Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
362/14.2YRLSB-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: INVENTÁRIO
CARTÓRIO NOTARIAL
APOIO JUDICIÁRIO
HONORÁRIOS
INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/08/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Não tem base legal e fere o disposto nos artigos 20.º n.º 1, 18.º n.º 1 e 13.º da Constituição da República Portuguesa o despacho do notário que suspende a tramitação de processo de inventário enquanto a primeira prestação de honorários notariais e alguns encargos, que seriam devidos pelo requerente do processo de inventário, que beneficia de apoio judiciário, não forem pagos pelo Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos de Justiça – IGFEJ.
Decisão Texto Parcial:Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
1. Em 26.9.2013 A, agindo em representação de seu filho menor B requereu, no Cartório Notarial com a denominação C, sito em …a, inventário para partilha de bens deixados por herança do falecido D.
2. A requerente demonstrou beneficiar de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, nomeação e pagamento da compensação de patrono, por se ter comprovado a insuficiência económica invocada.
3. Por despacho de 07.10.2003 a Sr.ª Notária ordenou a notificação da requerente para juntar documentos em falta.
4. Em 18.10.2013 a Sr.ª Notária enviou ao IGFEJ - Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos de Justiça a seguinte comunicação:
Assunto: Apoio Judiciário no Processo de Inventário n.º …
Exmos Senhores
Na sequência de ter sido entregue comprovativo de apoio judiciário na modalidade de Dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo nos autos de Inventário que deram entrada neste cartório com o n.º 118/13 e não estando constituído o fundo a que se refere o n.º 2 do art.º 26 da Portaria 278/2013 de 26 de Agosto, a fim de dar seguimento ao indicado processo venho requerer a Vossas Exas. o pagamento da primeira prestação de honorários notariais, nos termos da al a) n.º 6 do ar 18º da referida Portaria, que no mencionado processo são no valor de 612 € + IVA o que perfaz o total de 752,76 €.
Indico o NIB (…) para o qual poderão efetuar a transferência do mencionado valor.
(…)”
5. Juntos os documentos mencionados em 3, em 07.11.2013 a Sr.ª Notária nomeou cabeça-de-casal e designou data para a prestação de compromisso de honra e declarações do cabeça-de-casal.
6. Em 28.11.2013 o cabeça-de-casal prestou compromisso de honra e declarações, tendo-lhe sido concedido prazo para juntar relação de bens devidamente instruída.
7. Na mesma data foi ordenado o cumprimento dos artigos 28.º a 30.º do Regime Jurídico do Processo de Inventário (RJPI): citação e notificação dos interessados.
8. Em 26.12.2013 o cabeça-de-casal juntou aos autos relação de bens e documentos.
9. Em 24.01.2014 a Sr.ª Notária proferiu o seguinte despacho:
O presente processo foi instaurado com Apoio Judiciário na modalidade de Dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
Foram pedidos ao Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos de Justiça – IGFEJ os honorários referentes à 1ª prestação bem como o prévio pagamento de alguns encargos – citações e notificações, conforme documentação que foi nesta data data digitalizada.
Até ao momento nada foi satisfeito.
Apesar de tudo foi nomeado e citado o cabeça-de-casal, foi ouvido, tendo o mesmo prestado compromisso de honra e respetivas declarações.
Foram ordenadas as citações e notificações para os termos do inventário.
Foi dado prazo para o cabeça-de-casal apresentar a respetiva relação de bens, a qual foi apresentada devidamente documentada.
Antes de se efetuarem as citações e notificações ordenadas subsequentes à apresentação da relação de bens os autos vão ficar a aguardar os pagamentos prévios solicitados.
Notifiquem-se a requerente e o cabeça-de-casal.
Comunique-se ao Ministério Público.”
A requerente apelou desta decisão, tendo apresentado motivação em que formulou as seguintes conclusões: (…)
Não houve contra-alegações.
O recurso foi admitido, como apelação, com subida imediata, no próprio processo, para esta Relação, e efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
A questão a apreciar neste recurso é se o presente processo de inventário deverá ficar suspenso enquanto não forem pagos os honorários notariais referidos no despacho recorrido.
O factualismo a levar em consideração é o supra referido no Relatório.
O Direito
Na senda da desjudicialização empreendida desde há anos, não só no nosso país como no estrangeiro, a competência para a tramitação do processo de inventário transitou dos tribunais judiciais para os cartórios notariais, a partir de 01.9.2013, data da entrada em vigor da Lei n.º 23/2013, de 05.3, que aprovou o regime jurídico do processo de inventário (RJPI).
Nos termos do art.º 67.º n.º 1 do RJPI as custas devidas pela tramitação do inventário são pagas pelos herdeiros, pelo meeiro e pelo usufrutuário de toda a herança ou de parte dela, na proporção do que recebam, respondendo os bens legados subsidiariamente pelo seu pagamento.
O n.º 2 do art.º 83.º remete para portaria do membro do governo responsável pela área da justiça a regulação dos honorários notariais devidos pelo processo de inventário, o respetivo regime de pagamento e a responsabilidade pelo seu pagamento.
No que concerne ao apoio judiciário, estipula-se no art.º 84.º que é aplicável ao processo de inventário, com as necessárias adaptações, o regime jurídico do apoio judiciário e que nos casos de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, o regime de pagamento dos honorários e a responsabilidade pelos mesmos são regulados por portaria do membro do governo responsável pela área da justiça.
A portaria supra referida é a Portaria n.º 278/2013, de 26.8.
No art.º 15.º da aludida portaria estabelece-se que as custas pela tramitação do processo de inventário abrangem os honorários notariais e as despesas.
No art.º 18.º reitera-se que “são devidos honorários ao notário pelos serviços prestados no âmbito do processo de inventário” (n.º 1), os quais estão explicitados nos anexos I e II da portaria (n.º 2) e devem ser pagos pelo requerente do processo de inventário, em três prestações: a 1.ª no momento da apresentação do requerimento inicial, a 2.ª nos 10 dias posteriores à notificação para a conferência de interessados e a 3.ª após a decisão homologatória da partilha pelo juiz (n.º 6). Após o pagamento o requerente do inventário terá direito de regresso relativamente aos demais responsáveis pelas custas devidas pela tramitação do inventário (n.º 2 do art.º 19.º). O não pagamento da 1.ª prestação determina a invalidação eletrónica da referência de pagamento gerada pelo sistema e a consequente invalidação do requerimento de inventário (n.º 4 do art.º 20.º, n.º 3 do art.º 5.º).
O notário tem também o direito de ser reembolsado das despesas que realize e comprove devidamente, designadamente as indicadas nas alíneas a) a h) do art.º 21.º da Portaria. O responsável pelo seu pagamento é o requerente do inventário, sem prejuízo do direito de regresso relativamente aos demais responsáveis pelas custas (art.º 22.º). Aquele será notificado para proceder ao pagamento da despesa, antes da realização do ato a que ela respeita, com a cominação de este não ser praticado (n.º 2 do art.º 21.º). Se não for possível determinar previamente o montante da despesa, o notário, após a realização do ato, notifica o responsável para proceder ao seu pagamento no prazo de 10 dias (n.º 3 do art.º 21.º).
Quanto ao apoio judiciário, estipula-se no n.º 2 do art.º 26.º da Portaria que “nos casos de dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, os honorários notariais são suportados integralmente por fundo a constituir pela Ordem dos Notários mediante afetação de percentagem dos honorários cobrados em processo de inventário.” Porém, havendo bens legados, estes respondem pela proporção de honorários e despesas notariais que cabe a cada parte devendo ser ressarcidos em primeiro lugar os montantes devidos em despesas e seguidamente os honorários notariais, sendo, se necessário, o remanescente suportado pelo fundo referido (n.º 3 do art.º 26.º).
Exposto isto, no caso dos autos, é patente que uma vez que a requerente beneficia de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, não tem de suportar o pagamento dos honorários notariais nem das despesas supra referidas. Tais honorários serão suportados pelo fundo constituído pela Ordem dos Notários para o efeito. Além disso, a lei não diz que o dito fundo deverá pagar os honorários em prestações, ou seja, em circunstâncias idênticas às que seriam aplicáveis se o requerente não gozasse de apoio judiciário. Tal dificilmente seria praticável, desde logo em relação à primeira prestação, de cujo pagamento depende a validação da apresentação do requerimento de inventário (n.º 3 do art.º 5.º). De resto, o n.º 3 do art.º 5.º da Portaria, ao estipular que “independentemente da forma de apresentação do requerimento de inventário, o mesmo só se considera apresentado na data em for efetuado o pagamento da 1.ª prestação dos honorários do notário, ou em que foi entregue o documento comprovativo do pedido de apoio judiciário”, parece dispensar, no caso de apoio judiciário, que haja qualquer pagamento ao notário (inclusive pelo aludido fundo) para que o processo prossiga. O processo só parará quando, tendo havido decisão desfavorável ao pedido de apoio judiciário, o requerente não proceder ao pagamento da 1.ª prestação (n.º 4 do art.º 5.º da Portaria: “Caso o pedido de apoio judiciário não seja decidido favoravelmente, o processo prossegue após o pagamento da 1.ª prestação de honorários”).
Pelo exposto, conclui-se que o despacho recorrido não tem cobertura legal.
É certo que a Sr.ª notária juntou ao processo um e-mail, datado de 10.10.2013, enviado pela Ordem dos Notários aos membros da Ordem, no qual, após se relatar ter havido reuniões entre a Ordem e o Ministério da Justiça, para a revisão da Portaria 278/2013, mais concretamente sobre o assunto do apoio judiciário, se diz que “a Senhora Ministra já assumiu publicamente que, nos casos de dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo de inventário, as despesas do mesmo serão sempre suportadas pelo Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça (IGFEJ), nos termos do Regime Geral do Apoio Judiciário.” Acrescenta-se, no mail, que “O mesmo acontece com os honorários notariais até que o Fundo previsto na Portaria seja constituído.” Seguidamente, nesse mail a Direção da Ordem recomenda “que intentados processos de inventário com recurso ao regime do Apoio Judiciário na modalidade de dispensa do pagamento de custas, os Notários devem dar conhecimento desse facto ao IGFEJ, acompanhado da respetiva nota de honorários referentes à primeira prestação e de todas as despesas que comprovadamente tenham efetuar, para que antes da realização de qualquer ato devido no processo, o Instituto pague de imediato os valores solicitados e, na sequência, devem informar o Ministério da Justiça e a Ordem dos Notários.” Mais se escreve, no dito mail, que “este procedimento deverá ser seguido até que a Ordem dos Notários, o Ministério da Justiça e o IGFEJ outorguem um protocolo para a simplificação de todo o processo.”
Ora, nesse mail não se aponta qualquer norma legal que funde o procedimento aí recomendado aos notários. Apenas se mencionam projetos de alteração legislativa e futuros protocolos.
E, tal como se salienta nas alegações de recurso, a decisão recorrida afronta o direito de acesso à justiça, independentemente da insuficiência de meios económicos, que está consagrado no art.º 20.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e vincula diretamente todas as entidades, públicas e privadas (art.º 18.º n.º 1 da CRP), ofendendo ainda o princípio da igualdade, consagrado no art.º 13.º da Constituição, na medida em que limita o acesso à justiça por parte do menor representado pela requerente, em virtude da sua situação económica.
É evidente que a Sr.ª notária tem direito a ser remunerada pela sua atividade. Mas a decisão recorrida não constitui condição essencial para que esse direito seja satisfeito. Os honorários poderão ser pagos futuramente, seja ainda na pendência seja mesmo após o termo do inventário, pelo fundo supra referido ou por quem, nos termos legais, vier a assumir esse encargo. O mesmo se diga quanto às despesas. Não há, pois, aqui, interesse relevante cuja garantia imponha a cedência dos interesses do filho da requerente, nos termos pretendidos no aludido despacho.
A apelação deverá, pois, proceder.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação procedente e consequentemente revoga-se o despacho recorrido.
As custas da apelação serão a cargo dos interessados, nos termos previstos no art.º 67.º n.º s 1 e 2 do RJPI (art.º 527.º n.º 1 parte final do CPC).

Lisboa, 08.5.2014

Jorge Manuel Leitão Leal

Ondina Carmo Alves

Eduardo José Oliveira Azevedo
Decisão Texto Integral: