Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9215/2005-8
Relator: FERREIRA DE ALMEIDA
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
ORDEM PÚBLICA
DELEGAÇÃO
EXERCÍCIO DO PODER PATERNAL
RENÚNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/12/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: ACÇÃO DE REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: CONCEDIDA A REVISÃO
Sumário: A delegação de poder paternal a favor de terceiro não constitui renúncia ao exercício do poder paternal e, por conseguinte, não há ofensa de ordem pública internacional do Estado Português, impondo-se, portanto, a revisão e confirmação da sentença estrangeira que a reconheceu (artigos 1094º e 1096º, alínea f) do Código de Processo Civil)

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa :

1.    Maria […] veio requerer, contra P. […] e R.[…], a revisão e confirmação da sentença, proferida pelo Tribunal de Grande Instância de Kinshasa-Gombe - República Democrática do Congo, que reconheceu a delegação na requerente do poder paternal sobre o menor D. […], filho dos requeridos.
     
Citados, não deduziram aqueles oposição.
     
Em alegações, pronunciou-se o Mº Público no sentido de ser negada a pretendida revisão.
     
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2.    Está provado, através da certidão junta, a fls. 13 e segs. que, por sentença proferida, em 16/4/04, pelo Tribunal de Grande Instância de Kinshasa-Gombe - República Democrática do Congo, foi deferida a delegação, na ora requerente, do poder paternal sobre o menor D. […], filho dos requeridos.
   
Inexistem dúvidas sobre a autenticidade do documento donde consta a sentença a rever e a inteligência da decisão, considerando-se verificados os pressupostos da revisão, constantes das al. b), d) e e) do art. 1096º do C.P.Civil.
   
E, não se tratando de matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses, nem se demonstrando a ocorrência de fraude à lei, tendo em vista provocar a competência de tribunal estrangeiro, haver-se-á de, não obstante ser o menor detentor de nacionalidade portuguesa, ter igualmente por verificado o pressuposto constante da al. c) do aludido preceito.
   
A questão a decidir centra-se, assim, em saber se, conforme sustenta o MºPº, a sentença revidenda contém decisão manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português - não obedecendo, pois, ao pressuposto enunciado na al. f) do citado art. 1096º.  
   
A ordem pública internacional, noção própria do direito internacional privado, “exprime um conceito indeterminado, que não é possível definir pelo seu conteúdo, mas apenas pela sua função e pelas características gerais da sua actuação" (Baptista Machado, "Lições de Direito Internacional Privado", pág. 259).
   
Sendo que, conforme, relativamente à interpretação da norma em causa, se entendeu em acórdão do STJ, de 4/10/94 (www.dgsi.pt - JSTJ00025322) :  
   
"O art.1096º al. f) do Cód. Proc. Civil de 1967 visa salvaguardar a ordem pública internacional portuguesa, i.e., evitar a aplicação de preceitos jurídicos estrangeiros de que resultaria uma situação absolutamente intolerável para o sistema ético-jurídico dominante, ou lesão grave de interesses de primeira grandeza da comunidade social".
   
 E, como se decidiu em acórdão desta Relação, de 12/5/93 (JTRL00010144) :
   
"Na verificação do requisito do art.1096º al. f) do Cód.Proc.Civil é de atender à ordem pública internacional, e não à interna, leis rigorosamente imperativas que consagram interesses superiores locais e estão em divergência profunda com as leis estrangeiras a cuja aplicação servem de limite, por razões políticas, morais e económicas".
     
No caso, resultaria a invocada ofensa dos princípios da ordem pública internacional do Estado português do facto de, contrariando as normas, a tal respeito, vigentes no nosso ordenamento jurídico, haver a sentença a rever deferido a delegação do poder paternal sobre menor cujos pais se encontram vivos e não foram declarados incapazes.
   
Entende-se, ao invés, que tal delegação - e tanto mais quanto a mesma se traduza na consagração de uma situação de facto - não implicando necessariamente uma renúncia ao poder paternal, não contende com interesses de primeira grandeza da ordem jurídica portuguesa.
     
Não se mostrando, em consequência - pese embora a divergência, em abstracto, com o nosso direito vigente - o resultado concreto da aplicação da norma estrangeira, em que se terá fundado a sentença a rever, incompatível com os princípios que constituem os alicerces do direito nacional.
     
Em conformidade com a orientação acima expendida, dever-se-á, pois, concluir que, não contendo a sentença em causa decisão susceptível de ofender os princípios da ordem pública internacional do Estado português, nada obstará a que seja a mesma acolhida.

3.    Pelo que fica exposto, se acorda em conceder a revisão, confirmando-se a aludida sentença.
     
Custas pela requerente.
   
12-10-2006

(Ferreira de Almeida - relator)
(Salazar Casanova - 1º adjunto)
(Silva Santos - 2º adjunto)