Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2970/19.6YRLSB-6
Relator: ANA DE AZEREDO COELHO
Descritores: SENTENÇA ARBITRAL
PRINCÍPIO DO ESGOTAMENTO DO PODER JURISDICIONAL
AUTORIZAÇÃO DE INTRODUÇÃO NO MERCADO (AIM)
MEDICAMENTO GENÉRICO
PATENTE
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
CUSTAS DE PARTE
REEMBOLSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/09/2020
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I) O princípio do esgotamento do poder jurisdicional obsta à prolação de nova decisão sobre a matéria pelo mesmo tribunal e decorre da própria prolação da decisão, não dependendo do trânsito em julgado; a prolação de decisão em violação do princípio determina a nulidade a sentença que assim conhece, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), in fine, do CPC.

II) Os direitos concedidos pela autorização de introdução no mercado de medicamento genérico constituem valor económico existente no património da titular da AIM cuja transmissão ocorre nos precisos termos em que existem nesse património; a decisão jurisdicional que aprecie a sua compatibilidade com direitos da propriedade industrial produzirá efeitos quanto ao adquirente que não intervenha no processo.

III) A transmissão da AIM não viola direitos de propriedade industrial desde que não implique a transmissão de processo de fabrico ou outros valores protegidos que não sejam de conhecimento geral e que estejam protegidos pela patente invocada.

IV) Os tribunais arbitrais são competentes para a aplicação de sanções pecuniárias compulsórias, uma vez que a natureza destas afasta-as dos meios coercivos que exigem o império exclusivo dos tribunais estaduais.

V) A condenação em sanção pecuniária compulsória exige a verificação de dois requisitos positivos e dois negativos. São requisitos positivos (i) o requerimento do credor e (ii) referir-se a obrigações de prestação de facto infungível, positiva ou negativa. São requisitos negativos a não verificação de (iii) incumprimento definitivo ou de (iv) exigência de especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado.

VI) A sanção pecuniária compulsória visa uma dupla finalidade de moralidade e de eficácia, pois com ela se reforça a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça, enquanto por outro lado se favorece a execução específica das obrigações de prestação de facto ou de abstenção infungíveis.

VII) Nenhuma destas indicadas finalidades exige a violação actual ou iminente da obrigação de prestação de facto como como pressuposto da condenação em sanção pecuiniária compulsória que se constitui como espada de Dâmocles, dissuasora tanto da persistência no incumprimento iniciado ou anunciado como da ponderação de nele incorrer.

VIII) A previsão dos artigos 338.º-N, n.º 4, do CPI de 2003, e o artigo 349.º, n.º 4 do CPI2018 de aplicação da sanção pecuniária compulsória, acessória da condenação à cessação de uma actividade ilícita, não exige aquele pressuposto antes se destina a permitir que seja decretada oficiosamente.

IX) Na instância arbitral não se encontra previsto o pagamento de taxa de justiça ou de custas de parte; o reembolso a esse título apenas poderá ocorrer na fase em que o processo corre perante os tribunais estaduais, prescindindo as partes desse regime em sede arbitral.
(AAC)
Decisão Texto Parcial: Acordam na 6ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


I)RELATÓRIO:


G….. INC., com os sinais dos autos, veio instaurar, em 9 de Março de 2016, ação arbitral necessária (porque na vigência da primeira versão da Lei 62/2011, de 12 de Dezembro, anterior à entrada em vigor do Decreto-Lei 110/2018, de 10 de Dezembro) contra Z…. e S… LDA., ambas com os sinais dos autos, pedindo a condenação das Demandadas a absterem-se de, em território português, ou tendo em vista a comercialização nesse território, importar, fabricar, armazenar, introduzir no comércio, vender ou oferecer (por meio de concurso ou outra) os medicamentos que são objeto do pedido de AIM identificado na inicial ou, sob estas ou quaisquer outras designações ou marcas comerciais, quaisquer outros medicamentos compreendendo a combinação de substâncias ativas emtricitabina e tenofovir disoproxil (ou um seu sal), enquanto os direitos de propriedade industrial da G… estiverem em vigor, ou seja, até 24 de fevereiro de 2020, a não transmitirem a terceiros o pedido de AIM identificado ou quaisquer outras AIM ou pedidos de AIM compreendendo a combinação das substâncias ativas emtricitabina e tenofovir disoproxil (ou um seu sal), até à data de caducidade dos direitos exercidos, e, ainda, ao pagamento de uma sanção pecuniária compulsória não inferior a € 100.874,00 por cada dia de atraso no cumprimento da condenação que vier a ser proferida de acordo com o pedido acima, tudo acrescido dos custos da arbitragem, incluindo o reembolso das provisões feitas pela Demandante e dos montantes dos honorários dos seus advogados.

Alegou para tanto, em síntese, que tem procedido ao desenvolvimento de vários fármacos para tratamento do VIH, de entre os quais o comercializado sob a designação comercial TRUVADA, para o qual foi concedida, a 21 de fevereiro de 2005, uma autorização de introdução no mercado (AIM).

O TRUVADA é um medicamento inovador que contém como substâncias ativas o tenofovir disoproxil (TD) fumarato (TDF) e a emtricitabina.

As patentes europeias de que a Demandante é titular n.º0915894 (EP’894) e n.º0998480 (EP’480), protegem o medicamento TRUVADA, que contém a combinação das substâncias ativas TDF + emtricitabina, sendo a primeira patente a base do Certificado Complementar de Proteção n.º 202 (CCP202), de que a Demandante é titular, relativo a esta combinação de substâncias ativas.

A EP’894 protege igualmente composições farmacêuticas que incluem os compostos referidos com outros ingredientes terapêuticos e permanecerá em vigor até 25 de julho de 2017.

A EP ‘894 tem 33 reivindicações de três categorias diferentes: reivindicações de produto, reivindicações de processo e reivindicações de uso, encontrando-se o TD (e os seus sais) reivindicados pelo menos nas Reivindicações 1, 2, 3, 4, 5, 9, 21 e 25 da EP ‘894. Adicionalmente, a Reivindicação 27 da EP ‘894 tem a seguinte redação: “27. Composição farmacêutica que compreende um composto de acordo com qualquer uma das reivindicações 1-25, juntamente com um veículo farmaceuticamente aceitável e opcionalmente outros ingredientes terapêuticos”.

A Emtricitabina é um ingrediente terapêutico inibidor da transcriptase inversa do HIV-I, e é comercializada em Portugal como substância ativa única sob a marca comercial EMTRIVA.

Qualquer composição farmacêutica contendo TD (ou um seu sal) e emtricitabina, conjuntamente com um veículo farmaceuticamente aceitável, inclui-se no âmbito da Reivindicação 27 da EP ‘894.

O CCP202 foi concedido (i) com base na patente EP ‘894, e (ii) na AIM concedida para o TRUVADA, pelo que protege a combinação das substâncias ativas emtricitabina e TD (ou os seus sais), entrando em vigor logo que a patente de base, a EP‘894, caduque, o que terá lugar a 25 de julho de 2017.

A Demandante é ainda titular da EP‘480 que protege o tenofovir disoproxil fumarato (TDF) e composições adequadas à administração oral do tenofovir a um humano ou animal, para uso como agente antiviral que contém o referido composto, a qual permanecerá em vigor até 23 de julho de 2018.

A EP ‘894 tem 14 reivindicações de três categorias diferentes: reivindicações de produto, reivindicações de processo e reivindicações de uso, encontrando-se o TDF incluído e protegido pelas Reivindicações 1, 2 e 3 da EP ‘480.

Adicionalmente, qualquer composição contendo TDF conjuntamente com um excipiente aceitável encontra-se incluído e protegido pela Reivindicação 6 da EP ‘480.

A Z….Lda apresentou pedido de AIM para medicamentos contendo a combinação de emtricitabina e TD fumarato, indicando a SANOFI como futura titular da AIM, o que constituirá uma violação dos direitos da GILEAD resultantes da EP‘894, CCP202 e EP‘480, pois constituirão uma utilização comercial ilícita de uma invenção protegida.

A ocorrer a transmissão da AIM os direitos da G…. sairão totalmente defraudados, dado que, nesse caso, como não estaremos perante uma situação de habilitação, nos termos do artigo 356.º do Código de Processo Civil, ficaria aparentemente impedida de repetir a presente ação arbitral ou qualquer outra ação contra um terceiro transmissário.

A fim de assegurar a efectiva utilidade da sentença condenatória, dados os prejuízos que a violação dos direitos da Demandante consubstancia e que indica, devem as Demandadas ser condenadas em sanção pecuniária compulsória diária pelo eventual incumprimento.

As Demandadas contestaram por excepção e por impugnação, alegando, em síntese:
A Demandada S…, LDA., é parte ilegítima, uma vez que nas acções arbitrais instauradas ao abrigo da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, as partes legítimas são, pelo lado activo, o interessado que pretenda invocar o seu direito de propriedade industrial e, pelo lado passivo, o requerente de autorização ou registo de introdução no mercado do medicamento genérico, uma vez que é este quem tem interesse directo em contradizer, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 30.º, n.º 1, 2.ª parte, do Código de Processo Civil.

O CCP202 em que se fundamenta a acção arbitral é nulo, o que pode e deve ser declarado pelo tribunal arbitral com efeitos limitados às partes nesta acção, sem o que se verificaria uma efectiva situação de indefesa das Demandadas.

O CCP202, de que a Demandante é titular, e que tem como patente base a EP’ 894, não cumpre a condição prevista no artigo 3.º, alínea a), do Regulamento n.º 469/2009, uma vez que a EP’ 894 não protege o «produto» para o qual foi concedido o CCP 202, pois, (i) este foi concedido para uma combinação de tenofovir disoproxil fumarato e emtricitabina, e (ii) a emtricitabina não está explicitamente identificada nas reivindicações da EP' 894, não existindo uma relação entre a AIM e a patente de base.

Assim, não é possível concluir-se que a referência a «outros ingredientes terapêuticos» opcionais é considerada como uma referência necessária e específica à emtricitabina, uma vez que (i) não há caracterização na reivindicação 27 da EP’ 894 de qualquer tipo específico do outro ingrediente terapêutico, (ii) os outros ingredientes terapêuticos são indicados como opcionais e (iii) o caráter opcional do «outro ingrediente terapêutico» sugere ainda que a combinação não é uma invenção separada, mas meramente uma extensão da invenção relativa ao fármaco principal (tenofovir disoproxil).

Na verdade, a patente de base do CCP 202 (EP’ 894) não protege o «produto»para o qual foi concedido o referido CCP202,uma vez que (i) este foi concedido para uma combinação de tenofovir disoproxil fumarato e emtricitabina, e (ii) a emtricitabina não está explicitamente identificada nas reivindicações da EP' 894, não existindo uma relação entre a AIM e a patente de base.

Quanto ao pedido de proibição da transmissão a terceiros da AIM do medicamento genérico das Demandadas, a transmissão não se encontra compreendida na exploração industrial ou comercial dos mesmos e, por isso, ocorrendo na vigência dos direitos de propriedade industrial da Demandante, não seria contrária aos seus direitos de propriedade industrial.

Por outro lado, a AIM, sendo pressuposto jurídico essencial para a introdução do medicamento no mercado, não consubstancia um acto de comercialização desse mesmo medicamento, não se traduzindo, por isso, em qualquer violação do exclusivo conferido pela patente ou pelo respectivo certificado complementar de protecção.

Porquanto o eventual futuro titular ou adquirente da AIM em causa na presente acção arbitral teria a mesma qualidade jurídica do transmitente, in casu, as Demandadas, sendo por isso igualmente exequível a decisão transitada contra o eventual adquirente, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54.º e 55.º, do Código de Processo Civil.

Mais defenderam a improcedência do pedido de condenação das demandadas no pagamento de sanção pecuniária compulsória por a sua aplicação constituir um meio de intimidação ou de pressão sobre o devedor, levando-o a cumprir a obrigação a que foi condenado, vencendo a resistência da sua oposição ou do seu desleixo, indiferença ou negligência, encontrando-se dependente da alegação e da prova pela Demandante de um actual ou iminente incumprimento das Demandadas, o que não ocorre.

Concluem pela procedência das excepções e pela absolvição da instância da Demandada S… e dos pedidos da Demandada Z….

A Demandante respondeu às excepções, concluindo como na inicial.

Foi decidido terem legitimidade Z….. e, por habilitação, Z… PORTUGAL, LDA., contra elas prosseguindo a causa.

O Tribunal Arbitral decidiu, com um voto de vencido, indeferir a pretensão das Demandadas de que fosse decretada a invalidade do CPP202 com meros efeitos inter partes, afirmando a competência exclusiva do Tribunal da Propriedade Industrial para essa apreciação, nos termos dos artigos 35.º, nº 1, do CPI2003 (actual 34.º, nº 1, do CPI2018), 15.º, n.º 2, e 19.º, n.º 1, do Regulamento (CE) 469/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de maio de 2009 (doravante RegCCP), e 111.º, n.º 1, alínea c), da Lei 62/2013, de 26 de agosto (LOSJ). Disse o Tribunal Arbitral a respeito:

Permitir que, por via incidental, e em instância arbitral, como são as instituídas ao abrigo da Lei 62/2011, de 12 de dezembro, se decida, para o caso sub judice, da validade de uma patente, viola o exclusivo legal de competência supra referido, fundado na indispensabilidade de a certeza e segurança jurídicas, de par com a garantia de que todos os agentes económicos interessados estarão perante a patente em condições de igualdade, serem asseguradas por decisão erga omnes, proferida por tribunal judicial, em ação para o efeito intentada.

As Demandadas interpuseram recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, o qual foi recebido para subir imediatamente, nos autos e com efeito suspensivo da decisão, mas não da marcha do processo, para o que foi extraído traslado. O recurso encontra-se pendente.

Realizada audiência de julgamento foi proferida sentença na qual o Tribunal Arbitral decidiu conhecer da invalidade do CCP202, por ter entrado em vigor nova redacção do artigo 3.º da Lei nº 62/2011, de 12 de dezembro, estatuindo, no número 3 deste artigo, que “No processo arbitral pode ser invocada e reconhecida a invalidade da patente com meros efeitos inter partes”, entendendo, ademais, que a norma que procedeu à alteração tinha natureza interpretativa.

Decidiu o Tribunal Arbitral na decisão final:

Termos em que, com meros efeitos entre a G…, por um lado, e a Z… Portugal Lda e a S.., por outro, julga-se inválido o CCP 202, por não obedecer aos requisitos do art.º 3.º, alínea a), do Regulamento n.º 469/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de maio de 2009, com a interpretação do Acórdão do TJUE de 25 de julho de 2018, no caso Teka UK Ltd e outros v. G… Inc..
Ficam, assim, prejudicados os reenvios prejudiciais requeridos pelas Demandadas e as inconstitucionalidades por elas arguidas.
Em consequência da decretada invalidade, absolve-se as Demandadas dos pedidos da Demandante, mas sem prejuízo da decisão sobre encargos.
(…)
O presente litígio resulta de fatores externos às Partes, obrigando-as a pedir a tutela para uma situação a que não deram causa. Na decisão final, as Demandadas tiveram integral ganho de causa, mas o fundamento precípuo da decisão proferida assenta em factos posteriores à instauração da ação: o acórdão do TJUE de 25 de julho de 2018 e o DL nº 110/2018, de 10 de dezembro. Torna-se, assim, equitativo que suportem um terço dos encargos do processo. Cada parte suportará os honorários dos respetivos mandatários.

Desta decisão interpuseram recurso tanto a Demandante como as Demandadas, estas invocando o regime de reforma quanto a custas, recursos cuja admissibilidade foi remetida para este tribunal por despacho do Ex.mo Árbitro Presidente, por não caber ao Tribunal Arbitral pronúncia sobre questões suscitadas após a decisão final.

Tendo alegado, a Demandante concluiu, em síntese (não se transcrevem integralmente as conclusões, omitindo os passos mais desnecessários para a definição da pretensão):

1.OBJETO DO RECURSO: o presente recurso tem por objeto a sentença arbitral, na parte em que (i) reverteu a decisão de competência para apreciar a invalidade do CCP 202 que já havia proferido no Despacho n.º 8, bem como a sua decisão de fixação do efeito suspensivo do recurso interposto perante o Tribunal Constitucional (“TC”), (ii) declarou que afinal era competente para apreciar a validade do CCP 202 e (iii) declarou a invalidade, com meros feitos inter partes, do Certificado Complementar Proteção n.º 202, deixando prejudicado o conhecimento dos pedidos formulados pela G… na Petição Inicial.
2.DA NULIDADE DO ACÓRDÃO ARBITRAL POR VIOLAÇÃO DOS ARTS. 613.º N.ºS 1 E 3 E 615.º N.º 1 AL. D) DO CPC: o presente recurso é em primeira linha interposto contra a sentença arbitral que (i) reverteu a decisão sobre competência tomada previamente pelo Tribunal e (ii) que foi proferida na pendência de um recurso com efeito suspensivo. 3. O Tribunal arbitral já havia decidido sobre a sua competência para apreciar a validade do CCP202 (Despacho n.º 8). Essa decisão foi seguida da interposição de um recurso da Zentiva para o TC.
(…)
11.Em suma, deverão V.as Ex.as concluir pela invalidade da sentença arbitral, revogando-a na sua totalidade.
12.DA INCOMPETÊNCIA DO TRIBUNAL ARBITRAL PARA APRECIAR A VALIDADE DO CCP 202: A G… vem, subsidiariamente e por mera e absoluta cautela de patrocínio, requerer a revogação da sentença arbitral, na parte em que que o Tribunal Arbitral se considerou competente para conhecer da validade do CCP 202 por força do atual artigo 3.º, n.º 3 do CPC.
(…)
43.O Acórdão recorrido enferma do vício de violação de lei substantiva, uma vez que errou na interpretação e aplicação das normas aplicáveis ao caso concreto, concretamente dos artigos 2.º da Lei n.º 62/2011 (na sua anterior redação), 4.º, n.º 2, 7.º, n.os 1 e 4 e 35.º, n.º 1 do CPI, tendo incorrido, ainda, na violação dos artigos 42.º, 62.º e 18.º, n.os 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa (“CRP”), devendo por isso ser revogado.
44.DA VALIDADE DO CCP 202: A G… está também a recorrer da decisão arbitral na medida em que a mesma declarou a invalidade do CCP 202. A decisão do Tribunal assenta não só numa aplicação errónea do quadro jurídico para determinar a validade de CCP’s como também numa errada apreciação da prova produzida.
45.Deverá desde já salientar-se que, tendo em conta os princípios processuais excipiendi fit actor e actor incumbit probatio, a Z…. teria de fornecer elementos de prova suficientes para ilidir a presunção de validade que recai sobre o CCP 202 – o que, como veremos, não fez. Este Tribunal terá forçosamente que se cingir aos factos alegados e à prova produzida nestes autos para decidir da validade do CCP 202. Por outras palavras, e perante a falta de elementos de prova passíveis de afastar a presunção de validade, o Tribunal não tem de olhar à suficiência da prova produzida pela Demandante para determinar se o CCP é válido: o direito já é em si válido por força da própria presunção.
46.Da análise da prova: na sua apreciação dos factos controvertidos, e não obstante terem os principais factos invocados pela G… para estabelecer a validade do CCP sido dados como provados, o Tribunal Arbitral incorreu num manifesto erro de julgamento na aplicação do quadro jurídico para a determinação da validade do CCP e uma errónea consideração da prova produzida ao apreciar os factos controvertidos 25. e 30. Deste modo, impõe-se que seja reapreciada a prova gravada e a prova produzida nestes autos, ao abrigo do artigo 640.º do CPC.
(…)
74.Aplicação do teste do TJUE ao CCP 202: Como vimos, o que cabe a V. Ex.as avaliar é se a reivindicação 27 da EP ‘894 “visa necessária e especificamente” a associação de tenofovir disoproxil e emtricitabina, para efeitos do artigo 3.º, alínea a) do Regulamento CCP.
(…)
82.OS PEDIDOS ACESSÓRIOS: A Z…a deverá ainda ser condenada no pedido de não transmissão de AIM para os medicamentos genéricos TD+FTC da Z… identificados na Petição Inicial ou quaisquer outros pedidos de AIM em que a substância ativa compreenda tenofovir disoproxil (ou um seu sal), no pedido de condenação no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória e no pedido de condenação no pagamento dos encargos arbitrais, incluindo o reembolso pelos pagamentos iniciais feitos pela G… e os honorários dos mandatários da G….
83.DA TRANSMISSÃO DA AIM OU DOS PEDIDOS DE AIM A TERCEIROS: A condenação da Z… a não realizar a transmissão é essencial para proporcionar um efetivo valor tutelar à sentença condenatória que, de outro modo, de pouco valerá porque será facilmente contornada pelas Demandadas. Bastar-lhes-á, no dia seguinte à prolação do acórdão, transmitir a um terceiro a sua AIM ou pedido de AIM referentes a medicamentos genéricos contendo emtricitabina e tenofovir disoproxil (ou um seu sal), forçando a Gilead a iniciar uma via crucis sempre renovada e
também sempre totalmente ineficaz para tentar exercer os seus direitos.
84.DA SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA: Considerando o depoimento do Dr. G…a, o valor da sanção pecuniária compulsória deve ser, consequentemente, atualizado em relação ao valor indicado na petição inicial (€ 145.000,00), para que possa cumprir o seu objetivo de ser suficientemente dissuasora no sentido de a Z… não comercializar quaisquer medicamentos que contenham a associação de emtricitabina e tenofovir disoproxil (e respetivos sais) antes da data de caducidade do CCP 202 invocado pela G…. nos presentes autos.
85.Tendo em consideração o acima referido, o entendimento é de que o valor da sanção compulsória não deve ser inferior a € 138.450,00 (cento e trinta e oito mil quatrocentos e cinquenta euros) por cada dia de atraso no cumprimento da condenação da Z… de se abster, em território português, ou tendo em vista a comercialização no referido território, de importar, fabricar, armazenar, comercializar, vender ou oferecer medicamentos genéricos que contenham a associação de emtricitabina e tenofovir disoproxil (e respetivos sais) enquanto o CCP 202 permanecerem em vigor.
86.DOS ENCARGOS ARBITRAIS: Por fim, deverá ainda a Z… a ser ordenada por este douto Tribunal a reembolsar a Gilead dos valores dos honorários dos Exmos. Senhores Árbitros, Exma. Senhora Secretária e despesas administrativas que lhe cabia e que foram supridos pela Demandante.
Nestes termos, e nos melhores de direito que V.as Ex.as certamente suprirão, deve o acórdão final ser:
a.- declarado nulo por violação do princípio da extinção do poder jurisdicional e do caso julgado, ao abrigo dos artigos 613.º n.º 1 e 3 e 619.º n.º 1 do CPC ou, caso assim não se entenda,
b.- revogado, declarando-se a incompetência do Tribunal para conhecer incidentalmente da validade do CCP 202 e condenando-se a demandada em todos os pedidos formulados com base nos factos assentes EEE., FFF., QQ., RR. e SS. ou, caso assim não se entenda,
c.- revogado e:
i.- alterada a decisão sobre a matéria de facto, nos termos supra expostos;
ii.- com base nos factos controvertidos (provados) 23., 26., 27.,28. e 29. e nos factos cuja reapreciação se requer (25. e 30.), considerar o CCP válido, uma vez que não foi ilidida a presunção de validade do mesmo, condenando-se a demandada em todos os pedidos formulados com base nos factos assentes EEE., FFF., QQ., RR. e SS.

Juntou três documentos.

As Demandadas contra-alegaram defendendo o julgado e concluíram pedindo:

Nestes termos e nos demais de Direito, requer-se que:
A)- Seja rejeitado o presente recurso, por ser manifesta a sua improcedência; inclusive quanto à impugnação da matéria de facto e à reapreciação da prova gravada;
E a título subsidiário, em caso de procedência:
B)- Seja rejeitado o pedido de proibição de transmissão a terceiros das AIM´s de que são titulares as Recorridas;
C)- Seja rejeitado o pedido de condenação em sanção pecuniária compulsória;
E a título cautelar:
D)- Sejam desaplicadas as interpretações normativas identificadas no Capítulo IV das presentes contra-alegações, com fundamento em inconstitucionalidade, ao abrigo do artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa;
Em todo o caso, deve o Tribunal:
E)- Fixar efeito meramente devolutivo ao presente recurso, conforme determinado pelo artigo 3.º, n.º 7, da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, caso o Tribunal Arbitral lhe fixe efeito suspensivo;
F)- Formular, perante o Tribunal de Justiça da União Europeia, as questões prejudiciais identificadas no Capítulo V das presentes contra-alegações;
G)- Ordenar à Recorrente, ao abrigo dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 652.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, que junte aos autos cópia da sentença proferida pelo 1.º Juízo do Tribunal da Propriedade Industrial, no processo n.º 384/16.9YHLSB, bem como de eventual acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa sobre o recurso por si interposto, caso tal tenha, entretanto, ocorrido.

Juntaram dez documentos.

A Demandante respondeu às contra-alegações.

As Demandadas suscitaram a questão da reforma quanto a custas interpondo quanto a tal recurso nos termos do artigo 616.º, n.º 3, do CPC, a que atribuíram valor, recurso admitido face à abstenção do Tribunal Arbitral na apreciação da questão da reforma. Tendo alegado quanto ao recurso que interpuseram, as Demandadas concluíram, em síntese:

1.– O presente recurso de apelação vem interposto da sentença arbitral proferida no dia 29 de Abril de 2019, na acção arbitral intentada pela Recorrida, ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, na parte em que condenou as Recorrentes a suportarem um terço dos encargos da acção arbitral, doravante designada por «decisão arbitral recorrida»;
2.– A decisão arbitral recorrida, na parte em que condenou as Recorrentes a suportarem um terço dos encargos da acção arbitral, é recorrível, ao abrigo do disposto no artigo 616.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, porque cabe recurso da mesma, por força do disposto no artigo 3.º, n.º 7, da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro;
3.– O presente litígio não resulta de factores externos às Partes, nem de uma situação a que não deram causa;
4.– O fundamento da decisão arbitral recorrida assenta no acórdão do TJUE de 25 de Julho de 2018, o qual é posterior à instauração da presente acção arbitral, mas existem outras decisões do TJUE, no mesmo sentido, anteriores à instauração da presente acção arbitral, pelo que não ocorreu uma reversão de jurisprudência constante em que se haja fundado a pretensão da Recorrida ou a oposição das Recorrentes, nos termos previstos no artigo 536.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil;
5.– O fundamento da decisão arbitral recorrida assenta no Decreto-Lei nº 110/2018, de 10 de Dezembro, o qual é posterior à instauração da presente acção arbitral, mas a nova redacção do artigo 3.º, n.º 3, da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, introduzida pelo artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 110/2018, de 10 de Dezembro, não preenche a previsão do artigo 536.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil («disposição legal entretanto alterada ou revogada»), para além de que já era a exigida pela Constituição e pela doutrina portuguesa, e veio, tão-só, determinar, assim, aquilo que já decorria da jurisprudência do Tribunal Constitucional (vide Acórdão n.º 251/2017) e da mais recente jurisprudência dos tribunais cíveis e até do TJUE;
6.– A Recorrida decaiu totalmente na presente acção arbitral, pelo que a decisão arbitral recorrida deveria tê-la condenado a suportar a totalidade dos encargos, ao abrigo do disposto no artigo 48.º, n.º 3, do Regulamento do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa, de 2014, aplicável ex vi artigo 4.2.1. da Acta de Instalação do Tribunal Arbitral.
7.– A Recorrida ficou totalmente vencida na presente acção arbitral, pelo que a decisão arbitral recorrida deveria tê-la condenado a suportar a totalidade dos encargos, ao abrigo do disposto no artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4.2.4. da Acta de Instalação do Tribunal Arbitral;
8.– A decisão arbitral recorrida, na parte em que condenou as Recorrentes a suportarem um terço dos encargos da acção arbitral, quando «as Demandadas tiveram integral ganho de causa» e, consequentemente, a Recorrida decaiu totalmente na presente acção arbitral ou ficou totalmente vencida na presente acção arbitral, violou o disposto no artigo 48.º, n.º 3, do Regulamento do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa, de 2014, aplicável ex vi artigo 4.2.1. da Acta de Instalação do Tribunal Arbitral, e nos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, e 536.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4.2.4. da Acta de Instalação do Tribunal Arbitral.
Nestes termos, e nos demais de Direito, cujo douto suprimento expressamente se requer, deve ser concedido integral provimento ao presente recurso de apelação, revogando-se a decisão arbitral recorrida, na parte em que condenou as Recorrentes a suportarem um terço dos encargos da acção arbitral, e substituindo-se o mesmo por outra que condene a Recorrida a suportar a totalidade dos encargos da acção arbitral, pois, só assim se fará inteira JUSTIÇA!

A Demandante contra-alegou defendendo o julgado.

Os recursos foram admitidos com efeito meramente devolutivo. Foram relegadas para esta decisão as questões relativas a (i) rejeição da apreciação da decisão de facto por incumprimento dos ónus a que alude o artigo 640.º do CPC, (ii) junção de documentos apresentados com as alegações de parte e doutra e (iii) admissibilidade de resposta a contra-alegações.
Cumprido o demais legal, cumpre apreciar e decidir já que a tal nada obsta.

II)OBJECTO

Estando a pronúncia deste Tribunal delimitada pelas conclusões das Recorrentes - artigo 635.º, n.º 3, 639.º, nº 1 e 3, com as exceções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC - cumpre apreciar e decidir oficiosamente da questão do valor do recurso interposto pelas Demandadas e, sob impulso das partes, das seguintes questões, que se enunciam sem prejuízo da relação de prejudicialidade entre elas existente:
1.Da junção de documentos com as alegações de recurso
2.Da rejeição da impugnação da decisão de facto por incumprimento dos ónus a que alude o artigo 640.º, do CPC
3.Da requisição das decisões de primeira instância e desta Relação proferidas no processo 384/16.9YHLSB
4.Da admissibilidade da resposta a contra-alegações
5.Da nulidade da decisão arbitral por violação do princípio da extinção do poder jurisdicional
6.Da revogação da decisão arbitral por incompetência do Tribunal para conhecer incidentalmente da validade do CCP 202
7.Do reenvio prejudicial
8.Da alteração da decisão sobre a matéria de facto quanto aos pontos 25 e 30
9.Do conhecimento do mérito dos pedidos formulados: reapreciação substitutiva
a)-Do pedido de condenação das Demandadas a absterem-se das actividades relacionadas com medicamentos genéricos no contexto da AIM solicitada
b)-Do pedido de condenação das Demandadas a não transmitirem a AIM identificada ou quaisquer outras compreendendo as mesmas substâncias activas
c)-Do pedido de condenação das Demandadas no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória
10.Das custas/encargos
11.Do valor

III)FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos pertinentes são os que constam do relatório supra e ainda os seguintes que resultam da decisão de facto do tribunal recorrido (nas respectivas alíneas será mencionada a impugnação da matéria de facto)

A O TRUVADA ® é um medicamento inovador que contém como substâncias ativas o tenofovir disoproxil sob a forma do seu sal de ácido fumárico, tenofovir disoproxil fumarato, e emtricitabina.
B O tenofovir disoproxil é um pró-fármaco inovador de tenofovir (ou seja, é um composto químico que, após a administração, é rapidamente convertido [química ou enzimaticamente], no corpo, no composto antiviral terapeuticamente ativo - o tenofovir).
C O tenofovir inibe a atividade da "transcriptase inversa", uma enzima produzida pelo VIH que lhe permite infetar mais células e produzir mais vírus. Tomado em associação com outros medicamentos antivirais (como a emtricitabina), o tenofovir disoproxil reduz a quantidade de VIH no sangue e mantem-no em níveis baixos.
D A SIDA é causada por uma infeção por um retrovírus denominado VIH e é considerada uma pandemia pela Organização Mundial de Saúde ("OMS").
E De acordo com a OMS, a infeção por VIH pode ser definida como uma infeção das células do sistema imunitário, que destrói ou afeta a sua função. A infeção com o vírus resulta na deterioração progressiva do sistema imunitário, levando a uma "deficiência imunitária".
F O sistema imunitário é considerado deficiente quando deixa de conseguir cumprir o seu papel de combate às infeções e doenças. As infeções associadas a Imunodeficiência grave são conhecidas como "infeções oportunistas", visto que se aproveitam de um sistema imunitário enfraquecido.
G SIDA é um termo que se aplica às fases mais avançadas de infeção pelo VIH, sendo definido pela ocorrência de qualquer uma das mais de 20 infeções oportunistas ou cancros relacionados com o VIH.
H Hoje em dia, a nível mundial, existem mais de 36.9 milhões de adultos e crianças afetados e a viverem com SIDA.
I Em 2014, 1.2 milhões de pessoas, em todo o mundo, morreram de causas relacionadas com o VIH e 2 milhões de pessoas foram infetadas com VIH.
J As doenças relacionadas com o VIH já tiraram a vida a mais de 34 milhões de pessoas, em todo o mundo.
K A US Food and Drug Administration aprovou o primeiro medicamento para o tratamento da SIDA, em 1987, o AZT (com a Denominação Comum Internacional ["DCI"] de zidovudina).
L Contudo, o AZT apresentava deficiências significativas no tratamento da infeção por VIH, incluindo o desenvolvimento rápido de resistência, toxicidade e outros efeitos secundários graves.
M O desenvolvimento de um tratamento mais seguro e mais eficaz para a infeção por VIH, adequado à sua utilização de longo prazo, tornou-se ainda mais crucial.
N O tenofovir tem várias designações químicas, incluindo (R)-9[2- (fosfonometoxi)propN]adenina", sendo abreviado para (R)-PMPA (da designação em inglês "(R)-9[2-(phosphonomethoxy)gropyl]adenine").
(…) Omissis
AA A G.. é a titular da Patente Europeia n.° 0915894 (adiante designada por "EP '894"), a qual protege diversos intermediários para análogos de nucleótidos fosfonometoxi (ou análogos fosfonometoxi de nucleótidos), em especial pró- fármacos, e os seus sais adequados, para uso na administração oral eficaz desses análogos, nos termos do Doc. n.° 1 junto com a p.i., que aqui se dá por integralmente reproduzido.
BB A EP '894 protege igualmente composições farmacêuticas que incluem os compostos referidos com outros ingredientes terapêuticos.
CC A EP '894 foi pedida junto do Instituto Europeu de Patentes ("IEP"), em 25 de julho de 1997, e a menção de concessão da patente foi publicada no Boletim Europeu de Patentes, em 14 de maio de 2003.
DD A tradução da EP '894, tal como concedida, foi apresentado junto do Instituto Nacional da Propriedade Industrial ("INPI") em conformidade com o artigo 65.° da Convenção sobre a Patente Europeia e com os artigos 79.° e 80.° do Código da Propriedade Industrial ("CPI").
EE As reivindicações da EP '894, tal como concedida, são as que se encontram indicadas no documento n° 1 junto com a p.i., que aqui se dá por integralmente reproduzido.
FF A EP '894 tem 33 reivindicações de três categorias diferentes: reivindicações de produto, reivindicações de processo e reivindicações de uso.
(…) Omissis
PP A Emtricitabina é um ingrediente terapêutico, sendo um inibidor da transcriptase inversa do HIV-I, e é comercializada em Portugal como substância ativa única sob a marca comercial EMTRIVA®.
QQ A G… é titular do Certificado Complementar de Proteção n.° 202 (“CCP202"), concedido pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial, em 30 de setembro de 2005, nos termos do Doc. n.° 2 junto com a p.i. e que se dá aqui por integralmente reproduzido, do qual consta que o CCP abrange o produto TRUVADA - EMTRICITABINA / TENOFOVIR DISOPROXIL FUMARATO, que se encontra protegido na patente base n.º 915894.
RR O CCP 202 foi concedido (i) com base na patente EP '894, e (ii) na autorização de introdução no mercado concedida para o medicamento TRUVADA®, que contém a combinação de substâncias ativas emtricitabina e TD (presente no TRUVADA® como o seu sal fumárico, TD fumarato).
SS A primeira autorização de introdução no mercado para o "Truvada - Emtricitabina/Tenofovir Disoproxil" foi concedida a 21 de fevereiro de 2005 e notificada a 24 de fevereiro de 2005.
TT A G… é ainda titular da Patente Europeia n.° 0998480 (adiante designada por "EP '480"), a qual protege o tenofovir disoproxil fumarato e composições adequadas à administração oral do tenofovir a um humano ou animal, para uso como agente antiviral que contém o referido composto, nos termos do Doc. n.° 3 junto com a p.i., que aqui se dá por integralmente reproduzido.
UU A EP '480 foi pedida junto do IEP, em 23 de julho de 1998, e a menção de concessão da patente foi publicada, no Boletim Europeu de Patentes, em 27 de novembro de 2002.
VV A tradução da EP '480, tal como concedida, foi apresentada junto do INPI em conformidade com o artigo 65.° da Convenção sobre a Patente Europeia e com os artigos 79.° e 80.° do CPI.
(…) Omissis
EEE A 18 de fevereiro de 2016, o INFARMED publicitou na lista "Publicação para efeitos do artigo 15.°-A do Decreto-Lei n.° 176/2006, de 30 de agosto", disponível na sua página eletrónica, o seguinte pedido de AIM para medicamentos contendo a combinação de emtricitabina e TD fumarato, requerido pela Z…, conforme tabela infra, tudo nos termos do Doc. n.° 4 junto com a p.i., que aqui se dá por integralmente reproduzido.



FFF No pedido de AIM que originou os presentes autos, foi indicada como futura titular da AIM a Sanofi, nos termos do doc. n° 5 junto com a p.i., que aqui se dá por integralmente reproduzido.
GGG Os medicamentos para os quais se requereu a AIM e que se pretendem lançar no mercado contêm a combinação de substâncias ativas emtricitabina ("FTC") e TD na forma do seu sal de ácido fumárico, TD fumarato, conforme indicado na informação prestada para o efeito pelo INFARMED.
HHH Considerando que a AIM requerida pela Z….indica como forma farmacêutica comprimidos revestidos por película para uso farmacêutico, tal produto contém, necessariamente, um excipiente farmaceuticamente aceitável (i.e. um excipiente aceitável).
III As demandadas não solicitaram, nem obtiveram consentimento da G… para explorar as invenções protegidas pelas EP '894, CCP 202 E EP '480.
JJJ A transferência de AIM's não é incomum entre as empresas de genéricos e, em particular, entre o grupo Z…, o qual por vezes integra a S…i.
KKK A transmissão de AIM ocorre com frequência.
LLL O TRUVADA® é comercializado em Portugal pela G… Lda. (200mg + 245 mg, comprimido revestido por película, contido num frasco de 30 unidades), que é 99,8% detida pela G… Inc..
MMM O TRUVADA® é um medicamento sujeito a receita médica restrita, restrito a uso hospitalar, de acordo com o artigo 118.°, alínea a), do Estatuto do Medicamento, tudo nos termos do Doc. n.° 7 junto com a p.i e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
NNN A comercialização de medicamentos restritos a uso hospitalar não segue os regimes gerais de preços e reembolso aplicáveis aos medicamentos de uso humano, não tendo de ser requerida a fixação de um preço de venda ao público.
OOO Os medicamentos referidos na alínea precedente encontram-se sujeitos às disposições gerais do Decreto-Lei n.° 97/2015, de 1 de junho, que regula o Sistema Nacional de Avaliação de Tecnologias de Saúde (SiNATS), bem como do Código dos Contratos Públicos, no que respeita à compra de medicamentos por hospitais do Sistema Nacional de Saúde.
PPP A participação em concursos hospitalares ficará sujeita a:
- titularidade de uma autorização de introdução no mercado válida;
- celebração prévia de um acordo entre o titular da AIM e o INFARMED, celebrado com base numa decisão favorável emitida pelo INFARMED em relação ao pedido apresentado a este respeito pelo titular da AIM nos termos dos artigos 25.° e 26.° do Decreto-Lei n.° 97/2015, de 1 de junho;
- em que o medicamento é um genérico, com um preço inferior no mínimo em 30% ao dos medicamentos de referência, de acordo com o artigo 25.°, n.° 9.
QQQ Os medicamentos referidos na alínea NNN podem de seguida ser adquiridos pelos hospitais públicos, que normalmente abrem concurso em relação a uma determinada substância ativa.
RRR O ATRIPLA® é igualmente um produto de VIH, que contém a associação de três substâncias ativas:
- TD sob a forma do seu sal de ácido fumárico, TD fumarato, que tal como referido acima, é comercializado como substância ativa única sob a marca comercial VIREAD®;
- emtricitabina, que é comercializada como substância ativa única sob a marca comercial EMTRIVA®; e
- efavirenz, que é comercializado como substância ativa única sob a marcas comerciais SUSTIVA® e STOCRIN
- (…) Omissis
SSS Atualmente, Portugal encontra-se incluído nos cabazes de 10 países da UE, nos termos do doc. n.° 8 junto com a p.i, que aqui se dá por integralmente reproduzido, e também em alguns cabazes de países fora da UE.
TTT A 21 de fevereiro de 2005, foi concedida uma autorização de introdução no mercado ("AIM") centralizada para o medicamento TRUVADA ®, para o tratamento do HIV.
UUU Já para as empresas de genéricos poderem proceder à oferta de genéricos TDF+FTC junto dos hospitais privados, bastará simplesmente verem os seus pedidos de AIM concedidos.
VVV Os medicamentos genéricos são vendidos a um preço inferior ao dos medicamentos de referência.
WWW Com base nas AIM's dos autos, as Demandadas podem celebrar contratos com o INFARMED e participar em concursos públicos que venham a ser lançados, oferecendo o seu genérico do produto TDF+FTC.
XXX Também é expectável que as Demandadas participem em tais concursos oferecendo um preço inferior ao que foi oferecido pela G… para o TRUVADA®, tendo em conta o exposto em relação aos preços genéricos e que o critério de adjudicação em concursos hospitalares é sempre o preço mais baixo oferecido.
YYY Com base em casos análogos de entrada de genéricos no mercado de medicamentos para o tratamento do VIH limitados apenas ao uso hospitalar, é expectável que a Gilead venha a sofrer uma erosão do mercado de 56% no primeiro ano, 79% no segundo ano, e 87% no terceiro ano.
ZZZ O volume de vendas foi de € 57 485 000,00 em 2014, e de € 61 222 352,46, em 2015.
AAAA De acordo com estes valores, as estimativas para o próximo ano (2017) e para os dois anos seguintes no volume das vendas do TRUVADA®, são as seguintes, com correções de 0,4% nos valores de vendas.

BBBB Deve ser igualmente tido em conta que a entrada do genérico do TRUVADA® no mercado português terá um impacto sobre outro produto da G…: o ATRIPLA®.
CCCC Assim que esteja disponível um genérico de TDF + FTC, é possível que haja uma substituição dos produtos em associação da G…, tal como o ATRIPLA®, para uma associação compreendendo um genérico de efavirenz (já disponível no mercado português) e um genérico TDF+FTC das Demandadas.
DDDD Nos anos 2014 e 2015, o volume de vendas dos medicamentos ATRIPLA® em Portugal, foi de € 28 247 000, em 2014, e de € 20 895 539,46, em 2015.
EEEE As estimativas de vendas do ATRIPLA® para o próximo ano (2016/2017) e para os dois anos seguintes são as seguintes, com correções de 0,4% nos valores de vendas:




FFFF Com a correcção de 0,4%, o impacto das vendas de um genérico TDF+FTC no mercado para o ATRIPLA®, poderá, como tal, atingir € 4.643 milhões até ao final dos 12 primeiros meses, € 6.130 milhões nos 12 meses seguintes e 6.697 milhões nos 12 meses subsequentes.
GGGG O preço oferecido pela G… em Portugal tem em conta, além dos requisitos legais, o impacto que terá noutros países com base no sistema de referência do preço externo.
HHHH Tendo em conta o que consta da precedente alínea SSS, a redução do preço estabelecido para o TRUVADA ® não é uma opção viável para a G…, tendo em conta a enorme repercussão que teria em, pelo menos 10 países - e, obviamente, em Portugal.
(…) Omissis
Do seguimento do processo 384/16.9YHLSB resulta ainda (o que se adita nos termos do artigo 663.º, n.º 2, com referência ao artigo 607.º, n.º 4, ambos do CPC, por não ser controverso):
SSSS Foi proferida sentença pelo Tribunal da Propriedade Industrial que anulou, ao abrigo do disposto no art. 15º, 1, a) e 3º, a) do Regulamento (CE) nº 469/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, o Certificado Complementar de Protecção nº 202, a qual foi confirmada por esta Relação por acórdão datado de 28 de Novembro de 2019.

III)FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

1. Da junção de documentos com as alegações de recurso
Tanto a Demandante como as Demandadas apresentaram documentos com as alegações de recurso, sendo que parte desses documentos consistem em peças processuais que, naturalmente, já constavam do processo.
No que se reporta à Demandada, apenas o acórdão do High Court of Justice of England and Wales não constitui peça destes autos. Refere-se à matéria discutida nos autos relativa à validade do CCP202.
No que se refere à Demandante juntou três documentos sendo um peça do processo e os demais um acórdão do STJ, cujo sumário se encontra publicado nos Sumários de Acórdãos das Secções Cíveis daquele Supremo Tribunal (referindo-se a competência do tribunal arbitral necessário para conhecer da invalidade da patente ou do certificado complementar de protecção, relativo a medicamento patenteado), e uma notificação do Tribunal Constitucional de 23 de Maio de 2019 (relativa ao recurso interposto nos autos e à remessa para conferência da apreciação da decisão sumária que o julgou improcedente pelas mesmas razões de anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional que a Recorrente entende não ser a melhor), pretendendo a Demandante demonstrar que o Tribunal Constitucional pondera alterar aquela sua jurisprudência.
No que se refere às peças processuais, é inócua a junção, obviamente, para além da duplicação no suporte físico e electrónico. Ordenar o seu desentranhamento apenas aumenta a entropia, inexistindo razão para o determinar.
No que se refere à notificação do Tribunal Constitucional, embora posterior à decisão final do Tribunal Arbitral, é inidónea à prova de qualquer facto controvertido, pelo que não se destina a provar fundamentos da acção, inexistindo razão para a junção que deve ser indeferida - artigo 423.º, n.º 1, do CPC.
No que se refere às decisões de tribunais portugueses ou estrangeiro, não se destinam à prova de qualquer facto. Nessa medida, poder-se-ia fundar naquela norma decisão de indeferimento.
No entanto, a junção destina-se a demonstrar o bem fundado da interpretação jurídica defendida pela apresentante, sendo que não os encontrámos publicados. Não estando vedada a transcrição de acórdãos nas alegações das partes, dada a pertinência dos referidos quanto às matérias suscitadas, entende-se de deferir a sua manutenção nos autos, porque não exorbita de nenhum critério de razoabilidade que a tal pudesse ser oposto.

2. Da rejeição da impugnação da decisão de facto por incumprimento dos ónus a que alude o artigo 640.º, do CPC
Nas suas contra-alegações as Demandadas defenderam a inadmissibilidade de apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto por considerarem que a Recorrente não cumpriu com os ónus a que a impugnação está sujeita.
No que a tal respeita, defenderam que a questão que a Recorrente pretende ver apreciada não é uma verdadeira questão sobre matéria de facto, mas antes uma questão de Direito, pelo que o recurso quanto à matéria de facto deve ser liminarmente rejeitado, por manifesto incumprimento do artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil.

Reporta-se aos factos acima indicados como impugnados os quais têm a seguinte redacção:
A emtricitabina é um exemplo de um componente que contribui para a atividade antiviral que era conhecida à data de prioridade da EP ’894, de 26 de julho de 1996.
A emtricitabina pode ser considerada outro ingrediente terapêutico na aceção da reivindicação 27 da EP ‘894.
O artigo 640.º, n.º 1, do CPC, estabelece que quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição os concretos pontos de facto, os concretos meios probatórios e a decisão que deve ser proferida.
Vejamos então, adiantando-se que entendemos que foram cumpridos os ónus indicados e inexiste motivo para rejeição liminar da impugnação.
Assim, verifica-se que os Recorrentes indicaram quais os factos que entendem deverem ser julgados de maneira diversa, a saber os acima transcritos, o sentido que a decisão haveria de ter e os meios de prova em que fundam tal pretensão.
Ou seja, cumpriram cabalmente o ónus de impugnação.
Saber se a matéria em causa é de facto, de direito ou conclusiva, é questão que já se relaciona com a apreciação da impugnação, não com a sua admissibilidade. Certo é que na decisão foram considerados como factos. Assim, não há fundamento para a rejeição liminar da impugnação por incumprimento do disposto no artigo 640.º do CPC.

3. Da requisição das decisões de primeira instância e desta Relação proferidas no processo 384/16.9YHLSB
O processo mencionado é o processo em que foi pedida a anulação do CCP202 com efeito erga omnes, no qual foi proferida decisão de primeira instância e desta Relação, ainda não transitadas.
Foi determinado e concedido o seguimento daquele processo do qual resulta a matéria que se deu como assente em SSSS. Até ao trânsito da decisão, a matéria é irrelevante para a apreciação a que nestes autos se procede. Inexiste motivo para que se determine a apresentação de certidões.

4. Da admissibilidade da resposta a contra-alegações
Visto o disposto no artigo 638.º do CPC e não estando em causa a ampliação do recurso da Demandante, a resposta às contra-alegações não encontra previsão legal.
No entanto, as Demandadas apresentaram documentos que autorizam resposta da Demandante, improcedendo a pretensão de desentranhamento.

5. Da nulidade da decisão arbitral por violação do princípio da extinção do poder jurisdicional
5.1.- A Recorrente G… entende que ao tribunal arbitral estava vedado conhecer na decisão final da questão da validade do CCP202, por já ter decidido, por despacho proferido nos autos, ser materialmente incompetente para conhecer tal questão.
O Tribunal Arbitral, como resulta da transcrição do pertinente despacho que supra consta, entendeu que lhe era possível pronunciar-se sobre a questão por, após a decisão em que se julgou incompetente para conhecer incidentalmente da validade do CCP202, ter sido publicada e ter entrado em vigor lei que alterou a disposição em que fundou aquela decisão de incompetência.
Assim, com fundamento em que a sua anterior decisão ainda não tinha transitado por se encontrar pendente o recurso dela interposto para o Tribunal Constitucional, decidiu reapreciar a questão na sentença final, vindo a considerar-se competente para conhecer da validade do certificado e, apreciando-a, declarou a sua invalidade.

5.2. Dispõe o artigo 613.º, n.º 1, do CPC, que proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa. Por seu turno, o n.º 3 do artigo manda aplicar tal norma, com as necessárias adaptações, aos despachos.
No caso que nos ocupa, o tribunal recorrido entendeu que a não ocorrência do trânsito da sua anterior decisão determinava a viabilidade de prolação de outra decisão sobre a mesma matéria.
Ora, é manifesto que tal entendimento não encontra apoio na norma citada. Na verdade, não é o trânsito em julgado de uma sentença ou de um despacho que obsta à prolação de nova decisão sobre a matéria pelo mesmo tribunal. É a própria prolação da decisão que esgota o poder jurisdicional, como resulta claro da expressão da lei: proferida a decisão.
A esse respeito refere Lebre de Freitas (1) que o esgotamento do poder jurisdicional do juiz, de que trata o artigo, não depende de, nem se confunde com, o caso julgado formal, regulado no art. 620. Assim, havendo decisão inequívoca (…), embora não se tenha formado, ainda, caso julgado formal sobre essa questão (veja-se o art.644-3), o art. 613 obsta a que o tribunal (…) se pronuncie sobre a mesma.
Também Rui Pinto (2) ensina que o trânsito em julgado constitui uma técnica de estabilização dos resultados do processo, mas que não é única, integrando-se numa linha gradual de estabilização.
Efetivamente, decorre, desde logo, do artigo 613.º, n.º 1, que, prolatada a sentença ou despacho, o tribunal não os pode revogar, por perda de poder jurisdicional. Trata-se, pois, de uma regra de proibição do livre arbítrio e discricionariedade na estabilidade das decisões judiciais.
Graças a esta regra, antes mesmo do trânsito em julgado, uma decisão
adquire com o seu proferimento um primeiro nível de estabilidade interna ou restrita, perante o próprio autor da decisão.


5.3. Em outra ordem de razões se funda ainda o tribunal recorrido para entender admissível a pronúncia, a saber, a alteração legislativa subsequente à prolação da primeira decisão. Alteração legislativa que veio expressamente permitir o conhecimento incidental da validade dos CCP inter partes na instância arbitral.
Não tem, porém, razão. Pese embora a alteração, a mesma matéria apenas poderia ser apreciada e decidida por órgãos jurisdicionais cujo poder de apreciação se não encontrasse esgotado – v.g. os Tribunais de Recurso –, ou pelo tribunal recorrido em consequência da decisão que fosse proferida pelo Tribunal Constitucional no recurso que se encontra pendente. Não pelo tribunal recorrido, sem mais.
A tal é absolutamente inócua a consideração da natureza interpretativa da nova lei. O princípio do esgotamento do poder jurisdicional visa a estabilidade das decisões judiciais, sendo indiferente a modificação legal quando inexista jurisdição para dela conhecer.
Numa outra vertente deste argumento, defendem as Demandadas que não se pode considerar que o tribunal se pronuncia sobre a mesma matéria quando a apreciação é determinada pela entrada em vigor de lei nova directamente aplicável, como é o caso dos autos.
A identidade da matéria objecto do despacho tem de cumprir, com as necessárias adaptações, com a identidade da causa definida quanto ao caso julgado material e à litispendência no artigo 581.º, n.º 1, do CPC: repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
No caso, repete-se a apreciação objecto de despacho anteriormente proferido no processo quando a matéria aprecianda é a mesma, o pedido em apreciação é idêntico, o mesmo acontecendo quanto às partes.
Não oferece dúvida a identidade das partes (coincidente com as partes no processo nas suas respectivas qualidades) e do pedido objecto da decisão (competência para a apreciação da validade do CCP202). O que as Demandadas colocam em crise é a identidade da matéria.
Não cremos que colha o argumento. A questão angular da identidade aprecianda é a da identidade de facto jurídico, prosseguindo com amparo na norma do artigo 581.º, do CPC, agora quanto ao seu n.º 4.
O que convoca a noção de facto enquanto acontecimento da vida real e a sua relevância jurídica. A causa de pedir é assim o facto ou conjunto de factos que, dotados de relevância jurídica, fundam a pretensão deduzida.
Anote-se que facto jurídico apela à relevância jurídica do facto e não à identidade da lei que lhe é aplicável.
Nesse sentido refere o Supremo Tribunal de Justiça em Acórdão de 20 de Abril de 2013, proferido no processo 7770/07.3TBVFR.P1.S1 (LOPES DO REGO), que para a questão da identidade da causa de pedir não releva (…) uma inovação que apenas se circunscreva ao plano da qualificação jurídico-normativa do elenco dos factos concretos que, em ambas as acções, integram, sem qualquer alteração ou modificação, a causa de pedir invocada pelo demandante.
No cerne da identidade os factos juridicamente significativos que estão em apreciação. Ninguém nos autos coloca em causa que são exactamente os mesmos, o que determina se considere que a apreciação da decisão final repete a do despacho sob recurso no Tribunal Constitucional.
Conhecendo o tribunal de questão que lhe estava vedada, incorre em nulidade a sentença que assim conhece, visto o disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), in fine, do CPC.
Termos em que se conclui pela nulidade da decisão arbitral.

6. Da revogação da decisão arbitral por incompetência do Tribunal para conhecer incidentalmente da validade do CCP 202
Esta questão foi suscitada e tem sentido na improcedência da anterior, pelo que se encontra prejudicado o seu conhecimento.

7. Do reenvio prejudicial
As Demandadas requereram que a Relação suscitasse diversas questões ao Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante TJUE) em sede de reenvio prejudicial.
Em concreto suscitaram as seguintes questões de reenvio:

1.– Se o artigo 3.º, alínea a), do Regulamento (CE) n.º 469/2009, deve ser interpretado no sentido de que pode ser concedido um certificado complementar de protecção, considerando-se que o medicamento está protegido por uma patente de base em vigor, quando da patente europeia, que já expirou, apenas consta uma reivindicação genérica, imprecisa e indeterminada, que apenas identifica a substância de base, mas nem identifica o nome do ingrediente opcional, nem tão pouco as suas caraterísticas terapêuticas ou farmacológicas, limitando-se a referir que podem ser combinados com a substância de base, “opcionalmente, outros ingredientes terapêuticos”;
2.– Se os artigos 3.º, alínea a), e 15.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento (CE) n.º 469/2009, devem ser interpretados no sentido de que é nulo um certificado complementar de protecção, quando a patente europeia que protege determinado produto de base já expirou e daquela patente apenas constava uma identificação, genérica, imprecisa e indeterminada, da substância de base, mas não a identificação do nome do ingrediente opcional, nem sequer as suas caraterísticas terapêuticas ou farmacológicas, limitando-se a referir que podem ser combinados com a substância de base, “opcionalmente, outros ingredientes terapêuticos”.

Justificam a necessidade/conveniência do reenvio por estar em causa a interpretação das normas do RegCCP em que se funda a sua alegação de invalidade do CCP202 por não estar fundado numa patente base, uma vez que, na posição que defendem, a associação da emtricitabina com o tenofovir disaproxil fumarato não está coberta pela protecção da EP’894.
Independentemente da necessidade do reenvio face à jurisprudência abundante do TJUE, tem de ter-se em atenção que não cabe neste recurso pronúncia sobre a questão da validade do CCP202 nos termos das citadas normas do RegCCP.
Na verdade, a apreciação da validade do CCP202 está excluída da possível apreciação neste recurso, por ter sido conhecida nos autos em decisão anterior, ora em apreciação noutra instância recursória.
Inexiste em consequência fundamento para o reenvio prejudicial ou para a consideração de todas as questões de constitucionalidade que a propósito as partes formularam nas suas alegações e contra-alegações.

8.Do conhecimento do mérito dos pedidos formulados

8.1.Sendo declarada a nulidade da decisão arbitral, opera a norma do artigo 665.º, n.º 2, do CPC, devendo a Relação substituir-se ao tribunal recorrido quanto à apreciação das questões que ficaram prejudicadas em primeira instância face à decisão de invalidade do CCP202.
A norma indicada determina que a Relação deve proferir decisão relativamente a questões não decididas pelo tribunal recorrido, nomeadamente, por prejudicadas pela solução dada na decisão recorrida. Apenas em caso de os autos não conterem todos os elementos necessários deverá remeter os autos sem essa decisão «substitutiva». Ou seja, a Relação não é um tribunal apenas de cassação, funcionando antes como tribunal de substituição.
No caso, os autos contêm os elementos necessários à pronúncia, pelo que a situação se enquadra directamente na previsão do citado artigo 665.º, n.º 2, nada havendo que a excepcione daquele regime.

8.2.De considerar, ainda, o indispensável exercício do contraditório a que alude o artigo 3.º, n.º 3, do CPC, e o artigo 665.º, n.º 3, do mesmo Código.
No entanto, não se incluem na apreciação concretamente em causa elementos não considerados pelas partes, antes a decisão se situa no âmbito do recurso interposto, no qual era pedida, expressamente, a apreciação de mérito face à impossibilidade de apreciação da validade do CCP202 ou, em alternativa, face à declaração da mesma validade.
Em consequência, por o contraditório ter sido possibilitado abundantemente nos autos, nomeadamente, em sede de alegações e contra-alegações de recurso, verifica-se desnecessidade de contraditório prévio específico, que seria redundante.
Cumpre assim apreciar do mérito dos pedidos formulados.

9.Da alteração da decisão sobre a matéria de facto quanto aos pontos 25 e 30
9.1.Vem suscitada a reapreciação da decisão de facto quanto aos pontos 25 e 30.

O facto controvertido 25 tinha a seguinte redacção:
25- “A emtricitabina é um exemplo de um componente que contribui para a atividade antiviral que era conhecida à data de prioridade da EP ’894, de 26 de julho de 1996?”
A resposta dada pelo Tribunal foi a seguinte (alínea LLLL): “Provado apenas que a emtricitabina, à data da prioridade da EP ‘894, tinha-se revelado em ensaios pré-clínicos – in vitro e animais – e em ensaios clínicos da fase I, como molécula candidata a contribuir para a atividade antiviral.
A Demandante entende que deveria ter sido julgado provado.
O facto controvertido 30 tinha a seguinte redação:
30- “A emtricitabina pode ser considerada outro ingrediente terapêutico na aceção da reivindicação 27 da EP ‘894?”
Na sua resposta ao facto controvertido, o Tribunal considerou (alínea RRRR): “Provado apenas que, após a realização dos ensaios clínicos fase II, III e IV, posteriores a 26 de julho de 1996, a emtricitabina pode ser considerada outro ingrediente terapêutico na aceção da reivindicação 27 da EP ‘894”.
A Demandante entende que deveria ter sido julgado provado.

9.2.Tal reapreciação é suscitada para fundar a apreciação da validade do CCP, como resulta claro da consideração da matéria de facto em causa e das alegações das partes, sendo aliás apresentada subsidiariamente para o caso de não ser declarada a nulidade da sentença na parte em que aprecia da validade do CCP202.
Assim sendo, a apreciação de tal matéria está prejudicada, sendo ademais irrelevante face à impossibilidade de reapreciação da validade do CCP202 fora do âmbito das consequências do recurso interposto, nomeadamente face à impossibilidade de a Relação se pronunciar sobre a matéria no presente recurso.
Pelo exposto, não há que reapreciar a matéria de facto em causa, por prejudicada.

10.Do pedido de condenação das Demandadas a absterem-se das actividades relacionadas com medicamentos genéricos no contexto da AIM solicitada.
10.1.Pediu a Demandante que as Demandadas sejam condenadas a absterem-se de actividades relacionadas com a comercialização, importação, fabrico, armazenagem dos medicamentos que são objeto do pedido de AIM ou de quaisquer outros compreendendo a combinação de substâncias activas emtricitabina e tenofovir disoproxil (ou um seu sal).
Invocou como fundamento a titularidade das patentes europeias EP’894 e EP’480 e do CCP202 relativo à patente base EP’894.
Como resulta das alíneas CC) e UU) supra as patentes referidas foram registadas, respectivamente, em 25 de julho de 1997 e em 23 de julho de 1998, pelo que caducaram em 25 de Julho de 2017 e em 23 de Julho de 2018.
A Gilead é titular do CCP202, constando que o CCP abrange o produto TRUVADA - EMTRICITABINA / TENOFOVIR DISOPROXIL FUMARATO, que se encontra protegido na patente base n.º 915894 (cf. alínea QQQ supra).
Conforme alínea SS) dos factos assentes, a primeira autorização de introdução no mercado do Truvada é de 21 de Fevereiro de 2005 e foi notificada a 24 de fevereiro de 2005.
Nos termos do artigo 13.º, n.º 1, do Regulamento (CE) 469/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de Maio de 2009, relativo ao certificado complementar de protecção para os medicamentos (doravante RegCCP) o certificado produz efeitos no termo legal da validade da patente de base, durante um período que corresponde ao período decorrido entre a data da apresentação do pedido da patente de base e a data da primeira autorização de introdução no mercado na Comunidade, reduzido um período de cinco anos.
O CCP202 é assim válido até 24 de Fevereiro de 2020.

10.1.2.A caducidade das EP’894 e EP’480 na pendência da acção, determina a inutilidade da apreciação dos pedidos face à protecção por elas concedida.
10.1.3.A caducidade das patentes implica que a protecção dos direitos invocados pela Demandante repouse actualmente no CCP202 concedido com base na patente EP’894.
Dispõe o artigo 4.º do RegCCP que, dentro dos limites da protecção assegurada pela patente de base, a protecção conferida pelo certificado abrange apenas o produto coberto pela autorização de introdução no mercado do medicamento correspondente para qualquer utilização do produto, como medicamento, que tenha sido autorizada antes do termo da validade do certificado.
Por seu turno, o artigo 5.º do RegCCP o certificado confere os mesmos direitos que os conferidos pela patente de base e está sujeito às mesmas limitações e obrigações.

Apesar de a presente acção ter sido instaurada em 2016, na vigência do Decreto-Lei 36/2003 (doravante CPI2003), é aplicável o Código da Propriedade Industrial aprovado pelo Decreto-Lei 110/2018, de 10 de Dezembro (doravante CPI2018), atento o disposto no artigo 15.º, alínea c), do Decreto-Lei 110/2018:

Artigo 15.º
Aplicação no tempo
Sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, as disposições do Código da Propriedade Industrial introduzidas pelo presente decreto-lei aplicam-se:
(…)
c)- Às patentes, modelos de utilidade, certificados complementares de proteção, registos de desenhos ou modelos, registos de marcas, registos de logótipos, registos de denominações de origem, registos de indicações geográficas, registos de recompensas, registos de nomes de estabelecimento e de insígnias de estabelecimento existentes à data da entrada em vigor do presente decreto-lei.

O artigo 102.º, do CPI2018, sob a epígrafe Direitos conferidos pela patente é do seguinte teor:
1–A patente confere o direito exclusivo de explorar a invenção em qualquer parte do território português.
2–A patente confere ainda ao seu titular o direito de impedir a terceiros, sem o seu consentimento:
a)- O fabrico, a oferta, a armazenagem, a colocação no mercado ou a utilização de um produto objeto de patente, ou a importação ou posse do mesmo, para algum dos fins mencionados;
b)- A utilização do processo objeto da patente ou, se o terceiro tem ou devia ter conhecimento de que a utilização do processo é proibida sem o consentimento do titular da patente, a oferta da sua utilização;
c)- A oferta, a armazenagem, a colocação no mercado e a utilização, ou a importação ou posse para esses fins, de produtos obtidos diretamente pelo processo objeto da patente.
3–A patente confere também ao seu titular o direito de impedir a terceiros, sem o seu consentimento, a oferta ou a disponibilização a qualquer pessoa que não tenha o direito de explorar a invenção patenteada dos meios para executá-la no que se refere a um seu elemento essencial, se o terceiro tem ou devia ter conhecimento de que tais meios são adequados e destinados a essa execução.
(…)
7–Os direitos conferidos pela patente não podem exceder o âmbito definido pelas reivindicações.
8–O titular de uma patente pode solicitar ao INPI, I. P., mediante o pagamento de uma taxa, a limitação do âmbito da proteção da invenção pela modificação das reivindicações.
9–Se, do exame, se concluir que o pedido de limitação está em condições de ser deferido, o INPI, I. P., promove a publicação do aviso da menção da modificação das reivindicações, sendo, em caso contrário, o pedido indeferido e a decisão comunicada ao requerente.

A patente base do CCP202 tem a abrangência que decorre da matéria de facto provada, nomeadamente das suas reivindicações, conforme n.º 7 da norma transcrita, sendo que, nos termos do artigo 98.º, n.º 1, do CPI2018, como no do artigo 97.º, n.º 1, do CPI2003, o âmbito da proteção conferida pela patente é determinado pelo conteúdo das reivindicações, servindo a descrição e os desenhos para as interpretar.
Por outro lado, também decorre da matéria de facto provada, como referido, que o CCP202 foi concedido abrangendo o produto TRUVADA - EMTRICITABINA / TENOFOVIR DISOPROXIL FUMARATO.
Estando invocada a titularidade do CCP202 pela Demandante (e vedado o conhecimento da nulidade do mesmo face à abrangência da EP’894), a apreciação do litígio submetido determina o mero confronto entre a protecção concedida pelo CCP e o medicamento genérico identificado pelos princípios activos na solicitação de AIM que fundamenta a acção.
No caso, desse confronto decorre a coincidência entre ambos, uma vez que o CCP202 abrange a combinação dos princípios activos tenofovir diproxil fumarato e emtricitabina e a AIM foi pedida para um medicamento genérico com esses mesmos princípios activos.
É o que resultou provado na alínea EEE): a 18 de fevereiro de 2016, o INFARMED publicitou na lista "Publicação para efeitos do artigo 15.°-A do Decreto-Lei n.° 176/2006, de 30 de agosto", disponível na sua página eletrónica, o seguinte pedido de AIM para medicamentos contendo a combinação de emtricitabina e TD fumarato, requerido pela Zentiva, conforme tabela infra, com identificação das substâncias activas:

O âmbito de protecção da patente base, a EP’894, não é convocado nesta análise, uma vez que apenas o poderia ser em sede de apreciação da validade do CCP202 nos termos do artigo 3.º, alínea a), do RegCCP. A correspondência entre a abrangência do CCP e a patente base, no caso, quanto à questão de saber se a reivindicação 27 supra mencionada é idónea à inclusão da emtricitabina como outro ingrediente terapêutico descrito de forma funcional e não estrutural, não está em causa nesta decisão, repete-se.
A titularidade do CCP202 com aquela abrangência, na inviabilidade de se verificar da sua validade por correspondência com a patente base, determina a procedência da pretensão da Demandante quanto ao/s genérico/s a que a AIM se refere, ou seja aos compostos de emtricitabina com tenofovir disoproxil fumarato, face à protecção de que goza a fórmula do medicamento de referência, Truvada.
Em consequência, face à abrangência do CCP202 tem de concluir-se pela coincidência do genérico a que se refere a AIM solicitada pela Zentiva, com o Truvada, procedendo o pedido de abstenção até ao termo de vigência do CCP202 (3), nos termos do artigo 310.º, do CPI2018.

10.2. Do pedido de condenação das Demandadas a não transmitirem a AIM identificada ou quaisquer outras referidas às mesmas substâncias activas.
Pediu a Demandante a condenação das Demandadas a não transmitirem a terceiros a autorização concedida na procedência do pedido de AIM apresentado ao INFARMED ou quaisquer outras AIM ou pedidos de AIM referentes à combinação das substâncias ativas emtricitabina e tenofovir disoproxil (ou um seu sal).
O pedido de condenação das Demandadas a não transmitirem os direitos concedidos pela AIM que solicitaram e que está em causa, louva-se, na perspectiva da Demandante, no facto de a AIM constituir condição legal para a comercialização de qualquer medicamento, sendo que essa comercialização viola os seus invocados direitos, nomeadamente porque tornará inútil face ao terceiro adquirente qualquer decisão proferida nestes autos, por a mesma lhe não ser oponível.
Invoca assim o regime do artigo 335.º do Código Civil (CC) que prevê o instituto da colisão de direitos, no caso, os seus direitos de propriedade industrial e os da Demandada Zentiva Ks. de transmissão de bens do seu património, para concluir que aqueles devem preferir a este.
Ou seja, pretende a Demandante ser seu direito obstar a essa liberdade jurídico-económica, por isso que a transmissão dos direitos decorrentes da AIM tornaria irrelevante a defesa que intentou com a presente acção. Por isso defende que deve obstar-se à transmissão da autorização de introdução no mercado.
A transmissão de um valor económico existente no património da Demandada Zentiva, no caso o valor que os direitos concedidos pela AIM constituem, consiste na transmissão desses direitos nos precisos termos em que existem no seu património, porventura limitados pelos direitos de propriedade industrial da Demandante nos termos pretendidos nesta acção.
A tal não obsta o facto de o eventual adquirente não ser parte na acção, uma vez que a decisão a proferir produzirá efeitos quanto a ele, nos termos do artigo 263.º, n.º 3, do CPC: a sentença produz efeitos em relação ao adquirente, ainda que este não intervenha no processo.
Cremos ser uniforme a jurisprudência nesse sentido, citando-se, por todos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Maio de 2018, proferido no processo 889/17.4YRLSB.S1 (Távora Victor) ou de 20 de Maio de 2015 proferido no processo 747/13.1YRLSB.S1 (Orlando Afonso), e os acórdãos desta Relação de 24 de Abril de 2018 proferido no processo 1334/17.2YRLSB-1 (Manuel Marques), de 7 de Março de 2017 proferido no processo 470/15.2YRLSB-1 (Pedro Brighton) e de 2 de Dezembro de 2014 proferido no processo 1158/13.4YRLSB (Maria do Rosário Barbosa).
Refere o acórdão do STJ de 20 de Maio de 2015 que a transmissão dos direitos concedidos pela AIM não pode ser considerada como violadora daqueles direitos, limitando-se a constituir uma actividade própria da vida económica de transmissão de valores detidos no património de entidades privadas.
Também o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Maio de 2018 menciona que a concessão de AIM de um genérico não constitui, por si só, violação do direito de propriedade industrial decorrente da patente do medicamento de referência, não se inserindo, por isso, em nenhuma das actuações proibidas pela previsão do art. 101.º, n.º 2, do CPI, pelo que, a transmissão dessa AIM para terceiros – não permitindo iniciar a exploração industrial ou comercial dos medicamentos – também não integra nenhuma das condutas tidas pelo legislador como violadoras do exclusivo que o CCP outorga.
Diversa é a posição do acórdão desta Relação de 4 de Fevereiro de 2016 proferido no processo 138/15.0YRLSB.L1-8 (Sacarrão Martins) (4) mas também diversa era a situação que dirimiu. Nesse acórdão a situação colocada não era a de transmissão de uma mera autorização de exploração de um medicamento, mas a de transmissão com a AIM do processo de fabrico que não era de conhecimento geral e estava protegido pela patente invocada. Por isso, decidiu a Relação que a transmissão era ela própria violadora dos direitos de propriedade industrial invocados. Não é essa a situação dos autos.
Improcede a pretensão de proibição de transmissão dos direitos concedidos pela AIM.
10.3.Do pedido de condenação das Demandadas no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória
10.3.1.Pediu a Demandante a condenação das Demandadas no pagamento de sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso no cumprimento da condenação que vier a ser proferida.

Dispõe o artigo 829.º-A, n.º 1, do CC, sob a epígrafe sanção pecuniária compulsória:

1- Nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveni
ente às circunstâncias do caso.
2- A sanção pecuniária compulsória prevista no número anterior será fixada segundo critérios de razoabilidade, sem prejuízo da indemnização a que houver lugar.
3- O montante da sanção pecuniária compulsória destina-se, em partes iguais, ao credor e ao Estado.
4- Quando for estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro corrente, são automaticamente devidos juros à taxa de 5% ao ano, desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado, os quais acrescerão aos juros de mora, se estes forem também devidos, ou à indemnização a que houver lugar.

A norma foi introduzida pelo Decreto-Lei 262/83, de 16 de Junho, constituindo inovação face ao regime pretérito, indicando o legislador (5) como fonte de inspiração as francesas astreintes (6) Justificou a opção como desenvolvimento das medidas tomadas pelo Decreto-Lei 200-C/80, de 24 de Junho, ao introduzir alterações respeitantes às taxas de juro e às cláusulas penais:

O presente diploma visa complementar o acima referido [alterações do DL 200-C/80], enquanto mantém, no essencial, as alterações então introduzidas, acrescentando algumas disposições atinentes à usura material, que não só à de crédito, bem como à inovação que representam entre nós as medidas compulsórias pecuniárias (astreintes).

E mais adiante, no que se refere especificamente à sanção pecuniária compulsória explicita:

(…) autêntica inovação, entre nós, constituem as sanções compulsórias reguladas no artigo 829.º-A. Inspira-se a do n.º 1 desse preceito no modelo francês das astreintes, sem todavia menosprezar alguns contributos de outras ordens jurídicas; ficando-se pela coerção patrimonial, evitou-se contudo atribuir-se-lhe um carácter de coerção pessoal (prisão) que poderia ser discutível face às garantias constitucionais.
A sanção pecuniária compulsória visa, em suma, uma dupla finalidade de moralidade e de eficácia, pois com ela se reforça a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça, enquanto por outro lado se favorece a execução específica das obrigações de prestação de facto ou de abstenção infungíveis.

Sobre a questão se pronuncia extensamente João Calvão da Silva (7). Refere este Autor, sobre a ratio do preceito que são concebíveis e possíveis meios de constrangimento indirecto sobre a vontade do devedor, que, pelas desvantagens que o seu desrespeito lhe acarreta, o incitem a cumprir voluntariamente, visto ser para si mais vantajoso cumprir a prestação devida do que suportar as consequências que a falta de cumprimento lhe causa (8) . Ou, adiante a sanção pecuniária compulsória é, por definição, um meio indirecto de constrangimento decretado pelo juiz, destinado a induzir o devedor a cumprir a obrigação a que se encontra adstrito e a obedecer à injunção judicial (9).
Pode, assim, dizer-se que a sanção pecuniária compulsória é a ameaça para o devedor de uma sanção pecuniária, ordenada pelo juiz, para a hipótese de ele não obedecer à condenação principal. Ameaça de sanção pecuniária que, se visa o cumprimento voluntário das obrigações, no respeito pela palavra dada e pelo princípio pacta sunt servanda, não deixa de favorecer também o respeito a ter para com as decisões judiciais (10) .

Também Brandão Proença (11) se refere a esta razão de ser do instituto, indicando que a sanção pecuniária compulsória surge face à inviabilidade do mecanismo de coerção directa atingir todo o espectro obrigacional.

Assume o legislador claramente uma dupla finalidade - eficácia na satisfação do direito e respeito pelas decisões judiciais – a atingir pela pressão no sentido do cumprimento que a medida exerce.

Assim, o fim da sanção pecuniária compulsória não é o de indemnizar os danos sofridos pelo credor com a mora, mas o de forçar o devedor a cumprir, vencendo a resistência da sua oposição ou desleixo, indiferença ou negligência (12).

10.3.2.A aplicabilidade destas medidas compulsórias por parte dos tribunais arbitrais foi já discutida. A questão releva na medida em que a apreciação desta Relação é substitutiva da do tribunal arbitral nos termos já indicados, sendo que cremos firmada jurisprudência na posição, que também seguimos, da sua admissibilidade (13).
É também nesse sentido o ensino do Professor Menezes Cordeiro: já nos tribunais arbitrais a sanção é configurável e aplicável, desde que se verifiquem os pressupostos legais (14).

Louva-se a posição contrária na natureza não jurisdicional dos tribunais arbitrais e na expressão legal que refere a sanção pecuniária compulsória como fixada pelo tribunal.

Veja-se o acórdão desta Relação de 13 de Fevereiro de 2014 proferido no processo 724/13.2YRLSB-8 (Luís Mendonça). Do sumário:

Os tribunais arbitrais estão desprovidos de potestas e a coercibilidade das suas decisões apenas decorre do apoio dos tribunais estaduais.
A entrega do julgamento a árbitros não implica a atribuição de funções jurisdicionais; os árbitros integram o tribunal arbitral, mas não agem, como órgãos do Estado, não dispõem de poderes de autoridade, inerentes ao exercício da função jurisdicional, e a decisão que sela o seu juízo, o laudo, não tem a eficácia da sentença dos tribunais estaduais.
A sanção pecuniária compulsória visa uma dupla funcionalidade de moralidade e de eficácia - reforço da soberania dos tribunais e do prestígio da justiça, respeito pelas suas decisões e favorecimento da execução específica das obrigações de prestação de facto ou de abstenção infungíveis – e reveste um carácter bifronte, misto de prevenção e de repressão.
Não existindo disposição expressa que reconheça a competência do Tribunal Arbitral para condenar numa sanção pecuniária compulsória, estando presente na figura uma funcionalidade acrescida de reforço da soberania, de que estão desprovidos os tribunais arbitrais, a pedra angular de todo o funcionamento do mecanismo da sanção pecuniária compulsória é o juiz estadual, única entidade que a pode ordenar.

Entendemos que a colocação dos tribunais arbitrais no conjunto do sistema – veja-se o artigo 209.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (15) – permite concluir diferentemente, como o faz o acórdão desta Relação de 13 de Fevereiro de 2014 proferido no processo 1053/13.7YRLSB-2 (Jorge Leal):

O tribunal arbitral é um verdadeiro tribunal, como tal reconhecido na Constituição da República Portuguesa (art.º 209.º n.º 2 da CRP). No caso dos autos, é até um tribunal emanado da vontade legislativa. Embora o tribunal arbitral seja composto de juízes “leigos” e a sua estrutura organizativa, institucionalizada ou formada ad hoc, seja privada, as suas decisões têm natureza jurisdicional e têm eficácia idêntica às do tribunal estadual (n.º 7 do art.º 42.º da Lei n.º 63/2011, de 14.12). Como tal, aplicam-se-lhe as razões de salvaguarda do prestígio da justiça e de respaldo dos interesses do credor que presidem à sanção pecuniária compulsória, não havendo razões para recusar aos tribunais arbitrais em geral e ao dos autos em particular, competência para aplicar tais sanções, uma vez que estejam reunidos os seus pressupostos.

Nesse sentido que acompanhamos, veja-se ainda por todos os mais o acórdão desta Relação e Secção de 6 de Junho de 2019, proferido no processo 1460/18.9 YRLSB.L1-6 (Maria Teresa Pardal).
Na verdade, o carácter próprio da sanção pecuniária compulsória afasta-a dos meios coercivos que exigem o império de que só os tribunais estaduais estão revestidos, pelo que não consideramos que seja susceptível de se integrar entre as excepções à jurisdicionalidade dos tribunais arbitrais.

10.3.3.A norma do artigo 829.º-A, enuncia dois requisitos positivos e dois negativos da condenação em sanção pecuniária compulsória. São requisitos positivos (i) o requerimento do credor e (ii) referir-se a obrigações de prestação de facto infungível, positiva ou negativa. São requisitos negativos a não verificação de (iii) incumprimento definitivo ou de (iv) exigência de especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado.
No caso concreto encontram-se verificados os indicados requisitos, uma vez que a condenação foi requerida pela Demandante, a obrigação é de prestação de facto negativo, na modalidade de abstenção da prática de determinados actos relacionados com a exploração do medicamento genérico, antes da caducidade da protecção atribuída ao medicamento de referência pelo CCP202, não se verificando uma situação de incumprimento definitivo (16) e na medida em que for possível. e não estando pressupostas especiais qualidades do obrigado.

10.3.4. Vem sendo indicado um outro requisito da aplicação da sanção pecuniária compulsória, a saber, a demonstração de uma situação iminente ou actual de violação do dever de prestar imposto pela decisão.
A consideração desse requisito surge na jurisprudência com referência justamente às acções a que se refere o artigo 3.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro.
A jurisprudência indicada salienta (e com tal concordamos, embora o consideremos indiferente quanto à matéria em causa) que os pedidos de AIM não violam direitos de propriedade industrial em si mesmo e não indicam qualquer intenção ou actuação violadora, antes sendo útil apresentá-los ainda na vigência da protecção da patente ou do CCP, dado o lapso de tempo necessário à sua concretização em termos de poder ser iniciada efectivamente a exploração do medicamento genérico após a caducidade das patentes ou dos CCP. Em suma, o pedido de AIM não surge como demonstrativo da intenção de violação dos direitos de propriedade industrial.
Neste contexto, diversos arestos defendem que não há lugar à condenação em sanção pecuniária compulsória por o comportamento da obrigada não inculcar qualquer violação actual ou iminente do direito.
Essa é a posição maioritária nesta Relação (senão unânime, porque não encontramos nos anos mais próximos decisões noutro sentido) e foi também a posição defendida pelo Supremo no acórdão de 20 de Maio de 2015, antes referido.

Transcrevemos este acórdão quanto à questão, por ser lapidar da argumentação desta posição jurisprudencial:

A sanção pecuniária compulsória constitui uma condenação acessória da condenação principal do devedor no cumprimento da prestação decretada por sentença judicial, estando prevista no art. 829º-A do CC.
Dispõe este artigo no seu n.º 1 que «1. Nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades cientificas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso».
Tem sido entendimento jurisprudência, na senda aliás dos ensinamentos doutrinários, que no caso de ainda não haver incumprimento da obrigação pelo devedor ou iminência desse mesmo incumprimento não há lugar à sanção: só se justifica a condenação em sanção pecuniária compulsória quando esteja comprovada a prática de factos objectivamente contrários à obrigação imposta na sentença ou de factos que tornem provável o seu incumprimento. De outra forma não tem justificação a ameaça de consequências mais gravosas que a própria inibição que se decreta.
O acórdão recorrido – confirmando nesta parte a decisão arbitral – condenou as demandadas a não iniciar a exploração industrial ou comercial de medicamentos contendo a Rosuvastatina como substância activa até à caducidade dos direitos de propriedade industrial invocados pela demandantes/recorrentes.
Estamos assim, sem margem para quaisquer dúvidas, perante uma prestação de facto negativo, infungível e instantâneo, na medida em que foi imposta à demandada a obrigação de não praticar em território português, ou tendo em vista a sua comercialização nesse território, diversos actos de fabricação e comercialização de medicamentos genéricos contendo a substancia activa Rosuvastatina, enquanto estiver em vigor o CCP de que as demandantes são titulares.
Tanto a decisão arbitral como o acórdão recorrido entenderam não ser admissível a fixação de uma sanção pecuniária compulsória.
O Tribunal Arbitral referiu – a fls. 19 da sentença constante de fls. 417 dos autos – que «esta obrigação há-de resultar de um incumprimento actual ou iminente, alegado pelas demandantes e verificado pelo tribunal arbitral. Como salienta Calvão da Silva, “sempre que a violação da obrigação negativa possa continuar ou ser repetida, impõe-se que a sentença condene o devedor a cumpri-la no futuro, ordenando-lhe que cesse e/ou não renove a sua infracção”» (….) «É justamente nestes casos em que a violação da obrigação negativa infungível pode estar iminente, continuar ou ser repetida, que se justifica (e impõe) o estabelecimento de uma sanção pecuniária compulsória, como meio de prevenir a continuação ou renovação do incumprimento (….)», concluindo a final que «Não parece existir, no caso sub judice, uma violação actual ou a ameaça de uma violação iminente do direito de patente ou certificado complementar relativos à referida substância activa (Rosuvastatina). (….) Por isso a sanção pecuniária compulsória não deverá ser arbitrada agora como forma de compelir o obrigado a cumprir, se e quando este praticar, no futuro, eventuais infracções durante a vigência da patente…».
Igual entendimento teve o Tribunal da Relação de Lisboa ao referir, no acórdão proferido nos autos, que «…as demandantes para além da circunstância de já terem sido atribuídas AIM ao genérico que pretendem comercializar, não alegaram outras circunstâncias factuais das quais possa resultar a formação de uma convicção no sentido de as demandadas neste processo arbitral (…) se encontrarem, neste momento, a fazer preparativos (não reconduzíveis ao cumprimento de exigências regulatórias públicas relacionadas com a demonstração da segurança, qualidade e eficácia do medicamento provida com esta substância activa) destinados à comercialização deste medicamento em Portugal (…)».
Com efeito, esta tem sido a posição vingadora em todos os acórdãos da Relação de Lisboa proferidos no âmbito de decisões arbitrais de propriedade industrial – cf. Ac. R.L. de 07-11-2013, proc. n.º 854/13.0YRLSB; Ac. R.L. de 13-02-2014, proc. n.º 1053/13.7YRLSB-2; Ac. R.L. de 12-12-2013, proc. n.º 617/13.3YRLSB-6 e Ac. RL de 26-06-2014, proc.nº787/13.0YRLSB.L1-2.
Todos eles são peremptórios em afirmar que a cominação de uma sanção pecuniária compulsória pressupõe uma violação actual ou iminente da obrigação de prestação de facto a que se refere.
Não obstante o STJ nunca ter sido chamado a pronunciar-se sobre esta concreta questão no âmbito dos direito de propriedade industrial, o facto é que nem por isso deixamos de encontrar alguns acórdãos que relacionam a sanção pecuniária compulsória com a forma de compelir o obrigado «rebelde» a cumprir. Exemplo disso são os Acórdãos deste STJ de 10-09-2009, proferido no âmbito da Revista 118/09.4YFLSB e de 14-01-2014, proferido no âmbito da Revista n.º 7244/04.4TBCSC.L1.S1, sendo que neste último se refere que a sanção pecuniária compulsória tem por fim determinar o devedor a cumprir «vencendo a resistência da sua oposição ou da sua inacção».´
Admite-se que uma interpretação puramente literal do nº1 do art.829º-A do CC nos conduza à solução preconizada pelas demandantes, isto é, de que a sanção pecuniária compulsória deve ser fixada desde que seja requerida pelo credor de uma prestação de facto infungível, positivo ou negativo, bastando, como condição da sua fixação, o reconhecimento judicial da obrigação, a natureza infungível da prestação determinada e o requerimento do credor para que o tribunal estivesse, desde logo vinculado à condenação do devedor no pagamento da mesma.
Mas, da leitura do art. 829º-A do CC no seu todo constata-se que a aplicação da sanção pecuniária compulsória implica uma ponderação de fundo, não compatível com uma aplicação automática, indiferente à verificação de circunstâncias que determinem a existência do sério risco da continuação da prática ou da própria prática da infracção.
Uma correcta interpretação da norma passa assim por relevar o cumprimento ou incumprimento do devedor, pois só se justifica a condenação em sanção pecuniária compulsória quando esteja comprovado que o devedor praticou, ou está na eminência de praticar – em termos de probabilidade –, factos objectivamente contrários à obrigação imposta na sentença.
Não tendo as recorrentes alegado e logrado demonstrar quaisquer factos dos quais se pudesse retirar que as demandadas se encontravam a levar a cabo preparativos destinados à comercialização dos genéricos de Rosuvastatina no território português, não poderemos concluir – tal como o entenderam as instâncias – pela existência de indícios de uma violação iminente dos direitos de propriedade industrial.
Não tem sentido, por isso, arbitrar uma sanção pecuniária como forma de compelir o obrigado a cumprir aquilo que ele nunca incumpriu, nem ameaçou incumprir.

Esta linha jurisprudencial mantém-se na actualidade, do que é exemplo, por todos, o recente acórdão já mencionado desta Relação e Secção de 6 de Junho de 2019, proferido no processo 1460/18.9 YRLSB.L1-6 (Maria Teresa Pardal).

10.3.5.Com o devido respeito pelas muito autorizadas opiniões contrárias, não vemos que possa enquadrar-se este requisito adicional na norma do artigo 829.º-A, n.º 1, do CC.
Não se enquadra na sua letra, como bem adverte o Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Maio de 2015 ao referir que a letra da lei não sugere a exigência desta violação actual ou iminente. Não é autorizado por nenhum outro critério hermenêutico, pois nenhum implica aquela interpretação que a letra não inculca, e que, pelo contrário, até exclui.

Vejamos.

Confessadamente, como já sublinhámos, o legislador quis acolher-se à experiência das astreintes concebida, desenvolvida e imposta pela jurisprudência francesa que, com a cominação da astreinte, proveniente do seu imperium, [pretendia] (…) incitar o devedor ao cumprimento – evitando, consequentemente, que o credor tivesse de recorrer à execução coactiva, traduzida, nos domínios referidos, na obrigação de indemnização -, ao mesmo tempo que asseguravam o respeito devido a um órgão de soberania (nosso sublinhado) (17).

Nos termos do preâmbulo do Decreto-Lei 262/83 já citado, a sanção pecuniária compulsória visa uma dupla finalidade de moralidade e de eficácia, pois com ela se reforça a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça, enquanto por outro lado se favorece a execução específica das obrigações de prestação de facto ou de abstenção infungíveis.

Nenhuma destas indicadas finalidades exige que a condenação na sanção pecuniária compulsória tenha como pressuposto da sua aplicação a violação actual ou iminente da obrigação de prestação de facto imposta pela decisão. Pelo contrário, a prossecução delas melhor é conseguida pela imposição da sanção compulsória mesmo na ausência de violação actual ou de indicadores de violação iminente.

Pode o obrigado pela decisão, que até à prolação dela ainda não havia iniciado acção violadora do direito, ser eficazmente dissuadido de a ponderar pela existência de uma sanção compulsória. Sendo aliás inócua a aplicação da sanção ao obrigado que nenhum comportamento violador teve até à decisão, nem perspectiva tê-lo após ela.

Em suma, a sanção pecuniária compulsória constituiu-se como espada de Dâmocles, dissuasora da persistência do incumprimento iniciado ou anunciado mas, também, dissuasora da ponderação da possibilidade de nele incorrer, assim cumprindo a ratio da sua instituição legislativa.

Objectivo que seria postergado se a ausência de violação actual ou iminente determinasse a abstenção do tribunal na imposição da sanção, confrontando-se o credor com esse inovador comportamento de incumprimento após o trânsito da decisão.

Em conclusão, trata-se de uma sanção fixada ex ante (prévia ou antecipadamente), isto é, antes do ilícito, de não realização da obrigação principal, e a cujo cumprimento o devedor foi condenado, pelo que é pronunciada pelo juiz para que, no futuro, o devedor cumpra (embora com atraso). O seu intuito é prevenir ou evitar o ilícito futuro (18).

Também João Calvão da Silva também parece não considerar a violação actual ou iminente como requisito, antes sublinhando um intuito de dissuasão e de antecipação preventiva da sanção como ameaça.

Assim, diz o mencionado Autor: fazendo seguir a condenação no cumprimento de prestação infungível de medida coercitiva eficaz, a sentença de condenação desempenha não só a função de tutela repressiva da violação já ocorrida como também a tutela destinada a impedir ulterior violação. Função de prevenção do ilícito que é da maior importância nas obrigações periódicas ou continuadas, em que o juiz ordena que a violação não seja repetida in futurum, ou, noutros termos, condena no cumprimento da obrigação no futuro. Tutela preventiva esta que não pode ser efectivada pela técnica executiva, reportada a uma violação já verificada, mas apenas através da técnica das medidas coercitivas dirigidas a provocar o cumprimento voluntário (19).

Ou, ainda mais expressivamente, uma sanção, fixada prévia ou antecipadamente - isto é, antes do ilícito, da não realização da obrigação principal e a cujo cumprimento o devedor foi condenado -, como forma de compelir o devedor ao cumprimento da obrigação a que está adstrito e no adimplemento da qual é condenado. Noutros termos, a sanção pecuniária compulsória é o meio de coerção indirecta e psicológica, pronunciado para o futuro, a fim de induzir o devedor a cumprir e de prevenir o ilícito ou a sua repetição.

Distingue-se assim pela sua função da multa penal, que tem carácter marcadamente repressivo e é infligida como punição do mal praticado (20).

Certo é que a sanção pode agora ser aplicada em sede executiva, dada a mais recente redacção do artigo 868.º, n.º 1, in fine, do CPC. Mas a sua aplicação originária em sede de declaração do direito visa justamente obstar à necessidade de execução coerciva que constitui um outro limiar cuja necessidade, justamente, se pretende excluir.

Em suma, os critérios interpretativos estabelecidos no artigo 9.º do CC levam-nos a considerar que não deve ser exigido o requisito da violação actual ou iminente para a aplicação da sanção pecuniária compulsória prevista no artigo 829.º-A, n.º 1, do CC.

10.3.6.Cremos que a mesma conclusão resulta da consideração das medidas inibitórias previstas no Código da Propriedade Industrial, tanto no de 2003 como no de 2018, em resultado da transposição das Directivas 2004/48/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril, Diretiva (UE) 2015/2436, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2015, e Diretiva (UE) 2016/943, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2016, promovendo estas Directivas a consagração pelos Estados-Membros da possibilidade de aplicação de medidas inibitórias do incumprimento violador de direitos da propriedade industrial.
Assim é que o artigo 338.º-N, n.º 4, do CPI de 2003, e o artigo 349.º, n.º 4 do CPI2018, preveêm, ambos, que nas decisões de condenação à cessação de uma actividade ilícita, o tribunal pode prever uma sanção pecuniária compulsória destinada a assegurar a respectiva execução.

Normas que encontram a sua razão na intenção expressa nas mencionadas Directivas de protecção do respeito pelos direitos de propriedade industrial e de dissuasão de efectiva do incumprimento.
Certo é que em ambas as normas se prevê a aplicação da sanção pecuniária compulsória como acessória de decisões de condenação à cessação de uma actividade ilícita.

Porém, tal não se destina a restringir a aplicação da sanção pecuniária compulsória aos casos de actividade ilícita prévia. Entendemos, pelo contrário, que se destina permitir que, nos casos de actividade ilícita prévia, a sanção possa ser decretada oficiosamente.

O artigo 11.º da Directiva 2004/48/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril, estabelece o âmbito da protecção que a respeito é requerida, ao estatuir que os Estados-Membros devem garantir que, nos casos em que tenha sido tomada uma decisão judicial que constate uma violação de um direito de propriedade intelectual, as autoridades judiciais competentes possam impor ao infractor uma medida inibitória da continuação dessa violação. Quando esteja previsto na legislação nacional, o incumprimento de uma medida inibitória deve, se for caso disso, ficar sujeito à aplicação de uma sanção pecuniária compulsória, destinada a assegurar a respectiva execução.

Assim, as mencionadas normas não podem ser interpretadas no sentido de pressuporem a actividade ilícita prévia como condição para a aplicação da sanção pecuniária mas, ao contrário, como permitindo, nesse caso, que a aplicação seja oficiosa.

10.3.7. O montante a fixar deve decorrer de critérios de razoabilidade que lhe não retiram o carácter dissuasor, antes o efectivam, mas também não sejam desproporcionados face aos interesses em jogo.

Com relevo para a questão, os factos dados como provados relativos aos proventos económicos decorrentes da exploração do medicamento de referência Truvada.

Está ainda provado que pode ocorrer repercussão na exploração de um outro medicamento da G…., o Atripla. A esse respeito, as alíneas BBBB) a EEEE) supra.
Não consideramos que a repercussão na exploração do Atripla deva ser considerada nesta sede. Por um lado, porque tal repercussão é considerada de modo puramente hipotético. Por outro lado, porque essa repercussão não será diversa da que já decorre da exploração do Truvada.
Cumpre assim ter em atenção o que resulta das alíneas YYY) a AAAA) supra do que decorre um volume anual de vendas do Truvada de cerca de € 55.000.000,00, correspondendo a cerca de € 150.000,00 por dia. Volume de vendas, não lucro, que quanto a este nada se provou.
Mesmo admitindo que o genérico da Z…. expulsava o Truvada do mercado, o volume de vendas não ultrapassaria aquele valor, o que torna desmesurado o montante peticionado pela Demandante (€ 138.450,00).

Quanto ao modo de fixação da sanção pecuniária compulsória, existem três modalidades. O devedor pode ser condenado: (a) ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento quer seja por dia, semana, mês (não obstante a letra da lei se refira apenas a dia) – sanção pecuniária compulsória fixada por unidade de tempo; (b) ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada futura infracção à obrigação; e (c) ao pagamento de quantia fixada globalmente, num só montante (modalidade não expressamente referida na lei mas nada parece obstar à mesma). Segundo o entendimento perfilhado por Calvão da Silva, a modalidade referida em (a) adequa-se, geralmente, às obrigações de prestação de facto positivo, enquanto a modalidade de fixação referida em (b) adequa-se às obrigações de prestação de facto negativo (21).
A sanção visa incentivar o cumprimento e o reforço do sistema judicial, vencendo a oposição ou indiferença do devedor. Assim, ela deve ser fixada um pouco acima da capacidade patrimonial do devedor, para ser eficaz (22).

No caso, afigura-se que a sanção com base diária é a mais adequada a cumprir aquela finalidade dissuasora, sendo certo que a próxima caducidade do CCP202 sempre aconselharia essa unidade de tempo.

Da conjugação da actividade desenvolvida pelas Demandadas enquanto demonstrativa da medida do seu poder económico e do que se provou quanto ao volume de vendas do Truvada, com os indicados critérios, afigura-se adequada a fixação do montante diário da sanção em € 50.000,00 (cinquenta mil euros).

11.Das custas/encargos

11.1.Pediu a Demandante a condenação das Demandadas a suportarem os custos da arbitragem, incluindo o reembolso das provisões feitas pela Demandante e os montantes dos honorários dos seus advogados.

Por seu turno, as Demandadas interpuseram recurso da decisão que as condenou a suportar 1/3 dos encargos, com fundamento em terem obtido ganho de causa e não se verificar superveniência de lei diversa ou reversão de jurisprudência.

Refira-se que o recurso das Demandadas fica prejudicado pela alteração do pressuposto em que assentava: a sua absolvição dos pedidos.

Assim, não há lugar à apreciação do bem fundado da decisão quanto a custas/encargos por os pressupostos em que assentou terem deixado de se verificar. Cumpre tão somente apreciar e decidir da responsabilidade pelas custas e encargos da arbitragem face à presente decisão desta Relação, responsabilidade que se aplica em primeira e em segunda instância.

Importa ainda apreciar do pedido de condenação das Demandadas a suportarem os honorários dos Advogados da Demandante.

11.2. Conforme resulta da acta de instalação do tribunal arbitral são aplicáveis no caso as normas do direito português constituído aplicável (ponto 3), o Regulamento do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa de 2014(23) doravante RegCCI (ponto 4.2.1.).

No RegCCI está previsto, quanto à repartição da responsabilidade, o que consta do artigo 48.º (Encargos da arbitragem):
1– No processo arbitral há lugar ao pagamento de encargos.
2– Os encargos da arbitragem compreendem os honorários e as despesas dos árbitros, os encargos administrativos do processo e as despesas com a produção de prova.
3– Compete ao tribunal arbitral, salvo disposição em contrário das partes, decidir o modo de repartição dos encargos de arbitragem, atendendo a todas as circunstâncias do caso, incluindo o decaimento e o comportamento processual das partes.

A ressalva quanto ao comportamento das partes não foi utilizada na decisão pelo Tribunal Arbitral o que determina sejam aplicável em pleno as normas de direito português que regulam a responsabilidade pelas custas/encargos.

Os actuais artigos 527.º e 535.º, do CPC, consagram este princípio da causalidade como critério a ter em atenção, expresso por diversos índices da sua revelação.

O primeiro deles, é o índice da sucumbência previsto no artigo 527.º do CPC. No seu n.º 1, a norma estabelece que a condenação em custas recai sobre a parte que a elas houver dado causa, esclarecendo o n.º 2 que dá causa às custas a parte vencida na proporção em que o for.

E continua: ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito.

O critério é o da causalidade: é condenada a pagar as custas a parte que a elas tenha dado causa. O índice é o do vencimento da causa, o da sucumbência. Expresso claramente no n.º 2 da norma – entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for – a sucumbência é índice de determinação da responsabilidade e da sua medida.

11.3.Estabelecido o critério, o Código de Processo Civil aborda no artigo 535.º regras excepcionais de actuação do princípio da causalidade. Poderá a situação sub judice acolher-se a esta previsão excepcional afastando a sucumbência como reveladora da causalidade?
Não cremos. Porque a lei é clara em estabelecer que as excepções apenas estão previstas para o caso de a Ré não ter apresentado oposição. Assim é que estatui no seu n.º 1 que quando o réu não tenha dado causa à acção e a não conteste, são as custas pagas pelo autor. Não é a situação dos autos em nenhuma das instâncias.

O que reverte efectivamente para o critério da sucumbência.

A Demandante obteve ganho de causa quanto à declaração de nulidade da sentença recorrida, ao pedido de abstenção de exploração de genéricos coincidentes com a fórmula protegida pelo CCP202 até à data de caducidade deste e ao pedido de condenação em sanção pecuniária compulsória, embora em montante inferior ao peticionado, e ficou vencida quanto ao pedido de proibição de transmissão da AIM, o que constitui o reverso da sucumbência das Demandadas.

Neste quadro, afigura-se que a responsabilidade deve ser imputada na proporção de ¾ para as Demandadas e ¼ para a Demandante.

11.4.Da peticionada condenação das Demandadas a reembolsarem os honorários do Tribunal e a suportarem os honorários dos mandatários da Demandante
11.4.1.Foi estabelecido no ponto 7.3. da ata de instalação um regime de adiantamento dos encargos com honorários dos árbitros e da secretária.
O reembolso dos encargos apenas procede na proporção fixada, inexistindo fundamento para uma condenação autónoma.
11.4.2.Pediu a demandante a condenação das Demandadas a reembolsarem-na dos valores despendidos com honorários dos seus mandatários.
Nada consta a tal respeito no regime acordado entre as partes na ata de instalação do Tribunal Arbitral.
Por outro lado, no RegCCI constam diversas normas que regulam exaustivamente os encargos e despesas a suportar com a arbitragem, conforme resulta maxime dos artigos 48.º a 56.º. Nessas normas não se encontra regulado o pagamento dos honorários dos mandatários da parte contrária.
Certo é que, quanto aos honorários dos mandatários, são os mesmos reembolsáveis a título de custas de parte – artigo 533.º, n.º 2, alínea d), do CPC -, com a limitação constante do artigo 26.º do Regulamento das Custas Processuais.
Dispõe este artigo no seu n.º 3, alínea c), que o reembolso dos mandatários corresponde a 50 /prct. do somatório das taxas de justiça pagas pela parte vencida e pela parte vencedora, para compensação da parte vencedora face às despesas com honorários do mandatário judicial.

No entanto, na instância arbitral não se encontra previsto o pagamento de taxa de justiça ou de custas de parte, por serem inteiramente distintas as regras que se relacionam com o dispêndio a efectuar com o funcionamento do tribunal ou com o reembolso das despesas dos litigantes.

Em consequência, o reembolso a esse título apenas poderá ocorrer na fase em que o processo corre perante os tribunais estaduais, prescindindo as partes desse regime em sede arbitral (24).

Nesse sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Novembro de 2015, proferido no processo 538/13.0YRLSB-S1 (Fernanda Isabel Pereira):
A regulamentação própria dos litígios arbitrais no que se refere a encargos e a especificidade dos mesmos excluem a aplicação do Regulamento das Custas Processuais aos processos arbitrais, implicando que o nele estipulado quanto a custas de parte e à possibilidade de serem incluídas na condenação em custas apenas possa ser atendido por referência à fase judicial do processo.
Com efeito, não se tendo regido o processo, na fase arbitral, nem pelas normas do Código de Processo Civil respeitantes a custas, nem pelas disposições do Regulamento das Custas Processuais, carece de sentido defender a sua aplicação a todo o processo só pela circunstância de ter sido interposto recurso da decisão arbitral para os tribunais estaduais.
Entender o contrário, seria conferir um tratamento distinto aos processos sujeitos à arbitragem – voluntária ou necessária – consoante tivesse sido ou não interposto recurso da decisão arbitral para o Tribunal da Relação, sendo que só nos segundos haveria lugar ao reembolso, a título de custas de parte, do despendido com os encargos no Tribunal Arbitral, posto que a fase arbitral as não contempla, dualidade de critérios que seria de todo inaceitável e o legislador não pode ter querido (artigo 9º do código Civil).
Essa possibilidade de reembolso das custas de parte existe, mas deve ser entendida como circunscrevendo-se à fase judicial do litígio, já que só em relação à tramitação judicial o Regulamento das Custas Processuais as prevê, não havendo que incluir no seu âmbito os encargos da fase arbitral.

O reembolso de honorários restringe-se à fase judicial e segue o regime das custas de parte e do artigo 26.º, n.º 3, alínea c) do RCP, não havendo lugar a condenação autónoma.

12.Do valor
Nos termos do ponto 6 da acta de instalação do tribunal arbitral, o valor da acção arbitral encontra-se fixado em € 30.000,01, por essa ser a indicação concorde das partes, sem decisão em contrário do tribunal arbitral.

As Demandadas atribuíram ao seu recurso o valor de € 19.553,63, montante em que foram condenadas a título de encargos. Nada foi oposto pela Demandante.

O Tribunal Arbitral não se pronunciou sobre o valor, sendo certo que do mesmo independe a admissibilidade do recurso, visto o disposto no artigo 3.º, n. 7, da Lei 62/2011. Nos termos dos artigos 306.º e 308.º do CPC, deve ser fixado tal valor ao recurso das Demandadas.

IV)DECISÃO

Pelo exposto, ACORDAM em:

1)Indeferir a junção do documento apresentado pela Demandante que é notificação do Tribunal Constitucional, mantendo no mais os documentos apresentados pelas partes após decisão final.
2)Indeferir a requisição de certidões das decisões proferidas no
processo 384/16.9YHLSB.
2)Indeferir a rejeição liminar do recurso da Demandante na parte relativa à impugnação da matéria de facto, julgando, embora, prejudicada a apreciação do mesmo nessa parte.
3)Indeferir o pedido de desentranhamento da resposta da Demandante às contra-alegações da Demandada.
4)Julgar nula a decisão final do Tribunal Arbitral recorrido.
5)Indeferir o pedido de reenvio prejudicial.
6)Condenar as Demandadas a absterem-se de qualquer exploração do medicamento genérico a que se refere a AIM até 24 de Fevereiro de 2020, contendo a combinação das substâncias ativas tenofovir disoproxil fumarato e emtricitabina.
7)Julgar improcedente o pedido de condenação das Demandadas a não transmitirem os direitos concedidos pela referida autorização de introdução no mercado do medicamento genérico contendo a combinação das substâncias ativas tenofovir disoproxil fumarato e emtricitabina.
8)Condenar as Demandadas no pagamento de montante diário de € 50.000,00 (cinquenta mil euros) em caso de violação da condenação referida em 6), absolvendo-as do demais pedido a este título.
9)Fixar em € 19.553,63 o valor do recurso interposto pelas Demandadas e julgar prejudicada a apreciação desse recurso.
10) Quanto a custas/encargos:
Na instância arbitral os encargos serão suportados na proporção de ¼ para a Demandante e ¾ para as Demandadas.
Nesta Relação as custas do recurso interposto pela Demandante serão suportadas na mesma proporção, suportando ainda a Demandante as custas do incidente de apresentação de documentos, sendo quanto a este com o mínimo de taxa de justiça – artigos 527.º, n.º 2, do CPC, e 7.º, n.º 4 e 8, do RCP.
*


Lisboa, 9 de Janeiro de 2020



(Ana de Azeredo Coelho)

(Eduardo Petersen Silva)
(com a declaração de voto que segue)

DECLARAÇÃO DE VOTO:
No passado dia 10.10.2019 relatei – e foi subscrito pela Exmª Desembargadora aqui ora 2ª Adjunta – o acórdão proferido no processo 535/19.1YRLSB.L1.
Entende-se, ao subscrever integralmente o presente acórdão, e em específico no que toca à questão da nulidade do acórdão arbitral por esgotamento do seu poder jurisdicional – que não há contradição com a posição assumida naquele, pois que nele a questão não foi formalmente colocada e não era objecto de recurso.


(Cristina Neves)



(1) In Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 4.ª edição, p.731, nota 5.
(2) In Exceção e autoridade de caso julgado. Algumas notas provisórias, JULGAR Online, novembro de 2018, p 2-3, consultado em http://julgar.pt/excecao-e-autoridade-de-caso-julgado-algumas-notas-provisorias/
(3)O qual aliás se encontra próximo, uma vez que ocorre em 24 de Fevereiro de 2020.
(4)Nele se lê: Neste contexto [transmissão de patentes de processo], a transmissão da AIM reconduz-se a proporcionar a outrem as condições necessárias para fabrico da substância activa em causa, colocar à disposição de terceiros o processo patenteado. A “oferta” não depende, para se consumar, da aquisição efectiva ou da entrega dos conhecimentos técnicos (o processo) ao destinatário da “oferta” (e muito menos do seu uso). A “oferta” tem apenas de ser adequada (apta) à aquisição destes conhecimentos técnicos pelo terceiro destinatário dessa “oferta”.
A AIM é, assim, dois em um: contém o corpus (processo/Drug Master File) e o animus (autorização de uso) que integram a previsão da oferta, para efeitos do artigo 101º do CPI, quando o processo é o objecto do direito de propriedade industrial.
Desta perspectiva, a transmissão da AIM é, nestes casos, o primeiro acto de exploração comercial do invento.
Por isso, quando estão em causa patentes de processo, a transmissão da AIMS tem enquadramento directo no artigo 101º nº 2 do CPI, que proíbe a simples oferta (colocação na disponibilidade) do invento a terceiros não autorizados. O oferente, através da sua oferta, tem que se arrogar [o uso, a posse] do processo que se encontra patenteado a favor do titular da patente e isso ocorre, nomeadamente, através da oferta de uma autorização de uso do processo protegido. A “oferta” que está aqui em causa não é a “oferta” de uma posição subjectiva num acto administrativo de autorização (AIM), mas sim a “oferta” de um processo de fabrico que consta do respectivo procedimento administrativo (rectius, do Drug Master File que necessariamente o integra) e que infringe uma patente de invenção (de forma comprovada ou presumida).
Estamos a falar, portanto, de um acto que a nossa lei considera como constituindo violação da patente, por “oferta” (disponibilização) a terceiro de um processo de fabrico protegido, sem autorização do titular da respectiva patente.
(5)Cf. o preâmbulo do diploma.
(6)Cf. Pedro de Albuquerque, sobre a história do instituto, in O direito ao cumprimento de prestação de facto, o dever de cumprir e o princípio nemo ad actum cogit potest. Providência cautelar, sanção pecuniária compulsória e caução, Revista da Ordem dos Advogados, Setembro de 2015.
(7)Cf. Cumprimento e sanção pecuniária compulsória, Coimbra, 1997, 2.ª edição (2.ª reimpressão), sendo deste Autor e do Professor Mota Pinto o estudo considerado determinante na consideração legislativa do instituto em 1983.
(8)Op. cit. p. 373-374.
(9)Idem p. 393.
(10)Idem p. 395.
(11)In Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações, Coimbra Editora, 2011, p. 160.
(12)Cf. Pires de Lima-Antunes Varela in Código Civil Anotado, volume II, Coimbra Editora, 1986, p.107.
(13)Veja-se a dissertação de Maria Catarina Borges, A aplicação da sanção pecuniária compulsória
por tribunais arbitrais portugueses in https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/34124/1/ulfd135421_tese.pdf.
(14)In Tratado de Direito Civil, IX, 3.º edição, Almedina, 3019, p. 532.
(15)Assim, o acórdão do Tribunal Constitucional 506/96 (Fernanda Palma).
(16)Cf. Calvão da Silva, op. cit. p. 394: (...) a sanção pecuniária compulsória só pode ser imposta e só é devida se o cumprimento a que se constrange ainda for possível e na medida em que for possível.
(17)Cf. António Pinto Monteiro in Cláusula Penal e Indemnização, Almedina, 1990, p.117.
(18)Cf. Maria Catarina Borges, op. cit. p. 19-20.
(19)P.374
(20)P 397
(21)Cf. Maria Catarina Borges, op. cit. p.23.
(22)Cf. Professor Menezes Cordeiro, op. cit., p. 530-531.
(23) Cf. https://www.centrodearbitragem.pt/images/pdfs/Legislacao_e_Regulamentos/Regulamento_de_Arbitragem/Regulamento_de_Arbitragem_2014.pdf
(24) Na decisão 276/2013-T https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php ?listPage=40&id=368 decidiu-se não haver lugar ao pagamento de custas de parte em instância arbitral:
Pede ainda a Requerente a condenação da AT a ressarci-la das despesas resultantes da lide, nomeadamente os honorários do seu mandatário judicial, a liquidar em execução de sentença.
Não indicando a Requerente qualquer fundamento legal para a sua pretensão, quer de um ponto de vista substantivo quer processual, louva-se na decisão do processo arbitral 50/2012 T, que reconheceu tal direito aos ali Requerentes.
Compulsada esta decisão, todavia, verifica-se que, ela própria, não sustenta, em termos legais, os respetivos fundamentos substantivos e processuais, limitando-se a fundar a condenação peticionada no considerando de que a Requerida deu causa à lide.
Ressalvado o respeito devido a outras opiniões, entende-se, desde logo, que a opção pela jurisdição arbitral implica a renúncia à compensação das despesas cobertas pelas custas de parte, onde se incluem os honorários de advogado (artigo 25.º/2/d) do Regulamento das Custas Processuais).
Efetivamente, não se prevendo o pagamento de custas de parte na jurisdição arbitral, ao admitir-se a possibilidade de ser pedida, pelos contribuintes, compensação pelos encargos com mandatário, estar-se-ia a discriminar negativamente a AT, na medida em que, nas causas que vença, não se verá compensada pelas correspondentes custas de parte, nem poderá obter a correspondente compensação.
Deste modo, dever-se-á entender que, ao optar pela jurisdição arbitral tributária, quer a AT quer o contribuinte, estão a abdicar da compensação devida por despesas abrangidas pelas custas de parte.

Decisão Texto Integral: