Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5263/15.4T8SNT-A.L1-6
Relator: TERESA PARDAL
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
DEVEDOR SOLIDÁRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/22/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - No processo especial de revitalização, o crédito reclamado à devedora, em que esta tem a qualidade de responsável solidária, deve constar na lista de créditos, mesmo se a quantia correspondente já foi reclamada a um devedor solidário diferente em outro processo, constituindo um crédito sob condição resolutiva, a que se referem os artigos 50º e 94º do CIRE, que se extingue caso venha a ser pago por qualquer dos outros devedores solidários
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial: Acordam do Tribunal da Relação de Lisboa:



RELATÓRIO.


No processo especial de revitalização em que é devedora P…, Lda, foi apresentada a lista provisória de créditos, aí constando um crédito reclamado pelo Banco … no valor de 1 114 964,88 euros, com base num contrato que celebrou com a devedora, mediante o qual lhe concedeu um empréstimo na modalidade de abertura de crédito, em relação ao qual esta se confessou devedora por qualquer obrigação daí decorrente, constituindo-se, juntamente com outras 11 sociedades que integram o mesmo grupo e respectivos avalistas, como solidariamente responsável pelo integral cumprimento do mesmo, sendo que o reclamante creditou na conta de A …, SA, do grupo da devedora e também credora reclamante nos presentes autos, o montante de 1 000 000,00 euros, que o recebeu, utilizando-o na totalidade e, por não terem sido reembolsados os montantes convencionados, o reclamante denunciou o contrato e interpelou a devedora para o pagamento da referida quantia e demais encargos, o que esta não fez.

A este crédito foi deduzida impugnação pela credora reclamante A…, à qual aderiu a devedora P…, com o fundamento de que entre o Banco… e algumas empresas do grupo da devedora – entre as quais se incluem esta e a ora impugnante A… – foi celebrado o contrato de financiamento invocado no crédito impugnado, mas o valor financiado foi na totalidade creditado na conta da impugnante, que o utilizou e, por ter incumprido, Banco … resolveu o contrato e preencheu a livrança de garantia subscrita pela impugnante e intentou contra esta e respectivos avalistas uma execução judicial, tendo também reclamado o mesmo crédito no PER em que é devedora a ora impugnante, estando assim o Banco … inibido, nos termos do artigo 519º do CC, de pedir aos outros devedores o valor já peticionado noutra sede, não podendo reclamar o crédito perante a ora devedora P…. 

O Banco … opôs-se à impugnação do seu crédito, alegando que o facto de apenas uma das empresas do grupo a quem foi concedido crédito o ter usado não afasta a responsabilidade solidária de todas no caso de incumprimento, não sendo aplicável a segunda parte do nº1 do artigo 519º do CC, quer porque esta tem natureza supletiva e foi afastada pelas partes, quer porque a própria norma salvaguarda os casos em que se verifica razão atendível, como a insolvência ou o risco de insolvência do devedor.

Sobre esta impugnação recaiu sentença que a julgou improcedente e determinou que os créditos da lista provisória passassem a definitivos.  
                                                          
Inconformadas, a devedora e a credora A…, SA interpuseram recurso e alegaram, formulando as seguintes conclusões:

