Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1016/14.5T8PDL.L1-6
Relator: MARIA MANUELA GOMES
Descritores: COMPETÊNCIA
PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/19/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - Nos tribunais de comarca onde não existe secção de comércio, a competência para o processo de insolvência pertence à secção cível da instância local.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa,


1. M..., residente em Ponta Delgada, por requerimento dirigido à Instância Central do Tribunal de Ponta Delgada, da Comarca dos Açores, veio apresentar-se à insolvência, com pedido de exoneração do passivo restante, indicando como única credora a C..., com sede em Lisboa.
E atribuiu à acção o valor de € 55 070,00.

Ouvida a requerente, nos termos e para os efeitos do art. 3º nº3 do CPC, o Tribunal proferiu o seguinte despacho:
“Da incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria (…).
“Estamos perante um processo especial de declaração de insolvência singular, cujo valor (embora provisório – art. 15º do CIRE), atribuído pela requerente, se cifra em € 55.070,00.
Não podemos aceitar o entendimento de que cabe a esta 1ª secção cível da instância central do Tribunal da Comarca dos Açores a tramitação dos autos de insolvência, ainda que de valor superior a €50.000,00.
Eis o quadro legal que, a nosso ver, importa para o caso:
Da Lei 62/2013, de 26 de agosto (em diante LOSJ):
Artº.37º, nº.1 - Na ordem jurídica interna a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território.
Artº.38º, nº.1 - A competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei; nº.2 - São igualmente irrelevantes as modificações de direito exceto se for suprimido o órgão a que a causa estava afeta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecia para o conhecimento da causa.
Artº.39º - Nenhuma causa pode ser deslocada do tribunal ou secção competente para outro, a não ser nos casos especialmente previstos na lei.
Artº.40º, nº.1 - Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional; nº.2 - A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os tribunais judiciais de primeira instância, estabelecendo as causas que competem às secções de competência especializada dos tribunais de comarca ou aos tribunais de competência territorial alargada.
Artº.41º - A presente lei determina a competência, em razão do valor, entre as instâncias dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem às secções cíveis das instâncias centrais e às secções de competência genérica das instâncias locais, nas ações declarativas cíveis de processo comum.
Artº.79º - Os tribunais judiciais de primeira instância são, em regra, os tribunais de comarca e designam-se pelo nome da circunscrição em que se encontram instalados.
Artº.80º, nº.1 - Compete aos tribunais de comarca preparar e julgar os processos relativos a causas não abrangidas pela competência de outros tribunais; nº.2 - Os tribunais de comarca são de competência genérica e de competência especializada.
Artº.81º, nº.1 - Os tribunais de comarca desdobram-se em: a) Instâncias centrais que integram secções de competência especializada; b) Instâncias locais que integram secções de competência genérica e secções de proximidade; nº.2 - Nas instâncias centrais podem ser criadas as seguintes secções de competência especializada: a) Cível; b) Criminal; c) Instrução criminal; d) Família e menores; e) Trabalho; f) Comércio; g) Execução; nº.3 - Nas instâncias locais, as secções de competência genérica podem ainda desdobrar-se em secções cíveis, em secções criminais e em secções de pequena criminalidade, quando o volume ou a complexidade do serviço o justifiquem; nº.4 - Sempre que o volume processual o justifique podem ser criadas nas instâncias centrais, por decreto-lei, secções de competência especializada mista; nº.5 - Podem ser alteradas, por decreto-lei, a estrutura e a organização dos tribunais de comarca definidos na presente lei e que importem a criação ou a extinção de secções;
Artº.117º, nº.1 - Compete à secção cível da instância central: a) A preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a € 50.000,00; b) Exercer, no âmbito das ações executivas de natureza cível de valor superior a €50.000,00, as competências previstas no Código de Processo Civil (CPC), em circunscrições não abrangidas pela competência de outra secção ou tribunal; c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam ações da sua competência; d) Exercer as demais competências conferidas por lei; nº.2 - Nas comarcas onde não haja secção de comércio, o disposto no número anterior é extensivo às acções que caibam a essas secções; nº.3 - São remetidos à secção cível da instância central os processos pendentes nas secções da instância local em que se verifique alteração do valor suscetível de determinar a sua competência.
Artº.123º, nº.4 - A prática de atos urgentes é assegurada pelas secções de competência genérica de instância local, ainda que a respetiva comarca seja servida por secção de família e menores, nos casos em que esta se encontre sediada em diferente município.
Artº.124º, nº.5 - Fora das áreas abrangidas pela jurisdição das secções de família e menores, cabe às secções de competência especializada criminal conhecer dos processos tutelares educativos e às secções de competência especializada cível conhecer dos processos de promoção e proteção; nº.6 - A prática de atos urgentes é assegurada pelas secções de competência genérica da instância local, ainda que a respetiva comarca seja servida por secção de família e menores, nos casos em que esta se encontre sediada em diferente município.
Artº.128º, nº.1 - Compete às secções de comércio preparar e julgar: a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização; b) As ações de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade; c) As ações relativas ao exercício de direitos sociais; d) As ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais; e) As ações de liquidação judicial de sociedades; f) As ações de dissolução de sociedade anónima europeia; g) As ações de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais; h) As ações a que se refere o Código do Registo Comercial; i) As ações de liquidação de de crédito e sociedades financeiras; nº.2 - Compete ainda às secções de comércio julgar as impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais; nº.3 - A competência a que se refere o nº.1 abrange os respectivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões.
Do DL 49/2014, de 27 de Março (em diante RLOSJ):
Artº.64º - São criados os seguintes tribunais de comarca: a) Tribunal Judicial da Comarca dos Açores; (…..)
Artº.66º, nº.1 - O Tribunal Judicial da Comarca dos Açores integra as seguintes secções de instância central: a) 1.ª Secção cível, com sede em Ponta Delgada; b) 1.ª Secção criminal, com sede em Ponta Delgada; c) 2.ª Secção cível, com sede em Angra do Heroísmo; d) 2.ª Secção criminal, com sede em Angra do Heroísmo; e) Secção de instrução criminal, com sede em Ponta Delgada; f) Secção de família e menores, com sede em Ponta Delgada; g) Secção do trabalho, com sede em Ponta Delgada; nº.2 - O Tribunal Judicial da Comarca dos Açores integra ainda as seguintes secções de instância local: a) Secção de competência genérica, desdobrada em matéria cível e criminal, com sede em Angra do Heroísmo; b) Secção de competência genérica, com sede na Horta; c) Secção de competência genérica, desdobrada em matéria cível e criminal, com sede em Ponta Delgada; d) Secção de competência genérica, desdobrada em matéria cível e criminal, com sede em Praia da Vitória; e) Secção de competência genérica, desdobrada em matéria cível e criminal, com sede em Ribeira Grande; f) Secção de competência genérica, com sede em Santa Cruz da Graciosa; g) Secção de competência genérica, com sede em Santa Cruz das Flores; h) Secção de competência genérica, com sede em São Roque do Pico; i) Secção de competência genérica, com sede em Velas; j) Secção de competência genérica, com sede em Vila do Porto; k) Secção de competência genérica, com sede em Vila Franca do Campo; l) Secção de proximidade, com sede em Nordeste; m) Secção de proximidade, com sede em Povoação.
Artº.104º, nº.1 - Os processos que em cada uma das áreas se encontrem pendentes nos actuais tribunais de comarca, à data da instalação dos novos tribunais, transitam para as secções de competência especializada das instâncias centrais, de acordo com as novas regras de competência material e territorial, com excepção dos processos pendentes nos juízos de competência específica cível relativos às matérias da competência das secções de comércio, os quais transitam para as correspondentes secções da instância local; 2 - Os processos pendentes nas atuais varas cíveis, varas com competência mista cível e criminal e juízos de grande instância cível das comarcas piloto, independentemente do valor, transitam igualmente para as secções de competência especializada das instâncias centrais referidas no número anterior; nº.3 - Transitam para os tribunais de competência territorial alargada, à data da instalação dos novos tribunais, os processos pendentes nos atuais tribunais de competência especializada que lhes correspondam; nº 4 - Os processos pendentes nos atuais tribunais e juízos de competência especializada das comarcas piloto, não incluídos no número anterior, transitam, dentro do mesmo município, à data da instalação dos novos tribunais, para as secções de competência especializada das instâncias centrais, de acordo com as regras de competência material; nº.5 - Os processos pendentes nas atuais comarcas, não abrangidos pelas regras previstas nos números anteriores, transitam, à data da instalação dos novos tribunais, para as respetivas instâncias locais; nº.6 - Os processos objeto de interposição de recurso jurisdicional que se encontrem pendentes nas instâncias superiores, à data da instalação dos novos tribunais, transitam, após decisão, para as secções ou tribunais competentes, de acordo com as novas regras de competência material e territorial, sem prejuízo do previsto no nº.2; nº.7 - Os processos em que o Ministério Público é titular, pendentes nos atuais tribunais, departamentos de investigação e ação penal ou serviços do Ministério Público, transitam, à data da instalação dos novos tribunais, para os departamentos ou serviços do Ministério Público que lhes correspondam.
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Percorrido o quadro legal que enquadra a questão aqui em apreço, nota-se (sendo até primário afirmá-lo) que a realidade de hoje, no que toca à organização judiciária – artºs.79º a 81º da LOSJ - é muito distinta da que vigorava antes de 01.09.2014.
Hoje, circunscrevendo a questão à Região Autónoma dos Açores, a miríade de comarcas de antes está aglutinada numa única comarca – artº.66º da RLOSJ.
Nota-se, também, que a tão propalada (pelo poder político) especialização dos tribunais não chegou de forma igual a todas as comarcas do país. É certo que essa possibilidade está contemplada na lei - artº.81º da LOSJ – mas, no que toca à comarca dos Açores, não foi implementada de forma integral por se ter excluído da especialização da instância central as secções de comércio e execução – als.f) e g) do nº.2 do artº.81º da LOSJ – como claramente o revela o artº.66º, nº.1 da RLOSJ que as não criou…e é daqui que surge a questão que se analisa e que o legislador resolveu mas de forma “menos óbvia”, digamos assim, circunstância que, como nos revela a história das reformas anteriores, é aproveitada por muitos operadores para confundirem o desiderato reformista.
Como se referiu, se tivesse sido criada a secção de comércio nesta instância central todos saberíamos que a competência para o conhecimento destes autos lhe caberia, como bem o aponta o artº.128º, nº.1, al. a) da LOSJ…assim como lhe caberia o conhecimento de todos os demais autos que se mostram elencados em tal norma, o que equivale a dizer que a competência é-lhe atribuída em razão exclusiva da matéria com clara irrelevância para o valor da causa.
Resulta da lei – artºs.37º, 38º, 39º, 40º e 41º, todos da LOSJ – que a competência dos tribunais judiciais, para o que aqui importa, se reparte entre si segundo a matéria e o valor; que (a competência) se fixa no momento da propositura da acção mas com a possibilidade de se alterar de acordo com as imposições legais e também quando ocorrer extinção do órgão a que a causa estava afecta ou lhe seja atribuída a competência que antes lhe faltava; só nos casos previstos na lei é que uma causa se pode deslocar para outro tribunal; que os tribunais judiciais têm competência residual e que, no que toca às acções declarativas cíveis de processo comum, a competência entres as secções cíveis da instância central e as secções de competência genérica das instâncias locais se faz em razão do valor.
Aqui chegados, notamos que a reforma extinguiu tribunais que integravam juízos de competência genérica com competência para o conhecimento (já não para o julgamento) de toda a matéria cível e comercial e criou um tribunal com instâncias centrais, locais e de proximidade, incorporando, para o que aqui importa, a primeira duas secções de competência cível e criminal e as segundas várias secções cíveis, criminais ou genéricas, estando a competência de cada uma dessas secções (central e local) fixada, no que respeita à matéria cível e para o que aqui interessa, em razão da matéria e do valor.
No que toca às secções cíveis da instância central a competência está fixada e limitada nos termos do art. 117º da LOSJ e podemos, para o que aqui interessa, circunscrevê-la à preparação e julgamento das acções cíveis de processo comum de valor superior a € 50.000,00 – nº.1, al. a) da norma referida.
Cabe aqui e agora assinalar a primeira e fundamental diferença quanto aos critérios de atribuição da competência às secções cíveis e secções de comércio das instâncias centrais…às primeiras é feita pelo binómio matéria (preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum; exercer, no âmbito das ações executivas de natureza cível as competências previstas no CPC, em circunscrições não abrangidas pela competência de outra secção ou tribunal; preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam ações da sua competência; e exercer as demais competências conferidas por lei) e valor da causa (desde que superior a €50.000,00) ao passo que às segundas é feita apenas pela matéria (toda a elencada no artº.128º da LOSJ).
Em jeito de resumo…às secções de comércio cabe conhecer de todos os processos e ações que incorporem matéria comercial independentemente do valor que esteja em causa…, ao passo que às secções cíveis a sua competência é limitada às ações declarativas cíveis de processo comum com valor superior a €50.000,00; às ações executivas também de valor superior ao apontado e às providências cautelares a que correspondam as ações declarativas em primeiro lugar referidas. O legislador poderia ter feito outra opção…mas não o fez!
E certamente não o fez por razões ponderosas relacionadas com a racional distribuição do serviço e, também, com a desnecessidade de intervenção de juiz mais experiente no julgamento de causas que não aquelas que especificou – artº.183º, nº.1 da LOSJ.
Como sabemos, estão arquitetadas no CPC uma miríade de ações – especiais – que versam matéria cível e que assumem, em muitas ocasiões, valores muito acima dos €50.000,00 e, mesmo assim, o legislador entendeu subtrair o seu conhecimento à instância central, entregando tal tarefa à instância local. Limitou, pois, a competência da instância central em razão da matéria…uma vez que o valor, neste particular, não assume relevância. Nota clara desta opção está no artº. 41º da LOSJ, onde, sem se bulir com a competência material das secções cíveis da instância central, se reparte entre elas e as secções cíveis da instância local, com competência material concorrencial, a responsabilidade pelo conhecimento das ações declarativas cíveis de processo comum destinando às primeiras apenas as que tenham um valor superior a €50.000,00.
Já não preconizou o legislador solução igual para as secções de comércio das instâncias centrais…uma vez que a estas cabe, independentemente do valor, conhecer de todos os processos e ações que versem matéria comercial – artº.128º da LOSJ.
Se assim é, cabe agora interpretar o que o legislador pretendeu ao fixar a regra a que alude o nº.2 do artº.117º da LOSJ.
(…) Ora, pegando na letra da lei – nº.2 do artº.117º da LOSJ –, vemos claramente que o legislador (podendo usar qualquer vocábulo, na verdade) exprimiu o seu pensamento em termos adequados ao que visava pela expressão ações…e não procedimentos, processos ou qualquer outra que pudesse contrariar a estreiteza da via que abriu na direção da secção cível da instância central fixada no nº.1 do mesmo preceito.
O legislador sabia muito bem…porque o escreveu…que as secções de comércio das instâncias centrais tinham competência para conhecer mais do que as ações declarativas de processo comum que por lá pululam…tinham competência para conhecer tudo e sem qualquer limite de valor (competência fixada exclusivamente em razão da matéria).
Legitimamente cabe agora perguntar se (com o nº.2 do artº.117º da LOSJ) o legislador quis entregar às secções cíveis das instâncias centrais onde não haja secção de comércio a competência que caberia a estas últimas na sua totalidade (nomeadamente a material) ou só relativamente às ações da sua competência (ações declarativas cíveis de processo comum com valor superior a €50.000,00; às ações executivas também de valor superior ao apontado e às providências cautelares a que correspondam as ações declarativas em primeiro lugar referidas)?
A resposta parece não oferecer dúvidas e para tanto basta olharmos de forma mais cuidada para a lei…lendo-a de forma integrada e devidamente contextualizada. O nº.2 do artº.117º da LOSJ preconiza sem qualquer dúvida um alargamento da competência das secções cíveis da instância central onde não haja secção de comércio…mas na atribuição dessa competência não abandona o critério que fixou e que se concretiza no binómio matéria e valor (artºs.40º, nº.2 e 41º da LOSJ)…e por isso faz referência expressa ao nº.1 do mesmo preceito.
A lei – nº.2 do artº.117º da LOSJ – não refere que a competência das secções do comércio da instância central – fixadas no artº.128º da LOSJ – passa, toda, para as secções cíveis da mesma instância desde que o valor da causa, independentemente da sua forma processual, seja superior a €50.000,00…o que seria fácil de dizer se essa fosse a solução preconizada…o que se diz, com todas as letras, é que a competência das secções cíveis da instância central fixada nos termos do nº.1 é alargada no sentido de nela se incluírem, em razão da matéria, as ações declarativas de processo comum de valor superior a €50.000,00; as execuções…de valor superior a €50.000,00; às providências cautelares a que correspondam as ações antes mencionadas e às demais competências conferidas por lei que se inscrevam na competência das secções de comércio em falta na comarca…é isto que se diz.
A interpretação feita sem se contextualizar o teor do nº.2 face ao que se afirma no nº.1 do artº.117º da LOSJ seria derrogar a barreira da competência em razão da matéria fixada para as secções das instâncias centrais que se limita às hipóteses, constituídas em numerus clausus, identificadas no nº.1 do artº.117º da LOSJ….é que inquestionavelmente as insolvências e PER não são, em termos dogmáticos, ações declarativas de processo comum mas sim processos especiais e assim mesmo foram designados expressamente pelo legislador que no artº.128º, nº.1, al. a) da LOSJ assim os apelida.
Não se trata de qualquer ingenuidade do legislador mas antes de opção clara e rigorosa em termos dogmáticos…e é isto que sai claro da letra da lei…às secções cíveis das instâncias centrais, na falta das secções do comércio na mesma instância, cabe conhecer, em razão da matéria e do valor, o que, do que se elenca no nº.1 do artº.117º da LOSJ, caberia conhecer àquelas em razão de um critério estrito de competência material…a título de exemplo estarão em causa as ações previstas nas als. b), e), g) e i) do artº.128º da LOSJ desde que o valor da causa seja superior a €50.000,00 (mas não também, como se referiu, os processos especiais referidos na al. a) do mesmo artigo).
A interpretação feita no sentido de caber na competência das secções cíveis da instância central, quando nela não exista secção do comércio, todas as causas mencionadas no artº.128º da LOSJ desde que com valor superior a €50.000,00, seria deixar entrar pela janela ao que se vedou entrada à porta e com isso fazer tábua rasa do binómio matéria e valor que determina a sua competência…não existe na letra da lei a mínima referência a tal hipótese, razão pela qual não pode qualquer intérprete, por esta via, chegar a qualquer pensamento legislativo nesse sentido - artº.9º, nº.2 do CC.
Na linha da solução que aqui se defende, e que vai no sentido da competência das secções cíveis da instância central estar circunscrita (estritamente) nos termos apertados do artº.117º, nº.1 da LOSJ, excecionalmente ampliada em razão da matéria para conhecimento daquele acervo restrito que caberia à secção do comércio da mesma instância central encontramos na lei – LOSJ e RLOSJ – indicações preciosas, ainda que apenas sirvam como argumento adjuvante que a suportam.
Como já acima referimos, os atuais tribunais de comarca estão desdobrados em instâncias e estas em secções…podendo cada uma destas unidades estar sedeada em local diferente da área geográfica sobre que tem jurisdição. Nada impede que as várias secções da instância central estejam espalhadas pela área da comarca…a secção de trabalho na localidade a), a secção de família e menores em b), a secção cível em c), a secção criminal em d), a secção de comércio em e) e assim sucessivamente. Assim como nada impede que a secção cível da instância central possa estar instalada em localidade que, concomitantemente, acolhe uma secção genérica da instância local, para tal bastando a vontade política.
Tendo em conta essas circunstâncias, a verdade é que, conforme resulta do artº.123º, nº.4 e 124º, nº.6 da LOSJ - a prática de atos urgentes relativos a menores e filhos maiores e em matéria tutelar educativa e de proteção é assegurada pelas secções de competência genérica de instância local, ainda que a respetiva comarca seja servida por secção de família e menores, nos casos em que esta se encontre sediada em diferente município e ainda que, acrescentamos nós, ali se encontra instalada secção cível da instância central. Isto para dizer que, mesmo perante matéria que está entregue a secção da instância central, para os atos urgentes não é escolhida outra secção da instância central, a cível, que eventualmente tivesse instalação na mesma localidade onde se encontra a instância local secção genérica…tendo-se optado claramente por esta. Fica desta forma vincada a opção do legislador no que toca aos limites apertados que definiu para a competência das secções cíveis da instância local.
Outra indicação precisa e com acolhimento no texto da lei é a que encontramos no nº.1 do artº104º da RLOSJ onde se diz: os processos que em cada uma das áreas se encontrem pendentes nos atuais tribunais de comarca, à data da instalação dos novos tribunais, transitam para as secções de competência especializada das instâncias centrais, de acordo com as novas regras de competência material e territorial, com exceção dos processos pendentes nos juízos de competência específica cível relativos às matérias da competência das secções de comércio, os quais transitam para as correspondentes secções da instância local.
Deste preceito podemos extrair, para o que aqui importa, auxiliados pela interpretação recomendada pelo CSM na sua deliberação de 27.05.2014, no que toca ao primeiro segmento (os processos que em cada uma das áreas se encontrem pendentes nos atuais tribunais de comarca, à data da instalação dos novos tribunais, transitam para as secções de competência especializada das instâncias centrais, de acordo com as novas regras de competência material e territorial)…que passam a ser da competência das secções cíveis da instância central apenas os processos que pendiam nos tribunais de comarca extintos e que lhe caibam em razão da competência material fixada pelas novas regras…quais sejam…os do artº.117º da LOSJ…o que não é nada de extraordinário para o que aqui nos interessa…mas que reforça a estreiteza fixada no que toca à competência das secções cíveis da instância central.
Essa estreiteza é vincada no segmento seguinte da norma mencionada (com exceção dos processos pendentes nos juízos de competência específica cível relativos às matérias da competência das secções de comércio, os quais transitam para as correspondentes secções da instância local) de onde se retira que não seguem aquela regra os processos que pendessem nos juízos de competência específica cível (correspondendo estes aos que conhecem de matérias determinadas pela espécie de ação ou forma de processo aplicável como se extrai do Ac. do TRP de 02.07.2012 proferido no conflito de competência nº.636/12.7TJPRT-.P1, integralmente disponível em www.trp.pt) relativos às matérias da competência da secção de comércio, os quais transitam (todos independentemente do valor) para as correspondentes secções da instância local…realidade que não se entenderia se o nº.2 do artº.117º da LOSJ entregasse às secções cíveis da instância central, na falta da secção de comércio, todas as causas da sua competência material apenas mitigadas pelo valor da ação. Se a interpretação do nº.2 do artº.117º da LOSJ fosse no sentido de (na falta da secção de comércio da instância central) caberem às secções cíveis da mesma instância todas as causas que estão identificadas no artº.128º da LOSJ delas apenas excecionando as de valor inferior a €50.000,00…não seria necessária a regra que encontramos no segundo segmento do artº.104º da RLOSJ.
Ainda em matéria de transição de processos, sublinha-se que o Meritíssimo Juiz Presidente da Comarca dos Açores, no espectro das suas competências legais (despacho datado de 08.07.2014, intitulado como “DESPACHO ORIENTADOR DAS OPERAÇÕES DE MARCAÇÃO PARA A TRANSIÇÃO DE PROCESSOS: ATRIBUIÇÃO E DISTRIBUIÇÃO”, com enquadramento normativo no art. 104º da RLOSJ, e no sentido das duas deliberações do CSM a este respeito de 09.04.2014 e de 25.06.2014), determinou a remessa de todos os processos de insolvência pendentes a 31.08.2014 (portanto, ainda que de valor superior a € 50.000,00) para as secções da instância local cível, nos moldes que aqui se transcrevem: “(…) tal disposição não diz (podendo tê-lo feito) que todas as ações de valor superior a 50 000€» que coubessem à secção de comércio, se a houvesse, são da competência da secção cível da instância central. O que expressamente refere é que «o disposto no número anterior é extensivo» às ações que coubessem à secção de comércio, se a houvesse - que é coisa diversa. Na verdade as insolvências e os PER não são «ações declarativas cíveis de processo comum» (artigo 117.º, n.º 1, al. a) nem cabem em qualquer das restantes alíneas desse mesmo número (conceptualmente, a insolvência é uma execução universal, ainda que não integre a tipologia legal das execuções). Para além desse argumento, firmado no elemento literal, também o elemento histórico aponta no mesmo sentido, já que as atuais varas cíveis (de certa forma antecessoras das secções cíveis da instância central) já não preparavam e julgavam (pacificamente) tais processos, como se alcança do art.º 97.º, n.º 2 da Lei 3/99, nada apontando para que o legislador tenha neste aspeto querido infletir o rumo. Por outro lado, também não se pode afirmar que esta interpretação esvazie o conteúdo do n.º 2 do art.º 117.º, uma vez que no elenco do art.º 128.º, n.º 1 contam-se outras ações, que são ações declarativas cíveis de processo comum (p. ex. as previstas na alínea b), e), g) e i). Assim, não parece que a competência das secções cíveis da instância central se estenda aos processos de insolvência e PER, previstos na alínea a) do n.º 1 do art.º 128.º. De sorte que tais processos, ainda que de valor superior a 50 000€ deverão ser remetidas (de acordo com a competência territorial respetiva) para as secções da instância local cível ou para as demais instâncias locais (genéricas) (…)”.
Por último, mais se considera que os critérios subjacentes à definição do quadro de juízes a que se refere o Mapa III anexo à RLOSJ, designadamente no que respeita a esta comarca dos açores, tiveram em conta todo o descrito enquadramento legal. Note-se que os então cinco juízos de competência genérica do tribunal de comarca deram lugar a seis unidades orgânicas na instância local de Ponta Delgada: quatro secções cíveis e (apenas) duas secções criminais. É evidente, pois, que este novo quadro orgânico da instância local cível foi dimensionado de forma a abarcar, na sua totalidade, o volume de serviço correspondente aos processos especiais de revitalização e de insolvência.
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A infração das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal, de conhecimento oficioso, e implica o indeferimento do pedido de declaração de insolvência em despacho liminar e respetiva publicação – arts. 65º, 96º al. a), 97º nº 1 e 99º nº 1, todos do CPC, e 27º nº 1 al. a) e 2 do CIRE.
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Em face do exposto, julgo verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria, assim declino a competência material desta secção cível da instância central para o conhecimento dos presentes autos, e, concomitantemente, indefiro liminarmente o pedido de declaração de insolvência.
Publique. Notifique”

Inconformada, apelou a requerente.

Alegou e a final formulou, em síntese, a seguintes conclusão:
- Decorre dos artigos 117º nº1, al. a) e 2, 128º nº1ª) e 130º al. a) e nº2 todos da Lei nº 62/2013, que a competência para as acções de insolvência, de valor superior a € 50 000,00,  nas comarcas onde não existe secção de comércio, cabe à secção cível da instância central;
- A decisão recorrida viola os mencionados preceitos e ainda os artigos 65º, 96º al. a) 97º nº1, 99º nº1 e 105 nºs 3 e 4 do CPC.
Terminou pedindo a revogação do despacho de indeferimento liminar, declarando-se competente a Instância Central de Ponta Delgada ou, caso assim se não entendesse, que fosse “ordenada a remessa dos presentes autos à instância local e ordenada a sua aceitação por esta”.

Não houve contra alegação.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

2. Para o conhecimento do recurso importa atentar na factualidade constante do relatório que antecede e ainda que:
- A recorrente apresentou-se à insolvência no dia 10.11.2014.
- O valor atribuído ao processo foi o de € 55 070,00.

3. A questão que verdadeiramente subjaz ao presente recurso consiste em saber, face à actual legislação de organização do sistema judiciário, quem é competente para preparar e julgar os processos de insolvência, de valor superior a € 50 000,00, nos Tribunais de Comarca onde não existe Secção de Comércio.

Com a publicação da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, que aprovou a Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), posteriormente regulamentada pelo DL nº 49/2014, de 27 de Março, foram fixadas as disposições enquadradoras da reforma do sistema judiciário, globalmente vigentes desde 1.09.2014.
Em termos muito genéricos, pode afirmar-se que a estrutura do Tribunal Judicial de Comarca se organiza agora em torno de ”Instâncias Centrais”, preferencialmente localizadas nas denominadas “capitais de circunscrições socialmente adquiridas” (cfr. Preâmbulo do citado DL nº49/2012) e de “Instâncias Locais”.
As Instâncias Centrais integram, em princípio, sete Secções de Competência especializada – Cível, Crime, Instrução Criminal, Família e Menores, Trabalho, Comércio e Execução – e as Instâncias Locais integram Secções de competência genérica – Cível, Criminal e de Pequena Criminalidade – e Secções de proximidade, todas com competências legalmente definidas, conforme artigos 117º e seguintes da LOSJ.

Todavia, no Tribunal da Comarca dos Açores, como em outros tribunais de Comarca, não foi criada a Secção de Comércio (cfr. arts 66º e 67º do RLOSJ), razão pela qual se têm suscitado dúvidas  sobre a quem compete nesses tribunais (“amputados”) as competências legalmente fixadas para a dita Secção.
Para ponderação da questão importa, a nosso ver, principalmente o disposto nos artigos 117º nºs 1 e 2, 128º e 130º todos da mencionada Lei nº 62/2013 (a dita LOSJ) e ainda, instrumentalmente, o disposto no art. 104º do DL nº 49/2014 (RLOSJ).

Vejamos.

Dispõe o artigo 117º, nos ditos segmentos, o seguinte:

“1 — Compete à secção cível da instância central:
a) A preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a € 50 000;
b) Exercer, no âmbito das acções executivas de natureza cível de valor superior a € 50 000, as competências previstas no Código de Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de outra secção ou tribunal;
c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam acções da sua competência;
d) Exercer as demais competências conferidas por lei.
2 — Nas comarcas onde não haja secção de comércio, o disposto no número anterior é extensivo às acções que caibam a essas secções” [sublinhado nosso]

Por seu lado, estatui o art. 128º do mesmo diploma que:

“1 — Compete às secções de comércio preparar e julgar:

a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;
b) As ações de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;
c) As ações relativas ao exercício de direitos sociais;
d) As ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais;
e) As ações de liquidação judicial de sociedades;
f) As ações de dissolução de sociedade anónima europeia;
g) As ações de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais;
h) As ações a que se refere o Código do Registo Comercial;
i) As ações de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras.
 2 — Compete ainda às secções de comércio julgar as impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais.
3 — A competência a que se refere o n.º 1 abrange os respectivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões”.

E o artigo 130º, integrado na secção VII - atinente à Instância Local – enuncia ser da competência das secções de competência genérica daquelas, no que ora interessa, “Preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outra secção da instância central ou tribunal de competência territorial alargada” (nº1, al. a)).

Ora, perante este quadro legislativo e ponderando, como impõem as regras gerais de interpretação das leis (art. 9º do C. Civil), que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e consagrou a solução mais acertada, não pode deixar de concluir-se, face à precisão terminológica utilizada no art. 117º nº 1 al. a) - acções declarativas cíveis de processo comum - que o legislador quis afastar da competência da secção cível da instância central os processos especiais, os quais se têm de integrar, portanto, na competência residual das secções cíveis das instâncias locais.
E o facto de o legislador ter consagrado, no nº 2 do transcrito artigo 117º, que “nas comarcas onde não haja secção de comércio, o disposto no número anterior é extensivo às acções que caibam a essas secções”, só nos permite concluir que essa extensão de competência abarca apenas as acções declarativas de processo comum, elencadas no art. 128º, de valor superior a € 50 000,00, e não os processos especiais, como é o de insolvência, ainda que de valor superior àquele.
É que o legislador, na atribuição da competência das secções cíveis das Instâncias Centrais foi especioso na referência a “acções declarativas” e de “processo comum”, donde resultam excluídos, por contraposição, os “processos especiais”, sabida a diferença conceptual existente entre ambos, como evidenciam os artigos 546º, 548º e 549º nº1, todos do CPC.
Acresce que, no diploma regulamentar (RLOSJ), ao tratar da transição dos processos pendentes, o legislador consagrou, no já referido art. 104º nº 1, que “ Os processos que em cada uma das áreas se encontrem pendentes nos atuais tribunais de comarca, à data da instalação dos novos tribunais, transitam para as secções de competência especializada das instâncias centrais, de acordo com as novas regras de competência material e territorial, com excepção dos processos pendentes nos juízos de competência específica cível relativos às matérias da competência das secções de comércio, os quais transitam para as correspondentes secções da instância local”, o que, embora não seja um elemento interpretativo chave, indicia ter-se querido, logo à partida, que as matérias específicas das secções de comércio pendentes transitassem de imediato para as secções das instâncias locais, por serem elas as futuramente competentes.

Em face do exposto, claro fica que se acompanha o despacho recorrido no que toca à declarada incompetência da secção cível da Instância Central do Tribunal da Comarca dos Açores para o presente processo de insolvência.

A situação, configurando-se como infracção das regras de competência em razão da matéria, determina a excepção dilatória da incompetência absoluta da secção cível da Instância Central do Tribunal da Comarca dos Açores, nos termos do artigo 96º al. a), 577º al. a) do CPC, geradora, no caso, de indeferimento liminar (art. 590º nº 1), tal como foi decidido pela 1ª instância.
Improcede, desta forma, a argumentação da recorrente, sendo de manter o despacho recorrido.
Quanto ao pedido de remessa dos autos à Instância Local, formulado pela recorrente na parte final da sua alegação, porque extravasa o âmbito do recurso, a sua ponderação e eventual deferimento caberá ao tribunal recorrido, se assim for entendido.

4. Termos em que se acorda em negar provimento à apelação e confirmar a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário de que goza.

  Lisboa, 19 de Março de 2015.

  (Maria Manuela B. Santos G. Gomes)
  (Gilberto Jorge)
  (António Martins)
Decisão Texto Integral: