Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4956/2006-6
Relator: AGUIAR PEREIRA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/19/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I. A competência do Tribunal é um pressuposto processual para o conhecimento de determinada causa que deve ser analisado à luz do quadro legal existente no momento da propositura da acção;
II. Os Tribunais Comuns e não os Tribunais da Jurisdição Administrativa são os competentes para o julgamento de uma acção intentada, com base na responsabilidade civil por factos ilícitos intentada contra um Hospital que, à data da instauração da acção, é uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos regulada pela lei das sociedades anónimas, ainda que os factos em que o pedido de condenação se baseia tenham tido lugar quando o referido Hospital era uma pessoa colectiva de direito público.
III. A discussão sobre a lei substantiva que venha, a final, a considerar-se aplicável ao caso não interfere, nessas circunstâncias, com a prévia decisão sobre a competência material do Tribunal.
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃO
I - RELATÓRIO

1. a) J M F F, F M P F e esposa C M M F e J M P F e esposa C V F G F, na qualidade de herdeiros de D M H P F demandaram no Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras o HOSPITAL DE SANTA CRUZ, S A sito na Rua Prof. Dr. Reinaldo dos Santos em Carnaxide – Oeiras e o Prof. Dr. R J S G, médico … na qualidade de Director do … do Hospital de Santa Cruz visando, na procedência do pedido, a sua condenação no pagamento da quantia global de € 98.416,78 (noventa e oito mil quatrocentos e dezasseis euros e setenta e oito cêntimos) acrescida dos juros legais desde a citação e até integral pagamento.
b) Citado veio o réu R J S G contestar o pedido invocando, além do mais, a excepção da incompetência absoluta do Tribunal, defendendo que a competência material para apreciação do litígio deverá ser deferida aos Tribunais da Jurisdição Administrativa.
Alega para tanto, e em síntese, que à data em que ocorreram os factos em que assenta o pedido (2001), o Hospital de Santa Cruz, S A era uma pessoa colectiva de direito público (Hospital de Santa Cruz) pelo que o regime substantivo aplicável é o da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas de direito público (DL 48.051 de 21 de Novembro de 1967).
E assim sendo, e por força do disposto no artigo 4º nº 1 alíneas g) e i) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) (Lei 13/2002 de 19 de Fevereiro), uma vez que está em causa nos autos a responsabilidade civil do Hospital de Santa Cruz S A por factos ocorridos em 2001, a competência material dos Tribunais Comuns para o julgamento está expressamente excluída da competência residual atribuída pela Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (artigo 18º da Lei 3/99 de 13 de Janeiro).
Conclui pedindo a absolvição dos réus da instância.
2. Na audiência preliminar realizada no dia 13 de Outubro de 2005 foi, por despacho que ficou anexo à respectiva acta, julgada improcedente a invocada excepção, sendo do seguinte teor o respectivo despacho:
“ (…).
A competência é um pressuposto processual e afere-se pela forma como o autor configura a acção, definida esta pelo pedido, pela causa de pedir e pela natureza das partes (cfr. Ac. do STJ de 9.5.95,CJ, III-68).
A competência fixa-se no momento em que a acção é proposta e as modificações de facto e de direito, que ocorram posteriormente àquele momento, são irrelevantes.
Tal decorre quer da L.O.F.T.J. (artigo 21º da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro), quer do disposto no artigo 5º do ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Feverei­ro, também na versão actualizada pela Lei nº 107-D/2003, de 31 de Dezembro), o qual no seu nº 1 que determina que a competência dos tribu­nais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente.
De harmonia com o artigo 211º nº 1 da Constituição da República, “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem a jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.
A última parte do preceito consagra o princípio da competência genérica ou residual dos tribunais comuns.
Este princípio também mereceu, de resto, consagração expres­sa na lei ordinária: “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (artigos 66º do Código de Processo Civil e 18º, nº 1, da LOFTJ).
Pelo que a atribuição de competência ao tribunal de jurisdição comum pressupõe a inexistência de norma específica que atribua essa com­petência a uma jurisdição especial para dirimir determinado litígio, tal como o autor o configura.
A competência dos tribunais administrativos encontra-se pre­vista no artigo 4º do agora vigente Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, com rectifica­ção efectuada pela Lei nº 107-D/2003 de 31-12. Esta norma determina:
“1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
(…);
g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabi­lidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legis­lativa;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares dos órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos;
i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público;
(…).
Se à face da anterior legislação a competência material dos tribunais administrativos, no que se refere às acções de responsabilidade civil, era definida através dum elemento subjectivo (responsabilidade do Estado e demais entes públicos ou titulares dos seus órgãos ou agentes) e outro objectivo (respeite a prejuízos decorrentes de actos de gestão públi­ca), face ao disposto no artigo 51º, nº 1, alínea h) do E.T.A.F. aprovado pelo revogado Decreto-Lei nº 129/84 de 27 de Abril ("Compete aos tribunais administrativos de círculo conhecer das acções sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo acções de regresso”), as alíneas g), h) e i) do nº 1 do artigo 4º do agora vigente Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais define a compe­tência dos tribunal administrativos, no que as estas acções se refere, sem fazer qualquer referencia a elementos objectivos, mas tão só subjectivos.
A lei hoje determina que os tribunais administrativos quanto à responsabilidade civil extracontratual apenas têm competência se o sujeito a quem é imputado o acto for:
a) uma pessoa colectiva de direito público, ou
b) titular de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos ou
c) um sujeito privado ao qual seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Há pois que apurar se o Réu é “um sujeito privado ao qual seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pes­soas colectivas de direito público”.
É certo que o Réu Hospital está integrado no Serviço Nacional de Saúde e que foi, nos termos do artigo 2º do DL 19/88 de 21/1 e até à entrada em vigor do DL 291/2002 de 10/12, uma pessoa colectiva de direi­to público, dotada de autonomia administrativa e financeira, a cujo pessoal era aplicável o regime do funcionalismo público (cf. artigo 18º nº 1 do Esta­tuto do Serviço Nacional de Saúde aprovado pelo DL 11/93, de 15/1).
Através do DL 291/2002 de 10/12, que acolheu o novo modelo de gestão hospitalar permitido pela alteração a Lei de Bases da Saúde (48/90, de 24/8) efectuada pela citada L. 27/2002, foi transformado em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos.
Nos termos do artigo 3º deste diploma, o Hospital de Santa Cruz, S A sucedeu em todos os direitos e obrigações ao Hospital de Santa Cruz, pessoa colectiva de direito público e determina o artigo 4º que se rege por aquele diploma, pelos seus Estatutos, pelo regime jurídico do sec­tor empresarial do Estado e pela lei reguladora das sociedades anónimas, bem como pelas normas especiais cuja aplicação decorra do seu objecto social e do seu regulamento.
O artigo 18º nº 2 do Decreto-Lei nº 558/99 de 17 de Dezem­bro que estabelece o regime jurídico do sector empresarial do Estado e das empresas públicas determina que:
“1 - Para efeitos de determinação da com­petência para julgamento dos litígios, incluindo recursos contenciosos, res­peitantes a actos praticados e a contratos celebrados no exercício dos poderes de autoridade a que se refere o artigo 14º, serão as empresas públicas equiparadas a entidades administrativas.
2 - Nos demais litígios seguem-se as regras gerais de determi­nação da competência material dos tribunais.”
Não se está perante qualquer um dos casos a que alude o refe­rido artigo 14º.
Conclui-se que o Réu não é “um sujeito privado ao qual seja apli­cável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público”.
Com efeito, se à data dos factos o Hospital era, manifestamen­te, uma pessoa colectiva de direito público, certo é que aquela entidade pública deixou de existir, tendo sido transformado em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, que sucedeu em todos os direitos e obrigações ao Hospital de Santa Cruz (pessoa colectiva de direito público).
A aplicação do artigo 4º do E.T.A.F. tem que ser efectuada face à actual natureza do sujeito a quem é imputada a responsabilidade.
Assim, dado que o Réu Hospital hoje é uma sociedade anónima, de capitais exclusivamente públicos e que a competência se fixa no momento da propositura da acção nenhuma relevância tem a natureza que o Réu teve no passado (mesmo na data em que praticou os factos) ou a lei que estabelecia as competências dos tribunais administrativos que então vigorava.
Termos em que julgo improcedente a invocada excepção de incompetência material deste tribunal”.
3. Inconformado, interpôs recurso de tal decisão, o ora agravante R J S G, vindo o recurso de agravo a ser recebido para subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo.
