Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4664/2006-8
Relator: FERREIRA DE ALMEIDA
Descritores: JULGADO DE PAZ
COMPETÊNCIA MATERIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/14/2006
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I- A competência exclusiva dos julgados de paz no que respeita às acções declarativas (artigo 6.º da Lei n.º 78/2001, de 13 de Setembro) significa tão somente que a mesma se limita às acções declarativas, excluindo-se as executivas, e não que essa exclusividade respeite às acções referenciadas no artigo 9º da Lei n. º 78/2001.
II- Nem se pode afirmar que os julgados de paz julgam sempre as acções definidas no referido artigo 9.º uma vez que existe, no seu regime, uma dependência da jurisdição comum quando, por razões processuais, se admite que os julgados de paz, na pendência do processo neles instaurado, vejam cessada a sua competência, ou seja, os julgados de paz não dispõem de uma competência exclusiva em razão da matéria.
III- Não se vislumbra razão para se reconhecer aos tribunais judiciais competência para conhecimento das matérias atribuídas aos julgados de paz, por via da remessa dos processos aí pendentes, mas não lhes reconhecer competência para logo neles ser instaurada acção sobre aqueles incidente e, bem assim, para se impor aos interessados que proponham acção num determinado tribunal sem que a lei lhes garanta que a acção prosseguirá nesse mesmo tribunal seus trâmites até final.
IV- E até por revestir a sua instalação natureza experimental (artigo 64.º da Lei n.º 78/2001) mostra-se plenamente justificada, quanto à competência em razão da matéria, a concorrência, ao menos transitória, entre julgados de paz e tribunais comuns..

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa :


1.  Maria […] veio propor, contra E.[…], acção seguindo forma sumaríssima, distribuída ao 2º Juízo Cível do Seixal, pedindo a condenação da R. a pagar-lhe a quantia de € 350, acrescida de juros, correspondente ao montante de prestações alegadamente por aquela devidas, por virtude da utilização de loja de que a A. é possuidora.
   
Citada, a R. não apresentou atempada contestação.
     
No despacho saneador, foi proferida decisão, na qual se considerou aquele tribunal materialmente incompetente, absolvendo-se a R. da instância.
     
Inconformada, dessa decisão, interpôs a A. o presente agravo, cujas alegações terminou com a formulação das seguintes conclusões :

-    A A., ora apelante, intentou a presente acção contra a R. E. […], tendo pedido que esta fosse condenada a pagar o valor de € 372,84, pela não utilização de uma loja da apelante durante um determinado período de tempo.

-   Por despacho de fls.40 e ss. veio o Mº Juiz a quo considerar os Juízos de Competência Especializada Cível da comarca do Seixal materialmente incompetentes para conhecer da acção, absolvendo a R. da instância.

-    A apelante não se conforma com tal decisão, pelo que apresenta o presente recurso.

-   Tal decisão baseou-se no facto de o Mº Juiz a quo considerar que são os julgados de paz materialmente competentes para julgar a presente causa, pois considera que estamos perante uma acção que diz respeito a arrendamento urbano.

-   No nosso entender, o caso dos autos não configura uma situação de arrendamento urbano, desde logo porque não existe contrato de arrendamento, existe sim a utilização de uma loja da apelante, loja essa que em regra é arrendada - o que a apelante pretende é ser indemnizada pela utilização de uma sua loja, durante um determinado período de tempo.

-   Entre a apelante e a R. não foi celebrado contrato de arrendamento, e para que estejamos perante acções que digam respeito ao arrendamento urbano, esse teria de existir.

-   Tal exigência vem consagrada no art. 7° do RAU, na medida em que se exige forma escrita, acrescendo que o único meio de se suprimir a inobservância de forma escrita é através da apresentação dos recibos de renda e tal exibição apenas poderia ser feita pelo inquilino, se aqueles existissem.

-    Não existindo contrato de arrendamento, nem recibos, não se pode considerar que estamos perante uma acção que diga respeito ao arrendamento urbano, logo são materialmente competentes para julgar a presente acção os Juízos de Competência Especializada Cível da comarca do Seixal.

-    Violou, assim, o Mº Juiz a quo os arts. 7° do RAU, 6°, nº 1, 8°, 9°, nº 1 g), e 12°, nº 1, da Lei 78/2001, de 14/7, 211° da CRP, 66°, 101°, 102°, nº 2, 103°, 105°, nº 1, 288°, nº 1 a), 493°, nº 2, e 494° a), todos do C.P.Civil.

-   Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, considerado o Tribunal - Juízos de Competência Especializada Cível - da comarca do Seixal como materialmente competente.
     
Não foram apresentadas contra-alegações.
     
Colhidos os vistos legais, cumpre, pois, decidir.

2.  Nos termos dos arts. 684º, nº3, e 690º, nº1, do C.P.Civil, acha-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente.
   
A questão a decidir resume-se, pois, à apreciação - face à existência, na respectiva circunscrição territorial, de um julgado de paz - da competência material do tribunal recorrido para conhecer da causa.
   
Em conformidade com o regime estabelecido na Lei 78/2001, de 13/7, dispõem os julgados de paz de competência para apreciar e decidir as acções enumeradas no respectivo art. 9º, cujo valor não exceda a alçada do tribunal de 1ª instância.
   
Sendo essa competência “exclusiva a acções declarativas” (art. 6º, nº1) tal, porém, tão somente significa que a mesma se limita às acções declarativas - excluindo-se, assim, as acções executivas - e não que seja exclusiva no que respeita às acções referenciadas no art. 9º.
     
A criação dos julgados de paz teve como objectivo introduzir uma categoria de tribunais que, pelo seu modo de funcionamento, pela flexibilidade da tramitação processual e pela filosofia que os informa - alcançar a resolução do litígio por acordo das partes com a intervenção actuante do tribunal - permitisse uma justiça de proximidade, equitativa e de participação que os tribunais comuns não asseguram.  
     
Os julgados de paz não constituem, todavia, ao menos nesta fase de desenvolvimento, tribunais aptos a garantir, em paralelo com os tribunais comuns, uma justa composição dos litígios com a celeridade e eficiência resultante da aplicação dos princípios da simplicidade, adequação, informalidade, oralidade e economia processual, a que se refere o art. 2º da Lei 78/2001.
     
E não se pode sequer afirmar que os julgados de paz julgam sempre as acções definidas no supracitado preceito - uma vez que existe, no seu regime, uma dependência da jurisdição comum quando, por razões processuais, se admite venham os julgados de paz a cessar a sua competência.  
   
Não dispõem, assim, aqueles de uma competência exclusiva em razão da matéria - um determinado litígio, objecto de acção instaurada em julgado de paz, poderá afinal ser julgado pelo tribunal de pequena instância cível se, por exemplo, for suscitado um incidente processual (art. 41º cit. dip.).  
   
Por outro lado, não se vislumbra razão para se reconhecer aos tribunais judiciais competência para conhecimento das matérias atribuídas aos julgados de paz, por via de remessa de processos aí pendentes, mas não se lhes reconhecer competência para logo neles ser instaurada acção sobre aquelas incidente.  
   
E, bem assim, para se impor aos interessados proponham acção num determinado tribunal, quando a lei lhes não garante que a acção no mesmo prosseguirá seus trâmites até final.
   
Constituindo os julgados de paz entidades vocacionadas para a resolução alternativa de litígios, esta sua função específica não é, pois, obrigatória: se o fosse, não se compreenderia se deixasse na disponibilidade do interessado propor a acção no julgado de paz ou no tribunal judicial competente.
   
Pelo que, até por revestir a sua instalação natureza experimental (art. 64º Lei 78/2001), se mostra plenamente justificada, quanto à competência em razão da matéria, a concorrência, ao menos transitória, entre julgados de paz e tribunais comuns.
   
E, nesses termos, forçoso se torna concluir que - embora por razões diversas das invocadas pela agravante - mantém o tribunal recorrido competência para conhecer da presente causa.

3.  Pelo acima exposto, se acorda em, concedendo provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida, ordenando-se a sua substituição por outra que conheça do objecto do litígio.
     
Sem custas.


Lisboa, 14 de Setembro de2006
 
(Ferreira de Almeida)

(Salazar Casanova  1º adjunto com declaração de voto)

(Silva Santos-2º adjunto    


Declaração de voto

1. Estamos totalmente de acordo com a decisão e fundamentação apresentadas.

2. Afigura-se-nos, porém, que, em sede de argumentação, se justifica ainda tentar responder ao argumento que tem sido apresentado ( ver P. 4081/2006 de 18 de Maio in www. dgsi.pt) com base no artigo 67.º da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho que prescreve:

“ As acções pendentes à data da criação e instalação dos julgados de paz seguem os seus termos nos tribunais onde foram propostas”.

3. O argumento é este: se a lei prescreve que as acções pendentes prosseguem nos tribunais onde foram propostas, então isso significa (a contrario sensu) que a lei implicitamente reconhece que a competência dos julgados de paz é exclusiva, pois, se assim não fosse, não inscreveria esta norma que seria redundante e é de presumir que o pensamento do legislador foi expresso em termos adequados e as soluções mais acertadas foram consagradas (artigo 9.º/3 do Código Civil).

4. O argumento é impressivo, mas também é impressivo que, a ser assim, a lei tenha reservado, e logo para uma norma de aplicação da lei no tempo, de uma forma tão discreta, quase subtil, a resolução de tão importante questão como é a da competência exclusiva dos julgados de paz, tribunais que não integram a estrutura dos tribunais judiciais.

5. Refira-se, desde já, que a referida disposição seria sempre de toda a utilidade, ainda que se considerasse, no que respeita aos processos pendentes, caso aquele preceito não constasse da Lei nº 78/2001, que os tribunais judiciais mantinham a competência até final (semel competens, semper competens) ;  é que, tratando-se os julgados de paz de tribunais criados a título experimental (4 anos volvidos desde a publicação da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho que regulou a competência, organização, funcionamento e tramitação dos processos da competência dos julgados de paz, reconhece o legislador a natureza experimental destes tribunais - ver Portaria n.º 1112/2005, de 28 de Outubro), a sua progressiva instalação protrair-se-á ao longo de muitos anos e, por isso, seria sempre conveniente que a lei esclarecesse que a criação  e instalação dos julgados de paz não implicaria a remessa dos processos pendentes para esses tribunais entretanto criados.

6. Por outro lado, o próprio regime dos julgados de paz, nada dizendo a lei, poderia conduzir à dúvida sobre se os autos pendentes não deviam ser remetidos com o argumento de que tais tribunais estariam mais vocacionados (v.g. por disporem de serviços de pré-mediação e de mediação, uma aposta destes tribunais) para a resolução dos litígios, mal se compreendendo - argumentar-se-ia - que as partes não pudessem obter os proveitos que tais tribunais proporcionam.

7. A defesa da exclusividade de competência e das particulares aptidões dos julgados de paz justificaria a defesa da aplicabilidade da remessa para estes tribunais de todas as acções pendentes.

8. É certo que o artigo 22.º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais), norma dirigida aos tribunais judiciais, não admite a remessa dos processos pendentes visto que, com a criação dos julgados de paz, não foi suprimido o tribunal judicial competente para julgar o litígio, situação que excepciona a regra da irrelevância, no que respeita à competência, das modificações de direito. A outra excepção está fora de causa pois visa os casos em que é atribuída competência de que o órgão inicialmente carecesse para o conhecimento da causa: seria o caso de ser proposta em tribunal judicial acção da competência dos julgados de paz (se esta fosse exclusiva) verificando-se entretanto a extinção destes, hipótese que aconteceu no passado com a extinção dos julgados municipais.

9. A dúvida poderia ainda fundar-se no artigo 64.º do C.P.C. segundo o qual, ocorrendo alteração da lei reguladora da competência, relevante quanto aos processos pendentes, o juiz ordena oficiosamente a remessa para o tribunal que a nova lei considere competente.

10. Este preceito tem em vista prevenir certas situações, já verificadas, designadamente com a criação dos tribunais de círculo, quando a lei (Lei n.º 24/90, de 4 de Agosto) determinou a remessa oficiosa para os tribunais de círculo, estando pendente uma causa no tribunal da comarca, ocorrendo uma alteração superveniente do respectivo valor, considerada relevante pela lei processual (artigo 81.º da Lei nº 38/87) e, precisamente por isso, o artigo 18.º da Lei Orgânica dos Tribunais então em vigor (Lei n.º 38/87, de 23 de Dezembro) dizia, no n.º 1, que “ a competência fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente sem prejuízo do disposto no artigo 81.º”, expressão final esta que, na actual lei (artigo 22.º), deixou de figurar por desnecessidade, pois uma tal possibilidade passou a ser contemplada pelo artigo 64.º do C.P.C.

11. Mas se a lei não prescreveu que os processos pendentes nos tribunais judiciais fossem remetidos oficiosamente logo que instalados os julgados de paz, não foi certamente porque não se reconhecesse aos julgados de paz competência para o efeito, tratando-se obviamente de matérias para as quais são competentes, não foi também porque não se lhes reconhecesse vocação.

12. A resposta da opção do legislador está ainda no facto de, dada a natureza experimental desses tribunais, dada a sua natureza de meios alternativos de resolução de litígios, dada a especificidade da tramitação dos processos nos julgados de paz, sempre na dependência da jurisdição comum, não querer impor uma norma transitória de sentido contrário que, esse sim, revelaria a vontade legal no sentido da exclusividade da competência dos julgados, o que sucederia se prescrevesse a remessa imediata para esses tribunais dos processos pendentes quando da sua instalação e criação.

13. E, como se disse, a lei tem as portas abertas a tal possibilidade face ao disposto no artigo 64.º do Código de Processo Civil, o que já não sucede com a disposição fechada  do artigo 22º da L.O.F.T.J.

14. Queremos com isto significar que a aludida norma transitória não é uma inutilidade pelo facto de inscrever uma solução que coincide com a regra (artigo 22º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro) aplicável aos tribunais judiciais -  os julgados de paz todavia não se inscrevem na hierarquia destes tribunais - e, a querer extrair-se dela um sentido revelador no que respeita à competência dos julgados de paz, seria a norma transitória oposta a que verdadeiramente justificaria a ideia da exclusividade da competência dos julgados de paz.

15. Estas razões levam, a nosso ver, a que não se deva dar ao referido argumento a contrario sensu  a natureza de argumento decisivo, pois outros argumentos se lhe opõem e, neste ponderar interpretativo, acolhemo-nos à sua sombra, julgando, deste modo, respeitar os propósitos da lei.

(Salazar Casanova)