Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4386/2007-7
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: REVOGAÇÃO
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
APREENSÃO DE VEÍCULO
PROCEDIMENTOS CAUTELARES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/29/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- As razões que levaram o legislador a modificar o critério de atribuição de competência territorial encontram-se formalmente descritas na Resolução do Conselho de Ministros n.º 100/2005 de onde decorre o objectivo fundamental de racionalizar os meios judiciários postos à disposição dos interessados para a boa administração da justiça.
II- Para além do objectivo de descongestionamento dos Tribunais o legislador pretendeu tutelar os interesses dos consumidores, aproximando os litígios judiciais das áreas onde estes se encontram domiciliados a fim de facilitar o exercício dos seus direitos de defesa.
III- Tais objectivos são inteiramente transponíveis para as acções ou procedimentos cautelares designadamente para o procedimento cautelar previsto no artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro segundo o qual “ o processo de apreensão e as acções relativas a veículos apreendidos são da competência do tribunal de comarca em cuja área se situa a residência habitual ou sede do proprietário”.
IV- A adesão ao entendimento da subsistência desse preceito contrariaria os objectivos os legislador, impedindo os resultados visados, podendo, assim, assumir-se que a modificação operada nos artigos 74.º e 100.º envolveu, ainda que de forma tácita, o regime prescrito no artigo 21.º do DL 54/75.
V- A alteração do artigo 74.º, a par da modificação do artigo 110.º/1 do Código de Processo Civil, apresenta suficiente força para se projectar na generalidade dos preceitos dispersos por diplomas avulsos, entre os quais o referido artigo 21.º, podendo considerar-se que, com a presente alteração legislativa, houve a intenção inequívoca por parte os legislador de regular exaustivamente este sector processual considerada a situação calamitosa que afecta os tribunais de Lisboa e do Porto, o que leva a considerar-se verificada a previsão excepcional constante da parte final do artigo 7.º/3 do Código Civil

(SC)
Decisão Texto Integral: Agravo nº 4386-07

I – S. […] SA,
instaurou contra
JOAQUIM […], com residência em …,

procedimento cautelar para apreensão de veículo sobre o qual detém reserva de propriedade inscrita em contrato de financiamento que com o requerido celebrou para aquisição desse veículo.

No despacho liminar foi considerado que o Trib. da Comarca de Lisboa era territorialmente incompetente, tendo em conta o critério definido pela actual redacção dos arts. 74º e 110º, nº 1, do CPC, não podendo ser invocado, para afirmação da competência, o disposto no art. 21º do Dec. Lei nº 54/75, de 12-2, que deve considerar-se tacitamente revogado.

A requerente agravou, concluindo que:

a) O presente procedimento cautelar foi instaurado ao abrigo Dec. Lei n° 54/75, de 12-2, por se encontrar registada na Conserv. de Reg. Automóvel a favor da recorrente a reserva de propriedade sobre a viatura financiada;
b) A regra de competência plasmada o art. 21° é especial face à regra geral de competência do art. 74° do CPC, prevalecendo sobre esta, não tendo sido revogado pela Lei nº 14/06 de 26-4, peço que o tribunal territorialmente competente para apreciar o caso é o da agravante, enquanto proprietária reservatária;
c) Acresce ainda que foi constituído um pacto de aforamento constante da cláusula 15ª das condições gerais do contrato, o qual estabelece como foro competente para resolução de todos os litígios emergentes do contrato celebrado a comarca de Lisboa;
d) Atendendo ao disposto no art. 100° do CPC anterior à entrada em vigor da Lei nº 14/06, de 26-4, o referido pacto de aforamento é válido e eficaz, porquanto foi celebrado em momento anterior;
e) No nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da irretroactividade da lei, de modo que a Lei nº 14/06, de 26-4, apenas retirou aos sujeitos jurídicos a possibilidade de celebrarem pactos de aforamento, e não que os pactos anteriormente celebrados deixariam de ser válidos, pois que isso atentaria claramente contra a segurança jurídica que subjaz ao referido princípio da irretroactividade da lei, e consubstanciaria que estaríamos perante uma aplicação retroactiva da lei.
Não houve contra-alegações, por não ter sido cumprido ainda o contraditório.


II – Cumpre decidir:

1. Suscitam-se no caso concreto as seguintes questões:

a) Manutenção ou revogação tácita do que no art. 21º do Dec. Lei nº 54/75 se dispõe sobre competência em razão do território, em face do que consta do actual art. 74º do CPC;

b) Subsistência ou não do pacto de aforamento inscrito no contrato celebrado antes da entrada em vigor da Lei nº 14/06, de 26-4.

2. Quanto à primeira questão:

2.1. Nos termos do art. 21º do Dec. Lei nº 54/75, “o processo de apreensão e as acções relativas a veículos apreendidos são da competência do tribunal de comarca em cuja área se situa a residência habitual ou sede do proprietário”.

Trata-se de uma norma que, na ocasião em que foi publicada, apresentava um critério definidor da competência relativa diverso do que emergia do art. 74º (para as acções de cumprimento de contratos) e do art. 85º do CPC (que englobava, além de outras, as acções de resolução de contratos), elegendo, respectivamente, o tribunal do lugar em que a respectiva obrigação deveria ser cumprida e o tribunal da área do domicílio do réu.

A apreensão de veículos, quando tenha subjacente uma cláusula de reserva de propriedade, é instrumental relativamente à acção de resolução do contrato de compra e venda de veículos, antecipando, em termos de medida cautelar, um dos efeitos que decorre do exercício do direito de resolução: a restituição do veículo. Por isso, naquela ocasião, a regra especial de competência territorial acabava por divergir da que decorria do art. 85º do CPC, estando subjacente a ideia de dar prevalência ao interesse do proprietário, proporcionando-lhe a possibilidade de solicitar a intervenção do tribunal da área do seu domicílio.

2.2. A situação sofreu entretanto uma primeira alteração. Por via do Dec. Lei nº 329-A/95, de 29-12, foi ampliada a regra específica do art. 74º do CPC, passando a abarcar também as acções de resolução do contrato por incumprimento e, além disso, concedendo ao credor a possibilidade de optar entre o tribunal do lugar de cumprimento da obrigação e o do domicílio do réu.

A partir de então, a divergência passou a fazer-se não em relação à regra geral do art. 85º do CPC, antes à do art. 74º. Mantinha-se, contudo, uma relação de especialidade, pois o art. 21º era restrito às acções de resolução de contratos sobre veículos automóveis, ao passo que o art. 74º do CPC vigorava para a generalidade das acções de resolução contratual.

É neste quadro que devem integrar-se os efeitos que dimanam da aprovação da Lei nº 14/06, de 26-4, na parte em que introduziu modificações nos arts. 74º e 110º, nº 1, do CPC.

Segundo a nova redacção do art. 74º, salvo quando o réu seja pessoa colectiva ou, sendo pessoa singular, salvo quando resida nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, a acção de resolução do contrato por incumprimento, entre outras previstas no mesmo preceito, deve ser proposta no tribunal do domicílio do réu. Acabou-se, assim, com o foro alternativo que deixava nas mãos do credor a opção.

A razão desta intervenção legislativa não é imediatamente apreensível. Tratando-se de Lei da Assembleia da República, é destituída de justificação preambular, de modo que a auscultação da ratio legis, com relevo para efeitos interpretativos, deve procurar-se noutras fontes. Fontes essas que, no dizer de Baptista Machado, integram, por exemplo, “os anteprojectos que normalmente os acompanham, os projectos ... ou as actas da discussão do projecto na generalidade e na especialidade na assembleia legislativa ...” (Introdução ao Direito e Discurso Legitimador, págs. 184 e 185, com sublinhado nosso). Importa ainda ter presente, de acordo com o mesmo autor, os “factores conjunturais de ordem política, social e económica que determinaram a medida legislativa em causa”, sendo que, “por vezes, o conhecimento destes factores é mesmo indispensável para se poder atinar com o sentido e alcance da norma – sobretudo quando esta é já antiga e foi fortemente condicionada por factores de conjuntura” (pág. 190). Enfim, como refere noutro local, o conhecimento do fim visado pelo legislador, “sobretudo quando acompanhado das circunstâncias (políticas, sociais, económicas, morais, etc.) em que a norma foi elaborada ou da conjuntura político-económico-social que motivou a decisão legislativa (occasio legis) constitui um subsídio da maior importância para determinar o sentido da norma” (págs. 182 e 183).

Outro autor – Oliveira Ascensão – com relevantes trabalhos nesta área, realça a importância que deve ser atribuída à occasio legis, isto é, ao “circunstancialismo social que rodeou o aparecimento da lei”, devendo a lei ser interpretada à luz desse condicionalismo e atender-se à “justificação social da lei” e bem assim à razão de ser da lei “iluminada por uma pretensão de máxima racionalidade, que permitirá escolher entre possibilidades divergentes de interpretação” (O Direito, Introdução e Teoria Geral, 13ª ed., págs. 413 a 416).

2.3. No caso concreto, as circunstâncias que levaram o legislador a modificar o critério de atribuição de competência territorial encontram-se formalmente descritas na Resolução do Conselho de Ministros nº 100/05, de 30-5, de onde decorre o objectivo fundamental de racionalizar os meios judiciários postos à disposição dos interessados para a boa administração da justiça.

Este o fundamento essencial para considerar que, relativamente ao caso em análise, a competência territorial deve buscar-se através do que agora se dispõe no art. 74º, nº, 1 (conjugado com o art. 83º, nº 1, al. c), do CPC), e não no art. 21º do Dec. Lei nº 54/75. Assim revê o relator a posição que o levou a subscrever o acórdão, em sentido diverso, proferido no âmbito do agravo nº 8243-06, relatado por Roque Nogueira.

A modificação do direito adjectivo, na parte referente aos critérios definidores da competência territorial, foi uma das medidas integrada num rol mais vasto tendente a obter um real descongestionamento dos tribunais dos grandes centros urbanos. Simultaneamente pretendeu o legislador tutelar os interesses dos consumidores, aproximando os litígios judiciais das áreas onde se encontram domiciliados, a fim de facilitar o exercício do seu direito de defesa.

Aquela principal finalidade encontra-se também formalmente explicitada na justificação da Proposta de Lei apresentada pelo Governo junto da Assembleia da República, onde a lei foi aprovada, tendo o seguinte teor:

“O Programa do XVII Governo Constitucional assumiu como prioridade a melhoria da resposta judicial, a consubstanciar, designadamente, por medidas de descongestionamento processual eficazes e pela gestão racional dos recursos humanos e materiais do sistema judicial.
A necessidade de libertar os meios judiciais, magistrados e oficiais de justiça para a protecção de bens jurídicos que efectivamente mereçam a tutela judicial, e devolvendo os tribunais àquela que deve ser a sua função constitui um dos objectivos da Resolução do Conselho de Ministros n.º 100/2005, de 30 de Maio de 2005, que, aprovando um Plano de Acção para o Descongestionamento dos Tribunais, previu, entre outras medidas, a "introdução da regra de competência territorial do tribunal da comarca do réu para as acções relativas ao cumprimento de obrigações, sem prejuízo das especificidades da litigância característica das grandes Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto” (www.parlamento.pt).

Os debates que antecederam a aprovação da referida Lei na Assembleia da República (e que estão acessíveis através de www.parlamento.pt) revelam bem os desígnios do legislador no sentido de aprovar medidas potenciadoras de um verdadeiro descongestionamento dos tribunais e de uma efectiva tutela da posição jurídica do consumidor.

2.4. É verdade que a Lei nº 14/06 não procedeu a uma expressa revogação ou modificação do que se dispunha no art. 21º do Dec. Lei nº 54/75. Apesar disso, os motivos que presidiram à modificação expressa do art. 74º confluem no que respeita às acções e procedimentos cautelares abarcados por aquele preceito.

Na verdade, como reflexo de estratégias comerciais de entidades que exercem a actividade de concessão do crédito para consumo, maxime para aquisição de veículos automóveis, os tribunais cíveis dos grandes centros urbanos, com especial destaque para os das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, foram “colonizados” por acções de cobrança de dívidas, de natureza massificada. Pese embora o reduzido grau de litigiosidade, o número absoluto e relativo acabava por absorver uma grande parte dos recursos humanos e materiais na área da Administração da Justiça, dificultando uma resposta célere e eficaz noutros processos que envolvem litígios de diversa natureza e cujo relevo social é bem superior.

Foi para pôr cobro a esta situação que o legislador avançou para a modificação do regime em matéria de atribuição da competência territorial, alterando o disposto nos arts. 74º e 110º do CPC.

Sendo o mencionado art. 21º invocado para atribuir competência territorial a acções e procedimentos de apreensão a que subjazem litígios ligados à aquisição de veículos automóveis a crédito, as razões que levaram a aliviar a carga processual que afectava os tribunais cíveis das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto são inteiramente transponíveis para tais acções ou procedimentos cautelares. Afinal, trata-se de dar seguimento àquele desiderato de descongestionar os tribunais dessas áreas, melhorando simultaneamente as condições para que os consumidores (necessariamente pessoas singulares) possam defender os seus interesses.

Neste contexto, a adesão a uma tese que considere a manutenção em vigor do art. 21º do Dec. Lei nº 54/75 para as acções de resolução do contrato (seja de compra e venda, seja de mútuo) acabaria por contrariar os objectivos fundamentais do legislador, impedindo os resultados projectados.

Pode, pois assumir-se que a modificação operada nos arts. 74º e 100º envolveu, ainda que de forma tácita, a modificação do regime prescrito pelo art. 21º do Dec. Lei nº 54/75.

É neste sentido que se orienta, aliás, o Ac. desta Relação de 22-3-07, Rel. Salazar Casanova.

2.5. Todavia, a agravante refere que a modificação de uma norma geral como a do art. 74º do CPC não interfere numa norma especial como a do art. 21º do Dec. Lei nº 54/75.

Trata-se de argumento que vem sendo utilizado em alguns arestos desta mesma Relação, designadamente nos Acs. de 22-3-07, Rel. Sousa Pinto, de 13-3-07, Rel. Maria do Rosário Gonçalves, de 6-3-07, Rel. Afonso Henrique, e de 15-2-07, Rel. Ilídio Sacarrão.

Vejamos:

O art. 7º, nº 3, do CC determina que “a lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador”.

Já dissemos que, no caso, o conflito se estabelece entre a actual redacção do art. 74º do CPC (que funciona, para as acções de resolução, como regra geral) e o art. 21º do Dec. Lei nº 54/75 que, integrado num diploma que incidiu sobre contratos de aquisição de veículos automóveis, definiu um outro critério de atribuição de competência designadamente para as acções de resolução ligadas a tais bens. O conflito manifesta-se, assim, entre uma regra de natureza especialíssima, visando um tipo específico de litígios sobre veículos (maxime, acção de resolução de contrato de compra e venda) e uma regra que regula a competência para as demais acções de resolução de contratos e que, nesta relação, funciona como regra geral.

Laborando sobre o preceituado no art. 7º, nº 3, do CC, Oliveira Ascensão conclui que a regra de que a lei geral não revoga lei especial não obsta a que se retire “da lei nova a pretensão de regular totalmente a matéria, não deixando subsistir leis especiais”. Aponta como exemplo o caso em que com a nova legislação se pretenda “justamente pôr termo a regimes especiais antigos que deixaram de se justificar” (ob. cit., pág. 535). Segundo o mesmo autor, nada obsta a que se considere revogada lei especial se da nova lei geral puder retirar-se que o legislador “pretendeu regular exaustivamente um sector, não deixando subsistir fontes especiais”, o que pode ser revelado por determinados indícios entre os quais “a premência da solução igualmente sentida no sector em que vigorava a lei especial” ou o “facto de a solução constante da lei especial não se justificar afinal por necessidades desse sector ...”. (pág. 535).

2.6. A concreta situação é paradigmática.

A intenção inequívoca do legislador, no sentido da modificação tácita do art. 21º resulta à evidência dos Trabalhos Preparatórios e, especialmente, quando se atenta na justificação apresentada com a Proposta de Lei ou quando se analisa a discussão que sobre a referida proposta teve lugar na Assembleia da República.

A regra contida no mencionado art. 21º data de 1975, altura em que o congestionamento processual e a massificação de acções de incumprimento não apresentavam a gravidade que passou a verificar-se a partir dos anos 90, com a explosão do crédito ao consumo. Estava ainda longe a ideia de proteger o consumidor que viria a ganhar relevo constitucional, vinculando o legislador ordinário a adoptar instrumentos necessários a uma efectiva tutela dos seus interesses.

Por outro lado, nada existe de específico nos litígios que envolvam a aquisição de veículos automóveis que, decorridas três décadas sobre a aprovação da legislação especial, continue a justificar um específico regime definidor da competência em razão do território. Ao invés, o facto de os referidos litígios integrarem uma expressiva percentagem dos que contribuem para a concentração de processos de cobrança de dívidas nos tribunais das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto conflui precisamente para que se integrem na previsão da norma que alterou o art. 74º do CPC, sob pena de, mediante um argumento de pendor formal, acabarem por ser impedidos os efeitos positivos que o legislador previu: redistribuição de processos pela generalidade dos tribunais e efectiva tutela do consumidor.

A alteração tacitamente introduzida insere-se no objectivo global do Executivo, secundado pela Assembleia da República, de enfrentar o “monstro” da massificação processual, fomentando a distribuição racionalizada de processos pela generalidade dos tribunais, em função do domicílio dos devedores, a fim de conseguir o tratamento mais célere desses processos, sem prejudicar a intervenção dos tribunais em litígios de outra natureza.

Porventura, teria sido mais avisada a expressa revogação ou modificação do citado art. 21º, evitando as dúvidas sobre que operamos. Todavia, tal opção do legislador, cuja motivação se ignora, não deve obstar levar a que se percam de vista os objectivos fundamentais que inequivocamente pretenderam alcançar. Aliás, não parece exigível ou necessária uma exaustiva revogação ou alteração dos preceitos constantes de leis extravagantes, sendo legítimo extrair do novo texto legal, devidamente circunstanciado, a vontade do legislador de empreender uma modificação global do regime definidor da competência territorial em relação a acções a que estejam subjacentes litígios ligados ao incumprimento de contratos.

Acrescente-se ainda, por fim, como argumento formal, a que, no entanto atribuídos menor relevo, que a redacção do art. 74º do CPC não obedece à técnica legislativa que se encontra no art. 94º, onde expressamente se ressalvam os “casos especiais previstos noutras disposições ...”.

2.7. Em suma, parece-nos que a modificação do art. 74º, a par da modificação do art. 110º, nº 1, do CPC, apresenta suficiente força para se projectar na generalidade dos preceitos dispersos por diplomas avulsos, entre os quais o referido art. 21º, que contribuíam para a situação verdadeiramente calamitosa que levou o legislador a rever os critérios de atribuição de competência territorial.

Uma interpretação que levasse a excluir do âmbito do critério novo definido no art. 74º as acções conexas com a aquisição de veículos automóveis com recurso ao crédito deixaria de fora uma parte substancial das acções que enxameiam os tribunais de Lisboa e do Porto.

Sendo verdadeiramente dramática a situação dos tribunais dos grandes centros urbanos de Lisboa e do Porto, assoberbados com uma miríade de processos massificados, em geral ligados a contratos de crédito ao consumo, deve dar-se prevalência ao objectivo do legislador no sentido de racionalizar os meios judiciários por forma a distribuir de uma forma mais equilibrada os processos, evitando a excessiva e prejudicial concentração nos tribunais daquelas áreas metropolitanas.

Em tal solução pode ainda ver-se um outro objectivo do legislador (ainda que não expressamente assumido), de incentivar os credores a adoptarem um critério de maior rigor na concessão de crédito, levando-os a ponderar melhor o risco de insolvabilidade dos devedores e as despesas adicionais que, sem garantia de retorno, poderá acarretar a eventual dispersão de processos pelos diversos tribunais em que os respectivos devedores (pessoas singulares) estão domiciliados.

3. Quanto à segunda questão:

Atenta a natureza pública das regras de processo civil e, especificamente, de tudo quanto está relacionado com a organização judiciária e com o uso dos meios que podem ser usados pelos interessados para fazerem valer as suas pretensões, não pode questionar-se a legitimidade do Estado no que concerne à adopção de medidas legislativas que imponham aos interessados um uso mais racional dos meios disponibilizados para o sector da administração da justiça.

Nesta medida, o facto de no contrato ter sido convencionada, com recurso a cláusulas gerais, a competência territorial do Tribunal de Lisboa, onde se situa a sede da agravante, não constitui obstáculo a tais medidas de racionalização. O interesse público inerente sobrepõe-se naturalmente aos interesses particulares de entidades que, como a agravante, fizeram do sistema anteriormente em vigor um uso abusivo de que resultou um prejuízo para o interesse geral.

Aqui como noutros campos, devem ser os interessados a adaptar-se às regras gerais e imperativas formuladas pelo poder legislativo, sem que o Estado fique manietado por estratégias que visam unicamente os benefícios de um reduzido número de entidades.

No caso concreto, sem se coarctar o exercício do direito de acção, a regra geral agora fixada no art. 74º proporciona um uso mais racional dos meios, de modo que, por prevalência das regras de direito público ligadas à definição dos critérios de competência territorial sobre as convenções de direito privado, não existe motivo para deixar de aplicar ao caso concreto a solução que dimanou na alteração legislativa.

O diploma em análise, para além de ter expressamente salvaguardado as acções (ou procedimentos) anteriormente instaurados, apresenta força suficiente para se aplicar aos contratos anteriormente celebrados, considerando as normas adjectivas que nele foram inseridas.

Diga-se ainda que a conformidade constitucional da aplicação imediata aos contratos anteriormente celebrados tem sido consecutivamente afirmada pelo Tribunal Constitucional, sendo disso exemplos, os Acs. de 19-12-06, de 23-1-07, de 30-1-07 e de 6-2-07.

III – Em conclusão:

Face ao exposto, acorda-se em negar provimento ao agravo, mantendo a decisão recorrida.

Custas a cargo da agravante.
Notifique.
Lisboa, 29-5-07


(António Santos Abrantes Geraldes)

(Maria do Rosário Morgado)

(Rosa Maria Ribeiro Coelho)