Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | TELO LUCAS | ||
| Descritores: | OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA ANIMAL DE COMPANHIA | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 04/11/2007 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
| Sumário: | Recaindo sobre o detentor do animal «o dever especial de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas» - Dec.-Lei n.º 276/2001, de 17-10 – comete aquele o crime de ofensa à integridade física por negligência, se permite que o cão (um Husky Siberiano), que está à sua guarda, circule na via pública sem qualquer açaime, atravessando-se repentinamente na frente de um motociclo, fazendo com que o respectivo condutor caia ao chão, mordendo-o de seguida no braço, causando-lhe lesões. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em audiência, no Tribunal da Relação de Lisboa: I – RELATÓRIO 1. No Processo Comum (Tribunal Singular) n.º 107/02.0PFCSC, do 2º Juízo Criminal da comarca de Cascais, foi submetido a julgamento o arguido RR, ali devidamente identificado. RC, constituído assistente nos autos, deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido e contra o pai deste, D…, assim demandados, pedindo a condenação de ambos a pagarem-lhe, solidariamente, a quantia global de € 6.900,67 (1) (seis mil e novecentos euros e sessenta e sete cêntimos), sendo € 3.900,67 (três mil e novecentos euros e sessenta e sete cêntimos) a título de danos patrimoniais e o restante (€ 3.000,00 – três mil euros) a título de danos não patrimoniais. 2. A final, por sentença de 20-06-2006, e no que agora importa reter, foi decidido condenar o arguido: - Pela prática, em autoria material, de um crime de ofensas corporais negligentes, p. p. pelo art. 148º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 110 (cento e dez) dias de multa, à taxa diária de € 3,00 (três euros), o que perfaz a multa de € 330,00 (trezentos e trinta euros). - Pela prática da contra-ordenação, p. p. pelos arts. 12º e 61º do Dec.-Lei n.º 317/85, de 02-8, na coima de € 2,40 (dois euros e quarenta cêntimos). - Foi ainda decidido, na procedência parcial do pedido civil, condenar solidariamente os demandados no pagamento ao assistente/demandante da quantia total de € 4.900,00 (quatro mil e novecentos euros), sendo € 3.900,00 (três mil e novecentos euros) a título de danos patrimoniais e € 1000,00 (mil euros) por danos não patrimoniais. (2) 3. Inconformado com o assim decidido, recorre o arguido/demandado para este Tribunal, concluindo assim na respectiva motivação de recurso: «… 4. Responderam ao recurso o Digno Magistrado do Ministério Público junto da 1ª instância e o assistente/demandante, concluindo na respectiva motivação: 4.1. O Ministério Público: «… 4.2. O assistente/demandante: … 5. Subiram os autos a este Tribunal e, aqui, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, pronunciando-se sobre a regularidade do recurso, reservou para a audiência as suas alegações. 6. Efectuado o exame preliminar (3) e colhidos os vistos legais, foi designado dia para a audiência, a qual veio a decorrer com observância do legal formalismo. II – FUNDAMENTAÇÃO 7. É o seguinte o teor da sentença recorrida, no que concerne aos factos dados como provados e aos tidos como não provados (transcrevendo): «(...). Da audiência de discussão e julgamento com interesse e relevo para a causa resultou: FACTOS PROVADOS a) No dia 10 de Fevereiro de 2002, pelas 11:45 horas, o arguido RR encontrava-se na Avª …, em …, Sassoeiros, em Carcavelos, na companhia de um cão de raça “Husky Siberiano”, propriedade de seu pai D… (fls. 50/51). b) Contudo, nessa deslocação pela via pública, o referido canídeo não trazia quaisquer açaime, trela, ou outro dispositivo, susceptível de permitir um controlo da sua acção por parte do arguido RR sendo que o mesmo cruzava a rua de um lado a outro por diversas ocasiões c) Nessa mesma ocasião, transitava pela Avª …, no sentido Norte - Sul, RC…, pilotando o motociclo Yamaha TDM, de matricula **-**-**. d) No preciso momento em que o veiculo **-**-** passava próximo da área onde o arguido RR se deslocava na companhia do cão Husky, este atravessou inopinadamente a Avenida …, no sentido Nascente - Poente. e) Face ao inesperado da situação, o RC.. não conseguiu evitar o embate do seu motociclo no animal, acabando por cair no pavimento, sendo arrastados conjuntamente, ofendido, cão e motociclo, numa distância de cerca de 25 metros. f) Nesse trajecto, o RC… foi ainda mordido no braço esquerdo pelo cão “Husky”. g) Como consequência do impacto e arrastamento no solo, e da subsequente mordedura por parte do canídeo, sofreu o RC… as lesões descritas no Auto de Perícia Médico-Legal de fls.12, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, as quais determinaram um período de doença de 15 (quinze) dias. h) O acidente em causa só ocorreu porque o arguido RR não observou normas de cuidado elementares inerentes a quem tem à sua responsabilidade animais da espécie canina quando estes se deslocam na via pública, omitindo com essa sua actuação um dever geral de previdência e contribuindo desse modo para um resultado que podia e devia ter previsto e evitado. i) O assistente em consequência do acidente veio a sofrer os seguintes danos: - Blusão de pele mod. Bullet no valor de 294, 22 €, com IVA - Capacete Shoei Mod. X-Ceed II no valor de 771,64 € com IVA - Calças no valor de 35,00 € com IVA - Camisa no valor de 16,00 € com IVA - Cinto no valor de 12,00 € com IVA - Reparação da sua Moto (matrícula …) no valor de 2.771,00 € com IVA, tudo num total de 3.900,67 € j) O arguido tem os seguintes antecedentes criminais. … FACTOS NÃO PROVADOS: … 8. Já em sede de motivação discorreu-se assim na sentença: «(...). … 9. Apreciando e decidindo: 9.1. … 9.3. Mais acima (9.1., parte final) abrimos um parêntesis para dizer que a impugnação da decisão de facto não pode ser confundida ou correlacionada com a invocação dos vícios do art. 410º do Cod. Proc. Penal. E também dissemos que de tais vícios trataríamos mais adiante. Façamo-lo, então, desde já, sendo certo que deles sempre haveria que conhecer independentemente de virem ou não alegados. (4) Ora, esses vícios, nada tendo a ver com o recurso em matéria de facto, repete-se, são vícios da decisão, que não do julgamento, e hão-de resultar do texto decisório, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, sem auxílio a quaisquer elementos exteriores. A existência de qualquer dos vícios, quando insanável pelo tribunal de recurso, obsta a que a causa seja decidida e determina o reenvio do processo para novo julgamento (arts. 426 e 426º-A do Cod. Proc. Penal). Só que no caso, examinado o texto decisório, temos por certo que o mesmo está imune a qualquer dos vícios previstos no n.º 2 do referido art. 410º. Vale tudo isto por dizer que apenas resta ter, como se tem, por definitivamente assente a matéria de facto apurada pela 1ª instância. É, pois, tendo como pano de fundo essa matéria que havemos de encarara e decidir as questões de direito colocadas pelo recorrente. 9.4. Diz ele que a sentença recorrida assentou numa incorrecta aplicação dos arts. 10º, 11º, 13º, 15º, 26º e 148º, todos do Código Penal, 12º e 61º do Decreto-Lei n.º 317/85, de 02-08, e 503º e 506º, estes do Cod. Civil. Vejamos. Porque a sentença faz correctas considerações jurídicas sobre o tipo daquele art. 148º e, ainda, sobre o conceito de negligência (art. 15º), dispensamo-nos de tecer sobre tais aspectos quaisquer outras considerações. Contudo, não deixaremos de abordar este ou aquele ponto que, omitido na sentença, seja chamado para o caso. É o que sucede, desde logo, com os diplomas que disciplinam o regime para a detenção dos chamados animais de companhia, potencialmente perigosos. A decisão recorrida limitou-se à invocação daquele Dec.-Lei 317/85. Sobre esta questão diremos o seguinte. Aquele diploma, no seu art. 12º, impõe a obrigatoriedade de uso de acamo funcional ao estabelecer, no seu n.º 1, que «É proibida a presença na via pública ou quaisquer outros lugares públicos de cães sem açamo funcional, excepto quando conduzidos à trela ou, tratando-se de animais utilizados na caça, durante os actos venatórios ou em provas de treinos», para no n.º 2, dizer que «Considera-se acamo funcional aquele que, aplicado ao animal sem lhe dificultar a função respiratória, não lhe permita comer nem morder». Daqui decorre que o legislador sentiu a necessidade de acautelar a segurança, neutralizando a perigosidade de cães em locais públicos mediante a utilização de açaimos ou trelas. Posteriormente, o Dec.-Lei n.º 276/2001, de 17-10, complementou as normas do Dec. n.º 13/93, de 13-04, que aprovou a Convenção Europeia para a Protecção dos Animais de Companhia. No art. 2º do primeiro destes diplomas começa-se por definir (al. a)) o que se entende por «Animal de companhia» («qualquer animal detido ou destinado a ser detido pelo homem, designadamente, no seu lar, para seu entretenimento e companhia»), para depois, na al. d), se traçar o conceito de «Animal potencialmente perigoso» («qualquer animal que, devido à sua especificidade fisiológica, tipologia racial, comportamento agressivo, tamanho ou potência de mandíbula, possa causar lesão ou morte a pessoas ou outros animais e danos a bens» e, ainda na mesma norma (al. u), define-se o «Detentor» como «qualquer pessoa, singular ou colectiva, responsável pelos animais de companhia para efeitos de reprodução, criação, manutenção, acomodação ou utilização, com ou sem fins comerciais». Por sua vez, o art. 6º do mesmo diploma estabelece que «Incumbe ao detentor do animal o dever especial de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas», sendo a violação deste dever de cuidado, que crie perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, punível com a coima de € 498,797 a € 3740,984, sendo o comportamento negligente sancionado até metade do montante máximo da coima prevista (art. 68º, n.º 3, al. a), e n.ºs 4 e 5). A demonstrar que o texto legal a que vimos fazendo referência se aplica também a cães aí está o seu art. 27º a regulamentar as «Condições particulares para a manutenção de cães e gatos». Os conceitos legais de «animal potencialmente perigoso» e de «dever especial de cuidado do detentor» foram retomados pelo Dec.-Lei n.º 312/2003, de 17-12, que republicou, em anexo, aquele Dec.-Lei 276/2001. Mas porque os factos aqui em causa são anteriores à vigência do diploma de 2003 não faremos a este qualquer referência. Importa, contudo, salientar que aquando da prática daqueles vigorava já o diploma de 2001, o qual, frise-se de novo, fazia recair sobre o detentor do animal «o dever especial de o vigiar, de forma a evitar que este ponha em risco a vida ou a integridade física de outras pessoas». Pois bem. Nos termos do art. 10º, n.º 1, do Código Penal, «Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei» e, em conformidade com o n.º 2 do mesmo preceito, «A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o emitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado». No delito omissivo o não evitar do resultado típico pode equiparar-se à sua produção mediante um «facere». E, como se diz no acórdão da Relação do Porto, de 09-02-2004 (5), «Os delitos omissivos podem ser de omissão própria (delicta omissiva) e de omissão imprópria (delicta comissiva per omissionem). Nos primeiros infringe-se uma norma preceptiva, pela não realização de uma acção exigida por lei. Nos segundos, é violado o dever, imposto a quem esteja em posição de garante, de evitar um resultado típico, pelo que o garante é onerado com a responsabilidade jurídico-penal pela verificação desse resultado.». No caso em apreço, pese embora o dever de cuidado que impendia sobre o agora recorrente, e que emana de norma legal (o transcrito art. 6º), estaremos perante um delito de omissão imprópria, imputando-se o resultado ao agente como se o mesmo tivesse sido levado a cabo mediante um «facere». Por conseguinte, remetendo quanto ao mais para as considerações de ordem jurídica feitas na sentença, dúvidas não temos de que o recorrente cometeu, através de uma omissão, o crime de ofensa à integridade física por negligência. Por isso, nada lhe vale vir dizer que não foi ele a ofender a integridade física do assistente, mas, sim, um animal (conclusão XIII). E não lhe assiste razão quando afirma terem sido violadas as normas penais que refere, como não foram ofendidas as do Dec.-Lei 317/85, de 02-08. Diga-se a terminar, neste âmbito, e ainda que tal aspecto não venha impugnado, que nada há também a censurar quanto à medida da pena encontrada, fixada de harmonia com os critérios legais, ainda que não tenha sido ponderada a possibilidade de atenuação prevista no n.º 3 do mencionado art. 10º, mas que perante as circunstâncias do caso concreto e as exigências de prevenção é de afastar. Censura merece o «quantum» da coima, pois, como se viu, impunha-se a fixação de um montante bem mais elevado, o que aqui, todavia, não pode ter lugar sob pena de violação da proibição de reformatio in pejus (art. 409º do Cod. Proc. Penal). 9.5. Quanto ao decidido na vertente civil, começamos por estranhar que o recorrente diga que o demandante contribuiu, à sua medida (sic), para a produção do evento (conclusão XVI), pois que não se descortina o mínimo fundamento para tal afirmação. Como não se vislumbra qualquer argumento legal para a solicitada aplicação analógica dos arts. 503º e 506º do Cod. Civil, que é de rejeitar liminarmente. Ora, tendo presente as considerações tecidas na sentença e os normativos que refere, aos quais acrescentaremos o que resulta do estatuído no n.º 1 do art. 493º, também do Cod. Civil, apenas um pequeno reparo, que tem mais a ver com um mero lapso, nos merece a indemnização fixada a título de danos patrimoniais. É que vem dado como provado que o valor da reparação dos danos da mota do demandante é de € 2.771,00, com IVA, e não 2.771,81, como vem referido na sentença quando se faz a apreciação do quantitativo de todos eles. Significa isto que o montante global dos mesmos é de € 3.899,86 (€ 2.771,00 + € 294,22 + € 771,64 + € 35,00 + € 16,00 + € 12,00), e não, como vem decidido, € 3.900,00. Nada a censurar no que concerne à importância encontrada (€ 1000,00) para ressarcir os danos não patrimoniais, que de resto o recorrente não questiona. Face ao exposto, e ressalvando esta pequena alteração/correcção que tem a ver com o montante dos danos patrimoniais, improcede em toda a linha o recurso interposto. III – DECISÃO A – Nega-se provimento ao recurso, corrigindo-se (6), porém, a sentença no que concerne ao montante global indemnizatório atribuído, o qual agora se fixa em € 3.899,86 (três mil, oitocentos e oitenta e nove euros e oitenta e seis cêntimos). B – Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 (sete) UCs – sem prejuízo da protecção jurídica que lhe foi concedida (fls. 326-329). *** Lisboa, 11 de Abril de 2007 (Telo Lucas-relator) (Pedro Mourão) (Ricardo Silva) (Cotrim Mendes – Presidente da secção) __________________________________________ 1.-Quer no requerimento de apresentação do pedido quer na parte do relatório da sentença, o montante global referido é de € 6.900,97. Trata-se, porém, de um lapso, pois como resulta da soma das várias parcelas que constituem a parte do pedido relativa aos danos patrimoniais é de € 3.900,67, a que acresce a importância de € 3000,00 referente aos danos não patrimoniais. 2.-Ainda que na parte dispositiva da sentença não se faça esta descriminação ela resulta claramente do que anteriormente, ao calcular o quantum indemnizatório, nela é expressamente dito. 3.-Não sem que os autos baixassem à 1ª instância a fim de, aí, ser transcrita a prova produzida em julgamento. 4.-“Assento” do STJ, de 19-10-95, em DR, I-A Série, de 28-12-95. 5.-Em Colectânea..., Ano XXIX-I-296 e ss. 6.-Art. 380, n.º 1, al. b), e n.º 2, do Cod. Proc. Penal. |