Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2915/2004-3
Relator: VARGES GOMES
Descritores: ABUSO SEXUAL
DEPOIMENTO INDIRECTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/29/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário: Porque não especialmente previsto no art.º 126º do CPP, o “depoimento indirecto” não traduz um “método proibido de prova”, mas antes e sim um “meio de prova” - “da prova testemunhal” - por isso de todo admissível de acordo e nas condições fixadas pelo art.º 129º seguinte.
Contudo, e porque não respeita imediatamente aos factos probandos, “o testemunho indirecto só serve para indicar outro meio de prova directo”.
Daí que possa ser, validamente, atendido e livremente valorado pelo Tribunal, desde que este outro meio de prova venha a ser prestado ou “quando for impossível a inquirição da pessoa que disse em razão da sua morte, de anomalia psíquica ou impossibilidade de ser encontrada”.
Decisão Texto Integral: Acordam em audiência neste Tribunal da Relação de Lisboa

Relatório

1- Por douto acórdão proferido nos autos n.º 1629/01.5JDLSB da 7ª Vara Criminal do Círculo de Lisboa, foi o arguido (J) julgado e condenado, para além do mais, “pela prática de um crime de abuso sexual de criança, sob forma continuada, p.p. pelos art.ºs 172-2 e 30-2 do C.Penal, na pena de seis anos e seis meses de prisão” e, “pela prática de um crime de coacção grave, sob a forma continuada, p.p. pelos art.ºs 155-1-b, 154 e 30-2 do C.Penal, na pena de três anos de prisão”, em cúmulo das quais resultou a sua condenação “na pena única de sete anos e seis meses de prisão”.

            1.1- É do assim decidido que o arguido interpõe o presente recurso pedindo a sua absolvição,

(...)


            1.6- Foram colhidos os vistos legais.
           
Procedeu-se à audiência de julgamento com observância das formalidades legais.

            Cumpre agora decidir.

Fundamentação

2- Como se colhe das agora conclusões acima deixadas referidas, o objecto do presente recurso assenta quer na matéria de facto, quer em matéria de direito, concluindo-se ser a aquela, concretamente no que à prova dos factos “3 a 6, 8 a 10 e 12 a 14” respeita, por um lado, “manifestamente insuficiente e contraditória” e, por outro, obtida através de meios proibidos, ou seja, constituindo os depoimentos das testemunhas Drª (C), (ME) e (MM) ouvidas, bem como o “o depoimento do Sr.(AB)”, aqui Assistente, verdadeiros “depoimentos indirectos”, assim considerando violados os princípios da presunção de inocência e do contraditório, tal como e ainda as garantias de defesa, nos termos do disposto nos art.ºs 32º da CRP e 129º do CPP.

            2.1- Atentemos pois e desde já, na matéria de facto julgada provada :

            “1. No ano 2000, o arguido costumava almoçar e jantar no restaurante... «...», naRua de ..., em Lisboa, também frequentado por (AB) e seu filho (EB), nascido em 1995.02.18.
2. O arguido foi aos poucos ganhando a simpatia do (AB) e do menor, comprando para este doces e outra prendas. E assim, em finais de 2000, passou a convidar o menor para dar passeios, o que o menor aceitava, com o consentimento do pai. Iam passear nomeadamente para o Jardim Zoológico ou à Feira Popular.
3. Estando o menor cada vez mais à vontade com o arguido, este começou a levá-lo para a cave onde reside, sob o pretexto de tomar conta dele quando o pai não podia fazê-lo.
4. E, nestas ocasiões, o arguido, num número indeterminado de vezes, introduzia o pénis na boca do(EB), metia na boca o pénis do (EB); dava-lhe beijos na boca acariciava-lhe os mamilos; fazia que o (EB) manipulasse o pénis do arguido em movimentos de massagem até ejacular; também encostava o pénis nas nádegas do (EB) junto ao ânus.
5. Para evitar que o(EB) contasse ao pai o que se passava, o arguido ameaçava-o dizendo-lhe que, se o menor o fizesse diria ser tudo mentira e que o pai do(EB) iria preso;
6. O menor aceitou como verdadeiras estas ameaças e passou a sentir-se oprimido e inseguro. Por esse facto e pelas referidas práticas sexuais a que o arguido o sujeitava, o menor começou a vomitar e a defecar nas cuecas, sobretudo quando se encontrava na escola, e a ter mais alterações de comportamento que foram notadas por quem lidava com o(EB).
7. Por tais alterações de comportamento, o menor passou a receber acompanhamento pedopsiquiátrico no Hospital de D. Estefânia, onde era conduzido pelo pai e pela hóspede que vivia num quarto por este arrendado.
8. Acabou por contar a esta hóspede, muito em segredo, o que se passava com o arguido, e foi esta quem avisou o pai (AB) .
9. A última vez que o menor (EB) e o arguido estiveram juntos sozinhos, foi em 2001.04.22, entre as 15.00 e as 19.00 horas. Até esse data, pelas ameaças referidas, o arguido conseguiu que o menor não contasse as práticas sexuais a que o arguido o sujeitava.
10. O arguido agiu livre e conscientemente, para satisfazer os seus desejos libidinosos, e com perfeito conhecimento da idade do menor, bem sabendo que com isso ofendia a moral sexual reconhecida e tutelada pela ordem jurídica, atentando contra a liberdade de determinação sexual do menor (EB), e incutindo neste os referidos sentimentos de opressão e insegurança, com distúrbios de natureza fisiológica e psicológica, e sabendo também que tais condutas eram proibidas como crimes.
11. O arguido não tem antecedentes criminais registados. Fez a 4ª classe. Vive sozinho, recebendo uma reforma de 300 euros mensais. Era bem conceituado e considerado boa pessoa pelos frequentadores do restaurante e o dono deste.
12. O menor era, antes da ocorrência dos factos aqui descritos, uma criança saudável, alegre e terna. E em consequência deles tornou-se uma criança triste, envergonhada e isolada das outras crianças.
13. A criança e o pai sentiram-se profundamente afectados na sua vida pessoal e dignidade, e o menor ficou com uma vergonha profunda e um estigma psicológico perdurável. O pai do menor sentiu-se profundamente revoltado pela conduta do arguido.
14. Em consequência das deslocações a consultas médicas, o pai do menor despendeu em transportes 150 euros e deixou de ganhar 200 euros”.

(...)

2.3- Temos de convir que o Recorrente assenta todo o peso “motivatório” do presente recurso no facto de ter ocorrido utilização de meios de prova proibidos, na medida em que, os produzidos - ou sejam, os depoimentos das testemunhas Drª(C) e Drª (ME), bem como e também da testemunha (MM) e o “depoimento” do Assistente (AB) - consubstanciam “depoimentos indirectos nos termos do art.º 129º do CPP, tendo em conta que não foi ouvido o (EB)”.

            Assim sendo,

 a) Quer no que à insuficiência para a decisão da matéria de facto provada respeita, quer também e ainda quanto à contradição da fundamentação, que tem de ser insanável, serão apenas e tão só vícios decorrentes daquele.
Ainda assim,
Sendo consabido, e por um lado, como expressamente decorre do art.º 410º n.º 2 do CPP, que devem um e outro resultar “do texto da decisão recorrida”,
E presentes que são, por outro, os elementos constitutivos do ilícito de abuso sexual de crianças p.p. no art.º 172º n.º 2 do CP - prática de “coito anal ou coito oral com menor de 14 anos” - bem como a matéria de facto julgada provada e referenciada em 2.2- 4.) - dúvidas não restarão desde logo da sua suficiência e não contradição invocadas para se concluir pela prática do ilícito em causa.
Este, porém, e adianta-se já, terá de restringir-se ao dito “coito oral” e não já ao “coito anal”, como considerou o douto acórdão.
Na verdade, exigindo-se no “coito” - legalmente equiparado à “cópula” - a penetração pelo pénis (2), e provada que foi tão só a matéria referenciada em 2.2- 4. - “também encostava o pénis nas nádegas do(EB) junto ao ânus” - não pode considerar-se, como o foi, verificado este acto, mas apenas e tão só aquele do “coito oral”, já que, como também expressamente se consignou, provado ficou “se bem que não se provasse a introdução e ejaculação no ânus”.
Aqui, cremos, mais do que insuficiência ou contradição da matéria de facto nos termos acima referidos, ocorrerá sim um verdadeiro erro notório da apreciação da prova do n.º 2 al. c) do citado Art.º 410º.

b) Dos depoimentos indirectos

            1- Cremos, desde logo, laborar o ora Recorrente em erro manifesto nesta matéria.
O “depoimento indirecto” não traduz um “método proibido de prova”, como diz, já que não especialmente previsto no art.º 126º do CPP, mas antes e sim um “meio de prova” - “da prova testemunhal” - por isso e desde logo, de todo admissível, de acordo e nas condições fixadas pelo art.º 129º seguinte.
Daí que o art.º 348º seguinte - relativo à produção de prova em audiência - expressamente refira que são ali “aplicáveis as disposições gerais sobre aquele meio de prova, em tudo o que não for contrariado” pelo ali disposto.
Contudo, e porque não respeita imediatamente aos factos probandos, “o testemunho indirecto só serve para indicar outro meio de prova directo”.
Daí que possa ser, validamente, atendido e livremente valorado pelo Tribunal, desde que este outro meio de prova venha a ser prestado ou “quando for impossível a inquirição da pessoa que disse em razão da sua morte, de anomalia psíquica ou impossibilidade de ser encontrada(3).
Não ocorrendo nenhuma destas situações “o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova” - n.º 1 do citado art.º 129º.
Igual procedimento é aplicável “ao caso em que o depoimento resultar da leitura de documento da autoria de pessoa diversa da testemunha”, adianta o n.º 2 (4).

Importa pois apreciar se, por um lado, os depoimentos em questão foram prestados de modo a poderem considerar-se indirectos, finalmente e ainda, se foram como tal devidamente valorados pelo Tribunal.

2- O “conhecimento directo dos factos é aquele que a testemunha adquire por se ter apercebido imediatamente deles através dos seus próprios sentidos. No testemunho indirecto a testemunha refere meios de prova, aquilo de que se apercebeu foi de outros meios de prova relativos aos factos, mas não imediatamente os próprios factos(5).
Ou seja e ainda : “Se a prova incide imediatamente sobre os factos probandos, estamos perante prova directa ou histórica ; se a prova incide sobre os factos que permitem, com auxílio das regras de experiência, uma ligação sobre o facto probando, temos prova indirecta ou crítica(6).
Estes segundos referidos constituem pois o que se denomina de “testemunho de ouvir dizer”, as chamadas “testemunhas eco”, o “hearsay evidence rule”.

3- Citando Tiedmann, o Il. Prof. Costa Andrade ensina-nos, “de modo propositadamente enxuto”, que a exclusão deste meio de prova “é uma característica de todos os processos de estrutura fundamentalmente acusatória, enquanto que a sua admissibilidade é característica dos processos de fundo inquisitório”, logo e aqui, em tudo colidente “com os princípios de um processo próprio de um Estado de direito... incompatível com situações kafkianas e inquisitoriais(7).
São, na verdade, os princípios da imediação e do contraditório que estão agora e aqui em causa, uma vez que inexiste a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes processuais, bem como e também porque “se não traz ninguém a tribunal que possa ser contra-interrogado e cujo depoimento possa ser devidamente apreciado no que respeita à sua credibilidade”.
E conclui aquele Il. Prof. :
Do que fica dito resulta líquida uma conclusão : a admissibilidade da hearsay obtained evidence é totalmente impensável num processo que se pretende acusatório”, não valendo “a pena determo-nos sobre as excepções eventualmente admitidas no plano da doutrina, jurisprudência ou direito comparados. Por serem escassas...”.

4- Decorreram agora mais de duas dezenas de anos desde então, mas permanecem de todo válidas e actuais estas considerações, como facilmente se colhe e constata da, já vária, jurisprudência constitucional que, entretanto, vem sendo proferida entre nós nesta matéria (8).
Dela respigamos agora :
Entende-se que a regulamentação consagrada na norma do n.º 1 do art.º 129º do CPP se revela como proporcionada, nela se precipitando uma adequada ponderação dos interesses do arguido em poder confrontar os depoimentos das testemunhas de acusação, os da repressão penal, prosseguidos pelo acusador público e, por último, os do tribunal, preocupado com a descoberta da verdade através de um processo regular e justo (due process of law).
A disciplina contida no referido art.º 129º n.º 1 também não viola o princípio da estrutura acusatória do processo, nem o da imediação, nem a regra do contraditório ; de facto, aquele preceito, ao mesmo tempo que admite o testemunho de ouvir dizer, impõe que as pessoas referenciadas nesse depoimento sejam, elas próprias, chamadas a depor. E, desse modo, garante a imediação e possibilita a cross-examination.
Só assim não será (isto é, as pessoas referidas não são chamadas a depor) se a sua inquirição não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas. Nessa hipótese, tornando-se impossível interrogar as pessoas que as testemunhas de outiva indicaram como fonte, tem de considerar-se razoável e proporcionada a limitação introduzida à proibição do depoimento indirecto. Tanto mais que este depoimento é apreciado pelo tribunal, segundo as regras da experiência e o princípio da livre convicção (cfr art.º 127º do CPP”.

5- Feita esta resenha sumária, vejamos então se os depoimentos referidos consubstanciam, todos eles, verdadeiros depoimentos indirectos, como se conclui.

(...)

            c) Como deixámos referido, o regime-regra vigente entre nós - e não só - é o do depoimento directo.
            Se é certo que, como diz J. Bentham, o “ouvi dizer” seja, em muitos casos e muitas vezes, “inferior ao testemunho oral directo”, sustentava o “pai” da conhecida corrente utilitarista que a pura “exclusão do hearsay que constituísse a melhor prova disponível era susceptível de levar a conclusões fácticas mais sujeitas a erro do que a sua admissão(9).
            Daí, talvez, a boa posição adoptada pelo legislador português, sobretudo em circunstancialismos como o dos autos, em que em causa está um menor.
           
1- Como deixamos referido, por claramente decorrente do disposto no art.º 129º n.º 1, segunda parte, do CPP, a utilização e subsequente valoração do depoimento e das declarações de ouvir dizer sem a sua confirmação pela fonte, são claramente incompatíveis com os princípios estruturantes, vigentes em processo penal, do acusatório, do contraditório e da imediação.
Daí a ausência de fundamentação, nessa parte, do douto acórdão, levando, nos termos do disposto no art.º 379º n.º 1 al. a) à nulidade do mesmo.
Impõe-se assim : Ou a sua reformulação nessa parte, ou a confirmação em falta, esta através da audição do menor (EB).

2- Não queremos deixar de salientar finalmente, que o Tribunal, atento à imposição legal referida, não deixou de registar a possibilidade de tal audição, como se colhe da transcrição de fls. 353 e sgs.
     Porém, o “coração” de Themis - sempre importante e necessário mesmo, tantas vezes, nesta, cada vez mais insana, “arte” - dominou sobre a razão.
      Daí a, não expressamente assumida, embora, não audição do menor (EB), agora já com mais de 9 anos de idade.
            A mesma impunha-se todavia, nos termos descritos, consabida que é até a importância inequívoca das declarações da vítima nestes casos, sempre de difícil concretização, pelos eventuais traumas a que se sujeita, e de valoração também, pelas imensas dificuldades da matéria, é certo, mas sempre relevante e determinante também para a Justiça pretendida.
            O Tribunal, estamos certos, se assim o entender, encontrará o como melhor para o fazer, até porque o coração tem sempre razões que a razão não desconhecerá.

3- Face a todo o deixado exposto, julgando-se parcialmente procedente o presente recurso e, consequentemente, acorda-se neste Tribunal da Relação em anular o acórdão proferido devendo o mesmo ser substituído por outro, suprindo o vício da fundamentação nos termos referidos ou, se assim o entender, em cumprimento do citado art.º 129º n.º 1, segunda parte, do CPP, em reabertura da audiência, ouvir o menor e proferir decisão em conformidade.

Por ter decaído, condena-se o Recorrente no mínimo de taxa de justiça.
*
  Lisboa, 29/11/04

(Mário Manuel Varges Gomes - Relator)

(Maria Teresa Féria Gonçalves de Almeida)

(António Manuel Clemente Lima)

(João Manuel V.S. Cotrim Mendes - Presidente)

_______________________________________________________________

        

(1) É esta, aliás, a jurisprudência, “praticamente uniforme”, do STJ, de que é exemplo o Ac.de 25/03/04, proferido no proc. n.º 1126/04-5.
(2) Vd no mesmo sentido, J.Figueiredo Dias, Coment. Conimbricense..., Tomo I, págs 472 e Maia Gonçalves, CPPort., Anot. e Coment., 15ª Ed.-2002, pág. 564.

(3) Cfr G.Marques da Silva, Curso..., II, pág. 151.
(4) Cfr também o art.º 356º n.º 7 do CPP.
(5) G.Marques da Silva, ob. e loc. cit.
(6) Cfr Gil Moreira dos Santos - citando Bettiol - in O Direito Processual Penal, Edições ASA, pág. 225.
(7) Vd o seu Parecer in Co. Jur. Ano VI, 1981, Tomo 1, pág. 6.
(8) Vd, de entre vários outros, os Ac. do TC n.ºs 213/94, de 2/03 e 440/99, de 8/07, respectivamente in BMJ 435, 155 e 489, 5.

(9) In Rationale of Judicial Evidence, apud Ac. do TC n.º 213/94, de 2/03, BMJ 435, 169.