O agravante conclui pela forma seguinte as suas alegações de recurso:
“A. Errou o Tribunal a quo quando julgou improcedente a excepção da incompetência material do tribunal;
B. Errou porque confundiu competência dos tribunais - que se fixa no momento da propositura da acção - com regime substantivo (ou material) da responsabilidade civil subjacente à acção proposta - que, pelo contrário, se fixa no momento da prática dos factos que lhe servem de fundamento ;
C. E errou também porque não interpretou e, assim, não aplicou correctamente o novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, mais precisamente o disposto nos seus artigos 1º, nº1 e 4º, nº1, aliena i), uma vez que o novo ETAF veio alargar a competência dos tribunais administrativos, entre outros casos, precisamente ao caso em apreciação nos presentes autos;
D. O regime jurídico aplicável à responsabilidade civil das pessoas, sejam elas singulares ou colectivas, públicas ou privadas, fixa-se no momento da prática dos factos que lhe estão na origem e não no momento da propositura da respectiva acção;
E. O Tribunal a quo violou assim o princípio geral de direito - tempus regit actus -, de acordo com o qual as condições de validade de um acto devem ser apreciadas à luz do direito vigente à data em que o acta é praticado, princípio que se contra encontra consagrado no art. 12º do Código Civil;
F. Os factos em que os AA. assentam os seus pedidos indemnizatórios ocorreram no ano de 2001, data em que o R. Hospital de Santa Cruz era uma pessoa colectiva de direito público cujos actos de gestão pública estavam sujeitos ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas, o Decreto-Lei nº 48051, de 21 de Novembro de 1967;
G. Atendendo à natureza pública do R. Hospital no momento da prática dos factos alegados pelos AA. e à natureza dos actos em causa, o regime aplicável é o da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas de direito público;
H. Qualquer que seja o Tribunal que venha a julgar a acção de responsabilidade civil proposta pelos AA. terá o mesmo de aplicar o regime (público) de responsabilidade civil extracontratual do Estado dado que os factos constitutivos da responsabilidade que é imputada aos RR. encontram-se submetidos à aplicação deste um regime específico de direito público;
I. Relativamente aos factos ocorridos no ano de 2001, o Hospital de Santa Cruz é um sujeito privado ao qual é aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público;
J. O novo ETAF, no artigo 4º, nº1, alínea i), veio expressamente alargar a competência dos tribunais administrativos à apreciação de litígios, como o em apreciação nos presentes autos, que tenham por objecto responsabilidade civil extracontratual de sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público;
K. Os factos constitutivos da responsabilidade que é imputada aos RR. encontram-se submetidos à aplicação de um regime específico de direito público, o regime constante do DL 48.051;
L. A presente acção compete aos tribunais da jurisdição administrativa, nos termos previstos no artigos 1 º, nº1 e 4º, nº1, alínea i) do ETAF, daí decorrendo, consequentemente, a incompetência absoluta dos tribunais da jurisdição comum, nos termos do artigo 66º, a contrario sensu, e do artigo 101.º do Código de Processo Civil, disposições que foram violadas pelo Tribunal a quo”.
4. Os agravados, nas suas contra alegações, defendem a manutenção do decidido.
5. A Mmª Juiz a quo sustentou a sua decisão nos termos seguintes:
“Vem o presente recurso interposto da decisão que julgou improceden­te a excepção da incompetência do tribunal em razão da matéria.
As alegações do agravante, apesar de sustentadas em argumentos nítidos, contém salvo o devido respeito, e é muito, um erro de raciocínio.
Simplificando a tese da recorrente: porque são aplicáveis aos factos em debate nestes autos as normas do regime especifico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público, cabe a questão na competência dos tribunais administrativos por força da alínea i) do nº 1 (do artigo 4º) do ETAF, a qual determina que compete àqueles tribunais a apreciação de lití­gios que tenham como por objecto a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime especifico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Por um lado, não se aceita, sem mais, que sejam aplicáveis aqui tais normas, mas, como se verá, tal é irrelevante para apreciação da questão da competência do tribunal.
Pois caso seja aplicável aquele regime substantivo, não seria por isso que seriam competentes os tribunais administrativos.
È que na citada alínea i) a expressão "aos quais" não se reporta aos factos objecto da litígio, mas aos sujeitos (privados) do litígio.
Isto é:
Aquela norma não determina que compete àqueles tribunais a apreciação de litígios que tenham como por objecto a responsabilidade civil extra contratual dos sujeitos privados e a cujos factos seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Aquela norma determina, sim, que compete àqueles tribunais a apreciação de litígios que tenham como por objecto a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados que estejam subordinados ao regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Ora, se assim não fosse, não o teria o legislador dito, de forma bem mais simples sem separar a alínea g) da alínea i), que competia àqueles tribunais a apreciação de litígios que tenham como por objecto a responsabilidade civil extracontratual regulada pelo regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público?
Como se viu no despacho em recurso, o Réu Hospital, à data da propositura da acção, não está subordinado a esse regime especial.
Voltando ao início: a responsabilidade explanada naquele diploma é subjectiva, não objectiva.
Assim, porque o sujeito da responsabilidade na data da propositura da acção é entidade privada ao qual (já?) não é aplicável o regime da responsabilidade do Estado, é este o tribunal competente.
Assim e essencialmente pelos motivos constantes dessa decisão, sustento a mesma”.
6. Colhidos os vistos legais dos Exmº Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre agora apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
A) Os factos a ter em conta são, para além dos que constam do relatório da presente decisão, os seguintes:
1. ­No dia 15 de Setembro de 2004 foi intentada, no Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras pelos autores acima identificados, contra o Hospital de Santa Cruz, S A e contra R J S G uma acção declarativa visando a sua condenação a pagar a quantia global de € 98.416,78.
2. Os autores fundam o seu pedido de condenação dos réus na responsabilidade civil por factos ilícitos imputando-lhes a violação culposa do direito ao bem estar e integridade física de D F de que viria a resultar a sua morte.
No que respeita ao Hospital tal violação consiste no facto de não ter mantido as suas instalações em condições de higiene e desinfecção adequadas, tendo daí resultado ter a mencionada paciente contraído um quadro infeccioso que não foi debelado até à sua morte, assentando a responsabilidade do segundo réu no facto de não lhe ter prestado assistência adequada, culminando com a decisão de proceder a uma intervenção cirúrgica com substituição de três válvulas no coração.
3. Os factos em que os autores assentam o pedido ocorreram entre Setembro e 21 de Dezembro de 2001.

B) De acordo com as conclusões do recurso em apreciação a única questão a apreciar é a da competência (ou incompetência) material dos Tribunais Comuns (Tribunais Cíveis) para o julgamento de uma acção intentada, com base em responsabilidade civil por factos ilícitos (extracontratual) ocorridos em 2001 intentada contra o Hospital de Santa Cruz, S A.
1) Na base da atribuição da competência em razão da matéria a uma determinada ordem de tribunais está o princípio da especialização, que permite reservar-lhes, de acordo com a Constituição da República Portuguesa e as leis de organização judiciária que lhe dão cumprimento, o conhecimento de certas causas, atendendo à especificidade das matérias em apreciação.
A atribuição da competência a tribunal da jurisdição comum, como jurisdição residual que é (cf. artigo 18º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais), depende da inexistência de norma específica atributiva de competência a jurisdição especial.
Cumpre salientar que o que releva para a determinação da competência do Tribunal é a análise dos termos em que foi proposta a acção quer quanto aos seus elementos objectivos quer quanto aos seus elementos subjectivos, ponderando-se a forma como foi estruturado o pedido e os respectivos fundamentos, sendo irrelevantes as qualificações jurídicas feitas pelo autor ou mesmo o juízo de prognose que se possa fazer quanto à viabilidade da pretensão.
E compreende-se que assim seja uma vez que a competência é um pressuposto processual, isto é, constitui uma condição necessária para que o tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa através de uma decisão de procedência ou improcedência e representa a medida de jurisdição de cada tribunal que o legitima para conhecer de determinado litígio.
Como tal é aferida através dos termos em que a acção é proposta, da análise da relação jurídica subjacente ao litígio, tal como o autor a configura, não relevando para efeitos de atribuição da competência se o autor tem ou não o direito que se arroga nos exactos termos em que ele o concebe ou se o regime jurídico invocado é aquele que deve ser aplicado.
2) É fora de toda a dúvida que o momento a que deve atender-se para fixar a competência do Tribunal é o da propositura da acção (artigo 22 nº 1 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais e artigo 5º do ETAF).
Nem isso é, de resto, questionado pelo agravante que pugna pela atribuição de competência aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal essencialmente por entender, face à natureza jurídica do Hospital de Santa Cruz na data dos factos, ser aplicável aos factos eventualmente geradores de responsabilidade civil objecto dos autos o regime específico da responsabilidade civil do Estado e demais pessoas de direito público.
3) A presente acção foi instaurada em 15 de Setembro de 2004 e funda-se na responsabilidade civil por factos ilícitos imputados aos réus Hospital de Santa Cruz, S A e a R J S G e relacionados com as condições em que sobreveio uma infecção sofrida durante o internamento hospitalar nas instalações da primeira ré e com uma intervenção cirúrgica praticada na presença de tal quadro infeccioso e de que viria a resultar a morte a D F (violação culposa do direito à saúde e à vida).
4) a) Na data em que foi instaurada a presente acção a competência material dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal abrangia, como resulta do artigo 4º nº 1 i) da Lei 13 / 2002 de 19 de Fevereiro (ETAF), os casos de responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados a que seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
b) Nessa mesma data o Hospital de Santa Cruz S A já não era uma pessoa colectiva de direito público (cf. Decreto Lei 291/2002 de 10 de Dezembro), mas sim uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos que tinha sucedido ao Hospital de Santa Cruz na totalidade dos respectivos direitos e obrigações.
O Hospital de Santa Cruz, S A, como prescrito no artigo 4º do Decreto Lei 291/2002 de 10 de Dezembro, rege-se, para além das normas contidas em tal diploma – omisso quanto ao aspecto em apreciação – e do seu Estatuto, “pelo regime jurídico do sector empresarial do Estado e pela lei reguladora das sociedades anónimas”.
c) O diploma que contém o regime jurídico do sector empresarial do Estado (DL 558/99 de 17 de Dezembro) salienta a tónica da sujeição das entidades a que é aplicável ao direito privado, ainda que também regule situações em que tais entidades agem usando dos poderes e prerrogativas do Estado.
Para essas situações excepcionais o citado diploma previu a equiparação a entidades administrativas; para todas as outras situações – em que o caso dos autos manifestamente se inclui – a definição dos tribunais materialmente competentes foi remetida para a regulamentação geral sobre a matéria.
5) Daí que, retomando a linha de raciocínio que vinha sendo seguida, atenta a redacção do artigo 4º nº 1 alínea i) do ETAF se torne pertinente tomar posição sobre se ao Hospital de Santa Cruz, S A é aplicável, no caso presente tal como vem configurado pelos autores, o regime específico da responsabilidade civil do Estado.
a) Como se escreve no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Outubro de 2004, “para efeitos de determinação da competência material dos tribunais administrativos, é decisivo o critério constitucional plasmado no artigo 212º nº 3 da Lei Fundamental, nos termos do qual compete aos tribunais dessa jurisdição especial o "julgamento de acções que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas", devendo ser a essa luz interpretado o artigo 4º do ETAF.
Para efeitos da apreciação/avaliação de um certo acto, ou facto, causador de prejuízos a terceiros (particulares) numa ou noutra das categorias (gestão privada/ gestão pública) o essencial reside em saber se as concretas condutas alegadamente ilícitas e danosas se enquadram numa actividade regulada por normas comuns de direito privado (civil ou comercial) ou antes numa actividade especificamente disciplinada por normas de direito público administrativo.
b) No caso dos autos do que se trata, na perspectiva dos autores expressa na petição inicial, é de actos e omissões vistos da perspectiva dos lesados (terceiros) particulares, cuja avaliação, para efeitos do apuramento da respectiva responsabilidade civil do Hospital de Santa Cruz S A e do réu R G é regulada por normas de direito privado que não por normas, princípios e critérios de direito público.
A uma tal apreciação/avaliação não subjaz qualquer relação jurídico-administrativa, mas uma mera relação jurídico - privada, como tal regulada pelo direito privado.
Trata-se, no fundo, da apreciação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual estabelecidos nos artigos 483º e seguintes do C. Civil.
6) Ante o que vem de ser dito pode já adiantar-se que não assiste razão ao agravante quando pretende que a decisão impugnada errou na interpretação e aplicação dos artigos 1º e 4º nº 1 i) do ETAF.
Ao considerar materialmente competentes para apreciar o litígio nos termos em que ele foi configurado pelos autores os tribunais comuns a douta decisão recorrida mais não fez do que aplicar a regra constante do artigo 18º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais que atribui competência residual aos Tribunais da jurisdição comum na ausência de qualquer norma que especificamente a atribua a uma jurisdição especial.
A questão da aplicação ao caso dos autos da lei substantiva vigente à data dos factos não tem, como já se disse, que ser equacionada na determinação da competência do Tribunal sendo antes matéria a ponderar aquando da apreciação e decisão sobre o mérito da causa.
Termos em que se julgam improcedentes as conclusões do recurso.
III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam em julgar improcedente o agravo e em confirmar a douta decisão recorrida.
Custas pelo agravante.
Lisboa, 19 de Outubro de 2006
Manuel José Aguiar Pereira
Gilberto Martinho dos Santos Jorge
Maria da Graça de Vasconcelos Casaes Moreira Araújo