Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7145/2005-8
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: COMPRA E VENDA
PRÉDIO URBANO
ARRENDATÁRIO
DIREITO DE PREFERÊNCIA
REGISTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/17/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Sumário: I- O direito de preferência do arrendatário habitacional (artigo 47º do RAU) é um direito real de aquisição.
II- O preferente pode exercê-lo com sucesso demandando os intervenientes na transmissão que haja desrespeitado tal preferência.
III- A circunstância de, após essa transmissão, embora antes da acção de preferência ser proposta, o comprador ter alienado o imóvel a terceiro, não determina a extinção do direito de preferência, pois isso seria a negação dos direitos de sequela e de prevalência que são características essenciais dos direitos reais.
IV- Muito embora o preferente haja registado a acção de preferência e o subadquirente não tenha registada a seu favor a segunda transmissão do imóvel, de que apenas foi dado conhecimento ao preferente depois de instaurada acção de preferência contra os outorgantes da primeira escritura de compra e venda, não se aplica ao caso o disposto  no artigo 271º/3 do CPC.
V- Assim sendo, a sentença que reconheça a preferência não produz efeitos em relação a esse adquirente.
VI- Afigura-se inaceitável o entendimento de que , proposta acção de preferência contra vendedor e comprador do imóvel, a acção deva improceder apenas porque o imóvel foi entretanto vendido a terceiro seja com o argumento de que, por isso, o direito de preferência se extinguiu, seja com o argumento de que a decisão que reconheça a preferência não faz caso julgado em relação a esse terceiro subadquirente, seja com o argumento de que o preferente podia ter proposto a acção contra o terceiro adquirente para alcançar, quanto a ele, efeito de caso julgado, seja finalmente com  o argumento de que a intervenção desse terceiro se impõe por estarmos face a litisconsórcio necessário.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:


1. António… intentou no dia 8JUL1998 acção declarativa com processo ordinário contra Ana…, Bernardo… e Maria… e também contra a Caixa Geral de Depósitos deduzindo os seguintes pedidos:

- Que se declare que tem direito de preferir na compra da fracção H, correspondente ao 3º Esq. do prédio sito… em Lisboa e, em consequência, o direito de haver para si a referida fracção, substituindo-se no negócio aos réus e atribuindo-se ao A. o direito de propriedade da fracção.

- Que seja a Caixa Geral de Depósitos condenada a vir desonerar a fracção da hipoteca, ordenando-se o cancelamento da mesma.

2. Invoca o A. a seu favor a qualidade de arrendatário da aludida fracção desde 1 de Maio de 1981 que lhe confere direito de preferência na compra e venda ou na dação em cumprimento do local arrendado há mais de um ano (artigo 47º/1 do R.A.U.).

3. Demanda o A. a vendedora (Ré Ana…) e os compradores (RR Bernardo e Maria) da aludida fracção que outorgaram escritura de compra e venda no dia 22JAN1985 pelo preço de 4.500.000$00.

4. Aquisição e hipoteca a favor da CGD mostram-se registadas  pelas Ap. 5 e 6 de 30NOV1984.

5. De tal transacção jamais foi dado conhecimento ao A. que dela soube no dia 24ABR1998 com a fotocópia da escritura de compra e venda.

6. No dia 27JUL1998 o A. depositou 4.600.000$00, valor do preço de venda e das eventuais despesas com escritura e registos.

7. A acção de preferência foi objecto de registo pela Ap. 1 de 31JUL1998 (ver fls. 38).

8. A Ré CGD alegou que já tinha emitido, previamente à acção, declaração de renúncia à hipoteca, documento necessário para se proceder ao respectivo cancelamento e, por isso, a acção deve improceder quanto a ela.

9. Quanto aos demais RR alegaram que, antes da escritura de compra e venda, ou seja, antes de 22JAN1985 foi dado ao A. conhecimento do projecto de venda que levou à outorga da escritura de compra e venda, que o A. renunciou ao exercício do direito de preferência e que tal direito caducou pois, na pior das hipóteses, teria começado a correr naquela mesma data de 22JAN1985.

10. Alegaram ainda os RR que outorgaram no dia 21JUL1997 escritura de compra e venda da aludida fracção pelo preço de 5.000.000$00 sendo compradora Paula…

11. Assim, segundo os RR, antes de instaurada a presente demanda, já a fracção tinha sido alienada à referida Paula, não sendo os RR os actuais donos do andar e, por isso, nada têm a ver com o mesmo.

12. A acção foi julgada improcedente.

13. A decisão recorrida argumentou nestes termos:

“ A circunstância de a fracção em questão haver sido transmitida, por venda, à identificada Paula… em 21 de Julho de 1997, não poderá deixar de ter repercussões no destino da presente acção, uma que a posição na qual o A. pretende ingressar, enquanto adquirente da fracção em questão, substituindo-se aos segundos RR no contrato celebrado em 22JAN1985...já não tem correspondência com a realidade dos factos.

14. Na verdade, pela venda da fracção...os 2ªs RR transmitiram o direito de propriedade sobre aquela, direito que, nessa medida, já não subsiste nas respectivas esferas jurídicas. Daí que, pretendendo preferir, o A. tivesse que exercer a preferência já relativamente a este segundo contrato que, repete-se, transmitiu a propriedade da fracção para terceiro.

15. Com efeito, haverá que não esquecer que, mediante a acção de preferência, o preferente pretende que o Tribunal o substitua ao adquirente com efeitos retroactivos à data da venda em que pretende preferir.

16. Pressuposto de tal operação será, obviamente, a manutenção da propriedade do imóvel em questão na titularidade desse ‘primeiro adquirente’, na medida em que na aquisição derivada translativa, por efeito do contrato de compra e venda...o direito adquirido é o mesmo que já pertencia ao anterior titular...

17. Em suma, mediante o reconhecimento da violação do direito de preferência legal, o tribunal substitui o preferente ao primitivo adquirente, procedendo a uma modificação subjectiva do direito de propriedade incidente sobre determinado bem...

18. Assim, com a venda efectuada a Paula… extinguiu-se o direito de preferência que o A. detinha na venda efectuada em 1985 e constituiu-se na sua esfera jurídica um novo direito a preferir, mas nesta última compra, substituindo-se “à nova adquirente”.

19.Da decisão interpôs recurso o A.

20. Alegou o recorrente que intentou a acção de preferência contra os RR os quais, vendendo e comprando o imóvel sem lhe darem conhecimento dos elementos essenciais do contrato celebrado, desrespeitaram o direito de preferência do A. que, aliás, só teve conhecimento da ulterior venda depois de ter proposto e registado a presente acção.

21. Aliás, o recorrente teria sempre de exercer a acção de preferência sobre a primeira alienação. pois, se assim não fosse, desvirtuar-se-ia o próprio direito de preferência, podendo o proprietário proceder à venda do imóvel por um valor substancialmente superior, impedindo que o preferente usasse do seu direito por não ter possibilidades de pagar um valor tão elevado; a preferência é um direito real de aquisição que tem como efeitos a substituição do adquirente pelo preferente, sendo tal aquisição oponível a terceiros, ainda que de boa fé, tanto mais quando essa aquisição não se encontra registada; e mesmo quanto às regras registais ocorre a mesma situação, pois o registo efectuado em primeiro lugar tem prioridade relativamente a todos os registos posteriores (artigo 6º do CRP).

22. Factos provados:

1- O A. é arrendatário habitacional desde 1 de Maio 1981 da fracção autónoma designada pela letra H correspondente ao 3º Esq. do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua… em Lisboa.
2- No dia 22JAN1985 foi celebrada escritura de compra e venda atinente à aludida fracção sendo vendedora Ana… e compradores Bernardo… e Maria.
3- O preço da venda foi de 4.500.000$00.
4- Mostra-se inscrita pela Ap. 5 de 30NOV1984 a aquisição dessa fracção imobiliária a favor dos RR Bernardo e Maria, mostra-se inscrita com a mesma data (Ap. 6) hipoteca voluntária a favor da CGD que emitiu em 2ABR 1997 declaração de renúncia.
5- No dia 21JUL1997 foi outorgada escritura de compra e venda entre os RR Bernardo e Maria, enquanto vendedores, e Paula…, enquanto compradora, atinente à aludida fracção, sendo o preço da venda de 5.000.000$00.
6- O A. depositou a quantia de 4.600.000$00 no dia 21JUL1998 (ver fls. 30).
7- O A. registou a presente acção pela Ap. 1 de 31JUL1998.
8- O A., porque necessitava de contactar com o senhorio do referido imóvel, tentou fazê-lo para a morada conhecida e não o conseguiu contactando um vizinho que administra o prédio que o informou não ter qualquer contacto com o proprietário, desconhecendo até o nome do mesmo (1 e 2).
9- Depois de diversas tentativas, o A. soube, através de um outro vizinho, que o proprietário actual não era a empresa “A… Ldª” pelo que se deslocou à… Conservatória do Registo Predial de Lisboa (3).
10- O que lhe foi então confirmado por um funcionário da mesma Conservatória que o informou de que tinha sido lavrada entretanto uma escritura de compra e venda (4).
11- Tendo então o A. obtido, em 24JAN1998, fotocópia autenticada da respectiva escritura, nos moldes descritos a fls. 17/22 dos autos (5).

Apreciando:


23. A questão a resolver é esta: o direito de preferência legal do arrendatário habitacional extingue-se a partir do momento em que o adquirente vende a terceiro o imóvel objecto de preferência?

24. A resposta não pode deixar de ser negativa:  o direito de preferência que assiste ao preferente legal (in casu,o arrendatário) na compra e venda da coisa arrendada há mais de um ano não se extingue pela circunstância de a coisa arrendada ter sido subsequentemente vendida pelo comprador a terceiro.

25. Causas de extinção do direito de preferência são, por exemplo, a renúncia, a confusão (o arrendatário adquire ele a propriedade da coisa), a extinção do direito de arrendamento, mas não a subsequente alienação, pois tal traduzir – se - ia na negação das características essenciais do direito real: sequela e prevalência.

26. O direito de sequela ou de seguimento tem este significado: “ o direito segue a coisa, persegue-a, acompanha-a, podendo fazer-se valer seja qual for a situação em que a coisa se encontre. Daí que o titular do direito real possa sempre exercer os poderes correspondentes ao conteúdo do seu direito, ainda que o objecto entre no domínio material ou na esfera jurídica de outrem” (Direitos Reais, Álvaro Moreira e Carlos Fraga, segundo as prelecções do Prof. Doutor Carlos Alberto da Mota Pinto ao 4º ano jurídico de 1970-1971, pág. 47).

27. E prossegue o autor: “ comportará o direito de sequela excepções? Haverá situações em que, pelo menos, substancialmente, se verifiquem resultados equivalentes a excepções ao direito de sequela?

Vejamos.

28. Não constitui excepção ao exercício do direito de sequela a boa fé do adquirente ‘a non domino’, ou seja, do terceiro que recebeu a coisa de quem não era seu proprietário. Daí que apesar da boa fé do adquirente, o verdadeiro proprietário continue a poder reivindicar a coisa e a exercer o seu direito em face daquele terceiro adquirente” (pág. 54).

29. Há uma situação, no entanto, que “ de certo modo equivale substancialmente a uma excepção à sequela” (loc cit, pág. 61). Trata-se do caso em que A. vende a mesma coisa a B. e a C., registando este a aquisição, não a registando aquele. Nesse caso a lei dá prevalência a favor da primeira venda registada (registo constitutivo: artigos 5º/4, 7º e 17º/2 do CRP).

30. Esta situação não tem a ver com a dos autos. Aqui A. vende a B. (que regista) e B. vende a C (que não regista). Há duas transmissões autónomas, sendo diferentes os transmitentes, ou seja, não há dois adquirentes que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si, como acontece no caso referido anteriormente.

31. Há duas compras e vendas autónomas ( de A. para B. e de B. para C), podendo sobre cada uma delas o preferente P (que é o autor) exercer o respectivo direito de preferência.

32. Assim, P., por via do reconhecimento da preferência, ingressa por substituição na posição do adquirente B.

33. Por isso, a venda de B. a C. (venda em que foi compradora a referida Paula…)- é uma venda “a non domino” relativamente à qual o preferente P., que ingressa na posição do adquirente, poderá reivindicar do adquirente “a non domino” o imóvel referenciado.

34. Na decisão recorrida diz-se que “pressuposto de tal operação” (leia-se: da “operação” de preferência) “ será, obviamente, a manutenção da propriedade do imóvel em questão na titularidade desse ‘primeiro adquirente’, na medida em que na aquisição derivada translativa, por efeito do contrato de compra e venda... o direito adquirido é o mesmo que já pertencia ao anterior titular”.

35. A que “pressuposto” se refere a decisão?

36. No caso em apreço primeiros adquirentes são os RR Bernardo e Maria; o A. exerce a preferência em relação à primeira alienação. O A. pretende com toda a razão, a nosso ver, ingressar na posição dos primeiros adquirentes.

37. Ele ficará, procedente a acção, na mesma posição em que ficaram os adquirentes Bernardo e Maria, sujeito o seu direito de propriedade às mesmas contingências em que se encontravam tais adquirentes.

38. Já no que respeita à venda dos RR Bernardo e Maria (B., na hipótese abstracta que figurámos) para a Paula… (C., na hipótese abstracta que figurámos) ela é que fica na situação de ter adquirido um direito que afinal não pertencia ao anterior titular, tal o efeito da retroactividade da preferência ao momento da aquisição com substituição do comprador pelo preferente.

39. Se o A. tivesse exercido o seu direito em relação à segunda alienação, nenhum problema também se vislumbraria. Ele ingressaria na posição da Paula… que adquirira o direito dos RR Bernardo e Maria.

40. O preferente adquire em qualquer dos dois casos o imóvel substituindo-se ao comprador que adquiriu legitimamente a coisa do anterior proprietário vendedor. No caso da primeira venda o autor (preferente) ingressa na posição dos RR Bernardo e Maria que adquiriram legitimamente ( nada temos nos autos que desminta esta afirmação) o imóvel à vendedora Ana… (A.); se o A. tivesse exercido o seu direito real de aquisição relativamente à segunda alienação, ele ingressaria na posição da referida Paula… (C) que adquirira legitimamente aos vendedores, os RR Bernardo e Maria (B).

41. Se o pressuposto a que alude a decisão é o reconhecimento de que a preferência pressupõe uma venda válida, então, se assim é, um tal pressuposto verifica-se. Não se questiona, com efeito, a validade da venda pela qual os RR Bernardo e Maria adquiriram o imóvel à vendedora Ana. Ora é quanto a essa alienação que o autor exerce o seu direito de preferência.

42. Se a decisão tem em vista o pressuposto da validade da venda dos RR Bernardo e Maria à adquirente Paula… - alienação relativamente à qual o A. não exerceu o seu direito de preferência - então, dir-se-á, não é o pressuposto que está em causa, mas a consequência resultante da procedência da acção de preferência.

43. Consequência, e não pressuposto da dita “operação”, é a consideração de que a compradora Paula… (C.) adquiriu “a non domino”. Mas isso é assim mesmo, precisamente dado os referidos efeitos retroactivo e substitutivo.

44. Daí que se pudesse suscitar a questão - que não importa resolver nestes autos - de saber que meios teria ao seu dispor o preferente, investido na propriedade do imóvel, para que lhe fosse entregue o imóvel se a compradora “ a non domino” (a dita Paula…) se recusasse a fazê-lo.

45. Já se viu, no entanto, que o meio processual seria a acção de reivindicação, não se configurando nos autos situação de excepção à sequela.

46. Podia dar-se outra hipótese (mais complexa) que seria esta: admita-se que A. vende a B. que não regista e vende depois a C. que regista; o preferente P. exerce (surpreendentemente) a preferência relativamente à venda de A. para B. ( e não à venda ulterior registada de B. para C.). Procedente a acção, ele fica na situação de B. Nesse caso, porque C., adquirente posterior, registou primeiramente e porque o registo é constitutivo, P. não será bem sucedido se reivindicar a coisa de C. (salvo sempre reconhecimento de aquisição da coisa por usucapião). Mas isso não causa surpresa porque afinal o preferente fica na mesma situação do adquirente B. (que não registou a aquisição).

47. Uma outra característica dos direitos reais é o direito de preferência ou de prevalência. Este “ traduz-se na circunstância de os direitos reais constituídos sobre uma coisa prevalecerem, quer sobre os direitos de crédito relativos a essa coisa, quer sobre os direitos reais posteriormente constituídos sobre a mesma coisa e que se revelam total ou parcialmente incompatíveis com o anterior” (loc. cit., pág. 61).

48. A prevalência traduz-se, no caso vertente, na circunstância de o autor, preferente (P.), poder invocar o seu direito de propriedade que se considera incompatível com o direito de propriedade a que se arrogue a adquirente Paula... Os direitos são incompatíveis entre si. Ou é o preferente (P.) o proprietário da coisa ou é a Paula... Dirá o autor (preferente) que a dita Paula… não é proprietária visto que adquiriu “a non domino”. Nos direitos reais de gozo esse direito de prevalência “ vai decidir da própria existência ou inexistência do direito” (loc cit., pág. 65).

