas uma: ou o imóvel que foi adquirido antes do casamento figurando a cabeça de casal na escritura como sua única adquirente deverá, não obstante, integrar a relação de bens como bem comum, por ter sido vontade real de ambos adquirirem esse imóvel em comum só tendo constado como sua única adquirente a cabeça de casal para acederem a juros bonificados; ou, assim não se entendendo, deverá ser incluída na relação de bens a verba correspondente à compensação devida pelo património próprio da requerida ao património comum, no valor correspondente a metade dos pagamentos feitos pelos pagamentos por ele em benefício daquele.

Estas questões mereceram, como acima se referiu o seguinte despacho:
«Quanto ao imóvel, o mesmo foi adquirido pela requerida antes da vigência do regime de comunhão de adquiridos, pelo que o mesmo nunca poderia ser bem comum, não devendo ser objecto de partilha. Quando muito, tal bem, poderia ser compropriedade de ambos, requerente e requerida, caso o requerente, em acção cível, com notável complexidade (desde logo pela simulação ou ilicitude que, ao que parece, subjaz ao modo como ambas as partes decidiram alegadamente adquirir o imóvel), viesse demonstrar que adquiriu o imóvel em conjunto com a requerente. Assim sendo, e desde já, quanto ao imóvel, indefere-se a sua inclusão na relação de bens».

Como é bom de ver, qualquer que seja o mérito do despacho em causa, a verdade é que, daquelas questões colocadas pelo apelante na qualidade de reclamante da relação de bens, só se pronunciou por uma delas – a da propriedade do bem imóvel, indeferindo a inclusão do mesmo na relação de bens. Nada disse a respeito da questão, tida pelo reclamante como subsidiária, referente ao crédito de compensação.
Nessa medida, o despacho é efectivamente nulo: omitiu questão que devia ter apreciado.
Como o dispõe o art 715º CPC suprirá este tribunal essa nulidade apreciando a questão em apreço.

Para além dessa apreciação, compete a este tribunal, como acima se evidenciou, reapreciar a questão decidida por aquele despacho a respeito da não integração do imóvel na relação de bens.

Entendeu a decisão recorrida a este respeito – se bem se interpreta a mesma -  que  se o requerente quisesse demonstrar que adquirira o imóvel em conjunto com a requerida, teria que propor acção cível, mas ainda que lograsse procedência nessa acção - de apreciável complexidade pela simulação implicada - nem por isso a questão interessaria nestes autos, porque o resultado que se obteria seria o da compropriedade nesse imóvel, que não é matéria que neles releve.
Quer dizer: não estava sequer em causa com esta decisão remeter os interessados para os meios comuns (nos termos do art 1335º/1 CPC ou nos do art 1350º/1, na redacção aplicável aos autos), mas afastar de todo a possibilidade entrevista pelo requerente da questão da propriedade desse imóvel poder interessar aos presentes autos, de acordo com o seguinte raciocínio: o que se passou antes do casamento não releva para estes autos porque, quando muito, estaria em causa uma questão de compropriedade e a divisão na compropriedade nada tem a ver com o inventário a que se reporta o art 1404º CPC que tem sempre como pressuposto o casamento.
Ora com este ponto de vista, o Exmo Juiz a quo excluiu a possibilidade da questão da propriedade do imóvel poder de algum modo relevar nos presentes autos.
O que não se afigura correcto.

Com todas as dificuldades que a prova da simulação entre os simuladores pode implicar -  visto que de acordo com o disposto no art 394º/1 e 2 CC estaria, em princípio, vedado ao aqui requerente, simulador, fazer a prova do acordo simulatório e do negócio dissimulado por via de prova testemunhal, e por assim ser, também por via de presunções judiciais, cfr art 351ºCC, ou por confissão extra-judicial não constante de documento, cfr 358º/3 CC, na medida em que essa prova implicaria convenção contrária ao conteúdo da referida escritura de aquisição do imóvel, documento autêntico -  é óbvia a importância para a partilha a ter lugar nos presentes autos da possível prova que o requerente possa obter da alegada simulação: dela pode decorrer ser o imóvel bem comum e como tal dever ser incluído na relação de bens dos presentes autos, com a correspondente qualificação do mútuo bancário como dívida da responsabilidade de ambos os cônjuges.

Por outro lado, não pode esquecer-se que há muito vem sendo afirmado doutrinária e jurisprudencialmente, que existindo um princípio de prova por escrito é lícito aos simuladores recorrerem à prova testemunhal.
Com efeito, na esteira do entendimento de Vaz Serra [1], vários outros autores [2],  e subsequentemente muita jurisprudência, para evitar as consequências iníquas a que a rigidez do texto do art 394º CC pode conduzir – sobretudo nas relações entre os simuladores -  tem vindo a admitir que existindo um princípio de prova por escrito, seja lícito aos simuladores recorrerem à prova testemunhal.
É que a razão que levou o legislador a impedir aos simuladores o uso da prova testemunhal relativamente ao acordo simulatório e ao negócio simulado (quando nenhum destes factos se pode ter como coberto pela força probatória plena do documento, autêntico ou particular que titula o negócio simulado), reside nos riscos inerentes à falibilidade e fragilidade da prova testemunhal. «Seria, na verdade, inadmissível pôr assim ao alcance de um dos simuladores contra o outro, ou de ambos contra terceiros, um meio relativamente fácil de «simulando» a simulação, atacar um negócio verdadeiro e sem vício que se tornou incómodo ou indesejável, pondo em causa a sua eficácia e frustrando a confiança que justificadamente a outra parte ou terceiro nele fundou. Estar-se-ia, de um passo, a destruir, com base numa prova insegura, a melhor fé que um documento merece»[3].
 Até porque e afinal, os simuladores têm facilmente ao seu alcance um meio seguro de acautelarem a prova do acordo simulatório e do negócio dissimulado - que dispensa a intromissão de estranhos como é adequado à simulação – e que é a “contradeclaração”. 
E é pela possibilidade da existência desta, que o legislador entendeu não estender aos terceiros a proibição do nº 2 do art 394º: «É que estes, não só não podem munir-se desse meio probatório escrito, como podem não ter acesso a ele, nomeadamente por ignorarem a sua existência» [4]
«Quando exista essa “contradeclaração” escrita que traduza a vontade real dos simuladores, seja ela no sentido de não celebrar qualquer negócio – simulação absoluta – seja no sentido de celebrar negócio diferente quanto a algum dos seus elementos – simulação relativa - o papel reservado à prova testemunhal é fácil de perceber: estará em causa a interpretação desse mesmo escrito».
Mas, é quando não haja essa “contradeclaração” – e nos autos até se poderá perspectivar como valendo como tal o compromisso da requerida na acção de alimentos provisórios a que o apelante alude - que se tem vindo a admitir que um ou mais documentos escritos, de que não resulte isoladamente, ou mesmo no seu conjunto, título suficiente de uma contradeclaração, possam  valer como um “começo de prova” da simulação que torne admissível o recurso ao depoimento de testemunhas.
 Diz a este respeito, Carvalho Fernandes [5]: «Não se exige que o documento crie no espírito do julgador a convicção da existência da simulação, pois isso equivaleria, como dizem Antunes Varela e outros, a fazer prova bastante ou suficiente desse facto. Não é isso que aqui está em causa pois, se assim fosse, não seria necessário o recurso à prova testemunhal. O que se exige é que o documento ou conjunto de documentos disponíveis no processo torne plausível, ou razoável, admitir a verosimilhança dos factos que, segundo a parte que os alega, qualificam a simulação. Por outras palavras, esses documentos têm de permitir, como um dos sentidos possíveis do seu conteúdo, a comprovação dos factos em que se traduz a simulação. A função que, por isso, fica reservada ao depoimento das testemunhas, não é mais do que a de trazer ao juiz os elementos que, a partir dos documentos disponíveis, lhe permitam, ou não, formar uma convicção da existência da simulação. Dentro da mesma ordem de ideias, fundando-se nesse começo de prova, de igual modo será lícito ao juiz, pela via de deduções lógicas, com base nas regras que a experiência nascida da observação das coisas da vida faculta, chegar à prova da simulação. Com efeito, neste caso, a base da prova é ainda documental, estando reservada à prova testemunhal ou por presunções um papel adjuvante»
.
Ora, o requerente, aqui apelante, juntou variadíssimos documentos que constituirão, no sentido atrás referido, um princípio de prova a facilitar a prova da simulação, pela possibilidade, afinal, de poder recorrer à prova testemunhal.
           
È certo que o imóvel só pode ter-se como bem integrante do património comum a que o casamento em regime de comunhão de adquiridos dá lugar, a partir do casamento; antes dele só pode haver, efectivamente, compropriedade nesse bem.

O que pode colocar a questão adjacente de saber se nos presentes autos se poderá apreciar a questão dessa compropriedade, admitindo que um e outro dos ex cônjuges façam prova dos diversos contributos de cada qual para a aquisição do imóvel enquanto se mantiveram a viver em união de facto, com o reflexo subsequente na partilha do mesmo.
 E a resposta só pode ser positiva, senão em função do disposto no art 96º CPC, pelo menos em função da disciplina constante do art 1336º/1 CPC, de acordo com a qual se deverão considerar definitivamente resolvidas as questões (todas) que no inventário sejam decididas no confronto do cabeça de casal ou dos demais interessados. 
 
Acresce que, e ao contrário do que o parecia perspectivar o Exmo Juiz a quo pela dificuldade que atribuía à correspondente acção, não se vê necessidade de se remeterem os interessados para os meios comuns, nos termos do art 1350º/1 CPC no que respeita à prova a que se tem vindo a fazer referência, visto que, estando inclusivamente todas as demais questões a que se referia o inventário já decididas, não poderá mostrar-se inconveniente a decisão incidental da reclamação em apreço, e por outro lado, o apelante encontra-se, pelo menos aparentemente, tão documentado relativamente aos pagamentos feitos, que a complexidade da matéria de facto subjacente à questão suscitada não parece ser transcendente.

Em resumo: a questão de saber se houve simulação na aquisição do imóvel e se o mesmo, ao contrário do que ficou a constar da respectiva escritura, se deverá ter como bem adquirido em compropriedade e, posteriormente, integrado na comunhão conjugal, deve ser decidida no presente inventário, admitindo-se, pois, que o reclamante possa fazer prova dos factos que alegou para este efeito.

Mas, se vier a soçobrar a prova a esse nível e, por isso, o imóvel se dever ter como  bem próprio da requerida cabeça de casal, como é evidente, deverá ainda o reclamante ser admitido a provar em que medida os seus salários – bem comum no regime de comunhão de adquiridos, cfr art  1724º/al a) CC  – contribuíram para o pagamento daquele bem próprio da requerida, pois, na parte em que esse contributo exceda a metade, corresponderá a um crédito de compensação do património comum sobre o património próprio da requerida, a ser exigível no momento da partilha dos bens do casal.
            À situação refere-se o nº 2 do art 1697º CC, na medida em que a ser como acima se referiu, teriam respondido bens comuns por divida da exclusiva responsabilidade da aqui requerida.
De facto, «a lei determina que os bens mencionados (os comuns) respondam por dívidas próprias do cônjuge devedor, em atenção às expectativas do credor; mas não se pode esquecer que os bens são comuns, que o outro cônjuge tem meação neles, em correspondência com a meação que dá nos bens ou faz entrar para o património comum. Não se pode, pura e simplesmente, “deixar que estes sejam retirados da comunhão – como que voltando a ser bens próprios do seu titular …”, sob pena de frustrar as expectativas e “prejudicar seriamente o outro cônjuge” [6]. Neste caso surge um crédito de compensação do património comum sobre o património do cônjuge devedor, a tomar em conta no momento da partilha». [7]
E explicam Pereira Coelho/Guilherme da Fonseca o motivo por que assim é: «Poderia esperar-se, neste caso, que a compensação se operasse através de um crédito do cônjuge não devedor pelo montante de metade dos bens comuns usados para o pagamento da divida. Se o legislador tivesse seguido este caminho, teria satisfeito o interesse do cônjuge credor em receber integralmente o valor da meação no património comum. Mas a lei estabeleceu um crédito do património comum pelo total pago porque, antes de pretender garantir o interesse daquele cônjuge, pretendeu restaurar o valor integral do património comum que, antes de se destinar a dividir-se entres cônjuges, serve de garantia das dividas comuns, em face dos credores de ambos, com prioridade sobre outras dívidas (art 1689º/2)».

Pelo que se veio de dizer, é de se concluir no sentido de que os autos deverão prosseguir para instrução e subsequente decisão das questões acima referidas.
Na medida em que essa instrução deverá ainda ter lugar, não poderá julgar-se inteiramente procedente a apelação, já que sem aquela não se pode concluir pela inclusão ou não na relação de bens do imóvel a que os autos se reportam ou, em alternativa, pelo aludido crédito de compensação.


          V – Pelo exposto, acorda este tribunal em julgar parcialmente procedente a apelação e, revogando a decisão recorrida, determinar que na 1ª instância tenha lugar a instrução referente às questões acima referidas.

Custas pela apelada.       

Lisboa, 11 de Julho de 2013

Maria Teresa Albuquerque
Isabel Canadas
José Maria Sousa Pinto
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[1] - Vaz Serra tendo optado por uma solução inspirada no CC italiano e francês, formulou nos trabalhos preparatórios do actual CC, uma proposta no sentido de admitir aos simuladores que fizessem uso, a titulo excepcional, da prova por testemunhas nos seguintes casos: existência de prova escrita «proveniente daquele contra quem a acção é dirigida ou do seu representante» ou quando por efeito «da qualidade das partes, da natureza do contrato ou de outra circunstância, seja verosímil que tenham sido feitas contradeclarações; impossibilidade moral ou material de prova escrita: E, não obstante esta sua proposta não ter sido acolhida no texto legal, nem por isso deixa de sustentar o mesmo ponto de vista, como decorre da RLJ Ano 103º, 1970/1971, nº 3406, p 5 e ss e RLJ 107º-1974/75 nº 3514, p 308 e ss
[2] -Entre outros, Carvalho Fernandes em «O Direito» Ano 124, 1992, IV ,“A prova da Simulação pelos simuladores» p 521 e ss; Mota Pinto, num parecer feito com a colaboração de Pinto Monteiro, in CJ Ano X (1985) III, 11 e ss
[3]- Estudo de Carvalho Fernandes acima referenciado
[4] - De novo carvalho Fernandes no mesmo estudo
[5]- Estudo citado, p 606
[6]- Braga da Cruz, «Capacidade patrimonial dos cônjuges», p 419
[7]- Pereira Coelho/Guilherme da Fonseca, «Curso de Direito da Família», I, 4ª ed, p 427