Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8705/2007-1
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: EMPREITADA
PERITAGEM
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/27/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PROCEDENTE
Sumário: I. Quer na elaboração dos despacho saneador “hoc sensu”, quer na selecção da matéria de facto, quer na admissão dos meios probatórios, o julgador deve desempenhar uma função saneadora e de síntese (sempre salvaguardados – mas com racionalidade e contenção - os direitos dos litigantes na exposição e defesa das suas posições), no sentido de tornar o processo escorreito e expurgado de coisas, factos ou situações meramente excrescentes, circunstanciais ou acessórias, tudo em benefício dos princípios da economia e da agilização processuais, com vista á consecução de uma decisão célere.
II. Assim, numa acção em que o facto nuclear a apurar, consiste na celebração, ou não, de um contrato de empreitada entre duas sociedades atinente à realização de obras em certa loja comercial e solicitada que foi prova pericial, não é admissível a formulação dos seguintes quesitos aos peritos: 1- A escrita da sociedade…, Lda. está organizada e merece fé e crédito? 2- Desde a sua constituição, quais foram as obras executadas pela sociedade e quais os respectivos valores?
III. Sendo a peritagem um meio de prova, não alterando ou condicionando a essência dos efeitos jurídicos dos factos oportunamente alegados e seleccionados, ela apenas pode incidir sobre estes factos e não constituindo as afirmações ou conclusões dos peritos factos supervenientes, constitutivos, modificativos ou extintivos do direito invocado. Consequentemente não pode a prova pericial ser usada para se introduzir factualismo novo, quer através das perguntas colocadas aos peritos, quer mediante a formulação de articulado superveniente com base em tais conclusões.
IV.
A prova de um contrato de empreitada, alegadamente celebrado entre duas sociedades comerciais, apenas pode ser efectivada, atento o disposto nos artºs 655º nº2 do CPC e 63º nº1 do CSC que estatui que «As deliberações dos sócios podem ser provadas pelas actas das assembleias…», mediante a apresentação da respectiva acta.
(CM)
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

1.
SOCIEDADE, LDA., intentou acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra B, LDA.
Pediu:
Que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de 18.574.583$00, acrescida de juros de mora vencidos até 05/03/2001, no montante de 751.123$00, e vincendos, à taxa de 12%, até integral pagamento.
Para tanto alegou:
Que em Setembro de 2000, a solicitação da ré, executou várias obras no estabelecimento comercial desta sito no Centro Comercial 7ª Avenida, em Lisboa, no valor total de 34.342.686$00, tendo fornecido todos os materiais, utensílios e mão-de-obra necessários à execução de tal obra, que foi aceite sem reservas pela ré, a qual posteriormente solicitou a execução de diversos trabalhos não previstos no orçamento acordado, que foram executados pela autora e aceites pela ré sem reservas, no valor de 607.640$00 e 982.800$00, sendo que a ré não pagou o preço da referida obra e dos mencionados trabalhos suplementares, tendo efectuado apenas entregas que atingem o montante de 17.358.543$00, pelo que deve a importância de 18.574.583$00, acrescida dos juros que se vencerem desde a data da emissão das respectivas facturas e que, em 05/03/2001, computa em 751.123$00.
Contestou a ré:
Alegou que a autora tem como seus únicos sócios Dr. F… e a sua mulher, tendo sido constituída em 5/6/2000, com sede no escritório de advocacia do primeiro, sem empregados nem alvarás, sendo que à data dos factos o mesmo advogado era também sócio gerente da ré – situação que se manteve até data recente -, tendo sido entendido entre os sócios desta que fossem executadas obras de instalação de uma loja no Centro Comercial 7ª Avenida, tendo aquele ficado encarregado de proceder às consultas e contactos necessários, mas em vez disso, sem prévia apresentação de orçamentos e minutas de contrato, promoveu ele próprio a execução das obras, através da sua empresa, a sociedade autora.
Mais alegou a ré que nunca contratou com a autora a realização dos trabalhos em causa e que a ré apenas se vincula com a assinatura de dois gerentes, e que as obras não foram efectuadas pela autora e que foram executadas com defeitos, desconhecendo qual o valor dos trabalhos, mas só sendo responsável por ele na medida do seu enriquecimento, que não excede o que já pagou.
Peticionou, assim, a absolvição do pedido.
A autora replicou:
Alegou que a adjudicação da obra à autora foi decidida por todos os sócios da ré, devido à urgência desta na execução e conclusão da mesma, o que impossibilitava a realização de consultas e contactos, concluindo assim pela improcedência das excepções invocadas e mais pedindo a condenação da ré como litigante de má fé no pagamento de multa e indemnização à autora.

Realizada a audiência preliminar, elaborou-se Despacho Saneador, o qual concluiu pela existência de todos os pressupostos processuais e pela validade e consistência da instância, tendo-se seleccionado a matéria de facto assente e a que passou a constituir a base instrutória, que não sofreram reclamação.
Tendo a ré requerido a notificação da autora para juntar aos autos documentos que se encontram na sua posse, bem como a realização de perícia colegial à escrita da autora, e tendo tal requerimento sido indeferido (fls. 182), a ré interpôs recurso de agravo desse despacho, que foi admitido como tal e para subir diferidamente.
Designado dia para a realização da audiência de discussão e julgamento, a ré deduziu articulado superveniente, alegando ter tido conhecimento da identidade dos verdadeiros autores das obras, que identificou, e, ainda, existirem disparidades de valor entre os preços recebidos pelas referidas empresas e aqueles que a autora pretende cobrar da ré.
Admitido aquele articulado e após resposta da autora, foram aditados à base instrutória os factos articulados com interesse para a decisão da causa.
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença a julgar a acção procedente, condenando a ré a pagar à autora a quantia de € 92.649,63 (18.574.583$00), acrescida de juros de mora vencidos até 05/03/2001, no montante de € 3.746,59 (751.123$00), e vincendos, à taxa de 12%, até integral pagamento, tendo ainda a ré sido condenada como litigante de má fé, na multa de 15 UC e numa indemnização a fixar oportunamente.

2.
Inconformada, a ré interpôs recurso de apelação daquela sentença.
Notificadas as partes para se pronunciarem sobre a indemnização respeitante à má fé, foi proferido despacho fixando a mesma no montante de € 2.500,00, tendo a ré interposto recurso de agravo desse despacho, que foi admitido como tal e para subir juntamente com o recurso de apelação.
Produzidas as alegações, subiram os autos ao Tribunal da Relação de Lisboa que concedeu provimento ao recurso de agravo interposto do despacho de fls. 182, que indeferiu o requerimento da ré de fls. 146 e 146 vº, revogando aquele despacho e ordenando a sua substituição por outro que, deferindo o requerido, ordenasse a notificação da autora para apresentar os documentos aí referidos e para dizer o que se lhe oferecesse sobre o objecto da perícia proposto, após o que, no despacho que se ordenasse a realização da perícia, se determinaria o respectivo objecto, ficando assim sem efeito o julgamento e tudo o que se processou posteriormente (cfr. fls. 575 a 585).

3.
Em cumprimento do assim decidido, foi a autora notificada para juntar os documentos em causa e para se pronunciar sobre o objecto da perícia, tendo aquele procedido à junção dos documentos (fls. 606 a 623).
No despacho que ordenou a realização da perícia à escrita da autora, mas apenas com o objecto proposto pela ré sob os nºs 3 e 4, sob ponderação que o nº 1 continha matéria conclusiva e o nº 2 nada adiantava à boa decisão da causa.
A ré interpôs recurso de agravo desse despacho, que foi admitido como tal e para subir diferidamente.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:
(…)
4.
Designado dia para a realização da audiência de discussão e julgamento, a ré deduziu novamente articulado superveniente, alegando que teve conhecimento, “quando foi notificada do relatório pericial, de vários factos que são pertinentes e importam uma justa decisão da causa” (fls. 773).
Rejeitado liminarmente tal articulado, a ré interpôs recurso de agravo desse despacho, que foi admitido como tal e para subir diferidamente.

Terminando as alegações com as seguintes conclusões:
1ª O articulado superveniente só pode ser indeferido liminarmente com os fundamentos do nº4 do artº 506º do CPC.
2ª Não tendo sido invocada a intempestividade, só pode o indeferimento liminar do articulado superveniente ser decretado com o fundamento em ser manifesto que os factos não interessam `boa decisão da causa.
3ª Nenhum outro fundamento pode fundar esse indeferimento.
4ª O indeferimento liminar do articulado superveniente com fundamento em os factos não terem interesse à boa decisão da cauda tem de ser fundamentado.
5ª Essa fundamentação exige que cada um dos factos seja apreciado perante as várias decisões plausíveis da causa.
6ª E que seja demonstrada a sua irrelevância ou impertinência, em moldes de poder ser comprometida a razão porque são tidos como tais, explicitada de modo a poder ser sindicada e controlada pelo tribunal de recurso.
7ª A simples afirmação de que o articulado superveniente não aporta ao processo nenhum facto novo que aporte à boa decisão da causa, ou que tem esta ou aquela intenção, não constitui sequer um princípio de fundamentação.
8ª Acresce que, os factos alegados no articulado superveniente são cruciais para a demonstração da tese da ré, tal como espelhada nos seus articulados.
9ª O douto despacho padece de nulidade, por falta de fundamentação, nos termos do artº 668º nº1 al. B) do CPC.
10ª O douto despacho recorrido viola ainda o disposto no artº 506º nº4 do CPC, por ter indeferido liminarmente o articulado superveniente, não obstante a relevância e pertinência dos factos alegados.
11ª Pelo que deve aquele ser anulado e determinada a admissão deste.

5.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferido o despacho que fixou a matéria de facto apurada na audiência, o qual não mereceu reclamação (fls. 882 a 886).

No seguimento do processo foi proferida sentença que julgou a acção procedente por provada e:
a) Condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 92.649,63 (noventa e dois mil seiscentos e quarenta e nove euros e sessenta e três cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos até 05/03/2001, no montante € 3.746,59 (três mil setecentos e quarenta e seis euros e cinquenta e nove cêntimos) e demais juros vencidos e vincendos, às sucessivas taxas supletivas de juros moratórios relativamente a créditos de que são titulares empresas comerciais.
b) condenou a ré, como litigante de má fé, na multa de vinte unidades de conta e numa indemnização à autora, no montante de € 4.000,00 (quatro mil euros).
6.
Mais uma vez inconformada apelou a ré.
Concluindo as suas alegações nos seguintes termos:
1. Deve ser anulado o julgamento como consequência da procedência, que se espera, do agravo pendente contra o indeferimento das diligências de prova e da rejeição do articulado superveniente requeridas pela Ré. Proceder-se-ia à realização daquelas diligências de prova, seguindo-se a repetição do julgamento, onde a Ré não prescinde de requerer a presença dos peritos para esclarecimentos.
2. Devem ser anuladas as respostas dadas aos pontos da base instrutória com os nºs. 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 14º, 15º, 16º, 17º, 34º, 35º, 37º, 38º, 39º, 40º, 41º, 42º, 43º, 44º, 52º, 53º, 54º, 55º, 56º, 57º, 58º, 59º, 60º, 61º, 62º, 63º, 64º, 65º, sendo declarados não provados ou diferentemente provados, com o teor supra referido.
3. Devem ser anuladas as respostas dadas aos pontos da base instrutória com os nºs. 22º, 23º, 25º, 26º, 27º, 28º, 29º e 51º sendo declarados provados com o teor supra referido.
4. As sociedades comerciais, enquanto pessoas colectivas que são, têm uma vontade funcional que se não confunde com a vontade individual dos respectivos sócios e que se forma em deliberações sociais, que não dispensam a forma e formalidades prescritas na lei. Não vale deliberação social – e é inexistente enquanto tal – a vontade ou decisão informal de todos ou alguns dos sócios, formada sem reunião, nem escrito, nem outra formalidade. Ao tomar como vontade funcional da sociedade Ré esta decisão informal de todos os sócios, a douta sentença recorrida violou os preceitos dos artigos 53º, 54º e 247º do Código das Sociedades Comerciais.
5. A vontade funcional das sociedades comerciais, que deve ser formada em deliberações sociais com a solenidade, forma e formalidade previstas nos artigos 53º, 54º e 247º do Código das Sociedades Comerciais (para as sociedades por quotas), só pode ser provada pela respectiva acta. Ao dar como provada a vontade funcional da sociedade Ré na douta sentença recorrido (fls. 427), com base em prova testemunhal, foi violado o preceito imperativo do artigo 63º do Código das Sociedades Comerciais.
6. Inexistindo a formação da vontade funcional da sociedade comercial, enquanto pessoa colectiva, são inexistentes, por falta total de vontade negocial os actos que suponha aquela vontade funcional que se pretenda terem sido por ela praticados. Esse acto, ainda que algum comportamento aparentemente negocial tenha havido de parte dos seus gerentes, não são imputáveis à autoria da sociedade.
7. Não pode, pois o tribunal ter como praticados pela sociedade Ré os actos que na douta sentença recorrida lhe são injustificadamente imputados: a celebração de um contrato de empreitada com a Autora, e os actos que lhe são acessórios, a aceitação de orçamentos, encomenda de trabalhos a mais e aceitação da obra.
8. O sócio Dr., atenta a sua qualidade de sócio da Autora e marido da sua única gerente, estava impedido, por conflito de interesses, de votar em deliberações da sociedade Ré em que fosse decidido contratar a empreitada com a Autora. Ao admitir essa participação, a douta sentença recorrida violou o preceito imperativo do artigo 251º do Código das Sociedades Comerciais.
9. Ficou provado por depoimento de praticamente todas as testemunhas que apenas o Dr. interveio na suposta contratação entre a Autora e a Ré. A vinculação exterior da sociedade Ré, como sociedade comercial por quotas, resulta de intervenção de dois gerentes com poderes para o acto (representação orgânica). Porém, não pode ser oposta a falta de poderes dos gerentes aos terceiros de boa fé, entendendo-se como tais, aqueles que desconheçam e não devam conhecer as limitações ou falta de poderes dos gerentes. No caso sub judice a sociedade Autora não desconhece, não deve desconhecer e não pode desconhecer a falta de poderes do Dr. para só por si representar a sociedade Ré, pela simples razão de esse mesmo Dr. ser também sócio da Autora e marido da sua única e exclusiva gerente. Ao admitir a vinculação da sociedade Ré, nestas circunstâncias, a douta sentença recorrida violou os preceitos do artigo 260º do Código das Sociedades Comerciais e do artigo 269º do Código Civil, aplicável por analogia, por via do artigo 2º do Código das Sociedades Comerciais.
10. Não pode ser tida como tomada tacitamente uma deliberação social sem que tal deliberação, mesmo tácita, resulte, como exige o nº 2 do artigo 217º do Código Civil, do texto de uma acta, isto é, que os factos concludentes dos quais a probabilidade resulta, respeitem a forma legal, que é a de uma acta.
11. Também não pode ser havido como tacitamente celebrado o contrato de empreitada entre a Autora e a Ré, quando toda a probabilidade é a contrária, isto é, que a sociedade Ré optasse pela solução menos oneroso (e não pela mais oneroso), incumbindo o seu sócios gerente Sousa Dias de contratar directamente os empreiteiros em vez de celebrar com a sua própria sociedade familiar que subcontrataria com os mesmos empreiteiros, mas com um acréscimo de custos de aproximadamente 25%. Só pode considerar-se com toda a probabilidade que a Re celebrou o contrato que lhe foi menos oneroso.
12. Caso se entenda que foi celebrado o aludido contrato de empreitada, e não tendo havido deliberação prévia da gerência a autorizar a sua celebração, este contrato é nulo por força do artigo 397º, nº 2 do Código das Sociedades Comerciais aplicável por via do artigo 2º do mesmo Código, pois que se trata obviamente de um contrato celebrado entre a Ré e o seu gerente Dr., por interposta pessoa da Autora, Sociedade, Lda. Assim sendo, deve o Tribunal conhecer e declarar oficiosamente a nulidade deste contrato (artigo 286º do Código Civil).
13. Havendo cumprimento por terceiro (a Autora), não directamente interessado, não há lugar a sub-rogação legal (artigo 592º do Código Civil), mas sim a enriquecimento sem causa (artigo 473º do Código Civil).
14. Tendo a Autora pago, como terceira, aos executores das obras, a quantia de €117.687,06 e tendo a Ré já pago à Autora a quantia de Esc.17.358.543$00, falta apenas pagar Euros equivalentes a Esc. 6.235.358$00, isto é, €31.101,83.
15. A Ré aceita pagar esta quantia, a título de enriquecimento sem causa (como havia já dito na sua petição inicial), mas não deve ser condenada, em juros de mora, porque só agora tem conhecimento de que a Autora pagou aos executores das obras e de quanto pagou, razão pela qual, não há mora.
16. Finalmente, não tendo a Ré faltado à verdade, não há fundamento para a condenar como litigante de má fé, pelo que deve ser revogada a respectiva condenação.
17. Deve, pois, ser revogada a douta sentença recorrida ou, se assim se não entender, ser anulado o julgamento, nos termos expressos nestas conclusões.

7.
Sendo que, por via de regra – de que o presente caso não é excepção – o teor das conclusões define o objecto do recurso e considerando a ordem de conhecimento imposta pelo artº 710º do CPC, as questões essenciais decidendas são as seguintes:
A.
Do primeiro agravo.

(I)legalidade do despacho que não admitiu dois quesitos colocados pela ré à consideração dos senhores peritos.
B
Do segundo agravo.

(I)legalidade do despacho que indeferiu liminarmente o segundo articulado superveniente da ré.
C
Da apelação.

Alteração, ou não, das respostas dadas aos artigos 1º, 2º, 4º a 12º, 14º a 17º, 22º, 23º, 25º a 29º, 34º, 35º, 37º a 44º, 51º, 52º a 65º.

Invalidade –por inexistente – da vontade funcional da ré, na adjudicação da empreitada á autora, porque formada sem reunião, nem escrito nem outra formalidade.

Violação na sentença do artº 251º do CSC, por existir conflito de interesses do sócio Dr. Sousa Dias.

Violação na sentença do disposto no artº 260º do CSC e do disposto no artº 269º do CC

Se considerado provado, nulidade do contrato de empreitada por violação do disposto no artº 397º do CSC, aplicável, ex vi do artº 2º.

Responsabilidade da ré, perante a autora, a título de enriquecimento sem causa, no pagamento da quantia de 31.101,83 euros.

Absolvição da ré da condenação como litigante de má fé.

8.
Apreciando.
8.1.
Primeira questão.
As perguntas são as seguintes:
«Digam os senhores peritos:
1- A escrita da sociedade imobiliária S, Lda. está organizada e merece fé e crédito?
2- Desde a sua constituição, quais foram as obras executadas pela sociedade e quais os respectivos valores.
Quanto á primeira pergunta é certo que ela está relacionada com o disposto no artº 44º do C. Comercial que define a força probatória da escrita comercial.
Dando-se, neste preceito, relevância ao facto de a escrita estar ou não, «regularmente arrumada».
Sendo que, naquele caso ela faz prova a favor e, neste caso, faz prova contra, o respectivo comerciante.
Porém esta prova não é plena mas apenas presuntiva, podendo ser elidida por qualquer outro meio probatório, designadamente documental ou testemunhal, apenas respeita à materialidade das declarações dela constantes não garantindo a exactidão das mesmas e pode ser livremente apreciada pelo tribunal - cfr. Prof. Fernando Olavo, Direito Comercial, I, 2ª ed., pág. 366 e Acs. do STJ in dgsi.pt. de 23.01.1996, p.087747, 19.03.1998, , p.96B646 e 22.0.2003, p.03B1001.
Assim do facto da escrita estar ou não devidamente arrumada, não se viola o artigo 44º do Código Comercial, pois os factos podem ser provados por tais meios, não estando em questão a força probatória da escrita comercial. – cfr.Ac. do STJ, , 12.01.1988, p.075108.
Por outro lado, dependendo a força probatória da escrita da sua regular ou irregular arrumação, impende sobre a parte que dela pretende beneficiar, ou seja, beneficiar da prova do facto presumido, alegar o facto que lhe serve de base.
Vale isto por dizer, que, in casu, deveria a recorrente ter invocado e declarado pretender fazer uso da "escrituração", alegando e demonstrando o facto concreto e directo que serve de base à presunção, qual seja a sua irregular arrumação, pois que, à partida ela se deve presumira regularmente arrumada – cfr. Ac. do STJ de 03.06.2003, in dgsi.pt, p03A1318.
Ora não tendo ela alegado nesse sentido, tal facto nem sequer foi levado à base instrutória, tendo a perícia sido pedida para contraprova dos artigos 1º a 5º, 11º, 16º, 18º a 23º os quais mais directa e essencialmente se prendem com o invocado contrato de empreitada e respectivas condições da sua execução, vg. fornecimento de materiais, pagamentos e emissões de facturas.
Pelo que, no rigor dos princípios e considerando que a prova pericial é apenas isso mesmo, isto é, servindo para convencer sobre factos alegados e não podendo as partes na mesma inserirem factualismo no qual o julgador se possa basear para proferir a decisão, não se mostra tal quesito admissível.
E mesmo que o fosse não seria ele necessário à boa decisão da causa, pois que, apesar de, no limite e pelas razões aduzidas pela recorrente, ser possível a sua formulação, certo é que ele se revela algo conclusivo e, em todo o caso – e aqui tal como o quesito 2º - excrescente(s) por reporte ao teor dos quesitos 3º e 4º, estes sim, integradores de factos, concretos, precisos e concisos e especificamente atinentes aos artigos da BI a que se dirige esta prova.
Não sendo de sufragar a posição da recorrente quando refere que o facto vertido no quesito 2º é instrumental, podendo os peritos aos mesmos dar resposta, para, a partir dele, o tribunal retirar conclusões para os factos constantes na BI.
Em primeiro lugar porque os factos instrumentais são apenas os que resultem da instrução ou discussão da causa e serão seleccionados e considerados pelo juiz, com respeito do contraditório, e não pelas partes, - artº 264º nº3 do CPC.
Em segundo lugar porque para o facto nuclear que a ré pretende provar - não ter sido a autora a fazer as obras - já ela invocou e à base instrutória foi levada uma plêiade de factos – artº 22º e seguintes – suficiente para, a provarem-se, tal se poder concluir.
Em terceiro lugar porque, o por ela referido “facto instrumental” seria, só por si, mesmo que a resposta dos Srs. Peritos fosse no sentido de terem sido efectuadas pela autora poucas ou nenhumas obras para terceiros, insuficiente para se poder concluir que ela não realizou a que ora invoca.
Nem tal prova teria grande relevância, pois que tal, não significaria, numa perspectiva de inelutabilidade, ou, até, de logicidade, que a autora não tivesse firmado a empreitada com a ré.
Não obstante parece que a ré, mais do que instrumental, considera o facto decorrente da resposta dada a tal quesito – no sentido supra referido – essencial, para a defesa da sua posição. Mas, a assim ser, deveria ela alegá-lo expressamente, em sede e momento oportunos, para poder ser incluído na BI.
Há que não esquecer a função saneadora e de síntese (sempre salvaguardados – mas com racionalidade e contenção - os direitos dos litigantes na exposição e defesa das suas posições) que impende sobre o julgador quer na selecção da matéria de facto, quer na admissão dos meios probatórios, no sentido de tornar o processo escorreito e expurgado de coisas, factos ou situações meramente circunstanciais e acessórias, tudo em benefício dos princípios da economia e da celeridade processuais, com vista á consecução de uma decisão célere - por vezes e só por este facto mais justa - teoricamente enfatizados pelas partes, mas na pratica muitas vezes por elas negativamente afectados.
Improcede, consequentemente, o presente recurso.

8.2.
Segunda questão.
A recorrente ataca o despacho que lhe indeferiu a apresentação do seu segundo articulado superveniente com um duplo fundamento: é nulo por falta de fundamentação e é ilegal porque os factos invocados tem interesse para a decisão da causa.
Porém tais fundamentos têm de ser reduzidos ao segundo, o da ilegalidade.
Pela simples razão de que o despacho, ao referir que o articulado é rejeitado no entendimento de que os factos nele aportados não interessam para a decisão da causa, se encontra fundamentado.
A necessidade da fundamentação prende-se com a garantia do direito ao recurso e tem a ver com a legitimação da decisão judicial.
Na verdade a fundamentação permite fazer, intraprocessualmente, o reexame do processo lógico ou racional que lhe subjaz.
Ela é garantia de respeito pelos princípios da legalidade, da independência do juiz e da imparcialidade das suas decisões.
Porque a decisão não é, nem pode ser, um acto arbitrário, mas a concretização da vontade abstracta da lei ao caso particular submetido à apreciação jurisdicional, as partes, «maxime» a vencida, necessitam de saber as razões das decisões que recaíram sobre as suas pretensões, designadamente para aquilatarem da viabilidade da sua impugnação.
E mesmo que da decisão não seja admissível recurso o tribunal tem de justificá-la.
É que, uma decisão vale, sob o ponto de vista doutrinal, o que valerem os seus fundamentos, pois que estes destinam-se a convencer que a decisão é conforme à lei e à justiça, o que, para além das próprias partes a sociedade, em geral, tem o direito de saber – cfr. Alberto dos Reis, Comentário, 2º, 172 e Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, 1982, 3º vol., p.96.

Mas se assim é, dos textos legais e dos ensinamentos doutrinais se retira que apenas a total e absoluta falta de fundamentação pode acarretar a nulidade.
Na verdade a lei não comina com tão severo efeito uma motivação escassa, ou, mesmo deficiente. E onde a lei não distingue não cumpre ao intérprete distinguir.
Nem tal exigência seria de fazer considerando a «ratio» ou finalidade do dever de fundamentação supra aludidos.
O que a lei pretende é evitar é a existência de uma decisão arbitrária e insindicável. Tal só acontece com a total falta de fundamentação. Se esta existe, ainda que incompleta, errada ou insuficiente tal arbítrio ou impossibilidade de impugnação já não se verificam.
O que nestes casos apenas sucede é que a própria decisão pode convencer menos, dada a debilidade ou incompletude dos seus fundamentos. Mas pode ser sempre atacável e modificável.
Assim sendo, a grande maioria da nossa jurisprudência tem-se pronunciado no sentido de que só a carência absoluta de fundamentação e não já uma motivação escassa, deficiente, medíocre, incompleta ou errada, acarreta o vício da nulidade da decisão – cfr. Entre outros, Ac. do STA de 18.11.93, BMJ, 431º, 531 e Acs. do STJ de 26.04.95, CJ(stj), 2º, 57, de 17.04.2004, de 16.12.2004 e de 03.11.2005, dgsi.pt.

Poder-se-á fazer aqui, «mutatis mutandis», uma equiparação com o que sucede com a ineptidão petição inicial, por falta de «causa petendi», a qual origina a nulidade de todo o processado - artº 193, nº1 e nº2, al. a) do CPC.
É que como ensina o Mestre Alberto dos Reis, Comentário, 2º, 372: «Importa não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente …quando a petição, sendo clara e suficiente quanto ao pedido e à causa de pedir, omite facto ou circunstâncias necessários para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta; o que então sucede é que a acção naufraga».

Assim sendo a questão resume-se em apurar da bondade ou legalidade da decisão proferida com base em tal fundamento.
Os articulados supervenientes apenas são admissíveis se se reportarem a factos supervenientes, constitutivos, modificativos ou extintivos do direito invocado.
Os factos são ocorrências objectivas, concretas e materiais da vida, oriundos, ou não, da actuação humana.
Num processo têm de reportar-se á actuação das partes e/ou ao objecto da acção tal como por elas é configurado inicialmente, em função dos seus elementos caracterizadores fulcrais, quais sejam: o pedido e a causa de pedir.
Sendo certo que estes apenas podem ser alterados, na falta de acordo, até à réplica – artº 273º do CPC - não podem os factos invocados no articulado superveniente implicar uma alteração de tais elementos nucleares da acção – cfr. Ac. do STJ de 11.03.1999, dgsi.pt, p.99A027.
In casu a autora funda o seu direito na celebração e execução de um contrato de empreitada, relativamente à ré.
Esta defende-se invocando que tal contrato não existiu e, em todo o caso, que o preço não corresponde aos trabalhos realizados.
É este o núcleo essencial da acção.
Todos os factos que não respeitem, directa e imediatamente, a tal contrato, serão meramente circunstanciais, instrumentais ou atinentes à prova, ou não prova, da sua celebração, execução e do seu preço.
É o que se verifica nos presentes autos.
A ré não traz ao processo factos novos reportados às partes e directamente conexionados com o objecto do processo.
Funda-se, ao invés, em afirmações e conclusões.
As quais nem sequer são das partes mas antes dos senhores peritos.
Sendo que tais afirmações e conclusões são proferidas no âmbito da efectivação de um meio probatório – peritagem - e reportam-se a factos alegados pelas partes os quais, por via, designadamente, de tal prova, se pretendem firmar ou infirmar.
Não podendo a ré aproveitar-se de afirmações e conclusões proferidas pelos peritos, relativamente a quesitos que ela formulou, pois que as mesmas não são factos, ou, no mínimo, não são factos supervenientes constitutivos, modificativos ou extintivos do direito, tal como este é configurado pelos litigantes já que se conexionam apenas com a prova, ou não prova, dos factos essenciais e nucleares alegados pelas partes e levados à BI, os quais, com tais asserções periciais, não podem ser alterados ou condicionados na essência dos seus efeitos jurídicos, mas, apenas, ser, ou não, dados como assentes.
O que a ré pretende fazer é prova sobre prova, inadmissível, no rigor dos princípios e, na prática, acarretadora de uma complexização e atomização da decisão, por reporte a situações ou (até) a factos, de relevância incipiente ou minudente, tudo a implicar o retardamento intolerável do processo e da prolacção da sentença final.
Consequentemente, bem decidiu a primeira instância.

8.3.
Terceira questão.

8.3.1.
A recorrente coloca em crise a decisão sobre a matéria de facto.
Há desde já que atentar que o faz de um modo de tal forma abrangente que, bem vistas as coisa, se pode concluir que praticamente se insurge contra tal decisão na sua globalidade.
O que, aliás, resulta do facto de ela entender - de um modo, tanto quanto se alcança do processo, totalmente infundamentado – que o Sr. Juiz a quo pré configurou a decisão (de facto e de direito) antes de produzida a prova, não tendo, assim, esta servido para nada ou quase nada, o que, até certo ponto, afecta, e ao que parece injustificadamente, imparcialidade e probidade daquele.
É certo que os juízes são humanos, com todas as virtudes e defeitos que tal qualidade encerra, podendo, assim, a decisão ser falível quer no plano legal quer no plano ético-moral, mas há que ser prudente e sensato na formulação de juízos e imputações desta jaez.
Acresce que tal ataque, contra a decisão de facto, quase no seu todo considerada, atenta contra a letra e o espírito do artº 690º-A do CPC, o qual o não consagra - maxime se viciada pelo pré-juízo que a recorrente denuncia para o que existem outros mecanismos, designadamente os impedimentos e suspeições: artº 122º e sgs. do CPC e a queixa ao órgão de gestão e disciplina competente – pois que ali se prevê apenas a discordância relativamente a concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados, do que pode retirar-se que a lei não só pretendeu que o recorrente especifique e discrimine a factualidade que quer ver julgada de modo diverso, como não pretende que toda ou quase toda a decisão seja posta em causa, pois que isso representaria, à partida, uma desconsideração e um desmerecimento no julgador de primeira instância e implicaria a formulação de uma nova convicção por parte do tribunal de recurso com mais e maiores probabilidades de erro, na medida em que este faz uma apreciação dos meios probatórios de uma forma indirecta e mediata, não retirando dos mesmos todas as potencialidades para a formação de uma convicção correspondente à realidade e à verdade.

8.3.2.
Todavia e bem vistas as coisas, o cerne da questão prende-se com a prova, ou não prova, da existência de um contrato de empreitada firmado entre a autora e a ré, conforme defende aquela e esta, respectivamente, o que consta, desde logo e primacialmente nos artigos 1º a 5º da BI.
Certo é, como defende a ré, que ela é pessoa jurídica autónoma dos sócios que a constituem e, assim, titular, na sua esfera jurídica, de direitos, deveres e interesses próprios, diferenciados e porventura antagónicos daqueles.
Do que resulta, para além do mais, que, perante o compêndio legislativo pertinente, qual seja o Código das Sociedades Comerciais, a vontade da sociedade não se confundir com a vontade dos sócios, devendo a mesma ser formada em obediência a certos requisitos de natureza substancial e formal.
Na verdade numa sociedade comercial a vontade normativa da própria sociedade é assumida por meio de deliberação da assembleia geral, deliberação resultante de resolução tomada pelo plenário dos sócios, correspondente á soma das vontades individuais expressa pelos mesmos.– cfr. Ac.do STJ de 12.07.1994, dgsi.pt, p.085406.

Em termos substanciais e formais atinentes à tomada de tais deliberações regem os artºs 53º e segs. do C.S.C.
In casu e contrariamente ao defendido pela recorrente – infra em sede de recurso em matéria de direito - no concernente à invalidade da invocada (pela autora) deliberação que lhe adjudicou a empreitada, esta não é inexistente ou até nula ou anulável, na medida em que se enquadra na previsão do artº 54º nº1, pois que, em função do provado, todos os sócios da ré reuniram em assembleia para tratar de tal assunto, o que fizeram por unanimidade, sendo que, assim, tal assembleia pode realizar-se sem a observância de formalidades prévias.

Mas não se colocando, em tese, a invalidade substancial da deliberação, uma questão prévia importa apreciar e que tem a ver exactamente com a prova de tal deliberação dos sócios, - rectius as exigências legais probatórias da mesma -a situar em sede de direito probatório.

8.3.3.
Como é sabido, por via de regra, a realidade de um facto pode ser provada por qualquer meio prova.
Pois que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido - artº655º nº1 do CPC.

Assim sendo só em casos extremos de má apreciação da prova perante os meios produzidos e as regras da lógica, da experiência e do senso comum, se pode censurar tal apreciação e não, vg. na defesa de um entendimento interpretativo e valorativo que se tem por melhor, como parece ser o caso da recorrente.

Já que a garantia do duplo grau de jurisdição não subverte, nem pode subverter, o princípio da livre apreciação das provas, pois que não se pode perder de vista que na formação da convicção do julgador entram, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova e factores que não são racionalmente demonstráveis", de tal modo que a função do Tribunal da 2ª Instância deverá circunscrever-se a "apurar a razoabilidade da convicção probatória do 1º grau dessa mesma jurisdição face aos elementos que agora lhe são apresentados nos autos"- Ac. do Trib. Constitucional de 3.10.2001, in Acórdãos do T. C. vol. 51º, pág. 206 e ss com realce e sublinhados nossos tal como nas citações infra.
Assim e como se viu, o Tribunal de 2ª Instância não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), mas à procura de saber se a convicção do tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os mais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si» -Ac. da Rel. de Lisboa de 16.02.05, dgsi.pt.
Havendo contradições nos depoimentos das testemunhas, só o juiz do julgamento está devidamente habilitado para apreciar qual deles merece melhor crédito tendo em atenção a imediação e oralidade da prova- Ac. da Relação de Lisboa de 13.07.05, dgsi.pt
Para efeitos do art.º 712º, do CPC, a divergência quanto ao decidido pelo tribunal a quo na fixação da matéria de facto só assumirá relevância no Tribunal da Relação se for demonstrada, pelos meios de prova indicados pelo Recorrente, a ocorrência de um erro na apreciação do seu valor probatório, sendo necessário, para o efeito, que tais elementos de prova se revelem inequívocos no sentido pretendido pela Apelante - Ac. da Relação de Lisboa de 26.06.03, dgsi.pt
A função do Juiz não é a de encontrar o máximo denominador comum entre o conjunto dos depoimentos. Não tem que aceitar ou recusar cada um deles na globalidade, cumprindo-lhe antes a missão espinhosa de dilucidar, em cada um deles, o que lhe merece crédito. Como já há muito escrevia o prof. Enrico Altavilla, “o interrogatório como qualquer testemunho está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras” – Psicologia Judiciária, vol. II, 3.ª edição, pag. 12, cit. in Ac. da Relação do Porto de 04.05.05, dgsi.p
Assentando a decisão recorrida na atribuição de credibilidade a uma fonte de prova em detrimento de outra, com base na imediação, tendo por base um juízo objectivável e racional, só haverá fundamento válido para proceder à sua alteração caso se demonstre que tal juízo contraria as regras da experiência comum -Ac. da Relação de Coimbra de 18.08.04, dgsi.pt.
O controlo de facto em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Na verdade, a convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, serenidade, "olhares de súplica" para alguns dos presentes, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos» – AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt.
O duplo grau de jurisdição em matéria de facto não significa a desvalorização da sentença de 1ª instância, que passaria a ser uma espécie de "ensaio" do verdadeiro julgamento a efectuar pelo Tribunal da Relação.
É da decisão recorrida que tem sempre de se partir, porque um tribunal de recurso não julga ex novo, mesmo em sede de matéria de facto, competindo-lhe antes ver se o tribunal a quo julgou bem tal matéria.
Neste contexto, há que pressupor que a imediação e a oralidade dão um crédito de fiabilidade que presumem o acerto do decidido.
Em recurso compete apenas sindicar a decisão naquilo em que de modo mais flagrante se opuser à realidade.
Os princípios da imediação e da oralidade devem prevalecer no julgamento da matéria de facto, na medida em que a verdade judicial resulta duma apreciação ética dos depoimentos - saber se quem depõe tem a consciência de que está a dizer a verdade - , mais do que da sua validade científica, que o julgador, por não ser perito em veracidade, pode não estar habilitado a avaliar – Ac. do STJ de 19.05.2005 dgsi.pt.
Sendo de manter a decisão sobre a matéria de facto, considerados que sejam os depoimentos prestados pelas testemunhas, se a convicção atingida pelo tribunal de 1ª instância, alicerçada conforme conteúdo da «motivação» consignada, tiver suporte razoável naquilo que a gravação da prova, em conjugação com os demais elementos existentes no processo, possa patentear – Ac. da Relação de Lisboa de 02.11.2006, dgsi.pt, p.5173/2006.2.

8.3.3.1.
No caso sub júdice o Sr. Juíz a quo começa logo no início por referir e informar na fundamentação da decisão de facto que: «A convicção do Tribunal foi adquirida – fundamentalmente – com base na apreciação crítica, conjugada e concatenada, do depoimento das testemunhas… com o relatório pericial de fls.690 a 734, complementado com os esclarecimentos prestados pelos senhores peritos na audiência … e os documentos de fls. 11 a 25, 64 a 67, 263 a 306, 345 a 349, 358 a 362, 401 a 404 e 610 a 623».
Referindo, de seguida e no atinente às testemunhas, a sua razão de ciência e a síntese dos seus depoimentos.

Daqui resulta que o julgador de primeira instância formou a sua convicção pela análise, ponderação e concatenação de toda a prova, testemunhal e documental, produzida.
E mesmo que tal prova se tenha revelado contraditória é de acreditar que relativamente aos factos dados como provados e não provados, mesmo que exista alguma dúvida, ela se situa em grau razoável, ainda admissível perante alguma margem de aleatoriedade que inelutável e inexoravelmente sempre existirá no âmbito e no âmago das relações humanas e ao que os juízes, porque participando em tais relações e dada esta condição, não são imunes ou infalíveis.
Aliás, prestando as testemunhas depoimentos contraditórios e não sendo possível averiguar das causas dessas contradições e se algumas delas estão a faltar à verdade (note-se que, apesar de antagónicos alguns dos depoimentos podem não ser, necessariamente, falsos, pois que eles podem sufragar-se em razões de ciência e em vivências que convençam a testemunha da veracidade do que está a dizer, não obstante em termos reais e objectivos tal não seja conforme à verdade), não pode, sem mais, de um modo simplista e apriorístico, dar-se total crédito e valorizando-se uns e descredibilizando-se e desvalorizando-se outros.
Ora conforme resulta do processo, para além das testemunhas com base nas quais os recorrentes pretendem a alteração da matéria de facto, outras testemunhas foram inquiridas a tal matéria.
E, compulsados os seus depoimentos e tal como é referido na fundamentação da decisão de facto, cada uma respondeu mais ou menos convicta da realidade e verdade dos factos por si relatados e das consequências deles decorrentes, em função do que objectivamente constataram e lhes foi dito.

Assim e designadamente quanto aos artigos 1º, 6º, 7º, 12º e 17º da BI, há a referir, que, contrariamente ao referido pela recorrente, sobre a matéria neles inserta não depôs apenas a testemunha (…) mas também as testemunhas (…), sendo que todas estas testemunhas referiram que o Dr. sempre se apresentou perante elas, na execução dos trabalhos, como representante da autora e não da ré, admitindo expressamente o sócio da ré, em depoimento de parte e a sua testemunha, seu contabilista, que nunca as empresas sub-contratadas reclamaram perante a ré o preço dos trabalhos executados.
Esta testemunha referiu ainda que a autora apresentou à ré diversas facturas da obra mas que foram rejeitadas por dois motivos: por terem sido apresentadas em Janeiro quando eram reportadas a serviços de Setembro e sendo certo que o IVA atinente a tais facturas, sendo trimestralmente pago, teria de o ser até final de Setembro; e por não satisfazerem certos requisitos, como seja a discriminação das quantidades. Ou seja a testemunha e tal como se refere na fundamentação da decisão não referiu que as facturas não foram aceites porque não respeitavam a serviços prestados pela autora à ré, mas por motivos de cariz essencialmente formal. E sendo que o M não disse que o preço não devia ser pago a pronto mas apenas que não se lembrava de tal.
No que concerne aos artºs 5º, 8º e 14º, não colhe a tese da recorrente de que eles não podiam ser dados como provados porque contraditórios com as respostas positivas dadas aos artºs 45º a 50º, pois que não há qualquer incompatibilidade ou contradição entre elas.
Como é bom de ver a «execução das obras» - e considerando o modo como as partes configuraram a acção ao reportá-la a um contrato de empreitada - por parte da autora tem de ser entendida em sentido lato, ou seja, na perspectiva de que esta tomou a seu cargo a efectivação das mesmas, mas não necessariamente através de meios materiais e humanos seus – os quais a ré admite que não os tinha, logo bem sabendo que tal não poderia acontecer – podendo fazê-lo através da sub-contratação de empresas especializadas para o efeito, o que costuma, aliás, ser situação muito comum, pois que são consabidas as diversas áreas de saber e intervenção necessárias para a realização de uma obra a nível imobiliário e para o que, por via de regra, a empresa adjudicatária, não está totalmente apetrechada.
O mesmo se diga no concernente aos artigos 2º, 11º e 16º onde o termo «forneceu» respeitante à autora, deve ser entendido, pelo que se referiu, habilmente.
No que tange aos artºs 4º e 10º, há que referir que o facto de os orçamentos serem posteriores ao início da obra, às facturas e aos pagamentos, não lhes retira, só por si e necessariamente, qualquer força probatória.
E desde logo, no caso sub júdice, se se pensar que a figura central do processo, o referido Dr., era sócio não só da autora como da ré, sendo, assim, admissível concluir-se que as negociações, o desenvolvimento do negócio e a concretização das obras, se baseou numa relação de confiança. Como aliás foi referido por algumas testemunhas. Afinal eram todos conhecidos, sócios e, ao que parece e pelo menos ao tempo, amigos.

Em todo o caso e perante o que supra se aludiu quanto aos poderes do julgador de 1ª instância na apreciação e ponderação da prova, bem como às situações extremas em que o Juízo por ele formulado deverá ser censurado, naturalmente se conclui que o caso vertente não se inclui em alguma destas situações.
Porque tal juízo foi formulado dialecticamente e no âmbito dos princípios da imediação e da oralidade, na apreciação e ponderação de toda a prova produzida.
Não se podendo concluir, perante esta prova, a qual se mostra contraditória, e em face dos elementos probatórios invocados pelo recorrente, que a decisão sobre a matéria de facto se mostre irrazoável, porque meridianamente desconforme a tal prova e às regras da experiência comum.

8.3.3.2.
Não obstante…
Em relação a certos factos, a lei estabelece a exigência de um certo tipo ou meio de prova: é a chamada prova legal ou taxada.
Efectivamente e não obstante em sede de direito probatório o princípio, no nosso direito, ser, como se viu e nos termos do nº1 do artº 655º do CPC, o da prova livre, a lei admite casos em que tal princípio seja postergado, emergindo então o sistema da prova legal.
Essencialmente por motivos de certeza e segurança, principalmente em situações em que estejam presentes razões ou interesses de ordem pública.
Sendo possível, mas admissível, que com a adopção de tal critério probatório, e pelo menos dentro de certos limites, tenha de se sacrificar a justiça, em beneficio da certeza e segurança, valores consabidamente outrossim de grande relevância e utilidade social – cfr. Prof. Alberto dos Reis, Anotado, 1981, 4º, 569..
É o que resulta, desde logo, do disposto no nº2 de tal normativo o qual estatui que:
«…quando a lei exija, para a existência ou prova de facto jurídico, qualquer formalidade especial, não pode esta ser dispensada».
Tal tipo de prova não pode ser postergado, sendo nula a convenção que o excluir ou admitir um meio de prova diverso – artº 345º nº2 do CC.
Designadamente e no que concerne à prova testemunhal, esta é inadmissível se a declaração negocial houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito – artº 393º nº1 do CC.
Assim sendo e no plano processual concernente à decisão sobre a matéria de facto, está vedado ao juiz pronunciar-se sobre factos que só possam ser provados por documentos, tendo-se por não escrita tal pronuncia ou resposta – artº 646º nº4 do CPC.
E como ensina o citado Mestre, loc.cit., 7: «desde que a lei exige, para determinado acto ou facto, certa forma externa (escrito particular…escritura publica) não é licito aos tribunais…dar como provado ou existente o acto ou o facto sem que se exiba o documento de que a lei faz depender a prova ou a existência dele. Que o documento seja exigido como simples meio de prova, que seja exigido como requisito de existência, é indiferente»
É o caso dos autos.
Pois que nos termos do artº 63º nº1 do CSC e no que para o caso interessa : «As deliberações dos sócios podem ser provadas pelas actas das assembleias…».
É, destarte, um caso inequívoco de prova legal ou taxada, que não pode ser substituída por qualquer outro meio de prova.
A ratio deste preceito reside no entendimento que a função de documentação da acta não se esgota numa finalidade puramente informativa dos resultados da assembleia, satisfazendo também e quiçá preferentemente a finalidade de garantir o controle da actividade do órgão soberano da sociedade.
Ao exigir a prova pela acta a lei visa, não tanto facultar aos interessados uma informação genérica sobre as deliberações sociais, mas essencialmente predispor um meio de verificação e controle da legalidade do procedimento formativo da vontade socialcfr. Albino de Matos in Revista do Notariado, 1986/1, p.47, cit. por Abílio Neto in Código das Sociedades Comerciais, 1987, p.403.
Naturalmente com o fito de se proteger não só a sociedade como os terceiros, das deliberações tomadas pelos sócios.
Em suma, a acta da assembleia da sociedade, conquanto não integre a própria deliberação, é meio probatório indispensável, sine qua non, para sua prova.
Sem a qual o facto que se invoca, concernente a tal deliberação, e do qual se quer convencer, não pode ser dado como assente – cfr. Ac. do STJ de 11.03.1999, dgsi.pt, p.99A072.
Nesta conformidade, não se encontrando junta aos autos a acta da assembleia na qual a deliberação dos sócios da ré terá determinado a adjudicação da obra, a título de empreitada, à autora, representada pelo seu sócio, Dr. Sousa Dias, não pode este contrato, factualmente integrado, como se disse, nos artigos 1º, 2º, 4º e 5º, ser dado como provado.
Devendo considerar-se como não escritas as respostas dadas a estes artigos.
O que acontece, note-se, não pela errada apreciação da prova produzida, a qual se situa dentro de parâmetros admissíveis, mas antes por estritos motivos jurídicos de cariz imperativo-formal, no sentido de que apenas permitem o recurso a um específico meio probatório, com exclusão de qualquer outro, e, consequentemente, com proibição da prova do facto que constitui a causa petendi da acção e que está alegadamente consubstanciado numa deliberação social, apenas com base nestes noutros tipos de prova, por mais relevantes que sejam, se eles não estiverem acompanhados pela acta de tal deliberação.
É um dos casos em que o legislador optou por fazer prevalecer os valores da certeza e da segurança, quiçá em alguns casos em detrimento do valor justiça, mas que sendo uma clara opção legal não pode, em princípio, ser jurisdicionalmente derrogada.
Principio a que este caso não foge.
No qual e apesar de tudo o que a primeira instancia deu – aceitavelmente -como provado, algumas dúvidas se suscitaram quanto ao modo de actuação dos intervenientes do contrato e á sua à celebração e execução, maxime quanto aos valores em questão.

8.3.3.3.
Improvado que se encontra, pela forma legal, o contrato de empreitada, indemonstrada está a relação jurídica da qual adviriam os legais efeitos para os contraentes, rectius os efeitos essenciais, a saber: a realização atempada e sem defeitos da obra e o pagamento do respectivo preço.
Ou seja e nesta perspectiva, que é a da autora e única que interessa, porque não é deduzido pedido reconvencional, a acção tem de improceder.

8.3.3.4.
E sendo que, assim, prejudicada está a apreciação das questões 4ª a 8ª

8.3.3.5.
No respeitante à condenação da ré como litigante de má fé, não se tendo provado, como devia, o contrato de empreitada e tendo a ré sido condenada a tal título essencialmente por ter negado a sua outorga com a autora, quando, a final, ficou apurada pela 1ª instancia, é óbvio que tal condenação não pode subsistir.

9.
Decisão.
Termos em que se acorda em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar a sentença, absolvendo-se a ré do pedido.
Custas pela autora.

Lisboa, 2007.02.27
Carlos Moreira
Isoleta Almeida e Costa
Rosário Gonçalves