a) As Apelantes vêm impugnar pela via do recurso que apresentam a decisão que julga improcedente a impugnação por si apresentada relativamente à lista de créditos provisória apresentada pela senhora administradora provisória no âmbito do presente Processo Especial de Revitalização.
b) As apelantes impugnaram o crédito do Apelado Banco…, que não detém sobre a aqui devedora qualquer crédito.
c) O apelado opôs-se à impugnação e o Meritíssimo Juiz de primeira instância deu-lhe razão, entendendo, que "mostrando-se documentada e justificada por livrança dada em garantia pelo credor A…, relativa a contrato de empréstimo sob a forma de abertura de crédito, a qual está avalizada pela Devedora, porque tal responsabilidade pode ser exigida de qualquer dos garantes até o seu efectivo e integral pagamento (a tanto não obstando a instauração de acção executiva contra um dos responsáveis cambiários), atento o regime da LULL, nomeadamente o disposto nos artigos 32°, 43°, 47° e 77° da LULL, e porque tal livrança a qual se mostra preenchida pelo valor reclamado e nos termos reconhecidos pela Senhora Administradora Judicial Provisória, sem que os documentos juntos abalem tal conclusão, julga-se improcedente a impugnação, mantendo-se o mesmo nos exactos termos em que foi reconhecido", facto com que as recorrentes não podem conformar-se.
d) Com esta decisão, o crédito do credor Banco… manteve-se na lista de créditos definitiva, facto com que as recorrentes não podem conformar-se, e que é de radical importância pois - atendendo ao seu valor - poderá influenciar decisivamente a aprovação - ou reprovação - do plano de recuperação que se pretende que seja aprovado nos presentes autos e, com isso, ditar a manutenção da devedora em actividade ou atirá-la para a insolvência.
e) O apelado, caso lhe viesse a ser reconhecido o crédito a possibilidade de voto que lhe corresponde - o que apenas se admite como mera hipótese de trabalho - passaria a "mandar" no presente PER, essa posição acarretaria a mais que certa inviabilização da sociedade devedora.
f) O Apelado Banco… não detém sobre a devedora neste PER, ora Apelante, qualquer crédito razão pela qual não deve ser admitida a reclamação de créditos apresentada nessa parte, devendo o crédito em questão ser considerado indevidamente incluído na lista provisória de créditos, não devendo constar da lista definitiva de créditos e, mantendo-se o crédito em questão nessa lista, o que só por mera hipótese se admite, não valer o que quer que seja em termos de ponderação de votos na votação a fazer no presente processo.
g) Entre o Apelado Banco… e algumas empresas do grupo D… foi, efectivamente, celebrado o contrato de financiamento junto com a reclamação, contrato esse que foi aditado posteriormente.
h) O montante do financiamento em questão foi, todo ele, creditado na conta da Apelante A…, como confessou o Apelado na sua reclamação de créditos, em confissão que se confirmou e aceitou para não mais ser retirada.
i) Foi, igualmente, a Apelante A…, que utilizou na totalidade o montante em questão, de € 1.000.000, 00 (um milhão de euros), como bem refere o credor reclamante Banco… na sua reclamação de créditos.
j) Na sequência do incumprimento por parte da Apelante A…, o Apelado Banco… procedeu, efectivamente, à resolução do contrato e, o mais importante, preencheu a livrança de garantia que tinha devidamente subscrita pela Apelante A… e intentou contra esta execução judicial que corre os seus termos sob o número 698/14.2TBVNO, no Tribunal da Comarca de Santarém, Instância Central, J1.
k) O processo em questão foi igualmente intentado contra os avalistas que tinham garantido com o seu aval o cumprimento do dever de pagamento pela Apelante A… do montante porque tinha sido preenchida a livrança.
l) A execução não foi intentada contra as restantes sociedades do grupo em que se inserem quer a Apelante A… quer a Apelante P….
m) Com o preenchimento da livrança subscrita pela Apelante A… e com a interposição da execução em questão, optou o ora Apelado por pedir à Apelante A… a totalidade do valor em dívida relativo aos contratos referidos supra.
n) Pelo facto de não interpor a execução contra as restantes sociedades do grupo o ali exequente Banco… escolheu deixar de fora da relação de cobrança de tal dívida todas as sociedades do grupo que não a Apelante A…, opção que inibe o credor de pedir aos outros devedores o que ao primeiro tenha exigido - vide o artigo 519° do Código Civil.
o) A opção do credor, aqui Apelado, por peticionar à Apelante A…, consubstancia uma situação em que todos os outros signatários dos contratos de empréstimo em causa deixam de poder ser demandados para cobrança do mesmo crédito, crédito esse que deixa de existir relativamente a eles, tendo em conta que, como se diz, e bem, na reclamação de créditos ora impugnada, o produto do empréstimo foi, todo ele, creditado na conta da A… e por esta utilizado, facto muitíssimo importante.
p) Assim que houve notícia da existência da execução acima mencionada, a Apelante P…, enviou ao banco credor, aqui reclamante, a carta registada com aviso de recepção, pedindo a devolução da livrança.
q) Até hoje não foi ainda, devolvida, a livrança em branco assinada pela aqui Apelante P…, mas, claramente, o banco que a detém está em mora relativamente ao cumprimento desse dever, situação cujo tratamento não cabe nos presentes autos.
r) O contrato junto como documento 1 à impugnação de créditos tinha na base a clara concepção de um financiamento efectuado a todas e cada uma das sociedades que o assinaram como devedoras, sendo utilizável por todas.
s) Isso mesmo inculca, por exemplo, a previsão de que cada um a tinha a sua conta bancária para receber o produto do empréstimo - vide cláusula 2§ do contrato em questão; ou a utilização do plural, em todo o contrato, quando se quer referir à utilização do montante mutuado.
t) O facto de todo o montante ter sido apenas creditado na conta da Apelante A… e ter sido por esta integralmente utilizado, como bem se refere na reclamação que se impugna, é sumamente importante e, claramente, define e reduz a amplitude do contrato assinado, redução essa que o credor devidamente reconheceu com o preenchimento da livrança subscrita pela Apelante A… e com a interposição da competente acção executiva apenas contra a beneficiária do montante mutuado, exactamente a Apelante A….
u) O Apelado Banco… deduziu reclamação pelo mesmo crédito no âmbito do processo de revitalização interposto pela Apelante A…, processo esse que corre termos sob o número 5249/15.9T8SNT, nesse Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste, Sintra, Instância Central - Juiz 1, lista essa que foi publicada no dia 8 de Abril p.p., crédito esse que ali foi recebido e consta da lista como crédito comum.
v) Não é, assim, possível ou legal que o Apelado apresente reclamação do mesmo crédito em todas as sociedades que tenham assinado o contrato.
w) Apesar de o Processo Especial de Revitalização não ser um procedimento judicial contra o devedor com vista a exigir o pagamento do crédito, mas tão só um mecanismo processual destinado à revitalização do devedor, isso não deve tolher a aplicabilidade, e mesmo a aplicação, do disposto no n° 1 do artigo 519° do Código Civil a esta mesa situação.
x) Na verdade, o alcance da inibição para o credor prevista na disposição legal em questão deve ser entendida numa acepção tão ampla quanto possível, desde que, obviamente, a acepção porque se opte mantenha correspondência com o teor literal da disposição.
y) A inibição de ..." proceder judicialmente contra os outros pelo que ao primeiro tenha exigido..." deverá entender-se numa acepção que inclua - de forma estrita - não só a acção ou execução judicial destinada à efectiva cobrança do crédito mas, igualmente, todo e qualquer procedimento judicial que se destine, ainda que mediatamente, a efectivar o recebimento do mesmo ou, até, a, por algum modo, acordar no recebimento do mesmo incluído em plano de recuperação do devedor em questão.
z) Deste modo entendem as recorrentes que a inibição prevista no n° 1 do artigo 519° do Código Civil abrange, claramente, a possibilidade de o credor apresentar reclamações de créditos para cobrança do crédito cujo pagamento tenha exigido judicialmente a outro devedor anteriormente, como é o caso dos autos.