49. Repare-se, no entanto, que este tipo de considerações são as que se podem suscitar num momento ulterior àquele em que nos encontramos; é que se as razões da decisão recorrida pudessem valer, então o preferente é que jamais poderia saber da sorte da eventual futura acção de reivindicação contra a adquirente Paula… (C) pela pura e simples razão de que não vira a sua preferência reconhecida.

50. O tribunal nega ao A. o reconhecimento do seu direito real de aquisição com argumentos que, com vimos, afrontam as características básicas dos direitos reais e o direito do autor é um direito real de aquisição.

51. O A. propôs a acção contra quem tinha de propor: vendedora e compradores (para quem considere a necessidade de litisconsórcio necessário): ver Ac. da Relação de Évora de 25-9-     -1997 (Armindo Luís) B.M.J. 469-669 e Ac. da Relação de Coimbra de 17-11-1981 (Dario de Almeida) C.J.,5, pág. 69:

I- Tem legitimidade, como réu, o comprador do prédio sobre que se exerce a preferência, mesmo que depois o tenha vendido a pessoas estranhas à acção.


52. Não tinha o preferente de propor a acção contra a adquirente Paula…

53. Este ponto não foi suscitado nos autos. Permitimo-nos referi-lo apenas para tentar demonstrar que as soluções processuais e substantivas não são incompatíveis, antes se harmonizam, não devendo o tribunal deixar-se impressionar pela circunstância de a acção ter sido proposta contra os adquirentes do imóvel que, no momento em que a acção foi proposta, já não eram os respectivos proprietários.

54. Poderia dizer-se que eles não teriam, por isso, interesse em contradizer: o resultado da acção ser-lhes-ia indiferente. Não parece. O interesse em contradizer exprime-se pelo prejuízo que da procedência da acção advenha. Ora, no caso de procedência da acção de preferência, os RR podem ser responsabilizados face ao adquirente que haja confiado na observância dos deveres de comunicação ao preferente legal a efectivar na transmissão anterior; seguramente, os RR, e numa primeira aparência das coisas, por força da procedência da acção de preferência, enquanto vendedores “ a non domino” locupletaram-se com o preço da venda à custa da compradora Paula… que pode, assim,  exigir-lhes a repetição do indevido.

55. Verifica-se que o A. demandou quem devia demandar e registou a acção de preferência; a adquirente ulterior não registou a aquisição.

56. Admitamos que a segunda alienação tinha sido efectuada na pendência da acção de preferência.

57. O artigo 8º do CRP não se aplica às acções de preferência: ver Ac. da Relação de Coimbra de 29-7-1982 (Simões Ventura) C.J., 4, pág. 225, Ac. da Relação de Coimbra de 11-3-1986 (Manuel Pereira da Silva) C.J.,2, pág. 54, Acórdão da Relação do Porto de 27 de Novembro de 2000, (Paiva Gonçalves)B.M.J. 501-342, Recurso n.º 0051242)

58. É que a procedência da acção de preferência leva a que, no registo predial, se proceda à substituição, por averbamento ao registo eventualmente existente ou por cancelamento deste e inscrição de um novo, a pedido (princípio da instância) do respectivo interessado com base na decisão judicial transitada em julgado.

59. No entanto, o facto de se não impor o pedido de cancelamento do registo não significa, claro está, que a acção de preferência não seja acção sujeita a registo obrigatório, como resulta do disposto no artigo 3º/1, alínea a) do Código do Registo Predial.

60. No que respeita  às consequências da falta de registo da acção de preferência, posto que o artigo 3º do CRP nada diga sobre este ponto, a sua doutrina está “ estreitamente relacionada com uma disposição da lei processual, onde se define a vantagem do registo da acção real a ele sujeita.

61. Referimo-nos ao artigo 271º,nº3 do Código de Processo Civil, no qual se fixam as consequências processuais da transmissão da coisa ou direito objecto de certa acção, durante a pendência desta...Diz o nº 3 o seguinte:

62. “A sentença produz efeitos em relação ao adquirente, ainda que não intervenha no processo, excepto no caso de a acção estar sujeita a registo e o adquirente registar a transmissão antes de feito o registo da acção

63. Deste preceito resulta claramente que a falta de registo de uma acção real tem apenas como consequência a inoponibilidade da decisão aos terceiros que tenham adquirido direitos sobre a coisa litigiosa no período da mora litis.

64. Trata-se de uma consequência de ordem meramente processual (relativa à eficácia do caso julgado) que em nada afecta a natureza absoluta do direito real que a decisão tenha reconhecido ao autor: este poderá sempre, através de nova acção, fazer valer o seu direito em face de terceiros subadquirentes.

65. Se o autor registar a acção real, a sentença que nela obtiver terá uma eficácia superior à que normalmente deriva do caso julgado. Além de vincular as partes, a decisão produz ainda efeitos contra todo aquele que adquirir a coisa litigiosa, durante a pendência da acção, direitos incompatíveis com os do autor. O registo destina-      -se, portanto, a dar conhecimento a terceiros de que uma determinada coisa está a ser objecto de um litígio e a adverti-los de que devem abster-se de adquirir sobre ela direitos incompatíveis com o invocado pelo autor - sob pena de terem de suportar os efeitos da decisão que a tal respeito venha a ser proferida, mesmo que não intervenham no processo.

66. Faltando  o registo, a sentença terá apenas a sua eficácia normal: eficacia inter partes. Mas o autor não fica impedido de exercer o seu direito contra terceiros para quem a coisa tenha sido entretanto transmitida. Simplesmente, para lograr o efeito a que se dirigia a primeira acção, necessita de os convencer em novo pleito” (Antunes Varela, R.L.J.,Ano 103º, nº 3435, páginas 483/484).

67. O A. não pediu, na presente acção que, reconhecida a preferência, se declarasse ineficaz, quanto a ele, a alienação subsequente. Não o fez certamente porque desconhecia a existência dessa ulterior transmissão. Esta, no entanto, não foi objecto de registo e, por isso, do ponto de vista de registo, procedente a acção de preferência, o registo de aquisição a favor do autor preferente (P.) far-se-á nos termos assinalados (supra 58). E sendo o autor arrendatário, ou seja, encontrando-se desde há vários anos a fruir nessa qualidade o andar que lhe foi arrendado, a partir do momento em que seja reconhecida a sua qualidade de proprietário com inscrição de propriedade registada a seu favor, não se vê que lhe interesse ou tenha necessidade de convencer a dita Paula…

68. No entanto, porque a aquisição a favor da Paula… não se deu na pendência da acção de preferência - a venda foi anterior - não lhe é aplicável o disposto no artigo 271º/3 do CPC. Assim, ela poderá sempre, em acção que pretenda intentar contra o autor, reconhecida já a preferência deste perante os RR aqui demandados, questionar essa mesma preferência. Admita-se, por exemplo, que o autor não dispunha de direito de preferência legal por não ser afinal arrendatário. A dita Paula… poderia, em juízo, ver esclarecida tal questão, não lhe sendo invocável o caso julgado resultante da decisão favorável ao A. na presente acção.

69. Se a adquirente ulterior tivesse registado  a aquisição, o A. teria já todo o interesse em demandá-la, deduzindo o pedido de declaração de ineficácia da segunda venda face ao reconhecimento da preferência com consequente cancelamento do registo. Assim, o A. obteria sentença que constituiria caso julgado em relação aos compradores posteriores que possibilitaria o cancelamento do registo efectuado a favor do terceiro demandado.

70. Assim não procedendo, o preferente não pode invocar caso julgado da acção que reconheceu a sua preferência e terá, portanto, se quiser convencer os adquirentes ulteriores, de os demandar impondo-se-lhe o ónus de alegar e provar o reconhecimento da preferência. Assim, veja-se o Ac. do S.T.J. de 16-11-2004 (Nuno Cameira) (revista nº 2973/2004 da 6ª secção):

II - A sentença proferida em acção de preferência não registada faz caso julgado apenas entre as partes, não vinculando os terceiros que na pendência da causa tenham adquirido sobre o prédio direitos incompatíveis com o do autor.
III - O direito de preferência propriamente dito, contudo, não está sujeito a registo; por isso, nada impede que o seu titular o exerça contra terceiros para quem a coisa foi entretanto transmitida, mesmo que o não tenha inscrito nos livros da conservatória.
IV - O titular do direito de preferência reconhecido em acção não registada que o queira fazer valer contra terceiros subadquirentes do prédio que a ela não foram chamados terá de contra eles propor nova acção em que os convença da existência daquele direito, mediante a alegação e prova dos respectivos factos constitutivos.
V - Se na nova acção, porém, apenas alegar que a preferência lhe foi reconhecida na anterior, improcederá o pedido que formule de reconhecimento da propriedade e restituição do prédio, independentemente de se saber se os demandados estão ou não em condições de lhe opor triunfantemente a aquisição tabular, nos termos previstos no art.º 291 do CC.

71. No entanto, no caso vertente, como já se disse, o autor registou a acção de preferência. Se o registo coloca o A. na desnecessidade de convencer o adquirente anterior (anterior em relação ao momento do registo, não em relação à transmissão sobre a qual foi exercida a preferência) que não registou a aquisição antes de o preferente ter registado a acção de preferência, não parece que uma tal situação traga outras vantagens, designadamente a extensão do caso julgado ou mesmo a inversão do ónus da prova dos factos que justificaram o reconhecimento da preferência.

72. Inegável, face ao exposto, é que o preferente não tem, em coligação, de demandar, para além do vendedor e comprador, os subadquirentes do imóvel, pedindo o reconhecimento da preferência quanto àqueles e a declaração de ineficácia da venda ulterior quanto a estes (subadquirentes).

73. Inegável também se nos afigura que o preferente legal pode exercer o seu direito relativamente a todas as transmissões que forem efectuadas e esse direito não se extingue pelo facto de o comprador ter entretanto alienado a coisa objecto de preferência.

74. A matéria invocada pelos réus visando a demonstração de que o A, renunciara à preferência não se provou (resposta negativa aos quesitos 6º e 7º) e, no que toca à caducidade da acção de preferência (artigo 1410º do Código Civil), improcede igualmente a excepção uma vez comprovado (resposta ao quesito 5º) que o A. em 24-4-1998 tomou conhecimento da venda da fracção de que é arrendatário tendo proposto a acção em 8-7-1998

75. A condenação da CGD não se impõe visto que está provado que ela já emitiu declaração de renúncia apenas se justificando e impondo o cancelamento do registo


Decisão: concede-se provimento ao recurso e, em consequência, julga-se a acção procedente declarando-se que o A. tem direito de preferir na compra da fracção H correspondente ao 3º Esq. do prédio sito na Rua… em Lisboa e, consequentemente, tem direito de haver para si a aludida fracção, substituindo-se ao adquirente no que respeita à compra e venda em que os RR Bernardo e Maria outorgaram como compradores e, consequentemente, deve proceder-se às necessárias alterações de registo incluindo o cancelamento do registo de hipoteca a favor da CGD que emitiu declaração de renúncia.

Custas apenas pelos RR (com excepção da CGD)


Lisboa, 17 Novembro 2005



(Salazar Casanova) (relator por vencimento)


(Silva Santos)


(Ferreira de Almeida) (que junta declaração de voto)
 
Declaração de voto


    Fundou-se, essencialmente, a decisão recorrida na circunstância de, por virtude de ulterior transmissão pelos mesmos efectuada, não serem já os 2ºs RR., ora apelados, titulares do direito de propriedade sobre a  fracção em causa.
    Efectivamente, e conforme resulta da factualidade assente, em data posterior à transmissão impugnada, mas anterior à propositura da presente acção, foi lavrada escritura pública, através da qual os referidos RR. operaram a venda, à identificada Paula…, da fracção, por si adquirida, e objecto da preferência.
    Por força do disposto no art. 5º do C.R.Predial, os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo.
    Esclarecendo, todavia, o nº4 desse preceito (aditado pelo Dec-Lei 533/99, de 11/12) que terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.
    Tal constituía, aliás, já o entendimento consagrado no acórdão de uniformização de jurisprudência nº 3/99 (D.R.-1ª Série, de 10/7/1999), ao decidir que “terceiros, para efeitos do disposto no art. 5º do C.R.Predial, são os adquirentes, de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa”.
    Não tendo o registo predial - que apenas se destina a publicitar a situação jurídica dos prédios - efeito constitutivo, e não podendo o apelante, em tal acepção, considerar-se terceiro, ser-lhe-á, pois, oponível, apesar de não registada, a posterior transmissão efectuada pelos apelados.
   Pelo que a invocada preferência, devendo incidir sobre essa última transmissão, teria de, como decidido, ser exercida contra pessoa - a actual titular do direito - que não havendo sido demandada, não é parte na acção.
     Votei, assim, no sentido de se negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida