Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
48/08.7TNLSB.L1-8
Relator: CARLA MENDES
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
TRIBUNAL MARÍTIMO
PACTO ATRIBUTIVO DE JURISDIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: 1 – As convenções em que as partes acordam qual a jurisdição competente para dirimir um conflito determinado, ou os litígios eventualmente decorrentes de uma certa relação jurídica, contanto que a relação controvertida tenha conexão com mais de uma ordem jurídica denominam-se pactos de jurisdição.
2 – O pacto privativo de jurisdição afasta a competência dos tribunais portugueses, se atribuir competência exclusiva à jurisdição convencionada.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam na 8ª secção do Tribunal da Relação de

A de B e C Lda. demandaram D Spa, representada em Portugal por D Lda., pedindo que esta fosse condenada a pagar à 1ª autora a quantia de € 97.149,59 (perda de mercadorias) e ainda a quantia de € 20.000,00 resultado da perda de imagem em AG, bem como a pagar à 2ª autora a quantia de € 15.800,00 referente a despacho (€ 160,00), frete (€ 14.250,00), despesas conexas (€ 165,00), transporte interno em Portugal até ao porto (€775,00) e taxas adicionais no destino (€ 450,00), quantias estas acrescidas dos respectivos juros de mora à taxa legal desde a citação.
Alegaram que a 1ª autora é uma empresa de importação e comercialização de móveis e decorações interiores e a 2ª autora é uma empresa transitária que se dedica ao agenciamento de transportes marítimos de mercadorias, contratando com as empresas transportadoras, tendo agido como agente dos expedidores E, Lda. e F, Lda.
A ré é uma empresa de navegação proprietária do navio de Nome “J”.
Na qualidade de agente transitário, a 2ª autora celebrou com a ré dois contratos de transporte marítimo de mercadorias, de Lisboa até LU – 3 contentores.
A 1ª autora efectuou o pagamento das mercadorias à E e F.
Os contentores foram carregados no porto de , navio “J”.
Em AN, o navio adornou em 8/3/2007, por culpa da ré.
Os contentores da 1ª autora que seguiam no convés caíram à água, tendo a mercadoria sido dada como perdida.
Como consequência, as autoras sofreram prejuízos, num total de € 112.949,59.
A 1ª autora e uma empresa conceituada em LU, vendia tudo quanto importava, e a partir desta data os compradores ficam na dúvida se a autora cumpre os prazos que acordou.
As autoras reclamaram junto da ré e esta informou-as que poderiam aderir a um fundo constituído, para o efeito, em AN.
As autoras manifestaram o seu direito de não adesão ao fundo.
O contrato de transporte foi efectuado em , o carregamento foi feito em , pelo que o tribunal competente é o Tribunal Marítimo de , não tendo as autoras renunciado a este.
A legislação aplicável é o DL 352/86 de 21/10.
Na contestação a ré excepcionou a incompetência relativa do tribunal, por violação do pacto atributivo de jurisdição, concluindo pela sua absolvição da instância ou, caso assim se não entenda, o pedido deve ser declarado improcedente, por existir um Fundo de Limitação de Responsabilidade por Créditos Marítimos, legalmente constituído junto do Tribunal de Comércio de AN, vinculativo nos termos do art. 33 do Regulamento (CE) 44/2001, no âmbito do qual devem as autoras reclamar o seu crédito e, para o caso de assim se não entender, deve a ré ser absolvida do pedido.
Alegou, quanto à excepção dilatória de incompetência relativa, que nos conhecimentos de embarque que titulam a relação material controvertida foi estabelecido um pacto de jurisdição – tribunais de N de acordo com a Lei de Itália – pacto válido, ex vi dos arts. 99 e 100 CPC e 23 do Regulamento (CE) 44/2001, de 22/12/2000.
A ré tem a sua sede em Itália pelo que, o Tribunal Italiano de N é o tribunal competente para conhecer do litígio e não já, o Tribunal Marítimo de Lisboa.
A ré constituiu um Fundo de Limitação de Responsabilidade por Créditos Marítimos, nos termos da Convenção de Londres de 1976, relativa à limitação de responsabilidade por créditos marítimos, designada LLMC 1976, junto do Tribunal de Comércio de AN, na Bélgica, tendo sido nomeado administrados do Fundo o Sr. K.
Os vários interessados na carga, inclusive as autoras, foram informados da necessidade de apresentação da sua reclamação junto de tal Fundo de forma a poderem ser ressarcidos dos seus prejuízos sofridos.
O direito das autoras de reclamarem os alegados prejuízos deverá ser exercido perante o Fundo de Limitação de Responsabilidade constituído na Bélgica.
Quanto ao mais, impugnou in toto o alegado pelas autoras.

Não foi apresentada réplica, as autoras não responderam à excepção dilatória arguida.

Foi prolatada sentença que julgando a excepção dilatória de incompetência relativa procedente, por infracção das regras de competência internacional resultantes do pacto atributivo de jurisdição, absolveu a ré da instância.

Inconformadas apelaram as autoras, formulando as conclusões que se transcrevem:
1ª. A sentença tem duas obscuridades ou erros que têm que ser corrigidos, nomeadamente o valor peticionado e a identificação das autoras.
2ª. Essa obscuridade há-de ser requerida no momento do recurso e obriga à formulação de uma nova sentença corrigindo a anterior nos termos do art. 669/1 e 3 CPC.
3ª. O diploma legal aplicável aos factos descritos nos presentes autos é o DL 352/86 e a Convenção de Bruxelas de 1924.
4ª. O primeiro fixa que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para o julgamento das acções emergentes
do contrato de transporte de mercadorias por mar, desde que o porto de carga se situe em território português e que o contrato de transporte tenha sido celebrado em Portugal.
5ª. Assim sendo, o tribunal internacional e relativamente competente é o Tribunal Marítimo de Lisboa.
6ª. No verso do documento de transporte marítimo denominado Bill of Lading, na sua cláusula 2ª, consta que o tribunal competente é o de N em Itália e a lei aplicável é a deste país.
7ª. Mas nem esse documento foi entregue ao expedidor/autores antes da mercadoria se encontrar dentro do navio, nem era certa que fosse esse o texto do verso do BL que iria ser entregue, dado que estes mudam frequentemente.
8ª. Jamais os autores concordaram ou contrataram com a ré nos termos do contrato de adesãoque consta no verso do BL, nem segundo as suas cláusulas, nunca tendo aceite o seu conteúdo.
9ª. Outrossim, celebraram um contrato de transporte marítimo que é oneroso, bilateral e sinalagmático, e quanto à sua forma meramente consensual e sem cláusulas abusivas.
10ª. Entre os autores e a ré jamais foi acordado um pacto de aforamento.
11ª. Não se aplica o Regulamento (CE) nº 44/2001, nem os arts. 99, 108, 11173 288/1 e), 493/1 e 2 e 494 a) CPC.
12ª. Ademais fica demonstrado que jamais ficou fixado um tal pacto porquanto a própria ré constituiu um fundo, junto do tribunal de Comércio de AN, na Bélgica, ao qualquer aplicou a Convenção de
Londres, o que contradiz o pacto supra referido, estando confessado pela ré a existência de tal fundo e a competência de um tribunal que não o de N, Itália, para sediar o mesmo.
13ª. Sob pena de violação do art. 19 g) DL 446/95 de 25/10, o qual prescreve: São proibidas, consoante o quadro negocial padronizado, designadamente as cláusulas contratuais gerais que: g) Estabeleçam um foro competente que envolva graves inconvenientes para uma das partes, sem que os interesses da outra o justifiquem.
14ª. Pelo que, sendo o contrato celebrado em Portugal, onde a mercadoria é carregada, onde se situa a 2ª autora e a representante da ré onde foi celebrado o contrato de transporte marítimo, só o tribunal Marítimo de Lisboa, em Portugal, pode ser o competente para conhecer da acção.
15ª. Assim, deve o processo seguir os seus trâmites junto do Tribunal Marítimo de Lisboa.

A ré/apelada contra-alegou pugnando pelo decidido.

Os erros apontados quanto à identificação da 1ª autora e aos montantes peticionados foram rectificados – fls. 141.

Factos que a 1ª instância considerou admitidos por acordo, ex vi art. 490/2 CPC.

1 – A mercadoria em causa foi carregada no porto de Lisboa no navio “J”, tendo sido emitido o conhecimento de embarque a fls. 23 e 24, 57 e 58.
2 – A cláusula 2ª, traduzida para português significa:
“Lei e Jurisdição”
Toda e qualquer reclamação e/ou disputa decorrente do presente contrato de transporte evidenciado pelo presente Conhecimento de Carga ou com o mesmo relacionada, deverá ser instaurada perante e decidida pelos tribunais de N de acordo com a Lei de Itália, excepto se nele determinado de modo diferente. O transportador, no entanto, reserva-se o direito de instaurar acção contra o Mercador e/ou Portador perante qualquer outro tribunal competente”.
3 – A 2ª autora é uma empresa transitária que se dedica ao agenciamento de transportes contratando com empresas transportadoras.
4 – Há já vários anos que a 2ª autora efectua carregamentos em navios operados pela ré pelo que, conhece perfeitamente as condições do contrato de transporte celebrado com a ré e que constam do conhecimento de embarque que a mesma emite, na sua qualidade de transportadora marítima.
5 – No caso dos autos, o transporte foi celebrado entre a 2ª autora e a ré e consta do conhecimento de embarque emitido pelo que, as autoras têm pleno conhecimento do cnteúdo das condições dos contratos de transporte celebrados.
6 – Constitui prática corrente, largamente aceite, no comércio internacional, no âmbito do transporte marítimo de mercadorias, a emissão de conhecimento de embarque que incorporam as condições do contrato de transporte e, onde são são incluídas regras referentes à competência dos tribunais para dirimir os litígios.
7 – Sendo igualmente prática corrente a inclusão da cláusula estipulando a competência do tribunal do local onde o transportador tem a sua sede ou escritório principal.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Atentas as conclusões das apelantes que delimitam, como é regra, o objecto do recurso – arts. 684/3 e 690 CPC – a questão a decidir consiste em saber se os tribunais portugueses, in casu, o Tribunal Marítimo de Lisboa, é ou não internacionalmente competente para conhecer da acção declarativa de condenação em causa.

Vejamos, então.

O art. 65 CPC, sob a epígrafe “Factores de atribuição da competência internacional”, fixa quais os critérios legais (elementos de conexão), da competência internacional dos tribunais portugueses, elencando nas suas alíneas, quais as circunstâncias em que o tribunal português, em confronto com os tribunais dos outros Estados, é competente para dirimir o litígio.
O art. 65-A CPC define quais os casos em que a competência dos tribunais portugueses é exclusiva.
O art. 99 CPC, inserida no capítulo IV do Livro II- Da Extensão e Modificações de Competência – permite os pactos atributivos de jurisdição - as partes podem convencionar qual a jurisdição competente para dirimir um litígio determinado, ou os litígios eventualmente decorrentes de uma certa relação jurídica, contanto que a relação controvertida tenha conexão com mais de uma ordem jurídica.
Os pactos de jurisdição só são válidos quando justificados por um interesse sério de, pelo menos uma das partes e, desde que não envolva inconveniente grave para a outra - art. 99/3 c).
A exigência deste requisito tem a sua razão de ser – pretende-se evitar que a atribuição de competência a um tribunal com o qual, nem as partes, nem a causa, possuam conexão relevante – cfr. Teixeira de Sousa, in “Estudos sobre o Novo Processo Civil” – 127.
Quando exista a competência dos tribunais portugueses, o pacto privativo só a afasta se atribuir à jurisdição convencionada competência exclusiva – cfr. obra cit. – 125.
Portugal e Itália aderiram à Convenção Relativa à Competência Judiciária e à execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial, denominada Convenção de Bruxelas, celebrada em Lugano, em 16/9/88.
Em 22/12/2000, o Conselho da União Europeia elaborou e publicou o Regulamento (CE) nº 44/2001, de 22/12/2000, também relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial.
Os regulamentos da CE têm aplicação imediata nas jurisdições nacionais – prevalecem sobre as normas de natureza idêntica das jurisdições dos Estados Membros, in casu, art. 65 CPC – arts. 3/2 do Regulamento, e 8/3 CRP, 1, 68 e 76 do Tratado da Comunidade Europeia.
O regulamento 44/2001 entrou em vigor em 1/3/2002, substituindo entre os Estados-Membros da União Europeia, exceptuando a Dinamarca, a Convenção de Bruxelas de 1968.
Teve como objectivo a unificação, no âmbito da sua aplicação, além do mais, das normas de conflito de jurisdição em matéria civil e comercial, independentemente da natureza da jurisdição – art. 1/1.
Estipula o art. 23 do Regulamento que: 1 – Se as partes, das quais pelo menos uma se encontre domiciliada no território de um Estado-Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência. Essa competência será exclusiva a menos que as partes convencionem em contrário. Este pacto atributivo de jurisdição deve ser celebrado: a) por escrito ou verbalmente com confirmação escrita; b) em conformidade com os usos que as partes estabeleceram entre si; c) no comércio internacional, em conformidade com os usos que as partes conheçam ou devam conhecer e que, em tal comércio, sejam amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial considerado.
5 – Os pactos atributivos de jurisdição bem como as estipulações similares de actos constitutivos de “trust” não produzirão efeitos se forem contrários ao disposto nos arts. 13, 17 e 21, ou se os tribunais cuja competência pretendam afastar tiverem competência exclusiva por força do art. 22.
No caso dos autos, a 2ª autora e a ré têm domicílio em território de Estados-Membros – Portugal e Itália.
A relação jurídica tem cariz internacional – transporte de mercadorias de Lisboa para LU.
O pacto de jurisdição foi reduzido a escrito - consta da cláusula 2ª do conhecimento de embarque, sob a epígrafe “Lei e Jurisdição”, que: Toda e qualquer reclamação e/ou disputa decorrente do presente contrato de transporte evidenciado pelo presente Conhecimento de Carga ou com o mesmo relacionada, deverá ser instaurada perçante e decidida pelos tribunais de N de acordo com a Lei de Itália, excepto se nele determinado de modo diferente.
O transportador, no entanto, reserva-se o direito de instaurar acção contra o Mercador e/ou Portador perante qualquer outro tribunal competente”.
É conforme os usos que as partes estabeleceram entre si, bem como os usos do comércio internacional, amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo no ramo comercial – a 2ª autora é uma empresa transitária que se dedica ao agenciamento de transportes sendo que, a 2ª autora há já vários anos que efectua carregamentos em navios operados pela ré, conhecendo perfeitamente as condições do contrato de transporte celebrado com a ré e que constam do conhecimento de embarque que a mesma emite, na sua quaalidade de transportadora marítima, constituindo prática corrente, no âmbito do transporte marítimo de mercadorias, comércio internacional ea emissão de conhecimento de embarque que incorporam as condições do contrato, bem como os trinunais competentes para dirimir os conflitos, nomeadamente, a de que o tribunal competente é o do local onde o transportador tem a sua sede/escritório principal.
A questão não se subsume à previsão da norma do art. 22 do Regulamento pelo que afastada está a sua aplicação.
Daqui resulta que as partes, por vontade livremente expressa, atento o princípio da boa-fé, não só escolheram o foro – em benefício de ambas que não exclusivamente de uma só – os tribunais de N, para julgar os litígios que surgissem, como também escolheram a lei aplicável, ou seja, a lei italiana.
Pelo que, tendo em atenção o supra referido, os factos e a legislação mencionada, as partes quiserem submeter, através do pacto de aforamento, o julgamento dos litígios, decorrentes do contrato, que surgissem aos tribunais de N e à lei italiana – cfr. Ac. STJ de 23/9/2003, relator Alves Velho.
É, pois, exclusiva a competência internacional dos tribunais de N, para conhecer da acção, ex vi do art. 23/1 a) do Regulamento, pelo que afastada está, atento o pacto atributivo de jurisdição, a competência internacional dos tribunais portugueses, in casu, o Tribunal Marítimo de Lisboa.
A questão suscitada pelas apelantes relativa ao local da constituição do Fundo de Limitação da Responsabilidade por Créditos Marítimos (Tribunal de AN), não pode ser conhecida no presente recurso dada a incompetência internacional dos tribunais portugueses para dirimir os litígios decorrentes do contrato de transporte marítimo celebrado, conforme se viu, sendo os tribunais de N, os competentes para apreciar e decidir se alguma contradição existe entre o pacto de jurisdição e o local de constituição do Fundo.

Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, confirma-se a sentença recorrida.
Custas pelas apelantes.
Lisboa, 17 de Setembro de 2009
Carla Mendes
Octávia Viegas
Rui da Ponte Gomes