aa) O ora Apelado, usou a "habilidade" de reclamar o mesmo crédito em todas as sociedades que constam do contrato junto como doc. 1 à impugnação - tentando assim que lhe sejam reconhecidos créditos não do valor que efectivamente lhe é devido mas desse valor multiplicado por tantas quantas as sociedades que tenham assinado o contrato em questão - o que não pode é ser admitida tal "habilidade".
bb) E sendo as Apelantes parte do mesmo grupo de empresas - tendo a intenção de apresentar um plano de recuperação seja global e as abranja a todas - o facto é que o eventual reconhecimento de todos os créditos que o Apelado virá a reclamar em todas e cada uma das sociedades que outorgaram o contrato de financiamento - equivaleria a dar-lhe uma ponderação na votação do plano de recuperação correspondente ao valor real do crédito multiplicado pelo número das sociedades que assinaram o contrato, o que não é curial, justo ou, mesmo, legal.
cc) Deve ser revogada a douta decisão do Tribunal a quo, não devendo, assim, ser admitida a reclamação de créditos do Apelado Banco… e, em consequência, ser considerado que o crédito reclamado pelo credor Banco… não existe quanto à devedora P… por a ela não poder ser reclamado ou, caso assim não se entenda, o que apenas por mera hipótese se admite, que a ponderação do mesmo na votação de apreciação do plano de recuperação seja equivalente a zero.
                                                          
O recorrido apresentou contra-alegações pedindo a improcedência do recurso.
                                                           
A questão a decidir é a de saber se deverá ou não manter-se o crédito do recorrido na lista de créditos.
                                                         
FACTOS.

Os factos a atender são os que constam no relatório do presente acórdão e ainda:

Na lista provisória de créditos consta o crédito do banco recorrido, com o valor de 1 114 964,88 euros, sendo 1 000 000,00 euros de capital e o restante de juros, coimas e custas, a natureza do crédito condicional e o fundamento “financiamento com preenchimento de livrança titulada por outra empresa” (fls 20 e 21).

No contrato celebrado entre o banco recorrido e a ora devedora e outras empresas, entre as quais a recorrente A…, estas empresas obrigaram-se “de forma irrevogável, em regime de solidariedade plena entre si, a assumir todas e cada uma das responsabilidades decorrentes do presente contrato, designadamente do reembolso do capital, pagamento dos juros, comissões, encargos e despesas” (fls 25 e seguintes). 
                                                            
ENQUADRAMENTO JURÍDICO.

O processo especial de revitalização, previsto nos artigos 17º-A a 17º-I do CIRE (aditados pela Lei 16/2012 de 20/4), tem como objectivo proporcionar ao devedor com dificuldades económicas uma oportunidade de, juntamente com os seus credores, chegar a um acordo com um plano de reabilitação, que lhe permita a continuação da sua actividade e o cumprimento das suas obrigações.

No âmbito deste processo e nos termos do artigo 17º-D nº2, qualquer credor pode reclamar créditos, devendo as reclamações ser remetidas ao administrador provisório, que elaborará uma lista provisória de créditos.

Publicada a lista provisória de créditos, esta pode ser impugnada, devendo o juiz decidir as impugnações (nº3 do artigo 17º-D), tornando-se a lista definitiva se não houver impugnações (nº4 do mesmo artigo).

No caso em apreço, a apelante, também credora da devedora, vem impugnar o crédito reclamado pelo Banco… e incluído na lista provisória de créditos, alegando que o montante reclamado já foi peticionado noutro processo à própria impugnante, bem como já foi reclamado no PER em que a impugnante é devedora, pelo que não pode ser reclamado nos presentes autos.

Como se retira dos factos, o crédito impugnado resulta de um contrato de financiamento celebrado com o reclamante Banco… que não foi cumprido e por via do qual este depositou a quantia reclamada na conta da ora impugnante A….

Nesse contrato a ora devedora, bem como a impugnante A… e outras empresas do mesmo grupo, assumiram solidariamente todas as responsabilidades resultantes do mesmo, pelo que são ambas responsáveis pela quantia reclamada, no regime de solidariedade previsto nos artigos 512º e seguintes do CC, ou seja, qualquer delas responde pela prestação integral e esta a todos libera.

Deste modo, este crédito, de que a devedora é responsável solidária, extinguir-se-á se qualquer dos outros devedores solidários (incluindo a ora impugnante) proceder ao pagamento da quantia em dívida.

Trata-se, assim, de um crédito sob condição resolutiva, a que se referem os artigos 50º e 94º do CIRE e como tal foi incluído na lista de créditos, devendo, nos termos deste último artigo, ser tratado como um crédito incondicionado “até ao momento em que a condição se preencha, sem prejuízo do dever de restituição dos pagamentos recebidos, verificada que seja a condição”.

Para se opor à reclamação do crédito pelo Banco… nos presentes autos, a apelante invoca o artigo 519º nº1 do CC, o qual estabelece que, nas obrigações solidárias “o credor tem o direito de exigir de qualquer dos devedores toda a prestação, ou parte dela, proporcional ou não à quota do interpelado; mas se exigir judicialmente a um deles a totalidade ou parte da prestação, fica inibido de proceder judicialmente contra os outros pelo que ao primeiro tenha exigido salvo se houver razão atendível, como a insolvência do demandado, ou dificuldade, por outra causa, em obter dele a prestação”.

Ora, afirmando a própria impugnante que o Banco… já reclamou esta quantia num PER em que a impugnante é devedora, é manifesto que se verifica a previsão da última parte desta disposição legal, ou seja uma razão atendível para o credor reclamar o seu crédito nos dois processos de revitalização em que são devedoras as duas responsáveis solidárias, face ao risco de insolvência que correm, ou pelo menos, dificuldade em delas obter a prestação (cfr sobre esta matéria P. Lima e A. Varela em CC anotado, página 535, no âmbito do antigo regime de falência previsto no CPC, expondo que “a solução explica-se pelo facto de nas falências e insolvências os credores não obterem, em regra, a satisfação integral dos seus créditos e de se pretender garantir quanto possível o fim determinado pela solidariedade passiva”.

Deverá, portanto, o crédito impugnado manter-se na lista de créditos, improcedendo as alegações de recurso. 
                                                        
DECISÃO.

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação e confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante.                                                                 


Lisboa, 2015-10-22

                                                             
Maria Teresa Pardal                                                                   
Carlos Marinho                                                                                    Anabela Calafate                                                                       
Decisão Texto Integral: