Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | ABRANTES GERALDES | ||
| Descritores: | EMBARGOS DE TERCEIRO SUBSTITUIÇÃO CASO JULGADO LEGITIMIDADE LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 12/03/2002 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | AGRAVO. | ||
| Decisão: | NEGADO PROVIMENTO. | ||
| Sumário: | A sentença proferida no âmbito de embargos de terceiro deduzidos contra a execução de mandado de despejo que reconheceu a embargante como arrendatária constitui caso julgado oponível àquele que, na pendência dos embargos, adquiriu a mesma fracção, atento o disposto no art. 271º do CPC. Deduzidos novos embargos de terceiro contra a sentença referida, sabendo o embargante a falta de fundamento legal, para além do indeferimento liminar, justifica-se ainda a condenação do embargante como litigante de má fé. | ||
| Decisão Texto Integral: | I – A deduziu embargos de terceiro por apenso a um outro processo de embargos de terceiro deduzidos por B contra C, ao abrigo do qual foi ordenada a restituição de uma fracção de um prédio à embargante que havia sido objecto de despejo. Alegou o embargante que adquirira de C o direito de propriedade sobre o prédio em causa, o qual se encontra registado a seu favor, sendo terceiro relativamente ao referido processo de embargos. Os embargos foram liminarmente indeferidos com fundamento em que o embargante adquirira de C o direito de propriedade, estando, por via disso, vinculado ao contrato de arrendamento que favorecia B. Agravou o embargante e concluiu que: - Do contrato de arrendamento não resulta um direito real para o locatário, pelo que, estando o imóvel em poder do agravante aquando da sua entrega à embargada, esta dispunha apenas de uma pretensão creditória contra si; - O art. 1037º do CC pressupõe que o locatário se encontre no uso da coisa, o que não se verificava no caso presente, pelo que os embargos de terceiro não eram o meio de desalojar o agravante. Houve contra-alegações. Entretanto, já nesta Relação, por se afigurar que a actuação do agravante, ao deduzir os embargos de terceiro e ao agravar do despacho de indeferimento, poderia revestir características que implicassem a sua condenação como litigante de má fé, foi-lhe dada a oportunidade para se pronunciar. A resposta foi apresentada depois do prazo. E, apesar de ter sido notificado para efectuar o pagamento da correspondente multa, nos termos do art. 145º, nº 6, do CPC, o agravante não o fez, motivo pelo qual perdeu o direito de praticar esse acto, tendo sido ordenado o desentranhamento. Foram ainda requisitados ao Tribunal a quo os processos anteriores. Colhidos os vistos, cumpre decidir. II – Elementos a ponderar: a) C, anterior proprietário da fracção a que os autos se reportam, intentou contra José Farinha uma acção de despejo, no âmbito da qual foi decretado o despejo em 5-12-89 (processo principal). b) B, invocando a sua qualidade de arrendatária não demandada na referida acção de despejo, interpôs contra a respectiva sentença embargos de terceiro (apenso A). Porém, por se ter considerado que tais embargos foram apresentados antes do tempo, os mesmos foram indeferidos. c) Requerida a execução do despejo em 8-11-90, a mesma foi realizada em 23-3-93 (apenso B). d) Entretanto B interpusera novos embargos de terceiro em 18-12-90, invocando a sua qualidade de arrendatária da fracção, posição adquirida na sequência do óbito do seu marido, anterior arrendatário, Álvaro da Costa Seguro Serra (apenso C). e) Após vicissitudes diversas que passaram pela prolação de dois acórdãos nesta Relação, em recursos interpostos por B, os embargos de terceiro acabaram por ser julgados procedentes por sentença proferida em 14-11-97, tendo sido decretada a restituição da fracção à embargante, decisão que foi confirmada por esta Relação em 23-1-01; interposto novo recurso para o Supremo tribunal de Justiça, o mesmo foi aí rejeitado com fundamento na irrecorribilidade; f) No decurso dos embargos de terceiro, em 4-11-97, nas vésperas da audiência de julgamento que estava agendada para 6-11-97, o mandatário do embargado C, Sr. Dr. D, veio requerer a renúncia ao mandato forense, alegando uma anterior venda da fracção executada pelo embargado A, facto que para si seria desconhecido g) Esse pedido de renúncia não foi acompanhado de qualquer prova da compra e venda e nem sequer foi deduzida a habilitação do adquirente, prosseguindo os embargos de terceiro, com realização da audiência de julgamento, prolação de sentença e recursos, com os mesmos sujeitos processuais; aliás, o embargante continuou a ser patrocinado pelo mesmo mandatário. h) Na sequência da decisão que julgou procedentes os embargos de terceiro, foi instaurada, em 30-3-98, execução para entrega de coisa certa tendo em vista a restituição à embargante B da fracção de que havia sido despejada, restituição executada em 5-12-00 (apenso F). i) Contra essa entrega foram deduzidos, em 8-1-01, por A., os presentes embargos de terceiro (apenso G). j) Com a petição inicial destes embargos foi apresentado o documento comprovativo da compra e venda da fracção a favor do embargante A., acto que havia sido realizado em 5-6-93. k) Na referida escritura de compra e venda o embargante A. é referenciado como residindo na fracção dos autos. l) O mandatário do embargante que apresentou a petição e que tem acompanhado todo este processo de embargos de terceiro continua a ser o Sr. Dr. D. que havia patrocinado o anterior proprietário C no processo principal e respectivos apensos (acção de despejo, execução do despejo, embargos de terceiro, execução da sentença de restituição). m) O direito de propriedade da referida fracção encontra-se averbado em nome do ora embargante desde 16-9-93. III – Decidindo: 1. Pretende o agravante que se dê sem efeito a diligência de restituição que foi executada e que se lhe confira a posse da fracção. Obviamente que jamais tal resultado poderia ser decretado, tendo em conta que o agravo incide sobre despacho de indeferimento liminar, de modo que a sua eventual revogação apenas determinaria a passagem dos autos para a fase subsequente destinada à apreciação da viabilidade dos embargos e nunca ao conhecimento do mérito da causa. 2. As alegações e aquilo que é de conhecimento oficioso suscitam as seguintes questões essenciais: a) Decretada a restituição do locado à locatária, no âmbito de embargos de terceiro deduzidos depois de ter sido executado o despejo, constitui motivo de oposição a essa restituição o facto de o ora embargante se encontrar na detenção do mesmo locado? b) Os embargos de terceiro ainda constituem um meio de conseguir a referida restituição efectiva ou, ao invés, a locatária deveria ter optado por intentar uma outra acção? c) Uma vez que na pendência dos anteriores embargos de terceiro a fracção foi vendida ao ora embargante, sem que tivesse sido feita a sua habilitação, a sentença proferida nos referidos embargos, transitada em julgado e já executada, produz ou não produz efeitos em relação ao ora embargante, nos termos dos arts. 271º, nº 3, e 57º do CPC? d) A dedução dos embargos de terceiro por parte daquele que adquiriu a fracção na pendência dos anteriores embargos de terceiro revela ou não actuação que configura litigância de má fé? 2.1. Na decisão recorrida, o indeferimento liminar foi determinado pelo facto de o embargante, por via da escritura pública de compra e venda, ter adquirido o direito de propriedade do imóvel onerado com a posição jurídica de arrendatário que pertence à embargada. Trata-se de uma consequência inultrapassável no plano do direito substantivo. Reconhecida no anterior processo de embargos de terceiro a existência de um vínculo arrendatício que ligava a embargante B à fracção despejada, tal vínculo não se extinguiu pelo facto de ter sido transferido para o ora embargante o direito de propriedade, tendo em conta o disposto no art. 1057º do CC. Uma vez que o contrato de locação persistia na ocasião em que foi outorgada a escritura de compra e venda, o respectivo vínculo era oponível ao novo adquirente do direito de propriedade. 2.2. É verdade que o reconhecimento da anterior embargante como arrendatária, enquanto sucessora do seu falecido marido, ocorreu no âmbito do anterior apenso de embargos de terceiro em que, em termos formais, o ora embargante não teve intervenção. Os elementos extraídos dos diversos apensos revelam que aquele processo foi iniciado e prosseguiu tendo como único sujeito passivo (embargado) o anterior proprietário da fracção, C, que intentara a acção de despejo. Depois de ter sido realizada a venda da referida fracção nem sequer ocorreu a modificação subjectiva da instância processual, através do pertinente incidente de habilitação, continuando o referido embargado (com o respectivo mandatário) a assumir, até à decisão final, a defesa da posição que tomara na contestação. Tal porém, não permite ao ora agravante furtar-se aos efeitos jurídicos da decisão definitiva que, tendo julgado procedentes os embargos de terceiro, determinou a restituição da fracção à locatária. Tão pouco é viável discutir, de novo, questões que se mostram cobertas pelo caso julgado. Com efeito, decidida, em termos definitivos, a procedência dos anteriores embargos de terceiro e executada a restituição do locado, está o ora agravante impedido de suscitar de novo a reapreciação da qualidade jurídica que foi reconhecida à embargante B, face ao disposto no art. 271º, nº 3, do CPC. Segundo esta norma, a transmissão do direito substantivo não provoca imediatos efeitos na legitimidade processual. Ao invés, se não for promovida, mediante iniciativa dos interessados, a habilitação do cessionário do direito que é objecto do litígio judicial, o transmitente continua a deter legitimidade, ainda que de natureza extraordinária ou indirecta,[1] e a sentença proferida produzirá efeitos na esfera do adquirente. Com ressalva dos casos em que a acção está sujeita a registo (o que não ocorre, designadamente, com as acções possessórias ou com os embargos de terceiro) o adquirente, apesar de intervir formalmente no processo, fica vinculado ao caso julgado aí produzido,[2] resultando da lei que a manutenção do adquirente, como parte formal no processo, assume a natureza e os efeitos da substituição processual.[3] Porque nos referidos embargos de terceiro foi ordenada a restituição da fracção à locatária que dela fora desalojada, o caso julgado formado vincula ora agravante que na pendência dos embargos adquiriu a titularidade do direito de propriedade.[4] 2.3. Também numa outra perspectiva, agora ligada ao pressuposto formal da legitimidade activa relativamente aos embargos de terceiro, se verifica, de modo evidente, que o agravante nem sequer tem a qualidade necessária para a dedução de embargos, já que não pode ser considerado "terceiro".[5] Tendo o agravante adquirido o bem cuja restituição vem pedir daquele que anteriormente fora demandado num outro processo judicial, a sentença de embargos era-lhe directamente oponível. E se podia ser directamente demandado na acção executiva, nos termos do art. 57º do CPC, isso significa indubitavelmente que lhe falta aquela qualidade legitimadora. 2.4. Foi ainda suscitada a questão da inadequação dos embargos de terceiro para efeitos de a arrendatária obter a restituição da posse, cumpre conhecer da mesma. Os embargos não constituem mecanismo processual exclusivo dos verdadeiros possuidores, estando também disponíveis para os detentores equiparados, para efeitos de recuperarem a detenção material perdida. Assemelhando-se às acções de restituição de posse, pressupõem, além do mais, a prova da consumação do esbulho, permitindo que, após o reconhecimento da qualidade de possuidor (ou de detentor equiparado), seja determinada a entrega do bem. Ora, na medida em que a embargante era efectiva arrendatária e estivera no gozo da fracção quando dela foi despejada por efeitos da execução da sentença proferida em acção de despejo proposta contra um terceiro indivíduo, os embargos de terceiro contra a diligência judicial que executou o despejo eram, na verdade, o meio processual idóneo para reconstituir a situação anterior. Não faz o menor sentido exigir que, em vez da utilização de um meio específico para arredar os efeitos de uma decisão judicial, a arrendatária tivesse de recorrer a uma outra acção autónoma, tanto mais que os embargos de terceiro eram e continuam a ser, em termos substanciais, um meio processual que reúne todas as características de uma acção possessória. Por outro lado, é destituída de qualquer base legal a pretensa exigibilidade no que concerne ao recurso a uma acção de natureza creditícia em vez de optar, como optou, pelos embargos de terceiro. 3. Assumida a improcedência dos embargos, não se esgotam por aqui os poderes legais que devem ser jurisdicionalmente exercidos. Como se viu, a improcedência dos embargos, liminarmente detectada pelo Mº Juiz a quo, era por demais evidente. A falta de apoio legal face ao disposto no art. 271º, nº 3, do CPC, ainda era mais flagrante. Toda esta evidência nos reconduz à apreciação do comportamento processual do agravante (e do seu mandatário) no âmbito do instituto da litigância de má fé. 3.1. O presente processo constitui mais um episódio de uma verdadeira saga em que a arrendatária, ora embargada, se viu envolvida tendente a conseguir o efectivo despejo da fracção autónoma. Despoletada e desenvolvida pelo anterior proprietário, nos termos que os diversos apensos o demonstram, prosseguiu mesmo depois de, em 1993, a fracção ter sido alienada ao actual proprietário, ora agravante. Num primeiro momento, este manteve-se oculto: malgrado a modificação da titularidade jurídica da fracção (em cuja escritura de compra e venda se referia que constituía a morada do agravante), não foi despoletado nem por si nem sequer pelo transmitente (afinal representados pelo mesmo advogado) o incidente de habilitação do cessionário. Isto apesar de a sentença apenas ter sido proferida em 1997 e de a execução respectiva ter ocorrido em 2000. Num segundo momento, o mesmo causídico, que agora surge a patrocinar o agravante, limitou-se a dar a notícia da mudança de titularidade e a declarar a sua intenção de renunciar ao mandato. Apesar disso, não foi accionada a habilitação do adquirente; tão pouco a renúncia anunciada foi consumada, pois que continuou a exercer o patrocínio judiciário na tramitação subsequente e nos recursos para a Relação e para o Supremo Tribunal de Justiça, sem que jamais tenha sido suscitada a questão. [6] Estes embargos representam o terceiro acto, em que o embargante surge abertamente a provar da qualidade de proprietário para, numa aparente demonstração de total alheamento relativamente ao que anteriormente fora decidido, invocar o direito de reocupar a fracção, contrariando os efeitos decorrentes da entrega judicialmente decretada. Fê-lo o embargante como se não soubesse, ou não devesse saber, que a mera invocação daquela titularidade não basta para conseguir novo despejo da locatária, que mais uma vez foi demandada e, não fora o indeferimento liminar, se veria confrontada com a necessidade de se defender. 3.2. Não pode ficar sem a adequada censura e o ajustado sancionamento o modo como foi feito, mais uma vez, uso do direito fundamental de acesso aos tribunais. Os autos retratam exuberantemente a estratégia que foi delineada para conseguir o despejo da fracção, sendo de realçar a "desenvolta” demanda de um terceiro por parte do anterior proprietário, a fim de obter um título de despejo do locado. Como acabou por ser reconhecido na sentença proferida nos anteriores embargos de terceiro, que foi confirmada nesta Relação, o anterior proprietário sempre estivera a par da inveracidade dos factos por si alegados (que, diga-se, foram processualmente veiculados pelo seu mandatário judicial) para obter o despejo. E apesar de saber que estava a demandar um "arrendatário" imaginário, não deixou de executar o despejo.[7] Só a reacção da locatária efectiva, em 18-12-90, e a batalha judicial que se prolongou até ao ano 2000, passando pela data em que a fracção foi vendida ao ora agravante, evitou a consumação definitiva dos efeitos de uma sentença injusta, na medida em que contrariava a realidade substantiva e em que fora alcançada através de um mecanismo ínvio. Tudo isso motivou a condenação do anterior proprietário como litigante de má fé numa indemnização, de montante verdadeiramente exemplar (fixado em PTE 1.000.000$00), e na multa de 25 UC’s. A esta estratégia não foi alheio o Exmº mandatário do anterior proprietário e que, apesar daquela condenação e da oportuna comunicação para a Ordem dos Advogados, agora surge a patrocinar o agravante tentando envolver, sob o manto de uma aparente consistência jurídica, uma pretensão cuja ilegitimidade, como sabe ou deveria saber, é manifesta. 3.3. Vale a pena recordar, antes de mais, os passos fundamentais da decisão que, nos anteriores embargos de terceiro, sancionou a litigância de má fé e que por esta Relação foi confirmada: Naquela se refere a dado passo, em tom de natural e justificado desabafo, que "por mais louvável que seja o propósito do legislador processual em consagrar princípios de cariz marcadamente ético. alguns intervenientes teimam sistematicamente em fazer deles «letra morta»" (fls. 291, vº). Noutro lado se afirma que a instauração da acção de despejo foi "uma maneira ardilosa de obter o despejo da embargante" e que acabou por ser executada uma "decisão que sabia objectivamente injusta fruto de um processo destituído de fundamento válido" (fls. 292). Por fim, reportando-se a quem exercera o patrocínio judiciário, refere-se o seguinte: "lastima-se naturalmente que em tal propósito o embargado fosse ancorado pelo mesmo ilustre mandatário que melhor do que ninguém estava em condições de obviar á consumação de tão gritante injustiça" (fls. 292, vº). Foi tudo isto que determinou a condenação do embargado como litigante de má fé e que, relativamente ao seu mandatário, motivou a comunicação à Ordem dos Advogados, nos termos e para efeitos do disposto no art. 459º do CPC, tendo em conta os deveres de natureza legal e deontológica que incidem sobre que exerce a advocacia. Importa ainda reter da consulta que se fez dos diversos apensos cuja junção foi ordenada o seguinte: - A compra e venda foi realizada em 5-6-93; - Nada se refere em sentido inverso, tendo, assim, ocorrido a imediata transferência dos poderes de proprietário para o ora agravante que, de acordo com a escritura, pagou pela fracção a quantia de PTE 7.000.000$00; - Na escritura pública o ora agravante é identificado como tendo a sua residência na fracção que acabava de comprar; - A partir da escritura foi o ora agravante o único interessado na manutenção da ocupação e, assim, na improcedência dos embargos de terceiro. - Apesar de ter sido convocado a pronunciar-se sobre o que evidentemente ressaltava dos arts. 271º, nº 3, e 57º do CPC, com naturais reflexos na viabilidade dos embargos e no pressuposto da legitimidade activa, o embargante não respondeu em tempo útil.[8] 3.4. Perante este quadro e face à evolução processual ditariam as leis do bom senso que o embargante recolhesse à sua situação de senhorio transmitida por força da escritura de compra e venda. Que não! Como se fora apanhado de surpresa (ele que, desde 1993, era proprietário; ele que, então, fora dado como residente na fracção a que os embargos se reportam), veio insurgir-se contra a entrega que já foi executada.[9] Como já se disse, a argumentação empregue para a sustentação da sua tese não conseguiu enfrentar minimamente a norma que, nos termos do art. 1057º do CC, importa para o adquirente a assunção da qualidade de locador que existia no momento da realização da compra e venda. Por outro lado, a alusão à natureza do direito do locatário de modo algum consegue explicar a pretensa inviabilidade do recurso aos embargos de terceiro, como meio de defesa da posição da anterior embargante, tendo em conta que também esse meio possessório podia veicular uma pretensão dirigida ao senhorio/embargado no sentido de lhe restituir a fracção que persistia onerada com o contrato de arrendamento. Se a tudo isso se aditar a falta da qualidade de terceiro, associada ao facto de estar juridicamente vinculado aos efeitos de uma decisão de que o agravante (e, obviamente o seu mandatário) tinha conhecimento quando interpôs os embargos, fica exposto o uso abusivo de um instrumento processual revelador de litigância de má fé. Não pode consentir-se que se faça das leis sobre o acesso aos tribunais um uso de tal modo inadequado que, em vez da resolução de efectivos conflitos, os Tribunais sejam confrontados com pretensões destituídas de fundamento legal e racional e a que subjazem normas de conduta reprováveis. Tal como não pode admitir-se que um advogado, legalmente vinculado a colaborar a deveres de ordem legal e deontológica, não se coíba de dar apoio (ou incentivo) a estratégias que são flagrantemente contrárias ao Direito e à Justiça. 3.5. Nos anteriores embargos de terceiro, cuja decisão foi proferida quando já era seguro que o actual embargante havia adquirido o direito de propriedade, já foi exemplarmente sancionado o comportamento que se caracterizou pela demanda de um arrendatário fictício, para conseguir, como veio a ocorrer, num primeiro momento, o despejo da fracção ocupada pela arrendatária real. Agora, do que se trata é de continuar a apreciar a conduta abertamente assumida pelo verdadeiro proprietário da fracção sugestivamente representado pelo mesmo advogado. O contexto em que estes embargos se inserem agrava o grau de ilicitude do embargante. Aquilo que isoladamente considerado poderia ser encarado, ainda que numa perspectiva benévola, como exercício legítimo do direito de acção, assume, nas circunstâncias que os autos revelam, uma gravidade que não pode nem deve ser ignorada pelo Tribunal. Os embargos de terceiro, com inclusão deste agravo quer pelo embargante foi apresentado, apresentam-se manifestamente destituídos de qualquer fundamento de facto ou de direito, tendo em conta que já anteriormente fora proferida uma sentença oponível ao ora embargante, nos termos do art. 271º, nº 3, do CPC. Estamos, doutra banda, face a um mecanismo que o embargante, na linha do seu antecessor, accionou para conseguir protelar a estabilização da situação da relação locatícia, continuando a alvoroçar, sem fundamento sério, a legítima arrendatária. A instauração dos embargos de terceiro e, depois do indeferimento liminar, a interposição do agravo só se compreendem como passos de uma mesma estratégia que, contra o direito substantivo, pretende fazer reverter a situação a seu favor, porventura através do cansaço da locatária, de um qualquer eventual deslize processual que ocorra na defesa da sua posição ou da impossibilidade de suportar as despesas forenses que os sucessivos processos necessariamente determinam. A pressão psicológica a que qualquer cidadão fica sujeito quando é confrontado com pretensões deduzidas em Tribunal, mesmo quando destituídas, como ocorre agora, de qualquer fundamento, não pode deixar de ser civilmente sancionada pela única via que a este Tribunal se apresenta: a condenação como litigante de má fé. 3.6. Neste contexto, para além de se confirmar a manifesta falta de procedência de uma pretensão que o ora embargante deduziu, patrocinado pelo mesmo mandatário que anteriormente representou os interesses do anterior proprietário, sobreleva, acima de tudo, a desconsideração pelos deveres de boa fé processual, revelada pelo seguinte: a) Dedução de pretensão (na petição e no recurso) que o embargante, como proprietário que era desde 1993, sabia, ou deveria saber, que não tinha qualquer fundamento, tendo em conta o facto de a questão já ter sido anteriormente objecto de decisão judicial que o vinculava (art. 456º, nº 2, al. a)); b) Manifesta reprovação do uso que o embargante fez dos mecanismos de embargos de terceiro e do agravo, tendo em vista alcançar um objectivo que, a diversos títulos, não goza de apoio legal, pretendendo, por via de uma aparente diversidade de processos e de posições jurídicas, contornar os efeitos produzidos por uma anterior decisão judicial, aliás, confirmada nesta Relação 456º, nº 2, al. d)); c) Merece ainda especial destaque a actuação directamente imputada ao Exmº mandatário do agravante que nem sequer pôde invocar o desconhecimento da existência dos anteriores embargos de terceiro em que formalmente patrocinou o anterior proprietário e onde teve extensa intervenção. A sua actuação é tanto mais grave quanto é certo que já na anterior decisão fora detectada a violação de deveres profissionais que motivaram a comunicação à Ordem dos Advogados, entidade com exclusiva competência disciplinar relativamente aos respectivos membros. O patrocínio nestes autos continua a revelar a quebra de deveres de ordem legal constantes do art. 76º do Estatuto da ordem dos Advogados que determina que o advogado seja, também, "servidor da justiça e do direito", estando-lhe vedado "advogar contra lei expressa" (como a norma do art. 271º, nº 3, do CPC) ou "promover diligências reconhecidamente ... prejudiciais para a correcta aplicação da lei ou a descoberta da verdade", além de "recusar o patrocínio de questões que considere injustas" (art. 78º, als. a), b) e c)). Aliás, como refere Lebre de Freitas, "a falta manifesta de fundamento jurídico da pretensão e o uso de meios e expedientes meramente dilatórios são, em princípio, mais imputáveis ao mandatário do que á parte que patrocina".[10] IV – Conclusão: Face ao exposto, acorda-se em negar provimento ao agravo, mantendo a decisão recorrida. Como litigante de má fé, condena-se o embargante na multa de 30 (trinta) UC's. Para efeitos do art. 459º do CPC, comunique à Ordem dos Advogados o teor deste acórdão logo que o mesmo transite em julgado. Custas a cargo do agravante. Notifique. Lisboa, 3-12-02 (António Santos Abrantes Geraldes) [1] Cfr. Paula Costa e Silva, A Transmissão da Coisa ou Direito em Litígio, pág. 170.(Manuel Tomé Soares Gomes) (Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado) _________________________________________________ [2] Como refere Paula Costa e Silva, a “vinculação do transmissário aos efeitos da decisão é um corolário necessário da legitimidade extraordinária atribuída ao transmitente” – ob. cit., pág. 279. Cfr. ainda Augusta Ferreira Palma, Embargos de Terceiro, pág. 25, nota 38. [3] Cfr. Miguel Mesquita, A Apreensão de Bens em Processo Executivo e Oposição de Terceiro, 2ª ed., pág. 35. É isso que possibilita que, nos termos do art. 57º do CPC, a sentença possa ser executada directamente contra o adquirente (Lebre de Freitas, in CPC anot., vol. I, pág. 116, e Miguel Mesquita, ob. e loc. cit.). [4] O legislador, prevenido que deve ser relativamente a determinadas manobras que poderiam ser realizadas para esvaziar o conteúdo de sentenças judiciais, deu aqui prevalência, com toda a justificação, às “razões de segurança jurídica”, por forma a obviar a que a parte nisso interessada pudesse frustrar a “eficácia da sentença, praticando actos de transmissão, eventualmente sucessivos, na pendência da causa” – Lebre de Freitas, CPC anot., vol. I, pág. 482. [5] Cfr. Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, pág. 300 [6] Se tal se tornasse necessário – e não é – seria interessante saber quem terá suportado os honorários de advogado respeitantes à complexa e longa actividade processual que se desenrolou depois de ter sido realizada a escritura de compra e venda, em 1993, designadamente quando se tratou de defender, em sede do recurso para a Relação e para o Supremo Tribunal de Justiça, a posição contrária à da embargante. Tal como o seria conhecer por que razão, tendo o referido mandatário suscitado nos anteriores embargos de terceiro a renúncia ao mandato, com a invocação de que a fracção teria sido vendida, continuou, apesar disso, a assegurar o patrocínio judiciário do transmitente até ao trânsito em julgado da decisão. [7] Na decisão dos anteriores embargos a actuação foi qualificada como "maquiavélica", qualificação que também foi assumida no acórdão desta Relação que a reapreciou (fls. 391 do apenso C). [8] A resposta que foi apresentada veio fora de prazo e o agravante não pagou a correspondente multa, motivo pelo qual foi ordenado o seu desentranhamento. [9] Obviamente tal "surpresa" não poderia ser invocada pelo seu mandatário que foi quem nos outros processos representou os interesses do anterior proprietário. [10] CPC anot., vol. II, pág. 202. |